Metodologia UENF - Social Science Methodology - A Criterial Framework - 01
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A UENF e seu plano orientador entre a “modernização reflexa” e a “aceleração evolutiva”: notas sobre o pensamento de Darcy Ribeiro 1
UENF and its director plan "reflexive modernization" and "evolutionary acceleration": notes on the thought of Darcy Ribeiro
Adelia Maria Miglievich RibeiroDoutora em Sociologia - UFRJ
Professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas SociaisLEEA-CCH-UENF
Paulo Sérgio Ribeiro da Silva Jr.Mestrando em Políticas Sociais
Universidade Estadual do Norte FluminensePrograma de Pós-Graduação em Políticas Sociais
RESUMO: O artigo propõe contribuir nos estudos da sociologia do desenvolvimento mediante o exame do projeto que originou a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), em Campos dos Goytacazes/RJ. Para além de qualquer pragmatismo político, postulam que a proposta assinada por Darcy Ribeiro em 1992, no então Governo Brizola, traduzia perspectivas sobre o sentido da universidade, da ciência e da tecnologia num país periférico. Evidenciam, portanto, como a Uenf nasce marcada por pretensões que, muitas vezes, colidiam com interesses vários na região, no Estado do Rio de Janeiro e, também, no sistema nacional de C&T. Defendem, em suma, que a universidade, em seus limites e potencialidades, não pode ser explicada apenas pelo personalismo de seu fundador, mas pela tensão entre “modernização reflexa” e “aceleração evolutiva”, categorias centrais no pensamento de Darcy, cunhadas em sua célebre obra “O processo Civilizatório”.
Palavras-Chave: UENF, Darcy Ribeiro, modernização reflexa, aceleração evolutiva, ciência e tecnologia, universidade.
1 O “artesanato intelectual” leva anos e é ininterrupto. Registramos aqui nossa dívida para com o Núcleo de Estudos em Teoria Social (Nets/Leea) na Universidade Estadual do Norte Fluminense. Agradecemos a Faperj e ao CNPq que, mediante bolsas aos graduandos e mestrandos, permitiu o desenvolvimento do projeto “Universidade, conhecimento e missão: círculos sociais, redes e formação da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro”. Dedicamos o presente artigo a Glauber Rabelo Matias e a Fabiano Rangel, incansáveis interlocutores.
Agenda Social. Revista do PPGPS / UENF. Campos dos Goytacazes, v.2, n.2, mai-set / 2008, p.1-21, ISSN 1981-9862
Paulo Sérgio Ribeiro da Silva Jr. & Adelia Maria Miglievich Ribeiro 2
ABSTRACT: This paper seeks to contribute to studies in the area of sociology of economic development by examining the director plan that originated the Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) located in the city of Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, Brazil. In an attempt to go beyond political pragmatism, the authors of this paper claim that the proposal signed in 1992 by Darcy Ribeiro, during the government of Leonel Brizola, expressed a perspective on the meaning of the university, science and technology in a country located in the periphery of the capitalist system. Therefore, the authors demonstrate that UENF is created based on goals that often collided with local, regional and national interests in the areas of science and technology. In summary, the authors stress that UENF, its limits and potentials, cannot be explained only by the personal characteristics of its creator, but instead by examining the tension between reflexive modernization and evolutionary acceleration, two central categories in the thought of Darcy Ribeiro as presented in his famous work "The Civilizatory Process".
Keywrds: Uenf, Darcy Ribeiro, reflexive modernization evolutionary acceleration, science and technology, university.
Apresentação
No ano de 1989, os campistas atuaram de forma incisiva na Constituição Estadual do Rio
de Janeiro para a aprovação da emenda popular pela criação da Universidade Estadual do
Norte Fluminense. A emenda contou com 4.431 assinaturas, fruto da mobilização de
professores e estudantes das fundações de ensino superior existentes na cidade. Em sua
aprovação, havia a exigência de que a criação da nova universidade, a primeira no interior
do Estado do Rio de Janeiro, se desse no prazo máximo de 18 meses, caso contrário,
caberia a Uerj implantar no em seu lugar um campus avançado.
A criação da Uenf foi aprovada na Alerj durante o Governo Moreira Franco, mas sua
criação deu-se com seu sucessor, Leonel Brizola. Em sua implantação, era de se esperar
que uma nova correlação de forças políticas se formasse passando a decidir as diretrizes da
Universidade. O poder de decisão migrou, portanto, dos grupos de interesses locais que até
então haviam liderado o processo para novos atores presentes no cenário do Estado. À
época, Leonel Brizola criara a Secretaria Estadual de Projetos Especiais e, à sua frente,
estava Darcy Ribeiro (1922-1997). Por sua trajetória política e intelectual também no
campo da Educação Superior 2, Darcy passou a liderar o novo grupo que assumia o projeto
2 Darcy participara da criação da Universidade de Brasília (1961) no governo Kubitschek e durante seu exílio atuou na criação da Universidade Nacional da Costa Rica e da Universidade de Argel bem como da reforma
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de construção de uma universidade pública no norte-fluminense, certamente, angariando o
apoio de algumas lideranças políticas campistas, mas também o rechaço de não poucos
excluídos ou auto-excluídos do processo.
