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Análise agroecológica de dois paradigmas modernos Agroecological analysis of two modern paradigms GOULART, Fernando F. 1 ; VANDERMEER, John 2 ; PERFECTO, Ivette 3 ; MATTA- MACHADO, Rodrigo P. 4 1 Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil, [email protected]; 2 UniversityofMichigan, ANN Arbor/MI, USA, [email protected]; 3 University of Michigan, [email protected]; 4 Universidade Federal deMinasGerais, Belo Horizonte/MG, Brasil, [email protected] RESUMO O presente estudo é uma revisão sobre a contribuição da agroecologia para o debate conservacionista e desenvolvimentista. O discurso tradicional da biologia da conservação traz um enfoque exclusivo nas unidades de conservação (UCs), prejudicando os esforços de preservação da matriz paisagística como todo. Por outro lado, o discurso pautado por alguns desenvolvimentistas é levado por uma diferente, mas não menos equivocada, corrente de pensamento que acredita na superioridade da produção agrícola intensiva frente à agricultura familiar. No Brasil, essa modernização precoce da agricultura teve consequências catastróficas para o pequeno produtor bem como levou o aumento da pobreza no campo e nas cidades. Através da crítica agroecológica, ambas as correntes, a conservacionista e a desenvolvimentista, se baseiam em preceitos falaciosos. Tendo em vista essas contradições, o estudo da agroecologia, mais especificamente o estudo dos sistemas agroflorestais diversificados, contribui para a conservação e traz uma maior responsabilidade social para a produção agrícola. PALAVRAS-CHAVE: ecologia teórica; conservação; sistemas agroflorestais. ABSTRACT This work reviews the contribution of agroecology to both conservation and development debate. From the ecological point of view, the misunderstanding notion of “pristiness” and “untamedeness” of natural habitats misled conservation efforts from the landscape level to the conservation units. On the other hand, developers are guided by a different, but not less fallacious, view that is biased towards the superiority of agricultural intensification compared to small scale agriculture. In Brazil the precocity of agriculture mechanization supported by the government during the 70s had catastrophic consequences to small farmers increasing rural and urban poverty. Through an agroecological perspective, both conservation and development are based in wrong concepts. Therefore, the study of agroecology, more specifically high diverse agroforestry systems, can help conserve biodiversity as well as make agricultural production in a more social responsible way. KEY WORDS: theoretical ecology; conservation; agroforestry systems. Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de Agroecologia. 4(3): 76-85 (2009) ISSN: 1980-9735 Correspondências para: [email protected] Aceito para publicação em 10/06/2009

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Análise agroecológica de dois paradigmas modernos

Agroecological analysis of two modern paradigms

GOULART, Fernando F.1; VANDERMEER, John2; PERFECTO, Ivette3; MATTA-MACHADO, Rodrigo P.4

1Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil, [email protected]; 2UniversityofMichigan, ANNArbor/MI, USA, [email protected]; 3University of Michigan, [email protected]; 4UniversidadeFederal deMinasGerais, Belo Horizonte/MG, Brasil, [email protected]

RESUMOO presente estudo é uma revisão sobre a contribuição da agroecologia para o debate conservacionista edesenvolvimentista. O discurso tradicional da biologia da conservação traz um enfoque exclusivo nasunidades de conservação (UCs), prejudicando os esforços de preservação da matriz paisagística comotodo. Por outro lado, o discurso pautado por alguns desenvolvimentistas é levado por uma diferente,mas não menos equivocada, corrente de pensamento que acredita na superioridade da produçãoagrícola intensiva frente à agricultura familiar. No Brasil, essa modernização precoce da agricultura teveconsequências catastróficas para o pequeno produtor bem como levou o aumento da pobreza no campoe nas cidades. Através da crítica agroecológica, ambas as correntes, a conservacionista e adesenvolvimentista, se baseiam em preceitos falaciosos. Tendo em vista essas contradições, o estudoda agroecologia, mais especificamente o estudo dos sistemas agroflorestais diversificados, contribuipara a conservação e traz uma maior responsabilidade social para a produção agrícola.

PALAVRAS-CHAVE: ecologia teórica; conservação; sistemas agroflorestais.

