A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
-
Upload
cristina-diaz -
Category
Documents
-
view
218 -
download
1
Transcript of A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
1/86
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA:
Agosto entre o histórico e o policial
LEONARDO BARROS MEDEIROS
Rio de Janeiro
2013
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
2/86
A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA:
Agosto entre o histórico e o policial
Leonardo Barros Medeiros
Dissertação apresentada ao Programa dePós-graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Letras
Vernáculas (Literatura Brasileira).
Orientador: Prof. Dr. Alcmeno Bastos
Rio de Janeiro
2013
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
3/86
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
4/86
A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA:
Agosto entre o histórico e o policial
Leonardo Barros Medeiros
Orientador: Professor Doutor Alcmeno Bastos
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira).
Examinada por:
___________________________________________________Presidente, Prof. Dr. Alcmeno Bastos – UFRJ
___________________________________________________Prof.ª Dr.ª Suzana de Sá Klôh – UCP
___________________________________________________Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto – UFRJ
___________________________________________________Prof. Dr. José Luís Jobim – UERJ (Suplente)
___________________________________________________Prof.ª Dr.ª Anélia Montechiari Pietrani – UFRJ (Suplente)
Rio de Janeiro2013
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
5/86
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
6/86
Agradeço aos professores que me acolheram e preparam para esse momento, em especial,meu orientador, Alcmeno Bastos pela leituraatenta e crítica deste trabalho.
Agradeço também à CAPES pela bolsaconcedida.
À Renata Portella pela amizade construídadesde os dias da graduação.
E aos amigos que conquistei na UFRJ.
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
7/86
A literatura é diferente da vida porque a vida écheia de detalhes, mas de maneira amorfa, eraramente ela nos conduz a eles, enquanto aliteratura nos ensina a notar – a notar comominha mãe, por exemplo, costuma enxugar aboca antes de me beijar; o som da britadeiraque faz um táxi londrino quando o motor adiesel está em ponto morto; os riscos
esbranquiçados numa janela velha de couroque parecem estrias de gordura num pedaçode carne; como a neve fresca “range” sob os
pés; como os bracinhos de um bebê são tãorechonchudos que parecem amarrados comlinha. Essa lição é dialética. A literatura nosensina a notar melhor a vida; praticamos issona vida, o que nos faz, por sua vez, ler melhoro detalhe na literatura, o que, por sua vez, nos
faz ler melhor a vida.
James Wood
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
8/86
RESUMO
MEDEIROS, Leonardo Barros. A representação do real em Rubem Fonseca: Agosto entre o histórico e o policial. Rio de Janeiro: 2013.
Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
A representação da realidade como instrumento da criação literária é uma tendênciagradativa no cenário literário universal. Tal fenômeno pode ser percebido por meio da
propagação, pelo mercado editorial, de romances biográficos, históricos, bem como de biografias, memórias e confissões.O amálgama da história à ficção é o tema gerador desta pesquisa que procuraestabelecer um limite entre essas duas forças na produção literária de Rubem Fonseca,especialmente em Agosto (1990).
Rubem Fonseca exibe uma peculiaridade no que tange à temática, que é a de,geralmente, apresentar aspectos criminais. Sua produção ficcional, em contos eromances, vem sendo distinguida pela crítica, mesmo que de modo inconcluso, tendoem vista tratar-se de um escritor contemporâneo, em processo de produção – seu últimoromance foi publicado em 2011.Esta dissertação propõe visualizar a história como suporte para a criação literária, e paratanto escolhemos o romance Agosto, que versa sobre os dias que antecederam o suicídiodo presidente Getúlio Vargas, como o mais representativo desta tendência ficcional deRubem Fonseca. Com esse intuito, apresentamos um levantamento das principaisreferências históricas: alusões, ao longo da trama, a cenários reais, a personalidadesimportantes da década de 1950, a jornais e revistas em circulação na época e a filmes
que foram exibidos naquele momento.
PALAVRAS-CHAVE: Rubem Fonseca – Agosto – História e Literatura
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
9/86
ABSTRACT
MEDEIROS, Leonardo Barros. A representação do real em Rubem Fonseca: Agosto entre o histórico e o policial. Rio de Janeiro: 2013.
Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
The representation of reality as a tool of literary creation is a gradual trend in universalliterary scene. This phenomenon could be realized by means of propagation, the
publishing market, biographical novels, histories and biographies, memoirs andconfessions.The amalgam of history to fiction is the theme of this generating research that seeks toestablish a boundary between these two forces in the literary production of RubenFonseca, especially in Agosto (1990).Ruben Fonseca displays a peculiarity in regard to the theme, which is to generally
provide criminal aspects. His fictional production, in stories and novels, has beenhonored by critics, even so inconclusive in view that this is a contemporary writer, inthe production process - his last novel was published in 2011.This paper proposes visualize the story as support for literary creation, and for thatchose the novel in August, which is about the days leading up to the suicide of PresidentGetúlio Vargas, as the most representative of this trend fictional Ruben Fonseca. To thisend, we present a survey of the main historical references: allusions, along the plot, the
real scenarios, the important personalities of the 1950s, the newspapers and magazinesin circulation at the time and the films that were shown at the moment.
KEY-WORDS: Rubem Fonseca – Agosto – History and Literature
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
10/86
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.......................................................................................................p.11
1. RUBEM FONSECA E SUA POSIÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA: OBRA,FORTUNA CRÍTICA E CONSTANTES TEMÁTICAS ......................................... p.13
1.1 A recepção crítica da obra fonsequiana ................................................................p. 17
1.2 As linhas de força de Rubem Fonseca .................................................................. p.19
2. A DIMENSÃO POLICIAL EM RUBEM FONSECA ....................................... . p. 37
2.1 O detetive ............................................................................................................. p. 40
2.2 Inovações no gênero ............................................................................................ p. 43
2.3 Entrecruzamentos/amálgamas de linguagens ....................................................... p.46
3. A DIMENSÃO HISTÓRICA EM RUBEM FONSECA........................................p. 49
3.1
Gênese do romance histórico ............................................................................... p.513.2 Em torno do romance histórico: tradição/antecedentes na literatura brasileira ... p.55
3.3 O caso Rubem Fonseca ........................................................................................ p. 57
4. AGOSTO E O RELATO HISTÓRICO .................................................................. p.61
4.1 O comissário Mattos e o altruísmo de uma utopia desvairada ............................p. 63
4.2 A união de duas histórias ...................................................................................... p.68
4.3 As marcas registradas ........................................................................................... p.69
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... p.76
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ p. 78
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
11/86
APRESENTAÇÃO
O presente estudo faz uma análise da obra de Rubem Fonseca dando ênfase aoromance Agosto (1990). Além de apresentar o autor, características e produção,
escolhemos enfocar a questão da fronteira entre o fato e a ficção na obra em destaque e,
também, fazer breves estudos sobre os gêneros do romance policial e do romance de
matéria de extração histórica.
Sabemos que tanto a narrativa policial quanto o romance histórico são
consequências da proliferação de narrativas advinda da popularização dos folhetins
durante a primeira metade do século XIX. Nesse contexto, os últimos dois séculos
viram desenvolver-se e se popularizar uma série de narrativas híbridas que colocam suas
ações em tempos passados ou que tentam resolver crimes ou outros enigmas. O
cruzamento dessas duas modalidades tem sido constante, seja com o simples objetivo de
divertir o leitor, seja na tentativa de, ao enredá-lo nos meandros do labirinto narrativo e
seus mistérios, mostrar que pelo exercício da leitura ele pode aprender algo sobre o
mundo que o rodeia e poder escapar de suas armadilhas. Em Agosto, vemos esse
objetivo alcançado em suas páginas que misturam o Rio de Janeiro à figura de GetúlioVargas e às agruras do personagem fictício Mattos.
No primeiro capítulo do estudo, denominado Rubem Fonseca e sua posição na
ficção brasileira, propomos apresentar as linhas de força da produção fonsequiana com
o intuito de, mais tarde, apontá-las na obra em análise. Esse levantamento dá ao trabalho
um caráter mais objetivo, por fazer uma pesquisa atenta e minuciosa, por meio de
extração de fragmentos de obras para a comprovação das proposições, das
características mais pontuais de Rubem Fonseca. Antes de apontarmos essas
características, tecemos breves comentários sobre a biografia do autor, com o intuito de
posicionar o leitor em sua obra, para, em seguida, construirmos um aparato crítico da
obra fonsequiana que servirá de respaldo para as futuras análises. Nesse capítulo
podemos ver que as marcas mais expressivas em sua obra encontram-se na linguagem
utilizada, enxuta de metáforas; a representação citadina, o Rio de Janeiro como espaço
preferido para compor os enredos, é a presença constante, lá é onde os crimes ocorrem,
onde a vida se transforma e onde nada é estático; a crítica social; a presença da
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
12/86
oralidade; a suspensão do juízo moral; a constante solidão dos personagens que os
transforma em sujeitos amargurados e violentos; a violência que é estruturante da
composição narrativa opera como um elemento de caracterização do personagem e,
também, define o desfecho da trama, suas tensões e conflitos; e o sexo, como um dos
grandes temas abordados na obra de Rubem Fonseca.
No capítulo seguinte A dimensão policial de Rubem Fonseca , fazemos um breve
histórico do gênero policial, desde Os crimes da rua Morgue até a literatura brasileira
contemporânea. Nesse capítulo, afirmamos que desde a Bíblia temos relatos do interesse
de se registrar o desejo da investigação, que é o cerne do gênero, para depois
apresentarmos a constante inovação em sua estrutura. O papel do detetive é salientado
com o intuito, de no último capítulo, servir de aparato para análise do protagonistaMattos. As inovações do gênero e as construções híbridas com a linguagem
cinematográfica, biográfica e histórica são apontadas por serem características
marcantes do romance em análise. Ao estudar o fenômeno, não podemos deixar de lado
uma constatação muito simples: a proliferação desse tipo de narrativa nos mais variados
suportes é devido ao gosto do ser humano, seja pelo mistério, seja pela tentativa de
desvendar situações misteriosas. Em outras palavras, as narrativas policiais fazem parte
de nossa realidade e de nosso cotidiano. Estudá-las, pois, é uma das funções – tarefa emmuitos aspectos também prazerosa – da academia. Tal compromisso, desafio ao mesmo
tempo, motivou a escolha do tema.
