A questão (indígena) do Manifesto Antropófago - scielo.br · quanto à lógica binária que...
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Rev.DireitoePráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.4,2018,p.2461-2502.AlexandreNodarieMariaCarolinadeAlmeidaAmaralDOI:10.1590/2179-8966/2018/37974|ISSN:2179-8966
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Aquestão(indígena)doManifestoAntropófagoThe(indigenous)questionoftheManifestoAntropofago
AlexandreNodari11Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail:[email protected]:https://orcid.org/0000-0001-9519-145X.
MariaCarolinadeAlmeidaAmaral22Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail:[email protected]:https://orcid.org/0000-0003-2042-7979.
Artigorecebidoem25/10/2018eaceitoem30/10/2018.
ThisworkislicensedunderaCreativeCommonsAttribution4.0InternationalLicense
Rev.DireitoePráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.4,2018,p.2461-2502.AlexandreNodarieMariaCarolinadeAlmeidaAmaralDOI:10.1590/2179-8966/2018/37974|ISSN:2179-8966
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Resumo
Omais conhecidodosaforismosdoManifestoAntropófago lançavaumaquestão,Tupior
not tupi?,queterminouporserobliteradapelasuaconversãoem lema identitário.Oque
nospropomosaquiémapearoquadrodereferênciasnoqualelaseinsere,osdebatesnos
quais ela intervém, e, especialmente, como ela se conecta a diversas a fontes
antropológicas do Manifesto, de maneira a restituir o seu caráter de uma questão
eminentemente indígena, um modo de questionar visões e apropriações nacionalistas e
identitáriasdospovosindígenas.
Palavras-chave:antropofagia;Tupi;OswalddeAndrade.
Abstract
Tupi or not tupi? the most famous aphorism of Oswald de Andrade’s Manifesto
Antropófago,raisedaquestionthatendedupbeingobliteratedthroughitsconversioninan
identitarianmotto.Whatweproposehere is tomap the frameof references surrounding
the question, the debates that it intervenes in, and especially how it connects to the
Manifesto’svariousanthropologicalsourcesinordertorestituteitsqualityofaneminently
indigenous matter and its ability to question identitarian and nationalistic views and
appropriationsofindigenouspeople.
Keywords:anthropophagy;Tupi;OswalddeAndrade.
Rev.DireitoePráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.4,2018,p.2461-2502.AlexandreNodarieMariaCarolinadeAlmeidaAmaralDOI:10.1590/2179-8966/2018/37974|ISSN:2179-8966
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1.1 “Tupy, or not tupy that is the question”2. Noventa anos depois da publicação do
Manifesto Antropófago, a recorrência de reproduções e apropriações domais célebre de
seusaforismosconverteuaquiloqueseapresentavacomodilemaemumlemaidentitário,
segundooqualaalternativaaserTupiconsistiria,simplesmente,emnãoser.Nessaleitura,
que parece umametonímia do destino póstumo do própriomovimento capitaneado por
OswalddeAndrade(mas,afinal,comoelemesmodizia,“[q]uemcontacomaposteridadeé
comoquemcontacomapolícia”(Andrade,2011a:61)),ignorou-sequethatisthequestion,
queestaéaquestãoqueoManifesto,relendoopassado, lançavaaopresentedemodoa
pensarofuturo.Éprecisamenteissoquepropomosquestionaraqui,mapeandooquadrode
referênciasnoqualelaseinsere,osdebatesnosquaiselaintervém,e,especialmente,como
ela se conecta às fontes etnográficas do Manifesto, de modo a tentar restituir o seu
estatutodequestionamentoradicaldostermosedalógicada“questãoindígena”,emque
setratadepassardaalternativaàabertura,dodoisaomúltiplo,tantonoconteúdo,quanto
na forma, pois, como aponta Beatriz Azevedo (2016: 199), também “com sua linguagem
aforismática,Oswaldvaido ‘duplosentido’aosentidomúltiplo”,daencruzilhadadualaos
“Roteiros.Roteiros.Roteiros.Roteiros.Roteiros.Roteiros.Roteiros”.