ABSTRACTThis work reviews the contribution of agroecology to both conservation and development debate. Fromthe ecological point of view, the misunderstanding notion of “pristiness” and “untamedeness” of naturalhabitats misled conservation efforts from the landscape level to the conservation units. On the otherhand, developers are guided by a different, but not less fallacious, view that is biased towards thesuperiority of agricultural intensification compared to small scale agriculture. In Brazil the precocity ofagriculture mechanization supported by the government during the 70s had catastrophic consequencesto small farmers increasing rural and urban poverty. Through an agroecological perspective, bothconservation and development are based in wrong concepts. Therefore, the study of agroecology, morespecifically high diverse agroforestry systems, can help conserve biodiversity as well as make agriculturalproduction in a more social responsible way.

KEY WORDS: theoretical ecology; conservation; agroforestry systems.

Revista Brasileira de AgroecologiaRev. Bras. de Agroecologia. 4(3): 76-85 (2009)ISSN: 1980-9735

Correspondências para: [email protected] para publicação em 10/06/2009

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Édens insulares em pleno inferno:conservacionismo ou conservadorismo?

Historicamente, a biologia da conservação temconcentrado seus esforços dentro das Unidadesde Conservação (UCs) (VANDERMEER et al.,2008; DIEGUES, 1998). Muito do enfoqueexclusivo nas UCs se baseia em uma visãodogmática e mitológica das paisagens naturais.Esta visão conhecida como Mito da NaturezaIntocada (DIEGUES, 1998), leva a um enfoqueexcessivo na conservação da mega-faunacarismática e em paisagens paradisíacas,baseado primeiramente em valores estéticos esecundariamente em teorias ecológicas. Sob essaótica, os ambientes agrícolas não são legítimos osuficiente para merecer esforços de conservação(VANDERMEER et al. 2008). Essa correnteconservacionista tradicional ignora o fato de quegrande parte da diversidade dessas paisagens“virgens” é, na verdade, resultado de manejos porparte de populações humanas.

Paralelamente à questão epistemológica,existem, a princípio, três problemas teóricos naconservação focada exclusivamente nas UCs(VANDEMEER et al. 2008). Primeiramente, aquantidade de biodiversidade compreendida poressas áreas é mínima se comparada ao que nãoestá protegido. Rodrigues e Gaston (2002)estimaram que 90% das espécies do mundoresidem fora das unidades de conservação.Portanto, por mais que novos parques sejamcriados, a biodiversidade residente fora desseslimites será sempre esmagadoramente maior. Asegunda contradição teórica dessa estratégiarefere-se à natureza temporária das reservas, seanalisadas a longo prazo (VANDERMEER et al2008). Por exemplo, a Grande Reserva do Pontaldo Paranapanema, no extremo oeste de SãoPaulo, criada no início dos anos 40, possuíaoriginalmente aproximadamente 300.000 hectares.Na década seguinte, o governador Ademar deBarros distribuiu terras dentro dos domínios da

reserva para seus amigos e correligionários. Hojeresta não mais do que 60.000 hectares protegidos(CULLEN et al. 2005). Além da influência defatores políticos nas UCs, como o exemplo citadoacima, outros fatores naturais como, queimadas,secas, furacões, vulcões e enchentes podemquestionar a viabilidade das UCs como refúgioseternos da diversidade.

Finalmente, a natureza insular das áreasprotegidas, gera altas taxas de extinção de acordocom a Teoria de Biogeografia de Ilhas(MACARTHUR & WILSON, 1967). Estudos deviabilidade populacional de mamíferos mostramque mesmo os maiores e mais bem manejadosparques possuem altas taxas de extinção. Dessaforma, as Unidades de Conservação não são porsi só capazes de manter tais populações a longoprazo (NEWMARK, 1995). Segundo esse estudo,a área necessária para a manutenção dabiodiversidade através da instalação de reservasestaria fora dos limites plausíveis do ponto devista econômico e político. De acordo com a teoriade metapopulações, um elevado grau deisolamento impossibilita a troca de propágulosentre subpopulações, levando assim a extinçõeslocais, uma vez que estas subpopulações não sãosuficientemente grandes para se manter a longoprazo (LEVINS, 1969). Estudos com comunidadede aves em fragmentos florestais mostram que,apesar do tamanho das populações ser um fatorimportante, a conectividade é igualmente ou, emalguns casos, mais importante para a viabilidadedestas. Portanto, em determinadas ocasiões,populações pequenas e conectadas são maisviáveis do que populações grandes e isoladas(MARTENSEN et al. 2008). Dessa forma, mesmoque as populações residentes em unidades deconservação fossem suficientemente grandes, oque na maioria dos casos não é verdade, a baixaconectividade, característica da matriz agrícola naqual estão geralmente inseridas, levaria àextinção destas mais cedo ou mais tarde.