Em A dimensão histórica em Rubem Fonseca¸ com a mesma intenção dos
capítulos anteriores de servir como respaldo para o último, apontamos como se dá a
relação entre o ficcional e o factual para a tessitura de romances. Alguns romances,
conhecidos do público leitor, são apontados para exemplificar esse fenômeno literário.
Mostramos a origem do gênero com as obras de Homero e as epopeias clássicas, de tal
forma que as relações entre a literatura e a história ficaram mais evidentes com o
surgimento de diversas narrativas de matéria de extração histórica no Romantismo. As
origens nacionais são pontualmente apresentadas com a intenção de proporcionar ao
leitor um breve histórico da produção do gênero no Brasil, e, para finalizar o capítulo,
apresentamos outros casos, além de Agosto, na produção artística de Rubem Fonseca,
tais como os romances O selvagem da ópera, O doente Molière e alguns contos.
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
13/86
Esses capítulos servirão de estudos propedêuticos para o capítulo final Agosto e
o relato histórico em que propomos fazer uma análise da obra em questão, ressaltando a
característica histórica do romance. Algumas questões nortearão o capítulo: Após
leituras cautelosas de romances em que a história está inserida na narrativa, chegamos
às questões de como se dá a fronteira entre o fato e a ficção? A literatura cumpre a
função de duplicar o registro histórico? Ou ela preenche uma lacuna? Quais os efeitos
que os fatos podem produzir na ficção? Qual a relação da literatura com a realidade?
Elas serão respondidas ao longo do texto, irão conduzir o estudo para o resultado e
carregam em si a intenção da investigação. A obra em questão será analisada em
seguida com base em críticas e fragmentos da mesma para, em seguida, tecermos um
perfil do protagonista, em que apresentamos alguns fatores constituintes de seu caráter.
O enlace das duas histórias, a da investigação de Mattos e a da trama envolvendo
Getúlio Vargas, é ponderado em seguida com a apresentação do instrumento de unção
das duas. Ao final da análise, fazemos, apoiados no estudo de Bastos (2007) sobre o
romance histórico, um levantamento das principais “marcas registradas” encontradas em
Agosto com o registro de fragmentos da obra para ilustração.
Ao concluir o trabalho, percebemos que o autor, ao produzir o romance, trafega
em dois gêneros distintos: o romance policial e o de extração de matéria histórico. Essainovação híbrida concorre para o sucesso da obra, prendendo o leitor nas tramas
conduzidas por Mattos, encerradas com a reprodução da fatídica cena no Palácio do
Catete.
Esperamos que esse trabalho contribua para as futuras pesquisas sobre Rubem
Fonseca, sobre Agosto ou sobre os gêneros pontuados nas páginas que seguirão, bem
como possa suscitar outros olhares para o mesmo foco, com novos aparatos críticos que
o estudo, pois sabemos da incapacidade de esgotamento temático presente na obra
literária que, conforme disse Umberto Eco (2003), está em constante movimento.
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
14/86
1. RUBEM FONSECA E SUA POSIÇÃO NA FICÇÃO BRASILEIRA:
OBRA, FORTUNA CRÍTICA E CONSTANTES TEMÁTICAS
Rubem Fonseca não aparece na mídia, não tem foto no jornal, não dá entrevistas.
Gosta do anonimato, preserva sua intimidade, e quando as pessoas o reconhecem nas
ruas como escritor ele se apresenta com outro nome. Essa postura vem desde 1963 e
mesmo quando ganhou maior notoriedade, a partir de 1976 até os dias atuais, mantêm-
se esquivo da mídia.
Nascido em Juiz de Fora, formou-se em Direito e foi atuar, aos 27 anos, como
comissário de polícia no 16º Distrito Policial, em São Cristóvão, no município do Rio
de Janeiro. Agiu apenas nove meses nas ruas como policial, permanecendo na
corporação desde 31 de dezembro de 1952 até 26 de junho de 1954. Pereira (2009: 26),
sobre a passagem de Rubem na polícia, diz que “é incrível que apenas nove meses como
policial tenham sido constantemente alardeados como responsáveis pelas intricadas
tramas policiais criadas pelo autor, ou, no mínimo, pela maior veracidade atribuída a
elas”.
O trabalho como comissário de polícia proporcionou a Fonseca um amplo
conhecimento sobre o cotidiano delinquente. Sobre essa influência da vida de Rubem
Fonseca em suas publicações, Figueiredo (2003: 22) diz que:
Principalmente nos contos escritos nas décadas de 60 e 70, a delegaciaé um espaço privilegiado na ficção de Rubem Fonseca (...). Osregistros policiais são como fragmentos da realidade que remetem
para um quadro mais geral no qual as perguntas ficam sem resposta.Pode-se, então, ler alguns contos do autor como páginas extraídas deum grande livro de ocorrências.
O conto “Livro de Ocorrências”, por exemplo, em que essa influência é
perceptível desde o nome, apresenta analogia com o cotidiano de uma delegacia. Nessa
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
15/86
narrativa, a trama é feita sobre três ocorrências que contêm elementos policiais.
Vejamos um trecho:
O investigador Miro trouxe a mulher à minha presença. Foi o marido,
disse Miro. Naquela delegacia de subúrbio era comum briga demarido e mulher. Ela estava com dois dentes partidos na frente, oslábios feridos, o rosto inchado. Marcas nos braços e no pescoço(FONSECA, 2005: 254).
Como percebemos no fragmento acima, Rubem Fonseca instaura em sua
literatura uma peculiaridade no que tange ao tema, que é a de, geralmente, ser formada
por aspectos criminais. Ora o cotidiano de uma delegacia, ora a violência de criminosos
são apontados em seus enredos.
Nesse sentido, percebemos que a obra de Rubem Fonseca está inserida em
estética de tendência denunciadora da realidade chamada por uns teóricos de realismo
feroz1, ou de hiper-realismo2, por outros de neo-realismo violento3 ou, ainda, de pseudo-
realismo4. Preferimos, aqui, enquadrá-lo, tal qual a tese de Lajolo et Zilberman (2006:
55), de estética do soco-no-estômago, nomenclatura que aglutina as tendências acima
em determinado espaço de tempo da produção literária. A propósito dessa estética, asautoras revelam que:
O livro-soco no estômago resulta de uma tomada de posição por parteda literatura brasileira, que, desde a década de 30, e talvez antes, como Naturalismo do final do século XIX, foi assumindo crescentementeuma ótica social, voltada à revelação das mazelas do país. Nos anos70 do século XX, essa tendência assumiu conotação anti-establishment : os padrões dominantes estavam fortementerelacionados à ditadura militar e à euforia desenvolvimentista.
As autoras reforçam que essa tendência atual de se fazer literatura possui sua
expressão mais completa nos livros de Rubem Fonseca, afirmando que a estética
fonsequiana:
1 Conforme MOISÉS, 2005: 587.2
Conforme BARBIERI, 2003: 81.3 Conforme BOSI, 2006: 423.4 Conforme FIGUEIREDO, 2003: 28.
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
16/86
(...) discute a justiça social – ou sua falta – num meio que semoderniza e progride tecnologicamente, mas acirra as clivagens entreos grupos dominantes e os carentes de poder, levando estes últimos àmarginalidade ou à revolta (Idem: 55).
Sobre sua estreia no mundo das letras, Silva (1996: 12) diz que:
Rubem Fonseca estreou desafiando os poderes censórios ao trazer para a prosa de ficção um modo violento de narrar, aliterário, talvezno sentido gauche em face de certas normas que a tradição literáriaconsagrou, que fixa e recupera temas como as sexualidades tidas porilegítimas, o recurso à luta armada como forma mais à mão para aresolução dos conflitos e, sobretudo, os problemas sociais e
psicológicos gerados em nossas grandes concentrações urbanas.
Publicou Os prisioneiros (1963), A coleira do cão (1965), Lúcia McCartney
(1967), O homem de fevereiro ou março (1973), O caso Morel (1973), Feliz Ano Novo
(1975). Em 1976, depois de ter vendido 30.000 exemplares de Feliz Ano Novo, foi
censurado5 sob a alegação de que seu livro exteriorizava matéria contrária à moral e aos
bons costumes, sendo assim, proibida a publicação e a circulação em todo território
nacional e, ainda, determinada a apreensão de todos os exemplares postos à venda,
permanecendo 13 anos nessa condição. Após, lançou no mercado os livros, O cobrador
(1979), A grande arte (1983), Bufo & Spallanzani (1986), Vasta emoções e
pensamentos imperfeitos (1988), Agosto (1990), Romance negro e outras histórias
(1992), O selvagem da ópera (1994), O buraco na parede (1995), Histórias de amor
( 1997), Do meio do mundo prostituto só amores guardei no meu charuto (1997),
Confraria de espadas (1998), O doente Molière (2000), Secreções, excreções e
desatinos (2002), Diário de um Fescenino (2003), Mandrake: a bíblia e a bengala(2006), O romance morreu (2007), O seminarista (2009), José (2011), Axilas e outras
histórias indecorosas (2011) e antologias reunindo seus contos. Realizou roteiros
cinematográficos, tais como: “Relatório de um homem casado”, “A extorsão”,
“Stelinha”, “A grande arte”, “Bufo & Spallanzani”. Por sua vasta obra, recebeu
inúmeros prêmios literários, destacando-se o Jabuti, o Juan Rulfo e o Camões. Sua
produção literária recebeu adaptações para o teatro e televisão. Obteve traduções, dentre
outras, para o inglês, francês, espanhol, alemão, sueco, italiano.5 Censura publicada na Portaria de nº 8.401-B, de 15 de dezembro de 1976.
