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Além do cinema: a construção da identidade urbana por meio das narrativas construídas pelos espectadores do Cine Popular Valéria Fabri Carneiro Marques Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Brasil Christina Ferraz Musse Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Brasil Abstract From the earliest cinematic experiences of vaudevilles and music halls to the great movie theaters with doors open straight to the streets of the bustling urban centers, cinema has grown as one of modernity most common way of entertainment. These old 'street cinemas' were often seen in several countries, Brasil among them, during the first half of 20th century. This research aims to study the cinema as a social practice, understanding the habit of attend to movie theaters as a producer of sociability and subjectivity. Will be analyzed, more precisely, Cine Popular, a cinema in the heart of Juiz de Fora city, in Brazil, that had a simple structure and to ok the characteristic of meeting point for citzens to a level beyond the sphere of movie exhibition. This place hosted a meeting by politicians of leftwing leadership a few months before th e military coup of 1964 in Brazil. Through interviews with former m ovie workers and usual spectators of Cine Popular this research will reconstitute some social narratives constructed into peoples relationship with cinema, in wich one is possible to perceive some of Brazil's cinema exhibition history and it could help to comprehend the complex relations between these old movie theaters and the public space ocupation. Keywords Memory, Cinema Theaters, City, History, Culture. Introdução O cinema de rua funcionou na modernidade como um grande criador de laços sociais e de sociabilidades diversas. Nas cidades em que esta atividade floresceu, como foi o caso de Juiz de Fora, os cinemas influenciaram de forma muito intensa nos processos de criação de identidades locais. O estudo deste fenômeno pode, assim, enriquecer as narrativas históricas dos locais onde se encontram. Neste trabalho buscamos evidenciar um pouco da importância do cinema como um lugar que, na modernidade, ia além da exibição em ecrã. Para tal, nos aprofundamos em um dos cinemas da cidade de Juiz de Fora, por seu interessante caráter político, o Cine Popular. Buscamos colocar em discussão, brevemente, a importância da preservação desta memória como construtora de identidades e como mobilizadores de diversas reflexões possíveis sobre os lugares de afeto e cultura nas cidades. A Necessidade de Memória O tema da memória é hoje um campo em evidência, seja pela busca em recuperar algo passado ou pela disputa simbólica em relação ao futuro. A necessidade de lembrar cria vínculos sociais. Para Delgado (2004) a memória é mais do que o simples ato de recordar, seus conceitos "Revelam os fundamentos da existência, fazendo com que a experiência existencial, através da narrativa, integre-se ao cotidiano fornecendo-lhe significado e evitando, dessa forma, que a humanidade perca raízes, lastros e identidades" (DELGADO, 2004, p.17). A memória assim se difere da história pois está mais ligada à ficção, a uma reconstrução que confere importância a algo que passou, atualizando-o. O esforço por rememorar passa pela criação de narrativas na tentativa de significar o passado "A memória é sempre transitória, notoriamente não confiável e passível de esquecimento; em suma ela é humana e social" (HUYSSEN, 2000, p.37). O interesse pelo passado está intrinsecamente ligado à busca por uma identidade cultural, por tradições que

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Além do cinema: a construção da identidade urbana por meio das narrativas construídas pelos espectadores do Cine Popular

Valéria Fabri Carneiro Marques Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Brasil

Christina Ferraz Musse Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Brasil

Abstract From the earliest cinematic experiences of vaudevilles and music halls to the great movie theaters with doors open straight to the streets of the bustling urban centers, cinema has grown as one of modernity most common way of entertainment. These old 'street cinemas' were often seen in several countries, Brasil among them, during the first half of 20th century. This research aims to study the cinema as a social practice, understanding the habit of attend to movie theaters as a producer of sociability and subjectivity. Will be analyzed, more precisely, Cine Popular, a cinema in the heart of Juiz de Fora city, in Brazil, that had a simple structure and took the characteristic of meeting point for citzens to a level beyond the sphere of movie exhibition. This place hosted a meeting by politicians of leftwing leadership a few months before the military coup of 1964 in Brazil. Through interviews with former movie workers and usual spectators of Cine Popular this research will reconstitute some social narratives constructed into peoples relationship with cinema, in wich one is possible to perceive some of Brazil's cinema exhibition history and it could help to comprehend the complex relations between these old movie theaters and the public space ocupation. Keywords Memory, Cinema Theaters, City, History, Culture. Introdução O cinema de rua funcionou na modernidade como um grande criador de laços sociais e de sociabilidades diversas. Nas cidades em que esta atividade floresceu, como foi o caso de Juiz de Fora, os cinemas influenciaram de forma muito intensa nos processos de criação de identidades locais. O estudo deste