2. “To be or not to be – that is the question”3. É desnecessário dizer que a questão de
Oswald retoma e transforma (i.e., apropria) a hamletiana. Por outro lado, pode ser
relevantesublinharque,dadoocontextodapeçaemqueestaéproferida,ficaemquestão
se deve ser levada a sério, ou se, ao contrário, consiste em um dos estratagemas
mobilizadosporHamletnoseuartifíciodefazer-sedeloucoparamelhorpoderdesmascarar
o seu tio e a suamãee, assim, vingar seupai, fazendoparteda “estranhae singular (...)
conduta”, das “atitudes absurdas”, “frases suspeitas” ou “ambiguidades” que mobiliza,
conformeenunciaaHorácioeMarcelo.Nessesentido,aparadoxal“loucuraesperta,coma 1 Opresenteartigoretomaedesenvolvetextoseapresentaçõesanterioresdosautores.Agradecemostodosaquelesqueleram,contribuíramecomentaramtaisversõespreliminares,emespecialAndréVallias,quemnoschamouatençãoparaaquerelapaulistatupi-tapuia.. 2 Todas as citações daRevista deAntropofagia (incluindo as doManifestoAntropófago),de agora emdiantetambémmencionadasimplesmentecomoRevista,foramextraídasdaediçãofac-similarreferidanabibliografiaetiveramsuaortografiaatualizada.3Utilizamos,nascitaçõesqueseseguemdeHamlet,atraduçãodeMillôrFernandes,disponibilizadapeloprópriotradutoremseusite:http://www2.uol.com.br/millor/teatro/download.htm#hamlet.
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qual escapa, toda vez que o pressionamos, a revelar seu verdadeiro estado” parece
condensaroclimadeincertezaqueperpassaapeçacomoumtodo.Maisimportantepara
nossos propósitos, porém, são os próprios termos da questão, os quais, apesar da
aparência,nãopodemserbinariamenteisoladosumdooutro.Naperoraçãohamletiana,o
quepareceser,àprimeiravista,umaalternativasimples,resumidaaviverounão,setorna
umaautênticaquestãoeadecisãosetornaindecidívelnamedidaemquenãoécertoquea
vida (o ser) nãopersiste, de algummodo, namorte (o não ser), que nãohaja sonhos no
sonoeterno,queosmortos,comoofantasmadoseupaiparececomprovar,nãocontinuem
dealgummodopresosàvida:
Serounãoser–eisaquestão.SerámaisnobresofrernaalmaPedradaseflechadasdodestinoferozOupegaremarmascontraomardeangústias–E,combatendo-o,dar-lhefim?Morrer;dormir;Sóisso.Ecomosono–dizem–extinguirDoresdocoraçãoeasmilmazelasnaturaisAqueacarneésujeita;eisumaconsumaçãoArdentementedesejável.Morrer–dormir–Dormir!Talvezsonhar.Aíestáoobstáculo!OssonhosquehãodevirnosonodamorteQuandotivermosescapadoaotumultovitalNosobrigamahesitar:eéessareflexãoQuedáàdesventuraumavidatãolonga.Poisquemsuportariaoaçoiteeosinsultosdomundo,Aafrontadoopressor,odesdémdoorgulhoso,Aspontadasdoamorhumilhado,asdelongasdalei,Aprepotênciadomando,eoachincalheQueoméritopacienterecebedosinúteis,Podendo,elepróprio,encontrarseurepousoComumsimplespunhal?Quemaguentariafardos,Gemendoesuandonumavidaservil,Senãoporqueoterrordealgumacoisaapósamorte–Opaísnãodescoberto,decujosconfinsJamaisvoltounenhumviajante–nosconfundeavontade,Nosfazpreferiresuportarosmalesquejátemos,Afugirmosparaoutrosquedesconhecemos?