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A desfamiliarização do campo:desenvolvimento ou des-envolvimento?

Nos anos setenta, o Brasil sofreu uma drásticamodificação no seu modelo agrícola. Embasadopor uma ideologia desenvolvimentista que sepautava pela crença da superioridade da grandeprodução agrícola e na inviabilidade da produçãofamiliar, o governo criou generosos subsídios paramodernizar o campo. Acreditava-se nocrescimento econômico mediado pela técnicacomo meio de melhorar infinitamente a“performance” da produção agrícola especializada,no intuito de atingir o superávit na balançacomercial através do aumento da produção(BOURLEGAT, 2003). Havia uma necessidade de“domar” uma natureza caótica (em outraspalavras, biodiversa) e torná-la “organizada” e“produtiva”. Dessa forma, o que se caracterizavapor uma paisagem dominada por pequenos eheterogêneos sistemas agrícolas foi gradualmentesubstituído por grandes e mecanizadosmonocultivos.

No Brasil, tal processo resultou em umdesastre social de grandes proporções, levando àmanutenção e/ou aumento da pobreza rural eaumento drástico da pobreza urbana. Amodernização agrícola provocou uma reduçãoprematura da demanda relativa por mão-de-obra,inflacionou o preço da terra, acirrou conflitosfundiários e consequentemente levou à expulsãodo pequeno produtor da fronteira agrícola(GUANZIROLI et al. 2001). Essa expansãoagrícola levou, além de um desastre social, afragmentação dos biomas Mata Atlântica (DEAN,1996) e Cerrado (GUANZIROLI et al. 2001). Cabepontuar que esses ambientes são consideradoshot spots, ou seja, regiões prioritárias para aconservação a nível mundial pela grande riquezade espécies, endemismos e pelo alto grau dedegradação o qual estão sujeitas (MITTERMEIERet al. 1998).

No sul da Bahia, a resistência dos pequenos

agricultores frente à modernização de seuscultivos levou a permanência de parte dacobertura vegetal original. A região, antes dosanos 60, se caracterizava por extensosfragmentos florestais e áreas de sistemasagroflorestais tradicionais de cacau (cabruca).Estes sistemas se assemelham a estrutura damata nativa, uma vez que utilizam o dosseloriginal para o sombreamento do cultivo. Nosanos 60, o governo brasileiro iniciou umacampanha de intensificação desses sistemas. Oprograma consistia em um crédito aos produtoresque transformassem suas cabrucas emmonocultivos através da remoção das arbóreas(JONHS, 1999). Uma vez que o ambiente decabruca pode abrigar grande parte da faunanativa florestal, esse processo levou ao declíniodessas espécies e a fragmentação daspopulações remanescentes (FARIA et al., 2006).Felizmente grande parte dos agricultores nãoparticiparam do programa ou o fizeramparcialmente. Hoje, o que permanece davegetação nativa deve-se em grande parte pelaresistência dos pequenos agricultores queoptaram pela não intensificação dos seus cultivos.

Esse processo de modernização agrícola nãofoi exclusivo do território brasileiro, acometendooutros países subdesenvolvidos da AméricaLatina. Por exemplo, Perfecto e colaboradores(1996) descrevem a gradual substituição decafezais agroflorestais tradicionais pormonoculturas no México. Novamente esteprocesso levou a um prejuízo ecológico. Porexemplo, o declínio de aves migratóriasobservado nos EUA na década de noventa estárelacionado à modernização desses cultivos. NaÍndia, o processo de modernização da agriculturaatingiu os pequenos agricultores com talintensidade que foi verificado uma epidemia desuicídio na classe. Estima-se que 16.000agricultores tenham praticado suicídio em AndhraPradesh entre 1995 e 1997, sendo que a maioria

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dos casos estavam relacionados à abrutamudança no sistema agrícola que afetouprofundamente a cultura camponesa (SHIVA,2000).