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
17/86
1.1 A RECEPÇÃO CRÍTICA DA OBRA FONSEQUIANA
A produção de Rubem Fonseca é distinguida pela crítica e estudada pela
academia. Sobre o escritor contemporâneo, Wood (2011: 42) diz que:
O romancista, portanto está sempre trabalhando pelo menos com trêslinguagens. Há a linguagem, o estilo, os instrumentos de percepçãoetc. do autor; há a suposta linguagem, o suposto estilo, os supostosinstrumentos de percepção etc. do personagem; e há o quechamaríamos de linguagem do mundo – a linguagem que a ficçãoherda antes de convertê-la em estilo literário, a linguagem da falacotidiana, dos jornais, dos escritórios, da publicidade, dos blogs e dose-mails. Nesse sentido, o romancista é um triplo escritor, e oromancista contemporâneo sente ainda mais a pressão dessatriplicidade, devida à presença onívora do terceiro cavalo dessa troica,a linguagem do mundo, que invadiu nossa subjetividade, nossaintimidade.
Rubem Fonseca encaixa-se nesse tipo de escritor “prejudicado” pelos tempos
atuais em que a agilidade e o formato da informação atrapalham seu conteúdo
colocando o autor em constante movimento.
Apresentamos aqui algumas críticas sobre a escrita de Rubem Fonseca. Moisés
(2005: 588) afirma que Fonseca é “elevado à categoria de um dos nossos mais bem-
dotados ficcionistas contemporâneos (...) e que desfruta hoje de um merecido renome
nacional e internacional”. Por outro lado, Martínez (2005: 10) diz que “Nenhum escritor
é mais cinematográfico que Fonseca. A passagem de uma cena a outra é feita sem
explicações, de maneira natural”. Barbieri, em Ficção impura: prosa brasileira dosanos 70, 80 e 90 (2003: 29), considera “Rubem Fonseca, um dos escritores de maior
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
18/86
repercussão nas últimas décadas, o protótipo do escritor inserido no mercado”. Pelo seu
êxito, o escritor é conhecido pela crítica como o maldito, conforme afirma Viegas:
O sucesso, fato sociológico e estatístico, deve ser relacionado com a
situação cultural em que a obra surge. Rubem Fonseca é um maldito que está em moda. Não vende aquilo que o público espera, masoferece algo que o seu público esperava. Representa indivíduosmalditos numa linguagem violenta, despida de metaforização (1996:132).
Outros dizem que escreve no domínio do medo, como é caso de Tomáz Eloy
Martinez na introdução dos 64 contos de Rubem Fonseca:
Fonseca instala o medo ou o Mal no próprio interior da linguagem,cada uma de suas palavras é como uma nota musical arrancada dasinfonia do Mal. A exemplo dos poetas, ele faz as palavras tocarem a
borda extrema de seus sentidos. Lendo-o sente-se o poder dedissuasão ou de perversão que até a mais surrada palavra podecomportar. Muito poucos conseguiram, como ele, criar um
personagem com dois ou três traços, urgir tramas cujas costuras não seveem (in: FONSECA, 2005: 10).
Barbieri (2003) o coloca ao lado de grandes autores do cânone nacional:
Na ficção contemporânea brasileira, podem-se identificar váriasmaneiras que dão continuidade à tradição machadiana; masdificilmente se encontrará, depois de Marques Rebelo e NelsonRodrigues, outro da envergadura de Rubem Fonseca. Este soube
penetrar, com agudo olhar, a complexidade da sociedade carioca,desvelando suas contradições, misérias e grandezas (p. 104).
A obra de Rubem Fonseca é conhecida pelo peculiar tom realista. Para Moisés
(2005: 587), “realismo feroz, cruel, que não cede ante os gestos mais violentos ou as
palavras de baixo calão”. Segundo Bosi (2006: 423), Rubem Fonseca segue a “linha do
neo-realismo violento” sendo um explorador do “universo urbano e marginal”. O
mesmo Bosi afirma que:
Há os [autores] que submetem percepções e lembranças à luz daanálise materialista clássica, dissecando os motivos, em geral
perversos, dos comportamentos de seus personagens que ainda trazem
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
19/86
a marca de tipos sociais. É o caso de Rubem Fonseca, que vem dosanos 60 e demonstrou força e fôlego nas páginas cruéis (2006: 436).
Outros críticos também se debruçaram sobre as páginas de Rubem Fonseca,
porém a amostra que se apresenta supre a necessidade do estudo. Ao longo da análise
traremos para o diálogo os supracitados e outros para o embasamento teórico desta
dissertação.
1.2 AS LINHAS DE FORÇA DA FICÇÃO DE RUBEM FONSECA
A obra de Fonseca é banhada pela diversidade temática, abrangendo temas bem
identificáveis, tais como o erotismo e a violência urbana são os mais estudados. A
seguir, propomos observar algumas linhas de força que nutrem a narrativa de Rubem
Fonseca, e para ilustrar tais observações apresentamos alguns trechos de suas narrativas.
A escrita fonsequiana, embora seja muito variada em seu conteúdo, extensão,
composição de personagens e desenvolvimento da trama, possui em si algumas
características que os leitores assíduos já se acostumaram e procuram encontrar em suas
páginas.
A importância de se apresentar essas constantes temáticas aqui é para
mostrarmos como elas se apresentam ao longo do romance em análise que mais à frente
se apresentará. Pretendemos apontar brevemente as principais características
fonsequianas para que também o leitor deste estudo, possa adentrar no seu mundo
ficcional.
1.2.1 A linguagem fonsequiana
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
20/86
Há na totalidade das obras de Rubem Fonseca características predominantes na
temática, na escrita, na linguagem. Como disse Aristóteles (2007: 43) na Poética
Clássica, “A excelência da linguagem consiste em ser clara sem ser chã”. Desse modo,
Fonseca trabalha com a linguagem, aglutina outras situações e possibilidades, tudo
converge sua obra para o literário. Uma das características principais é a forma como
escreve apresentando uma linguagem enxuta e sem rodeios. Fonseca, dessa maneira,
entra diretamente no cerne da questão abordada, como ressaltou Viegas (1996:131):
As narrativas de Rubem Fonseca, assim como de outros autorescontemporâneos, têm como projeto recuperar um modo de contar,
lançando mão de uma linguagem despida de metáforas ou eufemismoscomo recurso para falar do homem atual.
Esse recurso linguístico, o da linguagem enxuta, adotado por Fonseca pode ser
exemplificado por meio do conto “Cidade de Deus”, em que o autor narra a relação
sexual de Zinho e Soraia de forma incisiva, em que não há nenhum pudor ao narrar o
fato, nenhuma transferência de sentido para termos menos agressivos ou nenhum
atenuante para suas ideias: “Foram para a cama. Zinho era rápido e rude e depois defoder a mulher virava as costas para ela e dormia. Soraia era calada e sem iniciativa”
(FONSECA, 1997: 11).
Sobre o efeito que essa linguagem seca provoca no leitor, Martinez diz que:
Tudo que leio de Fonseca produz em mim um assustador efeito derealidade. Ele escreve com a liberdade de um falcão, ou de um abutre,mas as palavras que desfia tecem um desenho do qual o leitor jamais
consegue se desvencilhar, como acontece com as moscas capturadas pela voracidade da aranha (in: FONSECA, 2005: 14).
Sua descrição é realizada à base de pinceladas fortes no sentido em que relata os
fatos de sua ficção, o que proporciona ao leitor inexperiente um certo estranhamento ou,
até mesmo, o faz suspender sua leitura. A crueza é bastante acentuada no conto
“Laurinha”, em que o protagonista e o personagem Manoel torturam o estuprador e
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
21/86
assassino da filha e sobrinha: a cena é transmita ao leitor sem nenhuma preocupação de
não o chocar:
Agarrei os colhões de Duda e cortei lentamente, ouvindo os gritos
lancinantes dele. Peguei o saco escrotal dele com os dois testículos e joguei na lata de lixo. (...) Em seguida, com as barras de ferro,quebramos os cotovelos, depois as costelas, depois a clavícula, semprecom um intervalo entre uma coisa e outra. Com um martelo partitodos os dentes dele. (...) O puto morreu coberto de merda, mijo esangue (FONSECA, 2006: 94-96).
A ausência de metáforas em Rubem Fonseca traz para as páginas de sua obra um
relato real da sociedade apresentando, certas vezes, personagens marginalizados por ela.
Sobre a linguagem fonsequiana, Barbieri (2003: 65) aponta que:
No repertório de inovações da linguagem literária, resultantes de seucontato com o cinema, não há dúvida de que o nome de RubemFonseca é dos mais representativos, não só por se tratar de um escritorligado à produção de filmes, fornecedor de argumentos e preparadorde roteiros, mas sobretudo porque, em seus contos e romances, adotacom sucesso invenções da sintaxe cinematográfica.
Os diálogos que permeiam a trama são perfeitamente funcionais, pois promovem
no leitor a contextualização necessária à compreensão do que é narrado. No conto “O
caso de F. A.”, cuja história nos é mostrada por meio de diálogos, pode-se compreender
melhor essa afirmação:
“Sou louco por mineira”, disse para Magda, depois.
“Aqui não tem mineira nenhuma”.
“Puxa, que azar. Só tem vocês quatro?” perguntei.
“Você gosta de variar não é” (FONSECA, 1987: 62).
Nesse conto em específico, o conteúdo total da narrativa só é apreendido por
meio dos diálogos que o permeiam e pela utilização de verbos dicendi. É pela
permanente conversa entre os personagens da trama que percebemos que o protagonista pretende resgatar uma prostituta novata do lugar onde ela mora.
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
22/86
Como vimos brevemente, uma das principais marcas de Fonseca é o modo que
assume sua escrita nas narrativas. Essa intimidade com a linguagem proporcionou ao
escritor uma marca registrada de sua produção literária e é por meio dela que o autor
apreende o real em sua literatura.