Neste artigo, buscamos identificar os pressupostos teórico-ideológicos de Darcy Ribeiro
contidos no plano orientador da nova instituição. Observamos, desde já, que o êxito maior
ou menor na efetividade do plano, sobretudo com o fim do Governo Brizola e as novas
regras do jogo político não invalida o esforço de se estudar, em suas virtudes e paradoxos,
o credo modernizador que marcou a Universidade. Darcy Ribeiro, representando aqui uma
geração de intelectuais públicos brasileiros, criava, em sua perspectiva, uma vez mais, a
“universidade necessária”, desta vez, não no Planalto Central, mas, no norte-fluminense, a
“terra dos canaviais e do petróleo”, dos contrastes entre a extrema pobreza e a abundância.
Inscrevia-se nesta um projeto de nação e de desenvolvimento. Qual era este?
1. O pensamento em movimento de Darcy Ribeiro
A leitura darcyniana de Marx e Engels em “O processo civilizatório” (2001), cuja primeira
edição data de 1968, revela que a evolução humana adquire feições tecnológica, social e
ideológica próprias no processo de mudança social. Ao destacar os elementos de
criatividade nas culturas expressos nos modos de intervenção na natureza para produção de
bens e para a institucionalização de novas relações sociais, Darcy Ribeiro considera-os, em
sua co-determinação, critérios de comparação de sociedades.
das Universidades do Uruguai, Venezuela e Peru, entre os anos 1960 e 1970. No caso da UnB, era patente sua frustração com o golpe sofrido pela então jovem universidade quando a intervenção dos militares provocou o êxodo de seu núcleo docente formador. A Uenf representava para ele, guardadas as especificidades, a chance de criação de uma nova UnB, desta vez, próxima ao modelo da Unicamp e, dentre as Universidade no exterior, inspirada no Massachusetts Institute of Technology - MIT e o California Institute of Technology – CALTECH, em franca oposição, segundo Darcy, à “velha Oxford” ou à “vetusta Sorbonne”. Cf. Ribeiro, Plano Orientador, 1992.
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Para Darcy Ribeiro, é pouco uma nação postular o desenvolvimento. Há de se responder
antes à questão: “qual desenvolvimento?” e, sobretudo, “para quem?”. Darcy, portanto,
contraria as expectativas etnocêntricas que circunscrevem o desenvolvimento nas
sociedades periféricas à reprodução do padrão material e cultural de países centrais,
denunciando-as como orientações que integram uma estrutura de poder erigida nos pólos
de “atraso” e de “progresso” em escala mundial, responsável por manter os “sistemas de
dominação tendentes a perpetuar suas posições relativas” (Ribeiro, 1978, p.70). Ciente da
coetaneidade dos países desenvolvidos e subdesenvolvidos numa modernidade excludente,
expõe que o “hoje dos povos avançados não é, pois, o nosso amanhã” (Ibid., p.25).
No livro “Os brasileiros: 1. Teoria do Brasil” 3, especialmente em seu capítulo “Cultura e
alienação”, no qual Darcy Ribeiro dedica-se à tarefa de interpretar as causas do
desenvolvimento desigual dos povos americanos com foco nos conteúdos justificadores
das condições de atraso e dependência da formação brasileira, é explícita a crítica à
perspectiva unilinear da evolução humana calcada no eurocentrismo.
(...) quando não se conta com uma teoria explícita da evolução, se corre o grave risco de cair num evolucionismo irresponsável por si mesmo, porque inexplícito (...) Isso é, aliás, o que se faz habitualmente sem maiores conseqüências. Fazê-lo, porém, pretendendo ser expressamente antievolucionista é pecado de indigência teórica. (Ribeiro, 2001, p.29)
Darcy Ribeiro postula que “a posição em que se encontra uma sociedade não corresponde a
qualidades inatas ou a qualidades imutáveis de sua cultura, senão, em larga medida, a
circunstâncias susceptíveis de transformação” (Ibid., p.135). No exame dos processos
3 Este livro integra um compêndio intitulado “Estudos da antropologia da civilização”, que reúne os demais trabalhos: “O processo civilizatório: etapas da evolução sociocultural” (1968); “As Américas e a civilização: processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos” (1970); “Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno” (1970); “O dilema da América Latina: estruturas de poder e forças insurgentes” (1971). Esses estudos foram elaborados por Darcy Ribeiro durante seu exílio entre as décadas de 1960 e 1970, período no qual atuou em projetos de reforma e instauração de universidades na América do Sul, América Central e África. Cf. Lima & Alves. UENF, a universidade do terceiro milênio: uma memória (1993-2003), 2003, p.24.
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civilizatórios, o antropólogo atenta para os conteúdos ideológicos de dominação existentes
nas relações sociais que deflagraram os conflitos nas conquistas de territórios, a exemplo
da expansão ibérica pelo mundo. Ao explicitar os fatores exógenos no desenvolvimento
interno de sociedades, propõe os conceitos de “atualização histórica”, ou “modernização
reflexa”, e de “aceleração evolutiva”. O primeiro define a inserção subordinada de povos
“atrasados” em formações socioculturais estruturadas a partir de sistemas
tecnologicamente superiores, implicando a perda da autonomia, pelo processo adaptativo,
ou a destruição, quando se opta pela resistência, de entidades étnicas mais frágeis 4. Já o
segundo conceito, “aceleração evolutiva”, traduz o desenvolvimento autônomo das
sociedades na mobilização de fatores endógenos - e/ou exógenos - às situações que são
peculiares aos novos povos. Nestas, as novas sociedades “experimentam uma revolução
tecnológica com base em sua própria criatividade, ou na adoção completa e autárquica de
inovações tecnológicas alcançadas por outras sociedades, ou, ainda, com base em ambas as
fontes” (Ibid., p.70).