Dessa forma, o processo de modernizaçãoagrícola prematuro com sua tendência“desfamiliarizadora” atingiu todo o campesinatobrasileiro, bem como o de outros países.Paradoxalmente, países que ostentam os maioresíndices de desenvolvimento humano, como EUA eJapão, apresentam forte presença da agriculturafamiliar, cujo papel foi fundamental naestruturação de suas economias (GUANZIROLI etal. 2001). A importância do campesinato reside nasobrevivência desse setor na ausência deinvestimentos vultosos em terras e equipamentos.Em termos de produtividade líquida por unidadede área, as pequenas propriedades sãosuperiores aos grandes latifúndios (tab. 1). Adiversificação dos sistemas agrícolas familiarestambém apresenta menor risco de ataque depragas e menores impactos da flutuação demercado (SCHROTH et al. 2004). Por exemplo, noBrasil, apesar da falta de apoio, a agriculturafamiliar é responsável por quase 40% da produçãoagropecuária (tab. 2) e responde por 77% doemprego agrícola. Dessa forma, esse sistemaapresenta, além de uma eficiência econômica,uma eficiência “social”, uma vez que possui umaalta relação entre valor agregado e unidade detrabalho (GUANZIROLI et al. 2001). Esseprocesso de intensificação e “desfamiliarização”da agricultura baseou-se em falsos preceitos deerradicação da fome como um de seus principaispilares. Uma questão pouco debatida no meioagronômico é se, de fato, necessitamos de maisalimentos. Segundo DURNING (1992), habitantesde países desenvolvidos consomem, per capita,três vezes a quantidade de grãos e seis vezes aquantidade de carne consumida por habitantes depaíses subdesenvolvidos. Dessa forma, 48% daprodução mundial de grãos e 61% da produção decarne destinam-se a países desenvolvidos.

Portanto, a questão da fome no mundo estáassociada à má distribuição de alimentos e não àprodução per si. Outra grande contradição dossistemas agrícolas intensivos reside no fato debuscarem o lucro através de uma produçãoexcedente, apesar do fato de que essasuperprodução leva, por sua vez, a queda dopreço do produto. Constatou-se, em umaconferência internacional de empresascafeicultoras na Costa Rica, em 1990, chegou-seà conclusão sobre a causa da crise da produçãodessa mercadoria: a superprodução. A produçãoexcedente levou a queda nos preços no mercadointernacional. Curiosamente, concluiu-se que aforma de reverter essa situação seria produzirainda mais. Dessa forma, o desenvolvimentismo,apesar de se vangloriar pela técnica e umasuposta racionalidade como um de seus métodos,possui objetivos que são muitas vezesdogmáticos, irracionais e ilusórios.

Paralelo ao processo de latifundização,grandes esforços vem sendo realizados no intuitode “re-familiarizar” o campo brasileiro, emoposição à tendência modernizante.

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O conceito de reforma agrária surgiu no Brasilna década de 60 por parte do Partido Comunista esetores progressistas da Igreja Católica. Em 1979surgiu o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra(MST) como um movimento de luta pela terra, ehoje se transformando em um dos maioresrepresentantes da causa agrária (CALDART2001). Contemporaneamente surgirammovimentos ambientalistas que, apesar depossuírem outros objetivos, contavam com asmesmas articulações, bem como com inimigoscomuns, como o grande latifúndio (CULLEN et al.,2005). Dentro desse contexto, muitas alianças têmsido feitas entre movimentos pela reforma agráriae movimentos pela conservação dabiodiversidade.

