Alethea Aires Pecora e Cristina Angelini Melchior - Antropologia Da Religião - Entendendo a...

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Rever • Ano 11 • N o 01 • Jan/Jun 2011 FÓRUM ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO - Entendendo a possessão espiritual e o transe baseado em estudo de casos ENTREVISTA: Bettina E. Schmidt Alethea Aires Pecora * Cristina Angelini Melchior ** No momento da entrevista, a Dra.Bettina Schmidt estava alocada como pesquisadora em Estudos das Religiões na Universidade de Bangor, Escola de Teologia e Estudos Religiosos 1 . Seu mestrado foi em Antropologia e Estudos Religiosos e sua tese foi sobre a medicina tradicional da Purhépecha, no México; o doutorado com tese sobre etnicidade e religião, com referências à Santeria e ao Espiritismo em Porto Rico. O pós-doutorado foi em teorias culturais e religiões caribenhas, todos pela Universidade de Marburg. Bettina tem trabalhado como conferencista em Antropologia para várias universidades alemãs. Foi professora convidada na Universidade de Nova York e na Universidade Nacional de San Antonio Abade em Cusco, no Peru. No momento, ela é membro do conselho dos editores da revista Indiana, publicação anual do Instituto Ibero-americano em Berlim, e da revista Curare, de Antropologia Médica e Psiquiatria Transcultural, publicada pela AG Ethnomedicine. Recentemente, Bettina transferiu-se para a Universidade de Wales Trinity Saint David, no país de Gales. O departamento em que atua combina Teologia, Estudos das Religiões e Estudos Islâmicos, e reúne dezenove pesquisadores com diferentes especializações. Em 2010, a pesquisadora publicou o livro Spirit Possession and Trance: New Interdisciplinary Perspectives (Conti- nuum Advances in Religious Studies Series) (Londres, Continuum). REVER: Bettina, fale um pouco do seu trabalho e por que escolheu viver e trabalhar fora da Alemanha. BES: Após o término do meu pós-doutorado, devido à dificuldade de en- contrar uma oportunidade nas universidades da Alemanha, eu me candidatei a uma vaga na Universidade de Oxford para o departamento de Estudos Religiosos * Mestranda em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ** Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 1 Atualmente (2011): University of Wales Trinity Saint David - School of Theology, Religious Studies and Islamic Studies.

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Alethea Aires Pecora e Cristina Angelini Melchior - Antropologia Da Religião - Entendendo a Possessão Espiritual e o Transe Baseado Em Estudo de Casos

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Rever Ano 11 No 01 Jan/Jun 2011F R U MANTROPOLOGIA DA RELIGIO - Entendendo a possesso espiritual e o transe baseado em estudo de casosENTREVISTA: Bettina E. SchmidtAlethea Aires Pecora* Cristina Angelini Melchior**Nomomentodaentrevista,aDra.BettinaSchmidtestavaalocadacomo pesquisadoraemEstudosdasReligiesnaUniversidadedeBangor,Escolade TeologiaeEstudosReligiosos1.SeumestradofoiemAntropologiaeEstudos Religiosos e sua tese foi sobre a medicina tradicional da Purhpecha, no Mxico; o doutorado com tese sobre etnicidade e religio, com referncias Santeria e ao Espiritismo em Porto Rico. O ps-doutorado foi em teorias culturais e religies caribenhas, todos pela Universidade de Marburg. Bettina tem trabalhado como conferencista em Antropologia para vrias universidades alems. Foi professora convidadanaUniversidadedeNovaYorkenaUniversidadeNacionaldeSan Antonio Abade em Cusco, no Peru. No momento, ela membro do conselho dos editoresdarevistaIndiana,publicaoanualdoInstitutoIbero-americanoem Berlim, e da revista Curare, de Antropologia Mdica e Psiquiatria Transcultural, publicadapelaAGEthnomedicine.Recentemente,Bettinatransferiu-separaa Universidade de Wales Trinity Saint David, no pas de Gales. O departamento