fenômeno pode, assim, enriquecer as narrativas históricas dos locais onde se encontram. Neste trabalho buscamos evidenciar um pouco da importância do cinema como um lugar que, na modernidade, ia além da exibição em ecrã. Para tal, nos aprofundamos em um dos cinemas da cidade de Juiz de Fora, por seu interessante caráter político, o Cine Popular. Buscamos colocar em discussão, brevemente, a importância da preservação desta memória como construtora de identidades e como mobilizadores de diversas reflexões possíveis sobre os lugares de afeto e cultura nas cidades. A Necessidade de Memória O tema da memória é hoje um campo em evidência, seja pela busca em recuperar algo passado ou pela disputa simbólica em relação ao futuro. A necessidade de lembrar cria vínculos sociais. Para Delgado (2004) a memória é mais do que o simples ato de recordar, seus conceitos "Revelam os fundamentos da existência, fazendo com que a experiência existencial, através da narrativa, integre-se ao cotidiano fornecendo-lhe significado e evitando, dessa forma, que a humanidade perca raízes, lastros e identidades" (DELGADO, 2004, p.17). A memória assim se difere da história pois está mais ligada à ficção, a uma reconstrução que confere importância a algo que passou, atualizando-o. O esforço por rememorar passa pela criação de narrativas na tentativa de significar o passado "A memória é sempre transitória, notoriamente não confiável e passível de esquecimento; em suma ela é humana e social" (HUYSSEN, 2000, p.37). O interesse pelo passado está intrinsecamente ligado à busca por uma identidade cultural, por tradições que

deem substrato ao homem moderno para tentar compreender o tempo presente. Seria, também, o medo do esquecimento, de perder parte da história um motor para a criação incessante de memórias, nem sempre vividas, mas imaginadas:

É o medo do esquecimento que dispara o desejo de lembrar ou ao contrário? É possível que o excesso de memória nessa cultura saturada de mídia crie uma sobrecarga que o próprio sistema de memórias fique em perigo constante de implosão, disparando, portanto o medo do esquecimento. (HUYSSEN, 2000, p.19)

Essa memória é constituída a partir de uma necessidade social de ancoragem temporal, sobretudo em uma sociedade que constantemente bombardeia os indivíduos com informações e cria uma compressão de espaço e tempo e na diluição das referências e da tradição. A busca por pertencimento passa também pela noção de memória individual e coletiva, aquilo que é particular e o que é compartilhado. O exercício da memória é um exercício essencialmente social "Uma memória coletiva não é o somatório de memórias individuais, mas a interseção entre elas. É aquilo que se compartilha socialmente" (MATHEUS, 2011, p.106) A memória coletiva é construída através daquilo que é comum às memórias individuais e ambas são dinâmicas, sempre atualizadas, e se situam em um campo fluido e em mutação. As "partes" e o "todo" se relacionam de forma direta, mas as consciências individuais podem ser distintas em um grupo dependendo da posição em que se encontra o sujeito:

Se a memória coletiva tira sua força e sua duração no fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se apoiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um deles. (HALBWACHS,1968, p.51).