Conservacionistas e desenvolvimentistas: umacordo entre desacordados

Apesar de alguns ambientalistas econservacionistas se oporem ao sistema agrícolaintensivo, outros acreditam que, indiretamente, talsistema pode ser benéfico à biodiversidade.Muitos dos esforços da conservação dabiodiversidade se baseiam na teoria ecológica daEconomia de Terra, ou Land Sparing (GREEN etal., 2005). Segundo este ponto de vista, aagricultura deve se preocupar em atingir o máximoda produtividade por unidade de área, no intuito

de evitar que novas áreas sejam convertidas.Dessa forma, áreas que seriam utilizadas para aagricultura poderiam, em tese, ser destinadas àconservação da biodiversidade (GREEN et al.,2005). Assim, a intensificação agrícola, apesar detrazer danos à vida silvestre no local onde éimplantada, pode trazer uma contribuição regionalcom a redução da necessidade de conversão denovas áreas não exploradas (GREEN et al. 2005).Sob tal perspectiva, os interessesdesenvolvimentistas que buscam o aumento daprodução agrícola através da mecanização,aumento no uso de insumos e manipulaçãogenética, não se contrapõem aos interessesconservacionistas, desde que algumas áreassejam destinadas à conservação.

Por outro lado, a teoria econômica clássica nãocondiz com a político-ecológica. De acordo com aprimeira, havendo um aumento da eficiência deprodução, a imigração de pessoas e o capitaltambém aumentam. Portanto, a produção estápositivamente correlacionada à demanda de terrae não negativamente, como prediz a Economia deTerras (ANGELSEN & KAIMOWITZ, 2001). Outroproblema dessa teoria reside no fato,anteriormente discutido, de que a produtividadeaumenta com o nível de intensificação do sistema(VANDERMEER et al. 2008). O fato de quepropriedades menores podem ser maisprodutivas, por unidade de área, do que as

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maiores e mais intensificadas, contestam assim asuperioridade dos grandes latifúndios (ROSSET,1999). A relação entre produtividade e área dosestabelecimentos está representada na figura 1 etabela 1.

Contribuições do conceito de Agrofloresta naquebra de dois paradigmas modernos.

Verifica-se, portanto, no cenárioconservacionista e desenvolvimentista atual, doisdogmas paralelos. O Mito da Natureza Intocadaque atrela a redenção da biodiversidade àsUnidades de Conservação e o Mito daMegaprodutividade, que acredita que aintensificação agrícola solucionará o problema dafalta de alimento.

Tal fato contribuiu para uma paisagemparadoxal onde muitas unidades de conservação,apesar de adotarem políticas restritivas, estãoinseridas em uma matriz agrícola extremamenteinóspita à biodiversidade. Como discutidoanteriormente, esforços de conservação que sebaseiam unicamente nas áreas protegidas, semlevar em conta a qualidade da matriz na qualestas estão inseridas, possuem baixa eficiênciaem termos de conservação da biodiversidade(VANDERMEER et al., 2005). Paralelamente, osistema agrícola atual passa por um momento decrise, sendo que parte desse processo deve-separcialmente à redução da biodiversidade dosistema como um todo. Explosões populacionaisde pestes em lavouras intensivas vêm crescendoespantosamente. Assim, a ferrugem asiática,causada pelo fungo Phakopsora pachyrhizi, quefoi relatada pela primeira vez em 2000 no Brasil,pode causar a perda de até 90% da lavoura desoja (SINCLAIR & HARTMAN, 1999). De acordocom teorias ecológicas, não é difícil explicar taisexplosões. A extinção de predadores, parasitas eparasitóides, associada a uma estruturapaisagística homogênea e com grandeabundância de determinados recursos (grãos) sãoaltamente propícios a esse tipo de explosãopopulacional. Cabe pontuar que a baixa

viabilidade genética dessas culturas as tornamainda mais suceptíveis.

Dessa forma, pode-se relacionar a redução daprodução agrícola, à perda de biodiversidade(SCHROTH et al., 2004). Para compensar essasperdas, desenvolvimentistas convertem novasáreas, aumentam a quantidade de insumosagrícolas, causando, por sua vez mais perda debiodiversidade. Esse ciclo vicioso de perda dediversidade e produção faz com que nenhum dosobjetivos, desenvolvimentistas ouconservacionistas, sejam concretizados.