em que atua combina Teologia, Estudos das Religies e Estudos Islmicos, e rene dezenove pesquisadores com diferentes especializaes. Em 2010, a pesquisadora publicou o livro Spirit Possession and Trance: New Interdisciplinary Perspectives (Conti-nuum Advances in Religious Studies Series) (Londres, Continuum).REVER: Bettina, fale um pouco do seu trabalho e por que escolheu viver e trabalhar fora da Alemanha.BES: Aps o trmino do meu ps-doutorado, devido diculdade de en-contrar uma oportunidade nas universidades da Alemanha, eu me candidatei a uma vaga na Universidade de Oxford para o departamento de Estudos Religiosos * Mestranda em Cincias da Religio pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo** Mestre em Cincias da Religio pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.1Atualmente(2011):UniversityofWalesTrinitySaintDavid-SchoolofTheology,ReligiousStudiesand Islamic Studies.186Alethea Aires Pecora e Cristina Angelini MelchiorRever Ano 11 No 01 Jan/Jun 2011e Antropologia. De incio, eu achava que no teria chances porque era a nica candidata estrangeira. No entanto, isso no parece ter sido um impedimento, uma vez que fui convocada e contratada por trs anos. Para mim, estar num ambiente de lngua inglesa e, particularmente, em Oxford, foi uma grande oportunidade prossional para sair do sistema alemo. Anteriormente, eu j havia feito pesquisas e ministrado aulas nos Estados Unidos, mas sempre acabava retornando para a Alemanha. Graas a essa experincia em Oxford, fui contratada pela Universi-dadedeBangor,aliadaUniversidadedeMarburg,naAlemanha.Trabalho com religio afrocaribenha h 20 anos, comecei em 1990. Fui pela primeira vez a Porto Rico quando decidi fazer meu doutorado sobre os caribenhos. Durante minha visita, decidi trabalhar com as religies. Desde ento, estudo as religies afrocaribenhas analisando diferentes reas e questes, mas geralmente questes sobre a identidade, imigrao e dispora. Foi ento que observei algumas possesses espirituais pela primeira vez e decidi escrever um pequeno artigo sobre o assunto, focando os praticantes e sua performance, enfatizando o quanto isso era fascinan-te. Ento, quando voltei para a Inglaterra, percebi que no era hora de entrar na questo de possesses espirituais, porque eu teria que me aprofundar mais sobre o assunto. Em Oxford comecei a estudar a possesso na frica e a histria europeia da possesso espiritual. Foucault escreveu sobre isso, muitos pensadores franceses trataram do assunto. Eu decidi delimitar meu campo. Ento, como antroploga, percebianecessidadedeentrarnocampoemprico,nosnocampoterico. Decidi mostrar para outras pessoas no que eu estava trabalhando.REVER: Como voc v a situao da Antropologia na Inglaterra e na Europa em geral?BES: Por muito tempo a Frana e a Alemanha seguiram uma Antropologia Cultural, enquanto a Escandinvia e o Reino Unido seguiam mais o caminho da Antropologia Social. Hoje, essa delimitao j no existe e tanto a Inglaterra quanto os outros pases europeus dedicam-se s duas reas da Antropologia. Ago-ra, as duas correntes antropolgicas so capazes de tratar de religio e conceitos culturais, diferentemente de antes, quando o foco estava nas hierarquias sociais e polticas. Recentemente a Europa tem se dedicado mais aos estudos antropol-gicos que seguem a linha de pesquisa norte-americana, e eu vejo isso com pesar. A Frana tem tradies maravilhosas, assim como o Reino Unido. E, antes, eles tinham orgulho dessas tradies. Da minha parte, no sei se isso um bom de-senvolvimento, eu sempre tento me aproximar e trabalhar mais com as ideias da Amrica Latina. Nas minhas publicaes sempre cito estudiosos e pesquisadores da universidade da Cidade do Mxico e das universidades brasileiras para mostrar que a Antropologia uma tradio de destaque na Amrica Latina e no somente nos Estados Unidos. Entretanto, esse