1.2.2 A representação da cidade
A cidade é o ambiente mais utilizado por Rubem Fonseca para ambientar suas
narrativas. Lá é onde os crimes ocorrem, onde a vida se transforma e onde nada éestático. O autor divide com João do Rio, Lima Barreto, Marques Rebelo, Nelson
Rodrigues e outros o título de cronista do Rio de Janeiro, por retratar a cidade
maravilhosa minuciosamente em suas narrativas. Tavares (1997:5), sobre a
representação da cidade em Rubem Fonseca, diz que:
Um papel de destaque é dado à cidade, vista não só como um objetodo desejo e do encontro, como também enquanto espaço da violência
e do desencanto. Mais que documentos, seus escritos são registros eexperimentos de uma nova estética, ainda insuficientemente estudada.
A escolha pelo grande centro urbano dá-se para amparar suas narrativas em pano
de fundo que se assemelha ao que é narrado. A cidade grande em tempos atuais deixou
de ser um lugar cortês: há uma falência nos processos de cortesia contidos na urbe, por
conta da marginalidade, pois a violência animaliza o homem e retira dele os distintos
traços civilizatórios, gerando o medo, a invisibilidade, a exclusão. E é com grandefrequência que encontramos personagens desenhados por essa marca da urbe. Bastos
(2012:11), em análise da obra de Rubem Fonseca, diz:
A presença do Rio de Janeiro nos seus contos e romances é muitomais que simples referência geográfica. Embora não faltem, e até pelocontrário, sejam abundantes, as indicações precisas de logradouros
públicos, de bairros, de edifícios etc., o ambiente carioca éconstituído, sobretudo, pela aparição de tipos sociais marcantes. Essestipos vivem, quase sempre, situações-limites. São rufiões, prostitutas,
pivetes, camelôs, policiais, desempregados. Em comum, a despeito desua diversa condição social, todos parecem dotados de uma aguda
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
23/86
consciência de que vivem num espaço físico-social determinado,inconfundível em sua tipicidade.
Os sujeitos dessa sociedade tornam-se individualistas, bem como os personagensfonsequianos. Os espaços excluídos do Rio de Janeiro são resgatados por Rubem
Fonseca para serem transformados em cenários que permitem prazer e dor. Gomes
(1994: 149), sobre essa divisão permitida pelos grandes centros urbanos, em análise do
conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro” de Romance negro e outras
histórias, diz que:
As fronteiras imaginárias (do Rio de Janeiro) tornam-se reais com
mais visibilidade e contundência. Assiste-se às manifestaçõesexplosivas, ao vazio de autoridade e ao aumento dos crimes, expressãoclara da cidade dividida. São aspectos que desembocam nas diversasformas de violência que atravessam toda a sociedade e constituem umdos núcleos temáticos recorrentes de R. Fonseca.
O conto analisado por Gomes apresenta-se um mapa das principais ruas e vielas
do centro da cidade do Rio do Janeiro, essa narrativa é um exemplo da temática que ora
apontamos neste estudo:
Desde os anos 40, quase ninguém morava mais nos sobrados das principais ruas do centro, no miolo comercial da cidade, que podia sercontido numa espécie de quadrilátero, tendo como um dos lados otraçado da avenida Rio Branco, o outro uma linha sinuosa quecomeçasse na Visconde de Inhaúma e continuasse pela MarechalFloriano até a rua Tomé de Souza, que seria o terceiro lado, efinalmente o quarto lado, um percurso meio torto que tivesse início naVisconde do Rio Branco, fechando o espaço (FONSECA, 2005: 361).
Nesse conto, Rubem Fonseca desenha no papel a cidade que se esconde: os
becos, as prostitutas, os mendigos. O Rio de Janeiro é a cidade preferida por Fonseca
para ambientar suas narrativas, pois concentra em si particularidades propícias para o
autor pós-moderno. Todo o cotidiano frenético e veloz, os personagens marginais e a
alta sociedade em um mesmo espaço geográfico, o secular e o moderno transitam na
cidade carioca.
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
24/86
1.2.3 A crítica social
Grande parte da obra fonsequiana é tecida com a linha da crítica social. Sua
crítica percorre várias camadas sociais. Temos, por exemplo, um exemplo que é
realizado no conto “Betsy” de Histórias de amor , em que é narrada a história de uma
personagem que está morrendo e o seu companheiro se põe ao lado da cama a esperar
por esse momento derradeiro:
Betsy esperou a volta do homem para morrer (...). No dia em que ohomem chegou, Betsy teve o derrame e ficou sem comer. Vinte diassem comer, deitada na cama do homem. Os especialistas consultadosdisseram que não havia nada a fazer. Betsy só saia da cama para beberágua (FONSECA, 1997: 9).
Na cama, o homem relembra momentos vividos junto da protagonista. A morte
chega. O companheiro coloca o corpo na caixa de papelão do liquidificador. Nesse
instante o leitor percebe que a moribunda era uma cadela, a Betsy que dava nome ao
conto. A crítica realizada por Fonseca nesse conto é velada e sutil, debate-se a questão
daqueles que tratam os animais como se fossem pessoas. Essa crítica diverge da
estética, já apontada neste estudo, de Rubem Fonseca.
Ao contrário dessa crítica dissimulada que permeia as páginas de Rubem
Fonseca está a crítica aberta à sociedade que não enxerga as mazelas da população. Por
isso o destaque em personagens marginais, em suas vidas breves e vazias, em seuscasebres à espera de mudança: “Morávamos no mesmo morro, mas em casas diferentes.
Ele comprou para mim a casa onde moro que tem quarto, sala, banheiro, cozinha e uma
laje onde fica o tanque de lavar e onde posso apanhar o sol, se quiser” (FONSECA,
2006: 49).
No fragmento acima, do conto “Guiomar”, de Ela e outras mulheres, Fonseca
explora um personagem com sua moradia precária, muito próxima a outras, que deseja
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
25/86
melhorar sua vida. Sobre uma das funções que a literatura assume, Welleck e Warren
(1962: 117) dizem que:
A literatura tem uma função social – ou utilidade –, que não pode ser
puramente individual. Assim, uma grande maioria das questõessuscitadas pelo estudo da literatura são, pelo menos em última análiseou implicitamente, questões sociais.
Dada sua função, Rubem Fonseca a explora em seus personagens e meios em
que vivem com o intuito de revelá-los para uma sociedade que os veem transparentes.
1.2.4 A oralidade
Outra marca concreta na literatura de Fonseca é a presença da oralidade na sua
escrita. Em “O caso de F.A.”, já citado aqui, o texto é todo dramatizado por meio de
trinta diálogos face a face e de quatorze telefônicos, envolvendo cerca de vinte e cinco
pessoas, durante apenas três dias. De sua estrutura narrativa aparecem apenas os verbos
dicendi (respondeu, disse, respondi, perguntei), em repetição característica da
linguagem oral:
“A cidade não é aquilo que se vê do Pão de açúcar. Na casa daGisele?”“Foi”, respondeu F.A.“Aquela francesa é mesquinha e ruim. E também uma trepada demerda. Dizem.”
“Eu dou qualquer dinheiro”, disse F.A.“Hum”, respondi.“Você disse que o dinheiro compra tudo. Eu gasto o que for preciso”,disse F.A.“Sei. Continua.” (FONSECA, 1987: 55).
O conto contém em sua totalidade mais diálogos do que narração. Sobre o conto
Urbano afirma que:
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
26/86
Acentua-se, pois, quantitativamente, a reprodução recriada da línguaoral em situações de comunicação de variada natureza em diferentesmomentos. A linguagem situacional, nesse sentido, aparece no diálogocom contato direto e imediato ou na conversa telefônica, onde hácontato imediato, mas não face a face (URBANO, 2000: 242).
Tal reprodução também pode ser notada pela fala da personagem Gisele, dona de
um prostíbulo, que apresenta um sotaque francês, como se percebe pela vibração
acentuada dos erres. O narrador indica a existência do sotaque no início do diálogo e,
também, apresenta no texto a duplicação da consoante e a supressão da vogal para
caricaturar a personagem:
“Alô”. Um sotaque francês forte.“Quem fala aqui é Paulo Mendes”.“Pardon, mas não sei de quem se trata”.“Sou amigo do Orlandino”.“Ah, oui, como está Orrlandim?”.“Ele está bem mandou um abraço para... a senhora”.“Muito obrigad” (Idem: 59).
Desse modo, a oralidade torna-se presente na obra fonsequiana, não só pelos
elementos fonéticos, mas também pelo uso de interjeições e de vocábulos obscenos.
Como ainda, pelos recursos gráficos,pela repetição de erres, exclamação, interrogação,
reticências. E, ainda, pelo apelo à pragmática, como podemos ver na fala: “Vou deixar
vocês sozinhos. O verde”, disse Gisele desaparecendo em seguida (Ibiden: 61).
Ao pronunciar a frase “O verde”, o leitor percebe que se trata do quarto, ou seja,o cômodo para onde os personagens vão é o quarto verde. O leitor decodifica essa
ordem dada pela Gisele por meio dos pressupostos presentes no texto e pelo contexto no
qual se situa o personagem.
Outra evidência, na narrativa fonsequina, do uso da oralidade é a presença de
palavrões, de gírias, de expressões do léxico próprio das camadas populares da
sociedade e de vocábulos obscenos. Podemos exemplificar com: “gatuno”, “a dona”,
“mulherio”, “parrudo”, “traseiro” (para nádegas), “quebrar o galho”, “o raio da mulher”,
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
27/86
“o ovo no cu da galinha”, “viado”, “porra”, “puta que pariu”, “pra caralho”, “filho da
puta”, dentre outros.