Ao mesmo tempo que trabalha com a solidificação de tradições, mitos e

percepções sociais a memória, ao submeter-se constantemente a atualizações, está também ligada ao rompimento e modificação destas mesmas estruturas, num processo incessante de rememoração e esquecimento. Compreender essa forma de construção de memórias e a importância da oralidade e dos relatos de pessoas comuns no processo de construção da história é essencial para o estudo do objeto desta pesquisa. O Cinema em Juiz de Fora Para que compreender-se o contexto social e histórico em que o cinema Popular estava imerso faz-se necessária uma breve introdução ao local e período em que a sala de exibição esteve em atividade. A cidade de Juiz de Fora localiza-se no interior do estado de Minas Gerais e pertence à região da Zona da Mata e, atualmente, possui cerca de 600 mil habitantes. Apesar de pertencer a outro estado o município se desenvolveu com grande influência da cidade do Rio de Janeiro, devido, entre outras coisas, a proximidade entre as duas cidades. Juiz de Fora viveu um florescimento econômico e cultural no final do século XIX, como destacado por Musse (2008), o que propiciou o fomento às diversões próprias à elite brasileira do período e sobretudo ao cinema:

o próprio ato de ir ao cinema carrega em si um significado social, pois era um hábito cultivado principalmente por pessoas de elite, em que tanto homens como mulheres se vestiam de maneira elegante para frequentar as sessões (Arantes, 2014, p.31).

O município também já foi palco de importantes momentos da história brasileira. Foi partindo de Juiz de Fora que se iniciou o golpe civil-militar brasileiro em 1964, quando o general Olímpio Mourão Filho, após reunião com outros militares, marcha com suas tropas da cidade mineira para o Rio de Janeiro no dia 31 de Março. Apesar de não ser a capital de Minas Gerais, Juiz de Fora tem em sua história inúmeras expressões artísticas

que a singularizam como expoente no cenário cultural brasileiro, além de possuir uma relevante contribuição para o desenvolvimento do cinema no país. A relação de Juiz de Fora com a atividade cinematográfica se estabelece desde os primórdios da sétima arte, do cinema dos primeiros tempos [1]. Na cidade teria ocorrido a primeira exibição fílmica do Estado de Minas Gerais [2] no dia 23 de julho de 1897, segundo consta em anúncio publicado pela Empresa Germano Alves no jornal O Pharol, em publicação do dia anterior à exibição "O maior sucesso de Hespanha, Paris e Portugal. Neste maravilhoso apparelho apresentará o sr. H. Picolet quadros do comprimento do panno de bocca do theatro com o auxílio da luz electrica, sem a menor oscilação" (PHAROL, 1897). Ao longo dos anos a cidade vai se tornando cada vez mais prodigiosa na área, sobretudo, em relação as salas de exibição. Dentro do período de 1950 a 2015, tem-se ao que se sabe, cerca de 18 cinemas de rua [3]. É necessário fazer aqui uma distinção entre os cinemas localizados em prédios comerciais, shoppings centers em sua maioria, locais que Marc Augé (1994) define como não-lugares [4], e os chamados cinemas localizados em vias públicas, os quais podem-se compreender como espaços de encontro e de sociabilidade. Esses cinemas estabelecem uma relação direta com o espaço em que estão inseridos, são lugares de afeto ou "afecção" [5]:

Estabeleciam-se na rua, espaço de confronto com o desconhecido, e não em locais fechados e familiarizados. Portanto, ir à sessão de cinema era também circular no terreno urbano, deparar-se com alteridades e com o improviso, povoar e desejar os espaços, assumindo uma relação criadora e ativa com a cidade. (FERRAZ, 2008, p.5)

Destacam-se, também, outros aspectos da relação juizforana com o audiovisual. Em relação à produção fílmica é importante ressaltar o legado de João Carriço, criador do Cinema Popular, que documentou importantes momentos da cidade através das lentes da Carriço Film, empresa que permanenceu em atividade por mais de duas décadas

(1933-1956) com a produção perene de cinejornais [6], tipo de atividade que costumava ter vida breve. Mais à frente será feito um aprofundamento na biografia de Carriço e no seu cinema. Outro empreendimento relevante para a construção deste panorama é a criação do CEC - Centro de Estudos Cinematográficos em 1957, cujo objetivo era "formar uma identidade com finalidades culturais relacionadas ao estudo do cinema como arte" (ARANTES, 2014, p.33). Considerando-se estes aspectos é possível perceber a importância que a atividade audiovisual teve no cotidiano dos juizforanos, seja pela produção, pela apreciação dos filmes em si ou pelo ato de ir ao cinema. Mais especificamente dos trajetos imaginários daqueles que frequentavam os cinemas de rua, das inúmeras formas de sociabilidade motivadas pelo "ir ao cinema", como os footings da Halfeld ou da Rio Branco e da pluralidade de subjetividades criadas, de hábitos e de comportamentos:

Eu me lembro do grande painel que encobria a tela do Cine Glória, dividido em espaços de propaganda. (...) Quando começava a subir, sinalizava o início da sessão, e da algazarra da molecada, diante da perseguição do mocinho ao bandido nos bangue-bangues (...) (YAZBECK, 2005, p.93) [7].

Ao pensarmos nesses lugares de afetividade e encontro, como o cinema de rua, podemos perceber que esta é uma forma de relacionamento urbano em declínio atualmente. Esses lugares foram, paulatinamente, substituídos por outros tipos de espaço, estabelecendo, cada vez mais, uma nova dinâmica de ocupação da cidade. São estes:

[...] espaços de trânsito intenso, de automóveis e ônibus, no lugar de pedestres, bondes e trens, o que significa a apologia à velocidade e à mobilidade, ou por espaços de consumo, lojas de roupas, sapatos e eletrodomésticos, em que a conversa e o diálogo foram substituídos pela relação impessoal da compra e venda. (MUSSE, 2008, p.54)

Espaço complexo de contrastes e conflitos "a cidade é o símbolo capaz de exprimir a tensão entre racionalidade geométrica e emaranhado das existências humanas" (GOMES, p.23). Apesar da tendência racionalizadora dos espaços a cidade é, essencialmente, construída a partir dos laços de afetividades, de desejos, de sonhos e das vivências daqueles que a habitam. A cidade é um lugar de construção de laços sociais

foi esta [a cidade] que proporcionou a arena para a circulação de pessoas e mercadorias, onde entre troca de olhares, encontros, namoros e conversas se constituiu um tipo de sociabilidade e de consumo (ASSIS, 2006, p.17),

Em As cidades invisíveis Ítalo Calvino (1990) nos descreve Ercília, cidade onde os habitantes estendem fios ao redor das casas estabelecendo ligações que orientam a vida urbana, de acordo com as relações humanas sejam elas de parentesco, de troca ou de autoridade. Derrubadas as construções, destruídas paredes, portas e janelas deparamo-nos com as ruínas da cidade abandonada, na qual permanecem apenas as ligações estabelecidas e as forças simbólicas que as sustentam. João Carriço, o Amigo de Povo Além de criador do cinema Popular o que fez de João Gonçalves Carriço uma figura de importância nacional foi o enorme acervo de cinejornais com imagens da vida cotidiana da década de 1930 até 1950. Imagens de transeuntes, de missas, saída de cinema, formaturas, presidentes e figuras ilustres que visitaram Juiz de Fora foram captados e eternizados pelas lentes da Carriço Film, empresa especializada em cinejornais criada por João Carriço. Nascido no dia 27 de julho de 1886, era filho do português Manuel Gonçalves Carriço. Herdou do pai uma empresa de funerária, mas sempre foi ligado ao meio artístico sendo, também, um conhecido pintor de tabuletas e cartazes sob o pseudônimo Faísca. Antes de se tornar cinegrafista e abrir a Carriço Film, chegou a projetar algumas fitas em bairros e comunidades, mas é a partir de 1933 que torna-se mais engajado às artes cinematográficas:

A partir de 1935, a mulher passa a fiscalizar o trabalho da Funerária e ele está completamente voltado para a produção dos cinejornais. Conforme testemunho de cinegrafistas e empregados da Funerária, a Carriço Film não lhe trará lucros. (SIRIMARCO, 2005, p.40).

De acordo com relatos de antigos funcionários a Carriço Film produzia cerca de um a dois cinejornais [8] por mês e a produção permaneceu ininterrupta durante mais de vinte anos. Atualmente, após doações e perdas dos arquivos restam apenas 236 cinejornais [9].