Esse movimento que, confundindo os termos, impossibilita a oposição plena, e,
portanto,adecisão,jáestavaprenunciadonaescolhadosuicídiocomomotedareflexão:ou
seja,passaranãoser,morrer,masissopormeiodoatomáximodevontadedoser.Assim,
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naquestãoquesecoloca, seumdos termos,amorte,éuma incógnita,nãopodendoser
definida e nem totalmente discernida de seu oposto (não constituindo propriamente um
termo, nem seguramente o termo da vida – em toda a ambiguidade possível dessa
formulação),oseusupostooposto,oser,tambémcarecedenitidez,poisadúvidadiantedo
gestosupremo,odedisporplenamentedesiedar-seàmorte,passaraonão-ser,converte-
se em paradigma da hesitação diante das consequências de todo ato, de toda decisão,
impregnandoavida,oser,deindecisão,dehesitação,denãoagir,denãoser:
Eassimareflexãofaztodosnóscovardes.EassimomatiznaturaldadecisãoSetransformanodoentiopálidodopensamento.Eempreitadasdevigorecoragem,Refletidasdemais,saemdeseucaminho,Perdemonomedeação.
Dessemodo,setomamosaquestãocomoumameditaçãodeHamletsobrelevarou
nãoacaboavingançadopai,torna-sequaseimpossívelsaberemquepolosituaresta:por
umlado,vingaréagir,ser,mastambém,dadoainevitabilidadedasconsequênciasdematar
onovorei,elaequivaleaoatoextremodosuicídio,acarretandoonãoser;poroutrolado,
não vingar, não agir, importa continuar vivendo, ser, embora constitua, no fundo, um
sinônimodenãoser.E,denovo,aquestãoseredobra:nadagaranteaHamletqueogesto
de vingança, mesmo tendo como corolário o termo de sua vida, seja, de fato, o fim,
podendo motivar, por sua vez, outras vinganças, e mesmo fazer do príncipe morto um
fantasma a mover outros para vingá-lo. Portanto, a divisão e hesitação hamletianas não
decorremdadificuldadedeescolherentredois termosnitidamentedefinidos,mas,antes,
da impossibilidade dedistingui-los.Oumelhor dizendo, elas derivamda inadequaçãodos
termosàquestão,datentativadereduzi-laàlógicabináriadoser(regidapeloprincípioda
identidadeedanão-contradição),demodoqueaquiloqueHamletbusca(emvão)comsua
decisãoéaplacaraindecidibilidade,pormeiodeumtermo(sejaparasuavida,sejaparaa
errânciaespectraldeseupai)queestabilizeodevir(earelaçãoentrepassado,presentee
futuro).
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3.“Ohomemeuropeufaloudemais.MasasuaúltimapalavrafoiditapelopríncipeHamlet,
queKierkegaardrepetiuemElsenor.NósdizemosaquioùVillegaignonprintterre:Tupyor
not tupy that is the question. Um passo além de Sartre e de Camus. A antropofagia”
(Andrade, 2011b: 447). Ao retomar, em 1946, a questão na “Mensagem ao antropófago
desconhecido”, texto que marca o seu retorno à Antropofagia após um interregno de
adesãoaocomunismo,Oswaldasituacomoumdeslocamentoemrelaçãotantoaostermos
quanto à lógica binária que parecem guiar não só Hamlet, mas, de um modo geral, a
metafísicaocidentalmoderna(pense-se,apartirdareferênciaaSartre,emOsereonada)–
comodiz oManifesto, “nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós”, uma recusa
ativa e não a mera afirmação de um estado pré-lógico, sem lógica. A contestação dos
termos já aparecera no “De antropofagia” do quarto número da segunda dentição da
Revista, noqual se afirmaque “os antropófagos (...) nãoadmitem (...) a rezae a fradaria
comchavesdo‘tudo’edo‘nada’”.Alémdisso,aprevalênciadoserfoiseguidamenteposta
emquestãopelos constantes ataquesdos antropófagos àmetafísica: “O índio”, lemosna
Revista,“nãotinhaoverboser.Daíterescapadoaoperigometafísicoquetodososdiasfaz
dohomempaleolíticoumcristãodechupeta,ummaometano,umbudista,enfimumanimal
moralizado.Umsábiozinhocarregadodedoenças”.Domesmomodo,emumaentrevista,
Oswald afirmava que “o índio (..) não era, (...) não podia ser (...) criatura metafísica (a
metafísica (...) estragava todas as almas)”, por não saber gramática: “A gramática é que
ensinaaconjugaroverbosereametafísicanascedaí,deumaprofundaconjugaçãodesse
verbinho.Nãosesabendogramática...”(Andrade,2009:287).Masénaretomadafilosófica
daAntropofagianos anos1940e1950que transparecemais claramente a crítica ao “ser
como tal”, considerado “o grande impostor da velha Metafísica” e que estaria sendo
recolocado em seu “trono absolutista (...) através do Existencialismo, da axiologia, da
fenomenologiaemesmodomarxismo-leninismo”.A“exaltaçãodoconceitodeSer”recairia
emumerrograve:“Oqueéapenascoordenada[oSer],momentoestáveldeumasimples
relaçãodemovimento,passaasertransfiguradoemmotorimóvel”(Andrade,2011b:197).