tipo de estudo no to apreciado em todas 187ANTROPOLOGIA DA RELIGIORever Ano 11 No 01 Jan/Jun 2011as partes da Europa, pois h uma tendncia enorme em se voltar somente para o que est acontecendo nos Estados Unidos.REVER:ComovocvarelaoentreasreasdaAntropologiaedaCinciada Religio?BES: A Inglaterra no adota a mesma terminologia da Alemanha e do Brasil. L no se fala Cincia ou Cincias da Religio e sim Estudos Religiosos. Uma vez que a Antropologia estuda a cultura e a identidade de um povo, ou seja, aquilo que as pessoas fazem, resolvi me dedicar tanto Antropologia quanto s Cincias daReligio.Istoporqueacreditoquenopodemosentenderoqueaspessoas fazem se ns no compreendermos primeiro aquilo em que elas acreditam. Esta minha abordagem da religio: compreender o outro atravs do seu sistema de crenas. claro que nas Cincias da Religio se utilizam diferentes mtodos: as pessoas analisam textos, estudam as lnguas, interpretam textos antigos em sns-crito, em aramaico, realizam estudos bblicos. Outras, ainda, olham atravs da Sociologia, das dinmicas sociais. Entretanto, mais e mais pessoas procuram por mtodos usados por dcadas na Antropologia, da eu pensar que a Antropologia e as Cincias da Religio tm uma forte relao. Claro que, quando ensino Cincias da Religio, no co s na Antropologia, mas menciono os outros campos das Cincias da Religio, justamente para mostrar essa diversidade, tudo o que tem impacto na religiosidade. Mas, como sou antroploga, claro que levo mais para o meu campo. REVER:NoseuartigoemOespectrodisciplinardaCinciadaReligio,seu pblico-alvo era o leitor brasileiro. Caso seu artigo fosse endereado ao leitor europeu, sua abordagem teria sido diferente? BES: Eu publiquei recentemente um texto didtico de Antropologia da Reli-gio para os estudantes alemes. Parte dele foi similar ao artigo eu usei a mesma estrutura -, mas claro que tambm inclu muito mais sobre o desenvolvimento alemo, o desenvolvimento europeu e tambm autores que no mencionei nesse artigo do Brasil. No livro, eu tive oportunidade de escrever muito mais. Inclu autores brasileiros, de maneira a mostrar o que acontece em outras regies. Ao nal de cada captulo inclu uma lista de recomendaes bibliogrcas, mencionando autores brasileiros e o desenvolvimento da Antropologia no Brasil.REVER:Comovocavaliaasuarea,Antropologia,nosestudosatuaissobrea religiosidade no Brasil?BES:EupensoquenoBrasilaAntropologiadaReligiorelativamente forte. Conheci diversas pessoas que trabalham em Antropologia da Religio em 188Alethea Aires Pecora e Cristina Angelini MelchiorRever Ano 11 No 01 Jan/Jun 2011Florianpolis e Porto Alegre, desenvolvendo uma Antropologia mais sociolgica comonosmovimentos pentecostais brasileiros, mostrando a importncia desse campo nas universidades no Brasil. Acredito que isso se deva forte inuncia da herana francesa, j que Strauss e Bastide estudaram religio, o que justica a continuao dessa tradio no Brasil. Isto para mim bom porque difcil ter informaes na Europa sobre as publicaes brasileiras. Estou compilando todas as informaes para levar para casa. REVER: Do que trata a sua pesquisa, quais os seus objetivos? BES: H cerca de dois anos, organizei uma conferncia sobre a interpretao dapossessoespiritualedotranse,reunindopessoasquetrabalhamcomeste tema. Depois nos utilizamos dessas comunicaes para realizar uma conferncia internacionalnaminhauniversidade,Bangor.Dessaconfernciaresultouum livro. Em artigos, procuro escrever sob um ponto de vista mais terico, tentando unir o relato pessoal da prtica com a teoria existente sobre o assunto. Eu quero obter informaes sobre a dinmica desse conceito e o ponto de vista dos crentes, porque a interpretao da possesso espiritual vem do ponto de vista tico. Tenho tentado coletar informaes dos praticantes para entender de dentro aquilo em que eles acreditam, o que eles