A coexistência do progresso e atraso na modernidade não se explicaria como algum tipo de
resistência cultural ao novo, mas como condição da própria modernização: a persistência
de relações de exploração que impedem um expressivo contingente populacional de sequer
conhecer o “moderno”. O atraso é, portanto, interpretado como um traço normativo ou um
limite político à emancipação de diversos segmentos da sociedade.
A resistência às forças inovadoras da Revolução Industrial e a causa fundamental de sua lentidão não se encontram, portanto, no povo ou no caráter arcaico de sua cultura, mas na resistência das classes dominantes (Ribeiro, 1995, p.250).
Com efeito, a revolução dos meios de produção não é critério causal exclusivo, exigindo-se
a atenção às mediações, tais como a ciência e a política, “(...) poder condicionante das
4 Tal fragilidade expressa-se na condição daquelas sociedades cujas forças produtivas assentam numa tecnologia de mais baixo grau de eficácia produtiva do que o alcançado por sociedades contemporâneas. Cf. Ribeiro, O processo civilizatório, 2001.
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formas de ordenação da vida social sobre as potencialidades de exploração do progresso
tecnológico, bem como um papel fecundante ou limitativo de certos conteúdos do sistema
ideológico” (Ribeiro, 2001, p.47).
Sua antropologia materialista e dialética permite-nos estudar as especificidades das
resistências e aberturas à mudança ou renovação cultural em formações sociais periféricas.
Sua crítica à pretensão de se atribuir universalidade ao intercurso escravismo-feudalismo-
capitalismo é, mais uma vez, sua recusa ao etnocentrismo verificado no acolhimento
passivo de categorias temporais, que ganham aparência de trans-históricas, cujo efeito é
obscurecer o entendimento da diferença entre os povos.
O argumento darcyniano centra-se na afirmação – não tão óbvia – de que a antropologia se
faz e refaz assim como as demais disciplinas científicas na tensão permanente com sua
dimensão ideológica, provendo conteúdos emancipadores ou justificadores da ordem
social. Assim, as formas de racionalização da realidade estão baseadas em julgamentos
valorativos que reforçam uma tendência a “atribuir a certas sociedades e culturas
qualidades dinâmicas peremptórias que as tornariam mais susceptíveis de progresso
continuado; e a outras, qualidades opostas de apatia e desinteresse material que
conduziriam ao atraso resignado” (Ribeiro, 2001, p.134), assim como na “propensão a
impregnar instâncias da evolução humana de atributos ideológicos supostamente inerentes
a certos povos ou civilizações; mais concretamente, à chamada civilização européia,
ocidental e cristã” (Ibid.).
Alguns intelectuais em sua intervenção pública ocupam a posição de atores-chave na
conformação de um projeto político nacional. Darcy Ribeiro é um deles. Não é casual que
tenha participado de uma geração de estudiosos que comungavam inquietações em torno
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do “enigma Brasil” 5, tenha dado especial valor à educação no Brasil e, nesta trilha, tenha
se engajado politicamente, dentre outros, na construção de novos modelos de escola e de
universidade. Tais projetos, na prática, jamais poderiam expressar em sua pureza as
ambições formuladas no plano teórico. De um lado, as respostas possíveis aos dilemas em
torno do processo civilizatório brasileiro são múltiplas e recaem em não poucos dissensos,
de outro lado, no âmbito político, as divergências ampliam-se e somam-se a estas os
desafios de ordem prática que atropelam as orientações estritamente normativas.
A Uenf expressa como projeto universitário também um postulado acerca de um Brasil
possível. Os paradoxos evidenciados no Plano Orientador da Universidade Estadual do
Norte Fluminense, em Campos dos Goytacazes, no Estado do Rio de Janeiro, são aqueles
da sociedade brasileira. A universidade inscrita no ideal da “aceleração evolutiva”, talvez,
digladie-se com a “modernização reflexa” ainda imposta ao sistema científico e
tecnológico no Brasil. Não se poderá, pois, compreender os caminhos e descaminhos de
uma universidade projetada para o “terceiro milênio” negligenciando-se sua alocação num
sistema maior que ela mesma, a sociedade brasileira. Da explicitação de seu lugar no
mundo, avistamos seus aliados e antagonistas e podemos rever seu papel, mais conscientes
de nossas ações e de suas prováveis conseqüências.
2. Ciência e Sociedade
O conhecimento é hierarquizado hoje em sua maior ou menor aplicabilidade nas inovações
tecnológicas, o que tende a restringir a capacidade intelectual humana à geração de lucro.
Ciência e cientistas existem num contexto social. Aqui falamos do sistema capitalista no
qual, os seres humanos optam por esquecer que, como diz a filósofa Marilena Chauí, os 5 Gláucia Villas Boas e Marcos Chor Maio (1999) lembram que as perguntas “quem somos nós?” e “o que é a sociedade brasileira” que marcam a fisionomia das ciências sociais brasileiras têm sentido explicitamente pragmático. Trata-se de diagnosticar nossa capacidade de integrar o concerto das nações modernas. Trata-se de saber qual nossa capacidade para progredir, modernizar, desenvolver ou quais nossas possibilidades de definir a modernização que queremos, como nação.