Figura 1 - João Carriço (agachado) em gravação para a Carriço Film. Fonte: Blog radialista Léo de Oliveira. Nos tempos áureos, Carriço conseguiu alcançar reconhecimento fora de sua região natal, por seus esforços em torno da produção audiovisual. O depoimento de Raul Roulien ao semanário cinematográfico Cine-Repórter, de 3 de fevereiro de 1940 capta bem a aura do empreendimento de João Carriço:

Amigo sincero e devotado dessa cidade , ele não mede esforços nas suas realizações de fôlego. Trabalha lutando com mil dificuldades para apresentar ao resto do país o que é a vida dinâmica de Juiz de Fora. Raul Roulien termina assim, as impressões que lhe deixou João Carriço, diretor da Carriço Film: "A sua obra é um verdadeiro milagre, quando se leva em conta que fazer cinema no Brasil é uma das coisas mais difíceis que existem..." (SIRIMARCO, 2005, p.70 e 71).

Depois desse período, na década de 1950 já com dívidas advindas, sobretudo, do cinema e da produtora, e

com a saúde comprometida, Carriço morre aos 72 anos, no ano de 1959. A Carriço Film já havia encerrado suas atividades em 1956, mas o Cine Popular continua em funcionamento até o ano de 1966 quando é fechado. Cinema Popular, o cinema "do Povo para o Povo" O cinema Popular foi inaugurado no dia 14 de Agosto de 1927, na Avenida Getúlio Vargas, que na época recebia a alcunha de Avenida 15 de novembro. O cinema funcionava no mesmo prédio em que operava a Funerária da família Carriço. O Popular tinha capacidade para 500 pessoas e era um cinema extremamente simples, possuía poltronas de madeira e preços módicos. A intenção de João Carriço era criar um cinema para os trabalhadores, um diversão democrática para o proletariado da época. Com o slogan "Cinema do povo para o povo" o Cine Popular se tornou a diversão preferida dos trabalhadores assalariados das fábricas da época, fazendo também muitas sessões de de cunho benemérito.

Figura 2 - Saída da sessão de inauguração do Cine Popular. Fonte: www.historiadocinemabrasileiro.com.br Como os demais cinemas de rua, o Cine Popular também serviu de elo ligante de diversas experiências dos indivíduos com a vida urbana nas cidades. O cinema não eram apenas espaços físicos na vida dos indivíduos e da urbes, mas também eram lugares simbólicos.

Possibilitavam encontros e compartilhamento de afetos e estéticas. Tudo isso num ambiente dessegregado, aberto a diferentes experiências e apropriações do espaço (FERRAZ, 2008, p.6)

É exatamente essa a experiência que TB [10] teve em relação ao Cine Popular. Por ser um cinema mais acessível, ela conta que todas as meninas da rua costumavam ir às sessões que ainda eram mudos. Ela conta um pouco do seu primeiro contato com este cinema:

O primeiro filme que eu vi lá era Luzes da Ribalta que era com o Chaplin, meu pai que me levou. Ele era um cinema mudo, passava muito cinema mudo lá, muito filme mudo, porque era ainda um cinema muito antigo.

Esse tipo de filme era muito característico da programação do Cine Popular, assim como os filmes da semana santa sobre a vida de Cristo. Ela conta, também, um pouco como era o cinema por dentro, toda a simplicidade:

Ele não era num andar só, tinha um palco todo de madeira, cadeiras todas também de madeira. Era uma coisa bem arcaica, muito arcaica mesmo. Sempre tinha umas interrupções, acendia a luz, essa coisa toda.