Sobre a utilização da gíria, sua presença é bem mais discreta que o uso de
palavrões, algo que o leitor não acostumado com a leitura de Rubem Fonseca sente-se
agredido ao primeiro contato com sua obra. Sobre o uso constante dessa linguagem,
Pereira (2000: 114) diz que Rubem Fonseca:
Ao centrar-se, prioritariamente, na reprodução de um jargão profissional usado tanto por bandidos quanto por policiais eadvogados criminalistas, essas expressões remetem quase sempre àquestão da morte ou da prisão. Assim, “ficar em cana”, “tira”,“queima de arquivo” ou “presuntos para desovar” constituem alguns
exemplos de um socioleto que, estando desvinculado das leis sociais egramaticais, contraditoriamente, adere a elas.
O uso constante desses recursos linguísticos colabora para a construção de uma
linguagem que aproxima o leitor das constantes temáticas abordadas por Rubem
Fonseca. Talvez a aproximação da oralidade nas narrativas fonsequianas deu-se pelo o
papel de roteirista desenvolvido pelo escritor ao longo de sua carreira.
1.2.5 A suspensão do juízo moral
Na literatura de Rubem Fonseca nem sempre o mocinho exerce a função de tal.
E às vezes o bandido é produtor de benefícios para os outros. Essa característica, aqui,
denominaremos de a suspensão do juízo moral. Essa ruptura dos paradigmas foi
designada pelo teórico russo Mikhail Bakhtin de carnavalização. Segundo Soares (2007:
72) “a carnavalização identifica-se pela inversão de valores, pela subversão cultural, por
uma atitude de dessacralização, ou seja, pela apresentação do mundo às avessas”.
Apresentamos dois contos para exemplificar essa particularidade da obra fonsequiana.
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
28/86
O primeiro é sobre o personagem Paulo Mendes, investigador, protagonista do conto
“Mandrake” (2005), em que chantageia um banqueiro para não revelar um fato
desabonador a seu respeito. O outro é do personagem narrador de “Belinha”, conto de
Ela e outras Mulheres (2006), que é um matador profissional que, ao receber o pedido
de Belinha para matar o pai, a mata. O personagem realiza esse ato por acreditar que
uma pessoa que deseja a morte do próprio pai não merece viver. Lucas (1971: 119) diz
que: “Cada conto de Rubem Fonseca reflete mais do que a crise da sociedade: traz a
crise do eu na sociedade. Daí tanta criatura unidimensional, tantos caracteres cindidos,
tanta esperança esmagada”.
E para exemplificar essa crise do eu cabe trazer para a análise mais dois contos
representativos dessa linha de força, pertencentes à obra Feliz Ano Novo, que são“Passeio noturno – Parte I” e “Passeio noturno – Parte II”. O protagonista dos contos é
um sujeito de classe média-alta que para aliviar a tensão cotidiana, sai com seu carro
pelas ruas da cidade atropelando inocentes:
Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre aesquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os
dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como umfoguete rente a uma das árvore e deslizei com os pneus cantando, devolta para o asfalto (FONSECA, 1993: 50).
O fragmento retirado de “Passeio noturno – Parte I”, representa o momento em
que o protagonista atropela sua primeira vítima. Após o ocorrido, ele retorna para seu
lar, mais calmo, dá boa noite para seus familiares e vai descansar para “um dia terrível
na companhia” (p. 50). Os contos em voga representa a inversão de valores, apontadaacima por Soares com indício de carnavalização, vivenciadas por uma sociedade
materialista e cultuada pelo o personagem principal. O resultado desse comportamento é
angústia e solidão, tão presentes nos personagens fonsequianos. Sobre a inversão dos
valores em personagens fonsequianos, Figueiredo (2003: 20) diz que:
São indivíduos que se deparam, a todo instante, com essa ausência defundamento e de critérios que lhes permitam julgar-se e julgar o quese passa ao seu redor – no entanto, se já não conseguem crer nos
valores criados pela cultura ocidental, tampouco deles se libertaram para criar novos parâmetros.
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
29/86
Nesse mundo recriado por Fonseca encontra-se o personagem da alta sociedade
em sua crueza, expondo a face oculta de sua vida doméstica. A cidade, mais uma vez,
apresenta-se como o lugar da barbárie, obedecendo à lógica da sobrevivência. A cidadedos destituídos de humanidade promove a incomunicabilidade, a dureza e o tédio,
gerando o atrofiamento de todas as faculdades humanas.
1.2.6 A solidão
A maioria dos personagens fonsequianos são sujeitos solitários que vivem à
espera de alguma troca, como afirma Figueiredo (2003: 39):
Rubem Fonseca destaca, como marca da vida contemporânea, asolidão decorrente de dificuldade de comunicação efetiva com o outro,
já que as relações humanas acabam se realizando segundo a mesma leique rege a comunicação de massa, ou seja, a absolutização de uma
palavra sob a máscara formal da troca.
Nos personagens de Rubem Fonseca percebemos um sujeito que luta contra
todos (eu x os outros), reinando, assim, o individualismo. Muitas vezes, a única forma
de diálogo entre esses personagens é o sexo furtivo. Essa solidão é bem delineada no
conto “O anão” de O buraco na parede:
Fiquei sozinho, sem a mulher que eu amava loucamente, sem Sabrinaque estava enterrada no Caju e sem o único amigo que eu tinha nomundo que era o anão morto dentro da mala e a noite caiu e como eunão tinha mais o retrato dela para olhar fiquei olhando a mala até diaraiar, quando então peguei a mala a fiquei andando com ela na sala deum lado para o outro (FONSECA, 1995: 83).
À noite, o protagonista agoniza em seu apartamento, sem rumo, esperando o dia
amanhecer como uma falsa promessa de um encontro que não há desde que perdeu sua
amante, sua namorada e seu amigo. Essa individualização gera o embrutecimento do
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
30/86
homem pela ausência das relações interpessoais. Daí surgem os personagens marginais,
ladrões, assassinos, pois ao perder o convívio com o outro esse sujeito sente a
necessidade de destruí-lo.
Um exemplo dessa solidão marcada na narrativa de Fonseca está em um de seus
últimos romances O Seminarista em que o protagonista vive o isolamento na sua
infância em um seminário religioso e na vida adulta, por conta de sua profissão:
Era uma casa modesta. Na sala havia uma televisão pequena, um sofáe uma mesa redonda com duas cadeiras.“Você é casado?”“Solteiro.”“Tem mãe?”
“Como assim?”“Muito simples. Você tem mãe?”“Ela morreu quando eu era pequeno. Fui criado pela minha avó.”“E a namorada? Tem?”“Namorada? Ninguém quer namorar alguém como eu” (FONSECA,2009: 24).
José, o protagonista, vive as agruras da solidão até encontrar uma namorada que
o faz abandonar sua carreira de matador por aluguel. Surge então a esperança de uma
companheira para sua vida. Mas o romance é interrompido pelo assassinato de sua
amada, ação essa que faz com que ele retorne para a vida da solidão e do crime.
A ficção de Fonseca encena o vazio existencial de sujeitos que, ante a
impossibilidade de levar adiante uma vida de virtudes, transformam-se em indivíduos
errantes ou amargurados.
1.2.7 A violência
Abordaremos, a seguir, o tema da violência e do sexo presentes na literatura
fonsequiana, não a deixando por último por acaso, e sim, possivelmente, por se tratar
das características mais relevantes da produção de Rubem Fonseca.
Sobre a censura do livro Feliz Ano Novo, Figueiredo afirma que:
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
31/86
O alvo principal dos censores foi a tematização da sexualidade.Acusaram o autor de pornografia, de atentado à moral e aos bonscostumes, e usaram como prova, o uso dos palavrões, enquanto o quede fato incomodava no livro e incomoda, ainda, é a variação, a cadaconto, de pontos de vista sobre a violência levando o leitor a ver arealidade de diferentes ângulos (2003: 28).
A mira dos censores estava apontada corretamente para o propósito de Rubem
Fonseca: o sexo e a violência. De todas as características pontuadas neste capítulo,
percebe-se claramente que obra de Fonseca é sitiada pela violência e pelo sexo. De
imediato trataremos de abordar a temática da violência e, por conseguinte, a do sexo.
Começaremos citando um trecho de “O cobrador”, para pontuar como é trabalhada a
temática da violência:
Ela estava grávida, ele disse apontando a mulher, vai ser o nosso primeiro filho. Olhei a barriga da mulher esguia e decidi sermisericordioso e disse, puf, em cima de onde achava que era o umbigodela, desencarnei logo o feto. A mulher caiu emborcada. Encostei orevólver na têmpora dela e fiz ali um buraco de mina (FONSECA,2005: 278).
Neste conto, o protagonista cobra da sociedade tudo aquilo que lhe falta. Aqui o
personagem violento luta contra todos os homens da cidade que o cerca, em tentativa
inútil de obter a instantânea solução para suas necessidades. Sobre a violência, Lins
(1990: 14) diz que:
Nasce onde não há acordo sobre regras e princípios, onde se apaga aideia de corpo social, com tudo o que a metáfora orgânica implica naordem do simbolismo da interdependência do direito e das liberdades,
dos teres e deveres. A violência é o termo que aplicamos paradesignar, na sociedade, fenômenos que se destacam do deslocamentoda consciência coletiva.
Na obra fonsequiana, de certo modo, todos os personagens contracenam com a
violência: ora são acometidos por ela, ora a cometem. Podemos também visualizar esta
temática presente no trecho do conto “Jéssica”:
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
32/86
Agarrei Jéssica pelos cabelos e comecei a esmurrar o rosto dela.Quebrei primeiro o seu nariz, depois o maxilar, depois boca, fazendoos dentes saltarem para fora, em seguida quebrei os ossos que ficamdebaixo dos olhos, e arrebentei os ossos das orelhas (FONSECA,2006: 67).
A violência em Rubem Fonseca não possui forma única, ela é trabalhada de
todos os ângulos possíveis, sob diversas óticas. Tal violência é manifestada por meio da
linguagem, da escrita, da descrição das cenas, dos diálogos, das intervenções realizadas
pelo narrador.