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instrumentos tecnológicos “destinam-se a dominar e transformar o mundo e não
simplesmente a facilitar a relação do homem com o mundo” (1999, p.279).
A ideologia (mitologia) da ciência e da universidade constitui-se, como formulou Bourdieu
em sua teoria, em “estruturas estruturadas dispostas a se comportar como estruturas
estruturantes” que marcam a sociedade de classes contemporânea, recriando uma forma de
dominação específica. Há limites objetivos – formais e informais – para a realização da
cidadania plena nos países cujo desenvolvimento científico e tecnológico foi interrompido
ou limitado pela divisão social do trabalho imposta pelos chamados países centrais, na
aliança com as elites nacionais. Em outras palavras, apostar na inovação científica e
tecnológica a partir da construção de uma universidade pública contém aspirações
emancipatórias ainda que estas possam se perder se, como diz Darcy Ribeiro, se substituir
o esforço da aceleração evolutiva pela cômoda modernização reflexa.
A relação entre ciência e tecnologia é visualizada no capítulo do Plano Orientador
dedicado às “linhas básicas de ação” da nova universidade. Em conformidade com sua
perspectiva teórica, Darcy ratifica que o avanço da ciência é critério de “poderio
econômico” na ordenação geopolítica mundial. É ela para o Brasil “seu único caminho de
ingresso neste novo mundo”.
Atentando para os princípios e objetivos da universidade idealizada por Darcy Ribeiro,
representantes da comunidade científica brasileira bem como nomes advindos do Poder
Público estadual e, também, municipal bem como de grupos da sociedade campista 6,
6 A pesquisa acerca dos confrontos, alianças, intercessões, afastamentos entre pessoas e círculos sociais em torno na construção da Uenf foi realizada por Glauber Rabelo Matias (Nets/CCH/UENF) em sua monografia de final de curso de graduação em ciências sociais, intitulada “Uma sociologia dos círculos sociais em Campos dos Goytacazes: Darcy Ribeiro e intelectuais na construção da Universidade Estadual do Norte Fluminense”, datada de 2005, em que o autor descobre distintos “planos orientadores” para a universidade. Recomenda-se ainda a leitura de seu artigo em co-autoria com Adelia Miglievich, a saber, “A Universidade Necessária em Darcy Ribeiro: notas sobre um pensamento utópico”, publicado na Revista de Ciências Sociais da Unisinos, vol. 42, n.3, em 2006. Aqui, porém, restringimo-nos à análise, segundo a perspectiva de
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observamos uma concepção de universidade pública de forte viés iluminista. É plausível
supor o quanto o Plano da Uenf atraiu mentes brilhantes, a despeito de uma militância
partidária ou não, uma vez que seu texto traduziu sentimentos que aliavam a aposta na
nação e, mais particularmente, no potencial econômico do Estado do Rio de Janeiro, a
crença no progresso, a atração pela inovação tecnológica e, em alguma medida, o sonho da
transformação de uma realidade que até então se impunha como irreversível marcada pelo
“atraso”.
A motivação de tais sentimentos não nos é possível julgar. Algumas personagens puderam
revelar um desprendimento pessoal expresso em fortes convicções de fundo moral. Outras
pensavam mais instrumentalmente, buscando a realização ou o coroamento de uma
trajetória política e/ou científica. Havia ainda aqueles que conciliavam ideais mais nobres a
ambições pessoais. Desafortunadamente, também os que nem como cientistas nem como
personalidades públicas visavam contribuir para o sucesso da universidade. Contudo, a
atribuição a Uenf de uma “missão civilizatória” também foi suficiente para provocar
desconfianças e mesmo rejeição. Sequer falamos aqui dos círculos campistas já que alguns,
não pouco, também se opuseram à forma como a Universidade ganhava materialidade no
cenário local. Fato é que o projeto da Uenf foi considerado megalômano por muitos.
Provocou dissabores em opositores de Brizola que, com mais razão ou menos, acusavam a
máquina pública de desperdício financeiro. A gestão do dinheiro público nos anos que
antecederam à inauguração da Uenf e, também, nos anos que imediatamente se seguiram a
esta viraram tema do folclore fluminense. É possível supor que Darcy Ribeiro não se
preocuparia com a austeridade financeira para dar a luz à “universidade do terceiro
milênio”, assim chamada por ele. Também que abusos tenham acompanhado sua criação.
“qual modernização” inscreve-se no plano orientador oficial, assinado por Darcy Ribeiro.
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Dificilmente, porém, podemos desconhecer em Darcy Ribeiro sua autêntica aposta na
modernização como fator de justiça social.
Fato é que se pregava uma Universidade pouco verossímil num contexto, como depois se
confirmou, de descaso público crescente para com a Educação em todos os níveis.
Também, atribuía-se à universidade um papel que extrapolava sua capacidade de ação, a
saber, o desenvolvimento regional num Estado historicamente cindido entre a capital e o
interior. Por fim, a Uenf buscava a inovação científica e tecnológica num campo complexo,
a sociedade científica e tecnológica, respectivamente, de um país periférico, não
casualmente, mas como efeito de determinações políticas que o subordina a interesses que
não aqueles chamados sociais. Em outras palavras, a Uenf nascia para “nadar contra a
maré”.