sentem. Eu penso que essa prtica enormemente importante para o nosso estudo das Cincias da Religio porque um fenmeno que acontece no mundo inteiro, e no est restrito somente a um contexto cristo, mas em todas as religies aparecem alguns aspectos do transe espiritual. s vezes esses aspectos so tidos como uma manifestao mais demonaca, em outros, so vistos como divinos. Mas esto no mundo inteiro, em diferentes religies e culturas. Eu acho que esse, no fundo, o ponto central de algumas experincias religiosas. REVER: Como desenvolver uma pesquisa de campo em uma sociedade qual no se pertence? BES: Temos na tradio da Antropologia europeia sempre essa regulamen-tao no ocial de que o trabalho de campo tem que ser feito em diferentes con-textos, no contexto exterior, para experimentar a viso do outro. Um dos debates nos anos 1990 na Antropologia era de que no poderamos encontrar o outro em nossa prpria terra natal. Estudantes, para se iniciarem em Antropologia, tinham que viver fora do seu contexto, sozinhos, fora do pas. Isso vem mudando nas l-timas dcadas, porque agora um estudante pode fazer seu trabalho de campo em grandes cidades. Eu z meu ps-doutorado em Nova York, que um ambiente diferente de uma pequena vila no Mxico, onde z minha primeira pesquisa. Ago-ra, a Antropologia feita dentro de casa tambm possvel. s vezes, pesquisando pessoas que moram nas ruas da sua prpria cidade, voc pode identicar o outro, 189ANTROPOLOGIA DA RELIGIORever Ano 11 No 01 Jan/Jun 2011porque voc pode ter uma distncia social maior desse indivduo do que de um indivduo que vive na Europa, ou seja, distante de voc. O trabalho de campo, para mim, inspirador.REVER: Diferentemente de se trabalhar com povos tribais, como trabalhar com grandes sociedades como So Paulo?BES: No Mxico eu precisava de uma conexo familiar, eu morei na casa de uma famlia e pertencia a esta famlia. Percebi mais tarde que essa famlia tinha problemas com outras famlias dessa mesma vila, por isso eu no era aceita pela comunidade.Issosignicaquenassociedadestribaissuaposiodentrodessa comunidade abre ou fecha as portas de comunicao. E claro, em outros ambien-tes, isso diferente. O mais difcil algumas vezes, nas reas urbanas, conseguir informao sobre as cerimnias, o local onde vo acontecer. Na vila todo mundo sabe de tudo. So os altos e baixos na pesquisa de um e de outro. REVER: Por que para a sua pesquisa voc escolheu a cidade de So Paulo?BES: Eu gosto de So Paulo desde quando vim pela primeira vez, alguns anos atrs. Provavelmente porque fui bem recebida e alguns estudantes me apre-sentaram a cidade. Eu tambm achei So Paulo semelhante a Nova York. Antes, j tinha ido para Salvador, que tambm um centro urbano interessante, mas muito mais restrito para minha pesquisa, pois l predomina o Candombl. Em So Paulo coexistem diversas tradies religiosas. E porque eu queria investigar as diferenas existentes entre essas manifestaes, penso que So Paulo tenha sido uma boa escolha. REVER: Qual a relevncia do povo brasileiro para a sua pesquisa de campo?BES:Osuportedopovobrasileirofazcomqueapesquisasejapossvel. Eu tambm tive boas experincias com os brasileiros porque eles gostam de falar sobre religio. Em Nova York h um controle maior ao se falar de religio porque muitas das prticas so ilegais, ento, normalmente, eles no gostam de falar com uma pessoa estranha sobre suas prticas. Mas aqui as pessoas so mais abertas e isso tem a ver com o modo brasileiro de ser. E, para mim e para a pesquisa, isso maravilhoso. REVER: Quais as contribuies eventuais que os resultados das suas pesquisas podero oferecer para o campo cientco das religies?BES: Eu espero desenvolver uma nova forma de entendimento sobre a pos-sesso espiritual e o transe. Eu no quero associar isso a doenas mentais. Quero atingir o pblico em geral, e fazer com que esse estudo no que restrito