Mas a lembrança mais forte de TB ao rememorar as histórias do Popular foi certamente o comício do PTB (Partido trabalhista brasileiro) em 1964. Já em decadência, o cinema passa a abrigar alguns comícios do PTB com lideranças de esquerda, já às vésperas do golpe civil-miltar, que também partiria de Juiz de Fora:

É um cinema que ele tem duas fases, quando inaugurou passava muito filme mudo e depois a fase áurea que foi o comício que teve da revolução em 64, quando estourou a Revolução. Houve uma sessão alí, muito grande, um comício, em que vieram líderes do Brasil inteiro e que talvez tenha determinado, com muita força, talvez a Revolução de 64. Foi muito emblemático esse comício que teve dentro do

Popular, ele reuniu todos os líderes da chamada esquerda da época. Eles vieram discursar, foi uma coisa muito inflamada. isso deve ter sido uns dois meses antes de estourar a Revolução. Acho que foi o único lugar que eles conseguiram que aceitasse aquele comício com aquelas pessoas que eram muito a esquerda da esquerda. (TB, 2016).

Para TB esse comício está muito ligado ao fechamento do cinema:

Como ele já estava decadente, já não passava tantos filmes, fazia muito show de revista na época, teatro rebolado, fazia muito show de vedetes alí no Popular. Então, quando houve esse comício foi um "start" do fechamento dele.

Esse comício que ocorreu dentro do cinema Popular foi um marco não só para a história do cinema ou de juiz de Fora. Jornais de várias partes do Brasil noticiaram os acontecimentos ligados ao evento, como nesta edição do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro:

Violentos registraram-se nesta cidade, na noite de domingo último, nas imediações do Cinema Popular, em cujo interior se realizava um comício organizado pelo PTB e do qual participava o governador Miguel Arraes. [...] A concentração promovida pelo PTB e forças sindicalistas levaram o governo mineiro a adotar excepcionais medidas de precaução e segurança, destacando para acompanhar os acontecimentos da Segurança e do Interior, srs. Monteiro de Castro e Oswaldo Pierucetti, que durante todo o tempo da reunião permaneceram à porta do cine Popular. (CORREIO DA MANHÃ, 1964).

Esse episódio explicita a interessante relação que os cinemas de rua estabeleciam com os indivíduos e a cidade. Os cinemas por serem esse espaço de encontro e convívio acabavam, muitas vezes, abrigando outras funcionalidades diversas que fugiam muito ao seu propósito inicial. Os cinemas acabavam estabelecendo-se como referências no

cotidiano das pessoas no século XX e contribuindo de forma muito decisiva para a percepção da vida coletiva da cidade. Conclusão Ao final deste trabalho podemos refletir sobre a importância que o lugar de afeto "cinema" ocupava na vida das pessoas na modernidade. O cinema mobilizava sociabilidades diversas e funcionava como um ponto de convergência e troca entre os indivíduos nos centros urbanos. Em Juiz de Fora, onde essa atividade estabeleceu-se com muita força é possível perceber todo um imaginário urbano construído em torno dos cinemas de rua. Em especial da figura de João Carriço que eternizou grande parte do passado da cidade, com especial atenção às pessoas mais simples, característica também de seu cinema. O Cine Popular tinha um grande diferencial em relação aos demais cinemas da cidade, sobretudo por seu caráter democrático, por tornar o cinema uma diversão acessível às classes mais baixas. Através de um aprofundamento neste estudo é possível perceber, também, a intensa relação do cinema com outros aspectos da vida urbana, como, por exemplo, a política. No caso do Cine Popular, não apenas por ter abrigado diversos comícios, mas também por seu aspecto populista, muito ligado à figura de Carriço e dos cinejornais de forma geral. Por fim é preciso perceber como o cinema era um lugar que ia muito além da simples exibição fílmica. O cinema era um lugar de conflito e de construção de imaginários sociais e laços dos indivíduos uns com os outros e com os espaços. Notas Finais [1] GAUDREAULT, André. Cinéma et attraction: pour une nouvelle histoire du cinématographe. Paris: CNRS Édtions, 2008. [2] Em julho de 1898 aconteceriam as pri-meiras exibições cinematográficas em Belo Horizonte, recém-inaugurada capital de Minas Gerais (GALDINO, 1983, p.20) [3] São eles: Cine Palace, Cine-Theatro Glória, Cine Festival, Cine-Theatro Central, Cine São Luis, Cine Excelsior, Cinema Popular, Cine Paratodos, Auditorium, Benfica, Cinema Paraíso, Cine Metrópole, Cine Real, Cine Rex,