A Uenf, no seu Plano Orientador, foi concebida como um novo patamar do
desenvolvimento da universidade no país, expondo um modelo voltado para os campos da
ciência e da tecnologia. Em mais de uma passagem faz-se menção a Unicamp, que nascera
nos anos 1970, como inspiração para a universidade a ser implantada. Nas palavras de
Darcy Ribeiro:
(...) nossa ambição é nada menos que dar ao Rio aquilo que, por exemplo, a Universidade de Campinas deu a São Paulo: uma universidade moderna, que atualize o Brasil quanto aos principais campos do saber e que aqui implante laboratórios e centros de pesquisa, nos quais as tecnologias mais avançadas possam ser praticadas, ensinadas e criadas (RIBEIRO, 1992, p.27).
A instauração da Uenf foi defendida, também, como parte de um processo de
descentralização dos espaços de produção e difusão da ciência e da tecnologia. A presença
de universidades e institutos de pesquisa em Campinas, São Carlos e Ribeirão Preto, no
Estado de São Paulo, considerada fator dinamizador de suas respectivas localidades e
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cercanias inspirava Darcy Ribeiro e seu grupo críticos à concentração das instituições
científicas fluminenses na cidade do Rio de Janeiro. A Uenf, portanto, justificava-se ainda
como possibilidade de:
(...) abertura de novas oportunidades de trabalho para jovens mestres e doutores diplomados em Universidades do próprio Rio de Janeiro (Ufrj, Uerj, Ufrrj E Puc) e de outro, a criação de instrumentos de formação para a sociedade de Campos e adjacências (Ribeiro, 1992, p.27).
Num setor econômico especificamente é inegável a feliz aposta do projeto uenfiano: a
produção de gás e petróleo na bacia de Campos, responsável hoje por mais de 80% da
produção nacional de petróleo (óleo) e mais de 40% do abastecimento de gás no país 7. No
início dos anos 1990, através do projeto Uenf, o Governo do Estado trazia, através da
Uenf, para o município de Macaé, um campus avançado denominado Laboratório de
Engenharia e Exploração do Petróleo (Lenep/CCT), que se tornou reconhecido nacional e
internacionalmente na comunidade científica. Contudo, nos setores chaves da Uenf em que
o desdobramento das inovações tecnológicas teria mais impacto sobre a redistribuição de
renda na região, a saber, a cultura da cana e a bacia leiteira, o êxito não se deu da mesma
forma.
No Plano Orientador pretendeu-se ainda a “certificação da qualidade da produção
industrial” de maneira que a Universidade, em sua relação com o setor produtivo, possa
intervir para “auxiliar a melhoria das condições de competitividade da indústria”.
Ressaltando a ausência de um complexo industrial diferenciado em “cidades de médio
porte” como Campos dos Goytacazes, a Uenf abriga a pretensão de não se circunscrever à
7 Disponível em http://www2.petrobras.com.br/ri/port/DestaquesOperacionais/ExploracaoProducao/pdf/ProducaoEP_2008_ Port.Pdf, Acesso em 13/12/2008.
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economia do petróleo e da cana de açúcar 8 mas, a partir de ambas, contribuir para a
indústria local em variadas vocações:
(...) O crescimento industrial em Campos, a reboque do incremento da produção de petróleo e da cana e do oferecimento de novas alternativas nos setores industrial e agropecuário dependerá da existência deste tipo de apoio que, nesta fase só poderá ser oferecido por uma Universidade de qualidade (Ribeiro, 1992:28).
Na “Universidade do Terceiro Milênio”, dar-se-ia a conexão entre os saberes científico e
tecnológico às demandas emergentes da sociedade local 9. Intercessões de conhecimento
inéditas derivariam em novos campos da ciência. No Plano Orientador, elogia-se o espírito
de ousadia dos cientistas que na Uenf unem esforços para vencer décadas de atraso e
afirmam a partir da universidade uma das economias mais promissoras do Brasil, quiçá, do
mundo.
A Universidade Estadual do Norte Fluminense – uma universidade para o 3.º Milênio – (...) uma instituição de cultivo das ciências e das técnicas de alto padrão, capaz de estabelecer um constante intercâmbio entre o saber acadêmico e os problemas apresentados pela sociedade, e com a tônica na prática experimental. Dessa forma, colocando o conhecimento adquirido e as tecnologias desenvolvidas a serviço da comunidade regional e do Brasil, a UENF estará estimulando a cada dia a pesquisa em áreas diversificadas do saber. Estará formando pessoas capacitadas para a reconstrução da realidade brasileira, ao mesmo tempo em que estará adquirindo domínio sobre conhecimentos diferenciados e atualizando-se
8 Para o exame da produção científica e tecnológica da Uenf no setor do petróleo, na atenção a seus paradoxos, importa conferir a dissertação de mestrado de Márcia Mérida Aguiar intitulada “Ciência como política: um estudo de ‘híbridos’ da modernidade na Universidade do Terceiro Milênio”, defendida no Pgps/CCH/Uenf no ano de 2005, bem como seu artigo em co-autoria com Adelia Miglievich intitulado “Petróleo e matriz energética na proliferação dos ‘híbridos’ da modernidade”, publicado nesta Revista, vol.1, n.2. No que concerne aos limites da inovação tecnológica para a economia local da cana de açúcar, recomenda-se a leitura da dissertação de mestrado (Pgps/Uenf) de Fabrício Monteiro Neves intitulada “A construção de grupos em biotecnologia da cana-de-açúcar em Campos dos Goytacazes sob a perspectiva do novo sistemismo”, defendida em 2004. Também seu artigo em co-autoria com Adelia Miglievich “A conformação dos grupos de pesquisa em biotecnologia na região norte-fluminense: a perspectiva do ‘novo sistemismo’”, publicado na Revista de Ciências Sociais da Unisinos, vol, 41 n. 03, em 2005.9 Os autores escreveram o artigo “Modernização, Ciência e Tecnologia na ‘universidade do terceiro milênio’: perspectivas para o desenvolvimento regional”, publicado no Boletim Técnico do Senac, vol. 32, set. / dez. 2006, no qual trazem o debate contemporâneo sobre o desenvolvimento regional e seus impasses.