Aqui se mostra a raiz (equivocada) da prevalência metafísica que Oswald identifica no
conceito de ser: a busca de subsumir a relação de movimento (i.e., na terminologia
oswaldiana,adevoração)aumdeseusmomentosestáveis(umdostermos,sempremóveis,
darelação),que lheseriaontologicamenteposterioredependente,ouseja,atentativade
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“arrancar o ser do fluir” (Andrade, 2011b: 172).Mas o que significa substituir o ser pelo
tupi?Comoamudançadostermosalteraaprópriaquestão?
4.“Emnossaeradedevoraçãouniversalaproblemáticanãoéontológica,éodontológica”
(AndradeapudCandido, 2004:46).AquestãodoManifestonãoéapenaso seuaforismo
mais conhecido. É também o exemplo mais acabado do procedimento canibal de
apropriação, levado a cabo por Oswald desde, pelo menos, Pau Brasil. Trata-se de
introduzir,emumamáxima(umafrasefeita,umclichê,umtextocujosentidosecristalizou
e imobilizou), umadiferençamínima, umerrooudesvioquedesloca completamente seu
sentido: “da falamor, omor lapso: omaior é omenor”, dirá Raul Antelo (2006: 27). Na
questão, a fórmula original de Shakespeare permanece inalterada (e mesmo na língua
original:or,not,thatisthequestion),oquemudamsão“apenas”osseustermos,eissopor
meio de uma leve modificação fonética (/b/ por /p/). Mas essa transformação de uma
passagem clássica pormeio de uma intervenção quase imperceptível (e por issomesmo
aindamaisevidente)éradical,eaalteraçãomínimaquesedánessaapropriaçãoproduzum
efeitomáximo de transformação semântica:éopróprioSerqueéobliteradodaquestão,
queé,digamos,devoradonaapropriaçãocanibaloswaldiana.
Emprimeirolugar,noManifesto,“tupi”,emborasejaumsubstantivo,ocupaolugar
pertencente ao verbo no original, como se se tratasse não de uma substância (uma
identidade, um nome, afinal, Tupi designa uma multiplicidade de povos, os povos tupi-
guarani),deum“sertupi” jádado,masdeumaação,umvirartupi:tupi(r).Alémdisso,se
admitimosa“contribuiçãomilionáriadetodososerros”advogadapeloManifestodaPoesia
Pau-Brasil,essamodificaçãofoimanifestadatambémgraficamenteporOswald.Observe-se
quetantonoManifestoquantona“Mensagem”,nãoapareceotravessãoque,emHamlet,
distingue as duas orações: “Tupy or not tupy [–] that is the question”. Essa omissão –
deliberadaounão–quandotranspostaàfraseoriginal(eofatodoaforismoseremmaisde
uma língua, dado importante ao qual voltaremos, não só permite como demanda que
façamos essas transposições, pois toda apropriação canibal é uma via demão dupla que
tambémintroduzumavariaçãoretroativano“original”),essaomissão,dizíamos,gerauma
ambiguidade,equivocidadeouindecidibilidadenasualeitura:Tobeornottobe–thatisthe
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questionouTobeornottobethat– is thequestion.Serounãoser-isto, ser-ounãoser-
assim, eis a questão, deslocada da intransitividade do ser ao devir sempre transitivo, em
queoacentonãomaisrecaisobreoser,massobreosmodosdeser,sobre“comosomos”:
“ser-tupi”.