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Conscientes das contradições entre as visõesdesenvolvimentistas e conservacionistas, sistemasagrícolas alternativos tem chamado a atenção demuitos ecólogos. Nesse contexto os sistemasagroflorestais (SAFs) tem grande importância pelofato de, geralmente, abrigarem grande quantidadede biodiversidade (VANDERMEER et al., 2008)Uma definição mais recente dos SAFs oscaracterizam como sistemas agrícolas nos quaishaja a presença de vegetais arbóreos em umaporção significativa do sistema (ICRAF, 2000).Essa definição engloba uma vasta gama demanejos de média intensidade baseados emdinâmicas ecológicas naturais (SCHROTH et al.2000). Devido a esta enorme diversidade desistemas agroflorestais, vários critérios podem serusados para classificar os SAFs. Os maiscomumente usados são a estrutura do sistema(composição e arranjo dos componentes), função,escala sócio-econômica, nível de manejo eextensão ecológica (NAIR, 1985). Apesar dessesmanejos datarem de milênios, grande parte dointeresse conservacionista por tais sistemas veio apartir de estudos com aves em cafezaisagroflorestais na década de noventa (KOMAR,2006). Tal fato se deu a partir de observações deaves espécies migratórias utilizando estessistemas na América Central (GREENBERG et al.,1997; PERFECTO, et al. 1996). A grande riquezade espécies desses cafezais, e a gradualsubstituição destes por sistemas mais intensivos,alarmou muitos biólogos da conservação(KOMAR, 2006: ). Este processo culminou emuma campanha de credenciamento de cafés comcertificados “bird-friendly” (de proteção daavifauna) e “biodiversity-friendly” (de proteção dabiodiversidade) por parte de organizações comoSmithsonian Migratory Bird Center e Rain ForestAlliance. Essa campanha teve como objetivoconscientizar os consumidores da importância dossistemas sombreados para a conservação(KOMAR, 2006). Apesar do aparente êxito dessasorganizações, muitas críticas tem sido feitas ao

processo de certificação. MAS e DIETCH (2004)reportaram grande variação nas riquezas de avesentre estes cafezais credenciados, sendo que asmais ricas abrigavam 36 espécies e as maispobres apenas 10 espécies. Sistemas queenvolvem a utilização de apenas uma espéciearbórea, como Gliricidia ou Ingá, podem levar auma perda semelhante à observada emmonocultivos (GREENBERG et al. 1997).RAPOLE e colaboradores (2003) criticaram aadoção de cafezais agroflorestais como forma deconservação da avifauna, uma vez que asespécies ameaçadas de maior interesse paraconservação não utilizam estes ambientes.Segundo este autor, a utilização desses SAFs, aocontrário de proteger a avifauna, contribui para odeclínio destas uma vez que contribui para aconversão da cobertura florestal. Apesar daconsistência desses argumentos, cabe pontuarque a grande maioria dos estudos sugere quecafezais agroflorestais abrigam mais espécies doque cafezais intensivos (monoculturas), que estessistemas podem possuir riqueza semelhante àambientes florestais e que estes ambientes sãoamplamente utilizados por espécies migratórias(GREENBERG et al., 1997). Além disso, oscafezais agroflorestais podem abrigar algumasespécies de aves ameaçadas de extinção(KOMAR, 2006).

Assim como os cafezais, outros sistemasagroflorestais (SAFs) tais como pequenossistemas agrícolas de subsistência (MARSDEN etal., 2006) e cultivos sombreados de cacau (FARIAet al. 2006), erva mate (COCKLE et al. 2005),Durio zibethinus e damasco (THIOLAY, 1995)podem abrigar grande riqueza de aves.