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constantemente para atender às exigências dos novos tempos. Com relação à região de Campos, de forma específica, a Uenf estará a satisfazer as necessidades da economia local (Ribeiro, 1992, p.3).
O desenvolvimento da ciência e da tecnologia na Uenf é associado à formação de “parques
tecnológicos”. Em acordo com o Plano, caberá à universidade pública, portanto, realizar
“projetos de envergadura” orientados para a inovação tecnológica e - enfim, é mencionado
- também de uma “infraestrutura adequada” (Ibid., p.28). Ora, a Universidade Estadual do
Norte Fluminense era criada num contexto cujas condições infra-estruturais adequavam-se
pouquíssimo ao desenvolvimento de projetos de pesquisa e de inovação tecnológica
capazes de funcionar como plataforma de implementação dos citados parques industriais.
A idéia é que ela se tornasse, também, um fator infra-estrutural para a aceleração evolutiva.
Vislumbrava-se a “intervenção modernizante” da Universidade para o alcance da
viabilidade econômica de setores produtivos locais mediante a qualificação tecnológica a
ser refletida no aumento de rendimentos, coadunado inserção de tais setores no mercado
estadual e nacional. Pouco se atentou, porém, para a dinâmica sócio-econômica do
capitalismo brasileiro em escala inter-regional, como se referiu Dulci (2002).
Universidades também se situam em realidades sócio-espaciais e político-institucionais
distintas. Qualquer ideário modernizador fragiliza-se quando busca tornar-se monolítico.
3. A proposta de organização da Uenf
O Plano Orientador da Uenf inova, também, em sua estrutura organizativa. Na UnB, Darcy
propusera a substituição da cátedra pelos departamentos. Desta vez, abolia-se o
departamento e criava-se, como unidade basilar da nova universidade, o laboratório, onde
numa perspectiva interdisciplinar desenvolviam-se os grandes projetos de pesquisa. A
reunião de laboratórios conformava o centro. Cada centro universitário era também “uma
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unidade integrada de pesquisa, ensino e desenvolvimento tecnológico em um amplo campo
de interesse para o progresso da Região, do Estado e do País” (Ribeiro, 1992, p.30).
A parceria universidade-empresa dar-se-ia na absorção de “novos conhecimentos”
mediante atividades de “pesquisa, de aprendizado e de fomento industrial”. São
discriminados, no Plano Orientador, os seguintes centros na Uenf: Centro de Ciência e
Tecnologia (CCT), Centro de Biociências e Biotecnologias (CBB) e Centro de Tecnologias
Agropecuárias (CCTA)10. Estava previsto que um centro deveria combinar-se com
empresas: “Esta Universidade será constituída de Centros de Ciências e Tecnologias,
associados a empresas” (Ribeiro, 1992., p.30). Tanto que a Uenf haveria de estimular,
conforme já relatado, a “formação de empresas ou [na] associação com empresas já
existentes” para produzir “produtos e processos tecnológicos aproveitáveis” (Ibid.).
As linhas de pesquisa consolidadas nos laboratórios e as pesquisas tecnológicas neles
desenvolvidas deveriam ser “gerenciadas pela FUNDAÇÃO (FENORTE)” 11, incumbida,
dentre outros, da “prestação de serviços, como o de garantia do Certificado de Qualidade
de produtos industriais; de sementes; de produtos animais, etc.” A Fundação será dotada
10 No plano orientador da Uenf não consta nenhum curso ligado à área de humanas, apesar da referência ao denominado “Centro Integrado de Ciências do Homem” sob a supervisão do Mércio Pereira Gomes. Também, há registro sobre o “Centro de Experimentação e Comunicação”, que incluiria a EBCTV, supervisionado pelo próprio Darcy. Curiosamente, os demais centros, ao invés de supervisores, possuiriam “coordenadores”. Na prática, o Centro de Ciências do Homem e seus cursos nasceram tardiamente em comparação aos centros voltados para o desenvolvimento tecnológico nas engenharias, ciências biológicas e agrárias. Os pioneiros na Uenf testemunham em suas entrevistas que um centro de humanidades não era pretendido no projeto de criação da Uenf, mas prevaleceu a determinação legal que supunha a representação equânime das áreas de conhecimento para que a Uenf obtivesse o estatuto de universidade.11 O conflito entre a Uenf e a Fenorte presente desde a instauração da Universidade em 1993 resultou no movimento grevista de professores, funcionários e estudantes, em respectivas associações, em prol da autonomia universitária. Após oito anos de sua criação, portanto, é aprovada a Lei Complementar n.º 99, de 23 de outubro de 2001 que garante a autonomia universitária para a Uenf. A partir de então a universidade se integrou “à Administração Estadual Indireta, sob a forma de uma fundação com personalidade jurídica de direito público, com autonomia didático-científica, administrativa, e de gestão financeira e patrimonial”. Cf. Lima & Alves. Uenf. A Universidade do Terceiro Milênio, p.99.