Cine São Matheus, Cine Veneza, Cine Brasil e Cine São Caetano. Não estamos levando em consideração, nesse momento, as salas de exibição, que não eram parte de um cinema, como a sala de projeções na Casa D'Italia, por exemplo. [4] Se um lugar se pode definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode definir-se nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico, definirá um não-lugar (AUGÉ, 1994, p.67) [5] Deleuze destaca os encontros fortuitos que acontecem entre os corpos. Fala do conceito de "afecção", que também chama de "ideia-afecção", isto é, a ação de um corpo sobre o outro: um tipo de conhecimento elementar gerado a partir dos efeitos que nosso corpo sente ao ser afetado por alguém ou por algo, recebendo, em certa medida, as características de quem ou de quê o afetou (DELEUZE, 2002, apud FERRAZ, 2009, p.55). [6] Podemos compreender um cinejornal ou atualidade como um filme ou periódico com cenas urbanas, cotidianas ou de acontecimentos importantes (mundiais, nacionais, locais), que constrói recortes de realidade e a transforma em espetáculo (MEDEIROS, 2008, p.20) [7] Este depoimento faz parte do livro "Eu me lembro: 350 fatos, curiosidades e personagens que marcaram as últimas décadas da história de Juiz de Fora", organizado pelo jornalista Ivanir Yazbeck. O livro é escrito em forma de memorial e não há menção ao autor ou data de cada uma das memórias. [8] Os cinejornais da Carriço Film eram gravados em formato 35mm. [9] Parte dos cinejornais foi doada para a prefeitura de Juiz de Fora ainda nos anos 1950 e o restante nos anos 1960. Muito dos filmes realizados pela Carriço Film se perderam entre mudanças de gestão dos prefeitos da cidade de Juiz de Fora e outros foram jogados no rio que banha a cidade, o rio Paraibuna, em 1973. Nos anos 1970 o restante do arquivo foi enviado à Cinemateca Brasileira de São Paulo. Entretanto, mais perdas ocorreram no incêndio ocorrido na Cinemateca em 1982, no qual mais de 200 rolos de filmes de João Carriço se perderam. [10] Fizemos opção por não identificar nominalmente a entrevistada. Bibliografia ARANTES, Haydêe Sant'Ana; MUSSE, Christina Ferraz. Memórias do cineclubismo: a trajetória do CEC - Centro de Estudos Cinematográficos de Juiz de Fora. 1ed. São

Paulo: Nankin; Juiz de Fora, MG. Funalfa, 2014. ASSIS, Maurício José Amaral. A trajetória das salas de cinema de Belo Horizonte: sociabilidade no espaço UNIBANCO Belas Artes e nas salas de cinema do Shopping Cidade. 2006. 148 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte. AUGÉ, Marc. Não-lugares - Introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. 3. ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 1994. CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. de Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CORREIO DA MANHÃ, Tumultos durante comício de Arraes. Ano I.XIII, n. 21.763. Terça-feira, 17-mar. 1964. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História oral e narrativa: tempo, memória e identidades. História Oral, nº6, 2003. FERRAZ, Talitha Gomes. Construção de Sociabilidades e memórias da Tijuca: O caso dos extintos cinemas da Praça Saens Peña e as atuais formas de espectação cinematográfica no bairro. 2009. 218 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. __________. Cinema de rua e construções de memórias no espaço urbano da Praça Saens Peña. In: Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho, 6., 2008, Rio de Janeiro. Anais... Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2016. GALDINO, Márcio da Rocha. Minas Gerais: Ensaio de Filmografia. Belo Horizonte: Comunicação, 1983. GAUDREAULT, André. Cinéma et attraction: pour une nouvelle histoire du cinématographe. Paris: CNRS Édtions, 2008. GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. Editoria Revista dos tribunais LTDA. Tradução: LairentLépnAchaffter, São Paulo, 1990. HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória – arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. MATHEUS, Letícia Cantarela. Comunicação, tempo, história: tecendo o cotidiano em fios

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