Viegas (1996: 132) afirma que “Rubem Fonseca vitaliza o assunto da violência,
apesar do desgaste sofrido a partir da nossa convivência diária com a própria violência”.
Assim age, com frieza, o personagem, outrora mencionado, de “Passeio Noturno – Parte
I” e “Passeio Noturno – Parte II”, ambos contos de Feliz Ano Novo. Para distrair-se de
um dia tumultuado, ele atropela as pessoas nas ruas por sadismo.
Outro exemplo marcante dessa linguagem violenta se dá por meio do próximo
exemplo retirado do conto, também já mencionado, “O anão” de O buraco na parede
(1995).
Agarrei o anão pelo pescoço e levantei ele no ar e ele se debateu e mefez cambalear pela sala batendo nos móveis até cairmos no chão e eucoloquei os joelhos no peito dele e apertei até minhas mãos doerem eeu ver que ele estava morto. E depois apertei de novo o pescoço dele ecoloquei o ouvido no peito dele para ver se o coração batia e aperteide novo e de novo e de novo e passei o resto da noite apertando o
pescoço dele (FONSECA, 1995: 82).
A utilização frequente da conjunção “e” (11 vezes no fragmento) proporciona à
narrativa uma ideia de velocidade das ações violentas cometidas pelo protagonista. A
sede do protagonista pela violência é tão exagerada que chega a ser compulsiva, pois até
mesmo depois de a vítima estar morta ele ainda continua “o resto da noite apertando o
pescoço” dela.
Como notamos, os contos de Rubem Fonseca são permeados pela violência, seja
a de um assassinato, seja a de um latrocínio, seja a de um estupro. Em Feliz Ano Novo,
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
33/86
no conto que dá nome ao livro, é narrada uma história em que os três assaltantes
invadem uma casa, onde festejava o dia de ano novo, em São Conrado, na cidade do Rio
de Janeiro. Lá eles assaltam, estupram e assassinam os participantes da festa. Dois
homens são assassinados somente para comprovar uma tese dos bandidos, a de que se
alguém levar um tiro próximo de uma parede, teria seu corpo preso nela:
Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aqueletremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede.Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No meio do
peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone(FONSECA, 2003: 19).
O primeiro personagem que é assassinado não adere à parede, mas o segundo
fica, pois havia no fundo uma porta de madeira.
A violência em Rubem Fonseca não está presente somente nos acontecimentos,
mas também, no texto. O leitor inexperiente sente-se agredido ao ler os textos de
Fonseca. Desse modo, a violência aqui não é só vista como tema, ela é igualmente
caracterizada pela linguagem, ou seja, a linguagem utilizada nas narrativas fonsequianas
é portadora da violência. Os contos poderiam ser narrados da mesma forma, mas comuma descrição menos agressiva. Sobre a violência em Rubem Fonseca, Figueiredo
(2003: 19) afirma que:
Focalizada de diferentes ângulos e em suas nuances mais sutis, aviolência, no universo ficcional do autor, é vista como uma constantehistórica, disseminando-se pelas mais diversas dimensões docomportamento humano, podendo, por isto mesmo, ser sempre
justificada, explicada, em nome do processo civilizatório, doscostumes, dos direitos, ou mesmo da busca do conhecimento.
Assim sendo, a violência possui um papel importante no interior das narrativas
fonsequinas, pois a ação violenta é um elemento estruturante da composição narrativa,
ela opera como um elemento de caracterização do personagem e também define o
desfecho da trama, suas tensões e conflitos.
Rubem Fonseca, ao explorar a violência, dá ao corpo textual maiorverossimilhança ao que é narrado. Como vimos anteriormente, suas narrações são
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
34/86
ambientadas em cenários que representam o mundo policial e, por isso, não há como
desvincular a temática aqui abordada daquilo que está se narrando. De tal forma que a
violência decorre das várias formas de poder que os personagens buscam exercer sobre
os demais.
1.2.8 O sexo
E não é só no que tange à violência que o leitor se sente agredido, o tema do
sexo também o acomete. No romance O Caso Morel (1973), Rubem Fonseca permeia anarrativa com diversos trechos com descrições minuciosas de cenas de sexo:
Mandei Joana sentar na beira da cama de pernas abertas e comecei a beijar o seu corpo. A boceta de Joana estava fria, molhada de água,com um leve gosto de sabão. Aos poucos foi esquentando até quecomeçou a ficar salgada. Joana deitou-se. Esticou as mãos procurandoas minhas. “Entra dentro de mim... quero que você faça tudo comigo!”Joana queria ser espancada, aviltada, sodomizada, queria ter o rostolambuzado pelo meu sêmen. Fiz a sua vontade (FONSECA, 1973:
43).
Em “Diana” conto de Ela e outras mulheres, Diana procura um homem para ter
com ela um orgasmo. Na madrugada, ela encontra Manoel em café e os dois vão para o
apartamento dela:
Depois de lamber seus seios e a sua vagina, eu a fui penetrando
lentamente e dando uns tapas no seu rosto, sem muita força, masmesmo assim sua face ficou vermelha. (...) Senti sua vagina ir secontraindo e logo um líquido abundante inundou o meu pênis(FONSECA, 2006: 35).
Em “Joana”, do mesmo livro, o protagonista tem problemas com as sua relações
sexuais, pois só obtém prazer com mulheres belas. Até que encontra uma mulher feia,
mas atraente:
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
35/86
A boceta de Joana era apertada e sugante, quente, úmida. Prolonguei omais que pude o prazer daquela penetração. Ela gozou com um ardortão incandescente e deu um grito tão agudo que eu perdi o controle egozei também. Confesso que foi uma das maiores trepadas da minhavida (Idem: 76).
Já no conto “Carpe Diem” de Histórias de amor , a descrição de uma cena de
sexo entre os personagens principais é relatada com maior sutileza:
Roberto morde as bochechas de Paula, abraça o corpo dela como umurso, ela abre caminho para que ele entre no corpo dela, meu amor dizque adora foder comigo, rolam pela cama larga, ele fica em cima, elafica em cima, diz que me ama, ele diz tudo o que ela quer que elediga, e quando ele goza um trem de ferro passa por cima dele e eleurra como um animal ferido de morte (FONSECA, 1997:117).
A frequente existência deste tema nos contos de Rubem Fonseca é que o sexo
acaba por ser a única troca possível dos personagens, a comunicação existente entre
eles, tendo em vista que são personagens marcados pela solidão. A descrição de cenas
eróticas e libidinosas relaciona-se com a condição de vida que possuem os personagens
fonsequianos.
Encerramos este primeiro capítulo com a citação de Barbieri (2003: 82), sobre a
imoralidade em Rubem Fonseca: “A “imoralidade” ou “incitamento” dos contos de
Rubem consiste em mostrar, à luz forte de uma linguagem hiper-realista, episódios de
violência moral, física, política e social, que compõem o quadro de nossa crônica
diária”.
E para compor tal quadro, Fonseca utiliza-se das características que acima foramdetalhadas por meio de trechos de sua obra, que são: a influência do trabalho como
comissário ou seja, os aspectos criminais existentes na obra; a linguagem crua e enxuta;
utilização de diálogos; a crítica social; a presença da oralidade na narrativa, tanto pelos
elementos e recursos gráficos, quanto pelo uso da pragmática; a carnavalização; a
violência no plano da narração, da linguagem, da moralidade; e da temática do sexo.
Rubem Fonseca instaura na literatura contemporânea um discurso ausente de
metáforas. Sua linguagem possui marca própria capaz de provocar no leitor inexperiente
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
36/86
certo desconforto e até mesmo repulsa pelo texto. Por fim, suas narrativas encenam
trajetórias de pessoas comuns, anti-heróis, anônimos habitantes da urbe que
contracenam com personagens marginais, corrupção, violência e erotismo exacerbados.
É assim que surgem suas narrativas: sob o signo da transgressão.
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
37/86
2. A DIMENSÃO POLICIAL EM RUBEM FONSECA
Desde Assassinatos da rua Morgue (1841) até Agosto (1990), muito se passou
na literatura policial. Pretendemos neste capítulo discorrer sobre o romance policial, principalmente o realizado por Rubem Fonseca, e apresentar como o método
cientificista do final do século XIX, utilizado por Poe, por meio da dedução das pistas
oferecidas ao leitor, é questionado no século XX e XXI.
O relato policial com o intuito de desvendar um crime de qualquer espécie é
talvez impossível de se descobrir sua gênese. Mas sabemos que está presente desde os
primeiros escritos do homem. A mitologia, a Bíblia, os romances de aventuras, hoje em
dia o noticiário jornalístico, as novelas, em todos esses veículos e em outros tantos, o
tema do desvendar um crime torna-se assunto. Sobre o conceito de romance policial,
Reimão (1983: 8) diz que:
Toda narrativa policial apresenta um crime, um delito, e alguémdisposto a desvendá-lo, mas nem toda a narrativa em que esseselementos aparecem pode ser classificada como policial. Isto porquealém da presença destes elementos é preciso uma determinada formade articular a narrativa, de construir a relação do detetive com o crime
e com a narração.
Na Bíblia, o livro de Daniel (14, 1-17) relata uma investigação em quarto
fechado, tal qual Poe nos mostra muitos séculos depois. O rei Ciro questiona Daniel
sobre ele não cultuar o ídolo Bel. Daniel argumenta que não idolatra algo criado pelas
mãos dos homens, mas somente Deus. Ciro diz que Bel é um deus vivo, pois recebe
toda noite oferendas que são consumidas na madrugada. Daniel questiona o fato peranteo rei que o condena à morte caso não comprove o seu raciocínio.
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
38/86
Dessa forma, o profeta leva o rei ao templo de Bel e junto com os sacerdotes
coloca as oferendas ao pé do ídolo. A porta do templo é lacrada com o selo real, mas
antes, que isso acontecesse, Daniel, secretamente, espalhara cinzas no chão da câmara.