Todavia, se na questão antropofágica a substancialização dá lugar àmodalização,
devemostercuidadoparanãotomarosmodosdesercomosubstâncias,segundoalógica
do ser. Se o tupi (termo pouquíssimo utilizado por Oswald, por motivos que veremos),
enquantosinônimodeantropófago(osrituaiscanibaisdescritospelaliteraturacolonialque
inspiraramoManifesto eram,emsuaquasesenão totalidade, tupi,maisespecificamente,
tupinambá), aparece no lugar do ser, é porque se trata de deslocar a proeminência
metafísicadesteemnomedadevoração.Assim,oTupidaquestãonãosereduzapenasa
umser-como,masimplicatambémcomeroser:oser-tupiéummododeserquedevorao
ser...ÉistoqueOswaldenuncianofinalda“Mensagem”:“NadaexisteforadaDevoração.O
ser é aDevoraçãopura e eterna” (Andrade, 2011a: 449).Nada existe fora daDevoração,
porque a devoração designa a relação cosmológica e ontológica fundamental: a
Antropofagiaéumaontologiaqueexplicaofuncionamentodocosmosedetodososseres,
não se restringindo a uma práxis humana (também os seres inumanos a praticam e são
produzidosporela,dadoqueéarelaçãouniversal).4OseréaDevoraçãopuraeeterna:não
setratademaisumadefiniçãodoser,masdesubsumiresteàlógicadodevir,deafirmara
proeminênciametafísicada relação sobreos termos,demodoquea categoriaontológica
fundamental,quenoOcidentecabeaoser,éaquiatribuídaàDevoração.Porisso,Eduardo
ViveirosdeCastro(emAzevedo,2016:17)poderádizerquea“verdadeiraquestãoé‘Tupi
ortobe’”:“o ‘tupi’cancelae inverteotobe,aantropofagiaéumacontraontologia”.Lida
assimaquestãooswaldiana,oservemdepois,nãosendooprimeirotermo.Eaordemdos
fatores altera a questão: “Tupi ou ser” implica tomar a relação entre o ser e o devir (ou
entreosereomododeser,ouentreosereonãoser)nãopelalógicasubstancialistado
ser,comoumadiferençasubstancial,massegundoa lógicadodevir(ouda“nãológicado
4Trata-sedeinflexãofísicadametafísica:alçaraumstatusmetafísicoamáximadequenanaturezanadasecria,nadasedestrói,tudosetransforma,oumelhor,sedevora.Assim,se“Oespíritorecusa-seaconceberoespíritosemocorpo”,“AfenomenologiadoespíritosópodeserealizarnaHistóriapelaAntropofagia”(Andrade,1974:203).Nãoéumacasoquemesmoaentropiacósmicasejadescritaemtermoscanibais,comoa“devoraçãodoplanetapeloimperativodoseudestinocósmico”(Andrade,2011b:146).
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terceiro incluído, onde uma coisa pode deixar de ser igual a simesma para incorporar o
outro, a diferença”, para usar as palavras deHaroldo de Campos (2004:149)), como uma
diferençamodal, demodos: o serpassa a ser elemesmo ummodo, um devir, apenas o
“momento estável” deste. Como diria Gabriel Tarde (2007: 98), “[e]xistir é diferir; na
verdade,adiferençaé,emumcertosentido,oladosubstancialdascoisas”,e“aidentidade
éapenasummínimo,eportantoapenasumaespécie,eumaespécieinfinitamenterara,de
diferença,assimcomoorepousoéapenasumcasodomovimento”.