ao campo 190Alethea Aires Pecora e Cristina Angelini MelchiorRever Ano 11 No 01 Jan/Jun 2011acadmico, desenvolvendo um novo modo de compreenso da possesso. No ano passado eu falei em uma conferncia dirigida a pessoas que tratam de doenas mentais para dizer a elas que a possesso espiritual no est relacionada sade mental. E quero continuar a fazer isso. Espero trazer uma contribuio no s para adicionar uma outra histria sobre o Brasil, mas tambm para mostrar como isso se encaixa no debate geral sobre a possesso em diversos pases. REVER: Quais os aspectos positivos e negativos que voc aponta ao se realizar uma pesquisa de campo no Brasil?BES: A primeira diculdade obter a informao. s vezes, leva-se muito tempo para obter informaes sobre as cerimnias, onde elas acontecem, conseguir que as pessoas envolvidas concordem em dar entrevistas. No comeo elas dizem que sim, so amigveis, sem problemas; mas ento as pessoas viajam, no aten-dem, no respondem. Eu acho que o problema que o brasileiro se compromete e depois no cumpre. Eu no tenho muito tempo, no posso esperar at o Natal para ter as respostas. Outro problema em fazer pesquisas em So Paulo o trfego, o problema de locomoo. Um aspecto positivo que a maioria das cerimnias aberta. Eu posso comparecer, sou convidada a participar porque eles no tm medo uma vez que no fazem nada ilegal. REVER: Como voc avalia a sua pesquisa at aqui? De uma forma geral o trabalho de campo em So Paulo foi o que voc esperava?BES: At agora tenho 23 entrevistas gravadas, o que representativo para umaantroploga.Almdasentrevistas,tenhotodoomaterialpesquisadoem bibliotecas e sites aqui no Brasil que vou levar de volta para casa. Nesse aspecto, oestaremSoPaulopreencheminhasexpectativas.Continuonovendoum resultado nal, at este ponto no cheguei a uma concluso. Preciso mais tempo para compilar os dados e discutir o resultado com outras pessoas da rea. Volto para casa com a ideia de escrever um livro. REVER: Como pesquisadora, as questes de Gnero inuenciam na sua pesquisa?BES: No Equador, por exemplo, eu visitei uma vila na qual eu queria fa-zer a pesquisa sobre diferentes religies. Primeiro, eu tinha que me apresentar e conseguir permisso para fazer a entrevista. Em uma das vilas que fui, um jovem estudante mostrou-me o caminho da vila e me acompanhou na entrevista. Quando fui entrevistar o ancio, ele respondia para o estudante e no para mim, embora eu zesse as questes. Isto tpico de algumas sociedades tradicionais nas quais as mulheres so simplesmente ignoradas. O homem s se dirige ao homem, eles s conam nos homens. Frequentemente as pessoas se organizam dessa maneira. No Brasil, um pai de santo, talvez por medo, no se sentiu confortvel em falar 191ANTROPOLOGIA DA RELIGIORever Ano 11 No 01 Jan/Jun 2011comigo sozinho. Em duas ou trs vezes ele se dirigiu ao estudante que me apre-sentou a ele, que era homem, mas eu o interrompi de uma forma polida para dizer que a entrevista era minha. s vezes isso acontece, mas no frequente. Aqui no Brasil esse tipo de situao um pouco melhor. A parte negativa que s vezes as cerimnias tm uma longa durao e a diculdade o transporte pblico - pelo fato de eu ser mulher e de os cultos acabarem tarde.REVER: Com quais religies voc trabalha? Assinale as diferenas que voc percebe entre elas.BES: H grandes diferenas entre as trs tradies religiosas com as quais eu trabalho: Umbanda, Candombl e o Centro Esprita. claro que, s vezes, elas se misturam. Pessoas que tenho entrevistado frequentam o Candombl e a Umbanda aomesmotempo,mas,normalmente,estodivididas.Diferenteshierarquias, cerimnias, mesmo a possesso espiritual diferente. Algumas estruturas e funes, no entanto, so idnticas, o contedo da prtica que difere. Os orixs, por exemplo, so diferentes. Eles se apresentam de forma diferente no Candombl e na Umbanda. J o Espiritismo uma