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em seu funcionamento de técnicos de nível médio nela formados, estes orientados por
técnicos de nível superior (Ibid.).
Cada centro haveria de ser composto por “professores pesquisadores nacionais e
estrangeiros” e por estudantes nos níveis de graduação e pós-graduação, sendo os docentes
escolhidos e remunerados segundo seu curriculum vitae e capacitação prévia, observando o
nível de “produtividade em ciência e/ou tecnologia” como critério de ascensão
institucional. Os graduandos e pós-graduandos teriam os laboratórios como permanente
espaço de formação científica nos “campos experimentais de seus respectivos professores
orientadores”. Estabelece-se a prática experimental realizada nos laboratórios como a
“principal modalidade de ensino na UENF” (Id. Ibid.).
O ensino é atribuído aos “Pesquisadores-Chefes regentes dos laboratórios” assessorados
pelos “Pesquisadores Associados, Doutorandos e Mestrandos” no “encargo adicional” de
coordenar os cursos básicos nos “campos científicos e humanísticos” para o quadro
discente da graduação (Id. Ibid.).
A mediação teoria-empiria, fundamento e movimento da ciência moderna, constitui um
alvo na concepção de conhecimento a ser construído na nova universidade. O laboratório
configura o espaço da indivisibilidade entre aula e prática: as “aulas, se assim se podem
denominar” realizam-se no laboratório, propiciando um “contato direto com o objeto de
estudo”. O ensino teórico não precisa ser destituído de aulas expositivas, contudo, estas
hão de corresponder ao “mínimo necessário de embasamento teórico (...) que funcionem
como instrumental aos futuros trabalhos laboratoriais”. Estabelece-se que o estudo teórico
observará sempre a “necessidade surgida nos laboratórios” constituídos como sua principal
fonte (Ibid., p.35).
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A aposta no desenvolvimento das forças produtivas a partir de uma elite de cientistas
reunidos na Uenf, dedicados exclusivamente aos projetos de ponta na ciência, tecnologia e
inovação vem promover o desenvolvimento regional no Estado do Rio de Janeiro e no
cenário nacional. Porém, a intervenção modernizante da Universidade Pública para a
reestruturação sócio-econômica do Norte Fluminense esbarraria em condições objetivas de
resistência. Nas configurações sociais de uma região pouco afeita aos apelos da mudança, a
projeção teórica e ideológica trazida pela Uenf em seu nascedouro veio a sofrer os
previsíveis constrangimentos de uma ordem econômica, política e cultural que, não se
limitando ao domínio regional, conformam a contradição de nossa época: o capital e sua
modernidade excludente.
Considerações Finais
A Universidade hoje como importante agente de produção mudanças ou reprodução do
status quo é, também, forjada na lógica capitalista. O pensamento autônomo é uma utopia
em nossa sociedade se não percebido como formado no embate cotidiano no qual
cientistas, donos do capital, governos, trabalhadores, cidadãos e “não-cidadãos” (os mais
pobres dentre os pobres, destituídos dos direitos básicos para a dignidade da vida) buscam
participar a fim de ter voz na elaboração de alguns patamares basilares sobre os quais
acordos e consensos podem ser firmados. A Uenf surgia como um novo ator social na
região a reivindicar um lugar na proposição de políticas públicas de desenvolvimento,
anunciando o “terceiro milênio”. Jamais o construiria por si só, é fato. Darcy Ribeiro e seu
grupo, em que pesem as dissonâncias internas previsíveis, acentuavam o papel da
Educação, da Ciência e da Tecnologia na construção do destino nacional. Sabiam, de
antemão, porém, que seu projeto traduzia uma luta social. A universidade não é neutra.
Não há em Darcy Ribeiro a afirmação ingênua de que a universidade prescinde de um
direcionamento ideológico para o conhecimento nela produzido e sua intervenção no
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entorno. Mais que isso, Darcy prega que a universidade necessária num país marcado
historicamente pela modernização reflexa há de ser nitidamente de contrapolitização, visto
que a tendência das instituições – como organismos sociais – é a contrária, isto é, de
legitimação do status quo. Eis que seu “pensamento autônomo” dependerá, ao longo do
tempo, de sua capacidade de se contrapor aos discursos e práticas que mantêm o país
aprisionado numa “modernização conservadora”. O “utopista” Darcy pensou que mediante
a formação de novos quadros científicos, a Uenf possibilitava a fomentação de um saber
crítico a toda espécie de “mandonismo” que pudesse impedir o desenvolvimento autônomo
da Brasil-nação.
Num país subdesenvolvido ou em vias de desenvolvimento como crêem alguns, sem
perguntar “para quem é este desenvolvimento?”, a Uenf nascia com a “missão” de ser “a
porta-voz da civilização emergente”, geradora de ciência e tecnologia. Esta é a utopia.