Os sacerdotes, aqueles que verdadeiramente comiam as oferendas, não se abalaram
diante do ocorrido, pois eles entravam por uma abertura secreta debaixo da mesa. Ao
nascer do dia, o Rei Ciro, Daniel e os sacerdotes conferem o lacre da porta e abrindo o
quarto fechado deparam-se com o sumiço dos alimentos ali depositados no dia anterior.
Daniel mostra para o rei as pegadas deixadas no chão pelos sacerdotes, seus filhos e
esposas, escapando assim da morte anunciada:
Mas Daniel pôs-se a rir e impediu o rei de entrar mais adiante. “Olha ochão, disse-lhe. De quem são esses passos?” “Vejo de fato, respondeuo rei, passos de homens, de mulheres e de crianças”. E uma cóleraviolenta apoderou-se dele. Então mandou prender os sacerdotes,mulheres e filhos, os quais lhe mostraram as entradas secretas poronde se introduziam para vir consumir o que havia na mesa.
Como vimos, a narrativa investigativa é desde, os primórdios, abordada pelos
escritores. Refletir sobre o mistério do quarto fechado leva-nos a textos conhecidos
como: Assassinatos da rua Morgue, de Edgar Allan Poe, O grande mistério de Bow, deIsrael Zangwill, e Borges e os orangotangos eternos, de Luís Fernando Veríssimo, em
que os crimes também ocorreram dentro de salas fechadas, façanha que dificulta as
investigações.
Muitos outros autores, os quais seria maçante aqui mencionar, colocaram como
primeiro e, algumas vezes, principal mistério em seus romances policiais o quarto
fechado. O crime realizado nesse lugar muitas vezes redundava em jogo de adivinhação,
quase em quebra-cabeças. Sobre o gênero, Pellegrini (2009: 81) diz que:
O romance policial sempre esteve associado, em todo o mundo, aoentretenimento (talvez seja esse o motivo de sempre ter sido visto commaus olhos por boa parte da crítica). Isso permitiu, modernamente,que inúmeros autores e muitos editores se tornassem milionários
produzindo esse tipo de artigo (claro que não no Brasil), parece quesabendo satisfazer exatamente algumas necessidades subjetivas doleitor. Há várias tentativas de explicação de tais necessidades, que vãodesde a estranheza e atávica atração humana pelo mistério, pela
violência, pela sordidez, presentes em muitos textos, até o gosto peloespírito dedutivo necessário para o deslinde das tramas, passando pelo
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
39/86
prazer da introdução da aventura e do drama na monotonia da vida damaioria dos escritores.
Todos os itens supracitados exercem nos leitores certa ansiedade, e isso pareceser o que os atrai para a leitura do romance policial. No Brasil, em 1920, surgiu o nosso
primeiro folhetim policial: O mistério. Escrita por quatro autores, Coelho Neto, Afrânio
Peixoto, Medeiros e Albuquerque e Viriato Corrêa, a obra foi lançada primeiramente em
capítulos pelo jornal A Folha e mais tarde editada em livro. Reimão (2005: 14) sobre O
mistério aponta que:
Observe-se que o fato de O mistério ter sido escrito em regime de
parceria – cada autor escrevia seu capítulo e o próximo autor deveriacontinuar daí, sem um planejamento detalhado prévio, nem a
possibilidade de uma revisão uniformizadora final – confere a essanarrativa um caráter lúdico, um certo aspecto de ‘irresponsabilidade’,de ‘brinquedo’.
Desde sua origem, o gênero associa-se à uma literatura feita para as massas, não
somente pelo tratamento ficcional como também pelo mercado editorial. Nas últimas
décadas, os escritores retomaram o gênero policial como dispositivo de sedução do público leitor. O mistério o atrai e o prende nas páginas dos livros. Algumas editoras
estão até produzindo coleções específicas voltadas para esse tipo de narrativa.
Poderíamos aqui elencar uma série de autores que enveredaram pelo caminho da
literatura policial, mas acreditamos que isso seria uma grande digressão do estudo se
apresenta. Por isso apontaremos brevemente algumas características do gênero.
Geralmente, nas narrativas policiais apresenta-se um crime e há alguém disposto
a desvendá-lo. E o que prende o leitor no romance policial são o raciocínio, o mistério e
a tentativa de se descobrir o autor dos crimes.
Sobre a invenção do romance policial, Reimão (1983: 19) diz: “A própria
invenção do gênero policial é, na verdade, consequência de uma nova concepção de
literatura proposta por Poe; é essa a concepção que fará com que Poe consiga imaginar
uma novela policial , isto é, uma combinação de ficção com raciocínio e inferências
lógicas”.
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
40/86
Ao longo da história deste gênero, podemos perceber que ele foi ajustando-se
diante do público que se alterava. A renovação do gênero está no desenvolvimento
simples das práticas apresentadas por Poe. Sobre a técnica da representação do enigma,
Boileau & Narcejac (1991:12) dizem que:
O enigma experimenta uma metamorfose: torna-se crime misterioso para nosso prazer; o cientista transforma-se em detetive; a presença deum assassino terrível conduz à noção de vítima ameaçada. Mas essadramatização, no plano do jogo, longe de ser o resultado de umainvenção, provém do movimento espontâneo da inteligência quereflete sobre seus próprios produtos. O criminoso, a vítima, a lógica dainvestigação, tudo isso estava implicitamente contido no movimentonatural da razão que se esforça em compreender as coisas.
E é essa razão que prenderá o leitor nas páginas do romance policial, que é uma
espécie de narrativa em que se expõe uma investigação e que contém no mínimo três
elementos fundamentais: o criminoso, a vítima e o detetive. Essa narrativa respalda-se
sobre um assassinato, ação central da trama. Normalmente, o assassino é um
personagem que deve ser encontrado pelo narrado e pelo leitor. Propomos a seguir fazer
uma análise de um elemento desse trinômio essencial para a construção da narrativa
policial.
2.1 O DETETIVE
Sabemos que a gênese do romance policial data de 1841, quando Edgar Allan
Poe publicou em uma revista o conto “Assassinatos da rua Morgue”. Segundo Reimão
(1983:12) “Poe é a narrativa-enigma por excelência e, além disso, abriu a possibilidade
do surgimento de outros tipos de narrativa policial”. Poe é célebre pela sua genialidade
para criar narrativas de suspense com uma finalidade hipnótica que nos leva a entrar no
clima de terror psicológico.
Conforme Medeiros e Albuquerque (1979: 9):
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
41/86
Podemos constatar, portanto, que o romance policial teve sua origemno romance de aventuras. Ele é, por assim dizer, um desdobramento,uma vez que seus autores foram obrigados a procurar uma nova formade se expressar, na qual não apenas a ação fizesse sentir e o herói nãofosse necessariamente um lutador, um guerreiro ou um espadachim.
O herói do romance policial chega à solução pela inteligência, e nuncausando a força e somente a força. Esta, algumas vezes, entra noquadro geral do romance, mas apenas como um detalhe adicional esecundário. A inteligência é tudo ou, pelo menos, o fator principal.
Após o sucesso de Edgar Allan Poe com seu detetive dotado de inteligência e
raciocínio, diversos outros autores optaram por escrever romances policiais: Sir Arthur
Conan Doyle, Agatha Christie, Umberto Eco, Jô Soares, Tony Belloto, Luiz AlfredoGarcia-Roza, dentre tantos. Como podemos ver, distintos autores, de diferentes épocas e
nacionalidades, adotaram o romance policial para a sua criação literária.
De Dupin até aos dias atuais surgiram dezenas de detetives – homens, mulheres
e até crianças, de diversas classes sociais – que marcaram a literatura de modo geral,
cada um com suas características: excêntricos, racionais, científicos, amorais, violentos,
mulherengos, sedutores. E como protagonistas do romance, eles procuram desvendar os
mistérios e os crimes que fazem parte da trama narrativa.
Rubem Fonseca adota o gênero como o principal em suas narrativas. Sobre essa
preferência, Figueiredo (2003:44) diz:
No caso dos romances de Rubem Fonseca, a opção pelo gênero policial vem reiterar o ângulo de visão que prioriza a violência como o princípio básico da vida urbana (...). A dissolução dos valoreshumanos, a generalização do crime, que se estende ao mundo dos
negócios, às esferas institucionais, o romantismo nostálgico dodetetive, que perde a imunidade, o enfoque pirandelliano da verdadesão traços presentes no texto do autor.
O detetive nas narrativas policiais exerce o papel de protagonista. É ele que irá
conduzir o leitor e convidá-lo a desvendar as pistas encontradas ao longo das páginas.
Alguns detetives necessitam de um auxiliar para suas investigações. Bem como é o caso
do famoso personagem Watson, amigo e narrador de Holmes. Albuquerque (1979: 87)
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
42/86
em seu livro O mundo emocionante do romance polical escreve um capítulo sobre os
auxiliares dos detetives, segundo ele:
A solução final, fruto de brilhante dedução do herói, era, na maior
parte das vezes, auxiliada direta ou indiretamente por um ajudante quetanto podia ser uma amigo; uma secretária; um empregado; ou aindaum “faz tudo”. Embora diferentes em suas funções há uma tônicaentre eles: são todos mais ou menos infantis, obtusos. A solução domistério é alcançada pelo detetive, muitas vezes, através de umaobservação fortuita de seu auxiliar; o leitor inteligente e observador
poderá também chegar ao mesmo resultado. No entanto, o auxiliarapresentará sempre uma verdadeira obstrução cerebral, só entendendoo fato depois dele ser exaustivamente explicado pelo herói.
Como o detetive é uma mente dedutiva que, por meio de pistas, sinais e indícios,
reconstrói a história do crime e encontra o responsável, é necessário que exista alguém
que refaça os passos que ele deu para chegar até o culpado, evidenciando sua
genialidade em descobrir o crime.