Em termos de conservação, os SAFs podem,teoricamente, contribuir na manutenção dabiodiversidade através de, pelo menos, trêsformas (SCHROTH et al., 2004). Primeiramente, ahipótese do desmatamento (AgroforestDeforestation Hypothesis) sugere que os SAFspodem reduzir a pressão de desmatamento se

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adotados como uma alternativa para o cultivointensivo. Dessa forma, o manejo agroflorestalpode satisfazer as necessidades de certapopulação em uma área menor do que outrasatividades agrícolas, reduzindo assim anecessidade de desmatar áreas adicionais. Ahipótese matriz (Agroforest Matrix Hypothesis)sugere que os benefícios dos SAFs podem seestender ao nível da paisagem, aumentando apermeabilidade aos organismos e levando a umamaior taxa de migração e recolonização,contrabalanceando assim a extinção das espécies(SCHROTH et al., 2004). A permeabilidade damatriz tem sido apontada como uma característicaimportante para a conservação das espécies, umavez que populações isoladas, mesmo quedemograficamente grandes, possuem dificuldadede se manterem a longo prazo sem um fluxomínimo de indivíduos entre elas (NEWMARK1995; MARTENSEN et al., 2006). Finalmente, ahipótese do habitat (Agroforest Habitat Hypotesis)sugere que os SAFs podem proporcionar habitatpara espécies dependentes ou semi-dependentesde ambientes florestais possuindo, por si próprio,um valor de conservação (SCHROTH et al., 2004).Sobre a perspectiva econômica, os riscos deexplosões populacionais de pragas são menoresnos sistemas agroflorestais do que em cultivosextensivos no uso da terra, uma vez que estesambientes possuem uma maior heterogeneidadeespacial, bem como mais espécies de predadorese competidores (SCHROTH et al., 2004).

Apesar da importância dos sistemasagroflorestais em termos de conservação dabiodiversidade, bem como em termos de produçãoagrícola, cabe ressaltar que esses ambientes nãosão capazes de substituir os ambientes florestais,mas sim devem ser usados como ferramentasauxiliares à preservação destes. Dessa forma,políticas que resultam na substituição deambientes naturais por sistemas agroflorestaisdevem ser evitadas (RAPOLE, 2003).

Portanto, as críticas aqui feitas ao

conservacionismo tradicional não devemdesencorajar a implantação de unidades deconservação, como áreas restritas as atividadeshumanas. Unidades de conservação sãofundamentais para a manutenção dabiodiversidade, porém, o objetivo de preservaçãosó será alcançado, se conservacionistas, além dese esforçarem em criar novas reservas, sepreocuparem com a qualidade da matriz na qualestão inseridas. Uma vez que estas reservasestão quase sempre embebidas em uma matrizagrícola homogênea (VANDERMEER et al. 2008),os sistemas agroflorestais possuem grandepotencial social e ecológico de melhoria daqualidade da matriz e consequentementeconservação da biodiversidade.

Finalmente, o conceito de agrofloresta trouxegrande contribuição epistemológica à biologia daconservação, pelo fato de serem ambientesmodificados pela presença humana, produtivos doponto de vista agrícola, e sendo, em váriassituações, biodiversos. Tal fato contribuiu para oestabelecimento de uma corrente ecológicamenos puritana e romântica, trazendo essaciência para um maior pragmatismo.

Dentro da problemática fundiária brasileira, aagroecologia traz fundamentos teóricos àimportância da reforma agrária, não só para ocontexto social, bem como para conservação dabiodiversidade. Historicamente, o conceito deagrofloresta perpassa, mesmo que muitas vezesdespercebido, pela luta pela reforma do campo.Exemplos claros de articulações entre reformaagrária e conservação da biodiversidade são aspráticas agroflorestais adotadas emassentamentos nos Estados do Rio de Janeiro,São Paulo e Bahia. Em São Paulo, na região doPontal do Paranapanema, assentamentos ruraisem parceria com a organização nãogovernamental IPÊ (Instituto de PesquisasEcológicas), vêem contribuindo para aconectividade entre os fragmentos florestaisatravés de práticas agroflorestais. A região do

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entorno da Reserva Biológica do Poço das Antas,no Rio de Janeiro e o Sul da Bahia passam porprocessos semelhantes. Em todos esses casos, apresença de ONGs (Amigos do Mico-Leão-Dourado, no Rio de Janeiro e Instituto de EstudosSócio-Ambientais, na Bahia) foram fundamentaispara essa articulação (CULLEN et al., 2005).Portanto, a reforma agrária pode, através daspráticas agroflorestais, ser uma ferramenta deconservação da biodiversidade, além do seuobjetivo maior, que é o assentamento deagricultores no campo.

Referências Bibliográficas

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