mistura. A Umbanda uma mistura, claro. Mas um recebe a inuncia do outro.REVER:Comovocpretendesuperarasbarreirasimpostaspelacomunicao,no caso, as questes das tradues e do entendimento de uma cultura estrangeira?BES: Eu gravo as entrevistas procurando no interromper a pessoa no mo-mento em que ela est dando seu depoimento. No quero interromper o uxo. Dessa forma, se eu no entendo o que a pessoa fala, posso recorrer a terceiros para me auxiliar na traduo. Minha experincia aqui em So Paulo que as pessoas esto abertas a diferentes sotaques e ao meu portunhol. Fora de So Paulo as pessoas tm mais diculdade, pois no esto acostumadas com quem fala espanhol. Em Porto Alegre diferente porque eles esto mais prximos da fronteira. Depende de cada pessoa. s vezes eles no tm problema nenhum em me compreender e tentam explicar de diferentes maneiras para que eu possa compreender. Eu tambm procuro nas literaturas especcas de outras tradies religiosas para conferir nos glossrios os termos que no consigo entender nas gravaes e tambm checar a escrita e o signicado. s vezes consulto colegas para me explicar termos que no encontro em lugar nenhum.REVER: possvel fazer a pergunta em ingls?BES:No.Nopossvelentrevistaremingls.Eupensoquequando voc fala sobre religio, deve falar na sua prpria lngua, utilizando-se de termos familiares. 192Alethea Aires Pecora e Cristina Angelini MelchiorRever Ano 11 No 01 Jan/Jun 2011REVER: A partir das palestras e das aulas que voc ministrou no Brasil, como voc descreve o alunado brasileiro?BES: Eu ministrei cursos para diferentes pblicos. Em Recife, por exem-plo,eramestudantesuniversitrios,algunsps-graduados,membrosdostaffe prossionais de cincias aplicadas nas reas de Psicologia e Psiquiatria. O curso teria a durao de trs horas por dia no perodo da tarde, durante uma semana, s para mim. A audincia estava mais interessada na terapia de sade mental e no em teorizao, harmonizao ou em debates. Tive que mudar a apresentao que havia preparado para me concentrar mais naquilo que eles estavam interes-sados em ouvir, ou seja, o modo como a possesso e o transe impactam a terapia de sade mental. E as pessoas vieram, comearam a falar e cou uma atmosfera barulhenta.Mesmocomomicrofone,estavadifcilparamim.Pareciaqueeu estava falando para uma barreira de rudos. Isso foi uma experincia negativa. J em outras partes do Brasil, no Departamento de Antropologia, como em Floria-npolis e Porto Alegre, foi interessante falar das minhas experincias e as pessoas faziam perguntas interessantes. Dei uma preleo por mais de uma hora e depois tive mais uma hora de perguntas. Foi interessante e algumas perguntas foram at desaadoras, de um nvel relativamente bom. Em Londrina, no Departamento das Cincias Sociais, as questes foram mais bsicas. Eles queriam saber mais sobre os detalhes que apareciam nos slides e no sobre as ideias. E depois do debate recebi algumas questes escritas que tambm eram de um nvel relativamente bom. Em So Paulo z uma comunicao na Universidade de So Paulo, infelizmente, du-rante uma greve. No havia muitas pessoas, no passavam de vinte. Mas no foi to ruim. Foi sobre Antropologia. Eu acho que o nvel intelectual dos estudantes de Antropologia no Brasil similar ao da Europa. REVER: Quais os seus planos para o futuro e o que voc pretende fazer com o material pesquisado no Brasil? BES: Minha primeira oportunidade ser em uma conferncia da Interna-tionalAssociationforTheHistoryofReligions(IAHR)emToronto,quando organizarei uma mesa-redonda com o tema Mente, Corpo e Religio. Essa ser minha oportunidade de apresentar algumas das minhas ideias. Tambm fui con-vidada a escrever um captulo de um livro sobre mediunidade, mas antes disso vou escrever sobre minha experincia em Porto Rico. Mas o trabalho nal mesmo, como resultado da minha pesquisa realizada aqui no Brasil, ser uma monograa.