Cada vez que há um segredo, cada vez que há algo a ser desvendado,
indiferentemente se houve ou não um crime, nas narrativas fonsequianas, e surge um
personagem disposto a desvendá-lo, há ali o cerne do detetive. Seja o cineasta que segueos passos de Isaak Bábel em Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Seja um
narrador que queira reconstruir os fatos da vida de Carlos Gomes em O selvagem da
ópera. Ou seja um personagem que quer entender a relação entre uma carta encontrada
no Mercado de Pulgas de Viena e a vida do pintor Egon Schiele no conto “A santa do
Schöneberg” de O romance negro.
Rubem Fonseca insere no inconsciente coletivo inúmeros detetives. Quiçá o
mais famoso seja Mandrake, que apareceu pela primeira vez no conto “O caso de F.A.”;
em Lúcia McCartney, que volta em “O dia dos namorados”, conto de Feliz Ano Novo, e
no conto “Mandrake”, de O cobrador ; surge como protagonistas dos romances A
Grande Arte; E do meio do mundo prostituto só amores guardei no meu charuto; em
Mandrake, a bíblia e a bengala e em outros contos. O sucesso do personagem foi tão
estrondoso que ele foi transformado em uma série televisiva produzida pelo canal HBO
Brasil em parceria com a Conspiração Filmes: “Meu nome é Mandrake. Sou um
advogado criminalista. O caso que vou relatar comprova, como disse alguém cujo nome
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
43/86
não recordo, que a verdade é mais estranha que a ficção porque não é obrigada a
obedecer ao possível” (FONSECA, 2005: 7).
O personagem é produto do meio em que vive e trabalha. Não podemos traçar
suas características físicas, só sabemos que ele é alto e magro. Isso ocorre, porque
Mandrake é o narrador e não se preocupa em se descrever exteriormente. Seu nome de
batismo é Paulo Mendes, vive no Rio de Janeiro, seu escritório fica na Cinelândia, é
advogado criminalista e trabalha basicamente com crimes de extorsão e estelionato.
Gosta de vinhos portugueses e charuto. Enfim, Mandrake é o detetive que tem a função
de aproximar o leitor no mundo ficcional e transformá-lo em caçador de pistas
aleatórias.
Nos contos de Rubem Fonseca, a incidência de personagens detetives é menor
que nos romances. Isso ocorre, porque nos romances há a possibilidade de se trabalhar
com raciocínios extensos. Essa elaboração de ideias torna-se algo difícil nos contos,
devido à sua brevidade e à sua concisão, características exigidas pelo gênero. A
presença desse tipo de personagem ocorre em alguns contos longos de Rubem Fonseca,
como é o caso de “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro” de Romance Negro. Nos
contos mais breves o que se narra é a transgressão dos personagens, o crime, o mistério.
Dessa forma dá-se um enfoque no criminoso, protagonista de tantos contos.
Persistem na literatura de Rubem Fonseca algumas semelhanças com literaturas
como a de Sir Arthur Conan Doyle, pois, em ambos autores, o enigma inicial apresenta-
se por um crime brutal que gera toda uma atmosfera de mistério e tensão percorrendo
todo o romance.
A imagem do detetive vem ao longo dos anos sofrendo inúmeras transformaçõesem sua caracterização. Ele nunca está satisfeito com o trabalho concluído. Ele está
sempre disposto a começar de novo, a rever as provas, a emendar um mistério com o
outro, o que prova que, de alguma forma, nem ele mesmo está convencido da solução
do enigma.
2.2 INOVAÇÕES NO GÊNERO
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
44/86
No que tange a uma linha estrutural da narrativa policial brasileira, Rubem
Fonseca é um precursor de todo um movimento de novos escritores, tais como: Marçal
Aquino, Patrícia Melo, Ana Miranda. O uso que Fonseca faz do gênero é sui generis,
pela adaptação à sua poética. De tal forma que os traços do gênero policial ficam a
serviço do estilo de Rubem Fonseca e, não o contrário.
Pereira (2000: 21), sobre o romance policial realizado por Rubem Fonseca, diz:
O autor tem várias obras com edições esgotadas, o que demonstra suacapacidade de lidar com um público não acostumado à narrativa dotipo policial, principalmente quando a mesma sobrevive à custa demodificações do próprio gênero. O êxito de recepção desses relatos,
pelo leitor comum ou especializado, parece que se origina na tripla possibilidade discutida por Jauss: a experiência estética envolve percepção, cognição e catarse.
Desde o surgimento do Romance Policial até os dias que seguem, muito coisa
mudou. Segundo Todorov (1970: 95), “o romance policial por excelência não é aquele
que transgride as regras do gênero, mas o que a elas se adapta”. Talvez a principal
diferença que tenha ocorrido esteja na descentralização da figura do detetive, que antes
era um profissional, metódico, lógico e racional foi substituído por personagens
comuns, funcionários da polícia, especialistas em crimes.
Os primeiros detetives dos romances policiais eram considerados pelo narrador,
pelo leitor ou por outros personagens como sujeitos extraordinários, dotados de uma
inteligência e capacidade lógica fora do comum por serem capazes de ver o que
ninguém mais via. Esses foram trocados por detetives que possuem um mínimo talento para a investigação, o acaso os acompanha. São amadores no que fazem e isso em
alguns momentos vai coloca-los em situações desagradáveis.
Além das alterações na construção do protagonista, outras também ocorrem na
romance policial contemporâneo. Todorov (1970: 101) no artigo “Tipologia do romance
policial” elenca, resumidamente oito, as principais características que o escritor deve
respeitar ao criar uma obra do gênero, baseado nas vinte premissas que Van Dine
elencou em 1828; eis as três primeiras:
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
45/86
1. O romance deve ter no máximo um detetive e um culpado, e nomínimo uma vítima (um cadáver).2. O culpado não deve ser um criminoso profissional; não deve ser o
detetive; deve matar por razões pessoais.3. O amor não tem lugar no romance policial (...).
O terceiro item já se torna obsoleto para Rubem Fonseca. Diversos personagens
seus apaixonam-se, como o caso de detetive Mattos, que ao final de Agosto larga tudo
para ficar com sua amante Salete. Outro caso que comprova a afirmação está no
romance O seminarista (2009: 45), em que o protagonista, matador por aluguel se torna
detetive para descobrir o assassino de sua amada, é um galanteador e apaixonado porsua namorada:
O rosto era bonito, esqueci de dizer que Kirsten tinha uma dentadura perfeita.“Por que você está me olhando assim?”“Assim como?”“Desse jeito, fixamente...”“Oculi sunt in amore duces, os olhos são o guia do amor, como dissePropércio.”
Nas primeiras páginas de O Seminarista (2009), José narra seus últimos
trabalhos como matador profissional para, no quinto capítulo, anunciar que desistiria do
mundo do crime. O motivo: numa certa manhã, ao tomar café em uma padaria,
deparara-se com uma mulher solitária e forçara uma aproximação. José apaixonou-se
por Kirsten. Mais tarde, descobriu que ela era filha de seu antigo patrão, o Despachante.
Contudo, a grande marca do livro é a paixão do protagonista:
Fiquei apaixonado por Kirsten. [...] Muitas pessoas devem acharestapafúrdio um sujeito que matou por encomenda uma porção de
pessoas ser dominado por sentimentos desta natureza. Para falar averdade eu também me considerava incapaz de uma emoção tão
profunda, sentia tesão pelas mulheres, e admiração, mas paixão nuncasentira antes. Na verdade, amor est vitae essentia, o amor é a essênciada vida (p. 56).
Toda a semana eu ia ao cemitério onde Kirsten estava enterrada e
colocava flores em sua sepultura. [...] Na parede da sala do meu
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
46/86
apartamento eu olhava um quadro com uma foto ampliada de Kirsten.Eu a amaria para sempre. Amor aeternu (p.177).
É por causa do amor que José decide mudar de vida e tornar-se um homemcomum. Nesta narrativa, o amor, ao contrário do que Todorov teorizou, respaldado por
Van Dine, tem vez.
Segundo Pellegrini (2009: 93), Rubem Fonseca “é muito mais sofisticado no
tratamento das motivações para o crime, a ponto de se poder questionar se o rótulo de
‘policial’ é realmente adequado para suas narrativas.” Rubem Fonseca inaugura uma
nova maneira de se fazer romance policial. Seu Mandrake não é nenhum Sherlock
Holmes, ele possui características detetivescas próprias. Fonseca apropria-se de
características do gênero e as aplica em suas narrativas sem que o leitor tenha a
impressão de já ter lido o que está escrito. Romeo Tello Garrido (1998: 15), na
introdução de Los mejores relatos de Rubem Fonseca, diz que:
Sólo echa mano de algunos elementos estructurales del género (elcrimen, la intriga, la investigación judicial), todos ellos manejadoscom maestría. Sin embargo, no aspira a hacer uma novela dedetectives tradicional (...) el fin de la narración no es devolver el ordenmoral y jurídico, no; cuando Fonseca acude a los recursos de laliteratura policial. Ésta es sólo um pretexto, el mejor molde narrativo
para presentear la compleja y ambigua contienda entre el bien y elmal, porque ‘criminales somos todos’ como afirma uno de sus
personagens.
Baseados na crítica, vemos que o autor não se adapta rigorosamente aos
tradicionais códigos do gênero policial. Em suas publicações percebemos o uso da
linguagem midiática, como a imprensa escrita, a televisão, o cinema.
2.3 ENTRECRUZAMENTOS/AMÁLGAMAS DE LINGUAGENS
-
8/18/2019 A REPRESENTAÇÃO DO REAL EM RUBEM FONSECA
47/86
As artes em geral são permeadas pelo cotidiano veloz. Muitos artistas optaram
por retratar a construção de um vazio entre a imagem e o seu referencial. Os surrealistas
trouxeram para sua produção esse modelo de arte. Outros, porém, pretendem resgatar o
máximo da realidade em que participam para representá-las. Sabemos que Rubem
Fonseca pertence ao segundo grupo de artistas comprometidos com sua obra e com o
leitor.