Mas, não deixa de ser atordoante que se designe utópica a crença na agência humana, no
lugar da resignação. Ora, a política é, por excelência, ação humana.
A Uenf viu-se diante dos paradoxos da modernização: aceleração evolutiva ou
modernização reflexa? Não pode ser explicada, em seus rumos, exclusivamente pela boa
vontade ou não de seus cientistas e da comunidade onde se instalou. Defendemos, contudo,
que para além de qualquer pragmatismo político que tenha mobilizado grupos para a
construção da Uenf em Campos dos Goytacazes, os confrontos de ontem e de hoje
existentes ainda podem se traduzidos como disputas em torno do país que queremos.
Pensar sobre a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro é também
pensar sobre a política e a economia no Estado do Rio de Janeiro, sobre o Poder Local.
Também, sobre o sistema de ciência & tecnologia no Brasil e nos países irmãos, latino-
americanos. É pensar, com prudência e também coragem o desenvolvimento de uma
nação.
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O maior perigo, a nosso ver, está em descredibilizar o projeto Uenf mediante a atenção
exclusiva às idiossincrasias do jogo político. Não se nega a existência destas, ao contrário.
Mas, cuidamos de não superestimar o “folclore político” ao preço de se subestimar o
conteúdo do debate sobre a “universidade necessária” no Brasil do terceiro milênio.
Em seu livro, “Darcy Ribeiro: sociologia de um indisciplinado” (2001), Helena Bomeny
também alerta para o risco de se prender ao julgamento do autor do projeto para exaltá-lo
ou rebaixá-lo. Sinaliza para a precariedade de qualquer crítica aos desdobramentos
políticos de projetos excessivamente subjetiva 12. Ao se priorizar unilateralmente o mérito
ou demérito do fundador, os analistas das políticas públicas – aqui, referimo-nos mais
diretamente aos pesquisadores das políticas de C&T e aos propositores da reforma
universitária – parecem desconhecer a dinâmica dos grupos em interação na
implementação e na “rotinização” 13 de uma nova universidade ambiciosa numa região
com especificidades que não podem ser desconhecidas e numa lógica maior que insiste na
modernização reflexa. Os atributos personalísticos do mentor intelectual Darcy Ribeiro
definitivamente não são suficientes para justificar os entraves ou as potencialidades abertas
a Uenf no estabelecimento das interfaces na região. Como diz Bomeny:
12 Bomeny (2001), no livro citado acima, dedica-se ao estudo da vida e obra de Darcy Ribeiro em sua atuação pública como representante do “escolanovismo”, sobretudo, quando da proposição dos Cieps (Centros Integrados de Educação Pública). Também acerca destes observa que grande parte das críticas tendem à radicalismos pró ou contra, muitas vezes, sustentados em simpatias ou antipatias à personalidade pública de Darcy Ribeiro e na tanto a análises mais objetivas sobre os limites da burocracia estatal, os erros ou acertos na conciliação de interesses políticos diversos, dentre outros. 13 Weber explica a “rotinização (do carisma)” como a “forma de penetração do carisma na vida cotidiana (...), sua transformação em uma estrutura permanente (...) sua aderência a uma formação social como tal” (Economia e Sociedade, p. 344-7). Vê nisto a condição do “novo” a se instalar mediante a ação coletiva em torno de propósitos comuns pautados na consciência do dever, no treino e na disciplina, num “um ótimo racionalmente calculado”, na “energia física e psíquica uniformemente adestradas” (p. 357), daí que a dominação carismática, pela rotinização, tende a desaparecer ou a se transmutar em dominação racional-legal, em termos de análise a partir dos tipos-ideais. Isto explica porque toda instituição não é seu projeto e também não é seu mentor intelectual mas sim as pessoas que cotidianamente a fazem existir, Cf. Weber. “A dominação carismática e sua transformação”, 1999.
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Os filhos que Darcy quis ver reconhecidos social e publicamente como seus – a UnB, os CIEPs e a UENF – estão no mundo. (...) Restringir os problemas dos programas aos desmandos próprios do estilo de um homem público, por mais persuasivo que seja, ou, por outra, responsabilizar um ator pela ineficácia de uma política pública, talvez seja incorrer no mesmo vício de que se acusa a política personalista que caracterizou o estilo igualmente personalista que foi imputado a Darcy Ribeiro (Bomeny, 2001, p.259).
Por isso, a relevância de localizar o projeto da Uenf num ideário político do qual Darcy
Ribeiro fez parte e que o ultrapassa, passível de ser capturado nos estudos de sociologia do
desenvolvimento, enfim, recentemente revigorados. Nosso artigo traz a expectativa de ter
contribuído para uma reflexão que não se traduz exclusivamente na construção da memória
da universidade – esforço salutar, sem dúvidas. Nosso intento terá sido, a partir do caso da
Uenf, hoje com 15 anos de idade, refletir sobre a participação da universidade pública na
modernização do país, sobretudo, no enfretamento da tensão entre modernização reflexa e
aceleração evolutiva, conceitos basilares da obra primordial do antropólogo Darcy Ribeiro,
“O processo civilizatório” de virtudes inegáveis e com seus limites, posto que é um
produto humano.
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