5. “Tínhamos a justiça codificação da vingança” (Manifesto Antropófago). A co-incidência
disjuntivacondensadapelaquestãooswaldianaentreShakespeareeaAntropofagiatupie
suas respectivas ontologias deixa-se ver mais claramente no estatuto distinto que a
vingança assume em cada um destes “hemisférios culturais”, o “clímax do Patriarcado”,
“dadoporHamlet”,“emqueestrondamaltoavinditaeoressentimentodoPríncipe,contra
a mãe adúltera” (Andrade, 2011b: 154), e o “Matriarcado de Pindorama”. Pois, como
sublinhou recentementeBeatrizAzevedo (2016:109)emsuamagistral leitura comentada
doManifesto, “entre os Tupi não poderia haver esta ‘dúvida’ em vingar ou não vingar”.
Alémdisso,avingançadosparenteseantepassadosnãoapenaseraaorigemoumotivodo
ritualantropófago,comooscronistaslogoperceberam,masigualmenteseudestino,jáque
visavatambém(re)produzi-la:
nãosetratavadehavervingançaporqueaspessoasmorremeprecisamser resgatadas do fluxo destruidor do devir; tratava-se de morrer (emmãosinimigasdepreferência)parahavervingança,eassimhaverfuturo.Os mortos do grupo eram o nexo de ligação com o inimigo, e não oinverso. A vingança não era um retorno, mas um impulso adiante; amemóriadasmortespassadas,própriasealheias, serviaàproduçãododevir.(...)Aduplainterminabilidadedavingança–processosemtermoerelaçãoquenãosedeixavaapreenderporseustermos-sugerequeelanão era uma daquelas tantas máquinas de abolir o tempo, mas umamáquinadeproduzi-lo,edeviajarnele(oquetalvezsejaoúnicomododerealmenteaboli-lo).Ligaçãocomopassado,semdúvida;masgestaçãodofuturoigualmente,pormeiodograndepresentedoduelocerimonial(ViveirosdeCastro,2002:240).
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Ou seja, ao contrário da vendetta hamletiana, toda ela voltada ao passado, à
restituiçãodeumaofensa à origem, a aplacar amemória e estabilizá-lo por um termo, a
Antropofagiaporvingançatupinambávisavainstituirasuacontinuidade(damemóriaeda
vingança, irmanadas),paraquenãohouvessetermo (noduplosentido).E,paratanto,era
preciso,dapartedocativoprestesaserdevorado,questionaro inimigo,suacoragemea
própria natureza do seu gesto canibal; questionar se, de fato, a carne que o devorador
comeria era inimiga, se não era a carne dos seus antepassados que o devorado havia
comido;equestionarespecialmenteotermodavingança,afirmandoqueosseusparenteso
vingariam,comeriamoagoradevorador,numaalternânciaou instabilidadedostermosda
relação canibal. Esse questionamento se manifestava na troca posicional do discurso
cerimonialqueantecediaaantropofagiapropriamentedita,noqualpodemosvertambémo
outro sentidoda “interminabilidadedavingança”, a saber,odeuma“relaçãoquenão se
deixava apreender por seus termos”: “O diálogo parecia inverter as posições dos
protagonistas.Anchietaseespanta:ocativo‘maispareciaestavaparamatarosoutrosque
parasermorto’” (ViveirosdeCastro,2002:237).Assim,avingançacanibal tupinambáera
“umprocessodetransmutaçãodeperspectivas,ondeodevoradorassumeopontodevista
dodevorado,eodevorado,ododevorador:ondeo‘eu’sedeterminacomo‘outro’peloato
mesmode incorporaresteoutro,queporsuavezsetornaum‘eu’(...).Ocanibalismo(...)
implicaria assim ummovimento fundamental de assunção do ponto de vista do inimigo”
(ViveirosdeCastro,2002:461-2).Aquiloqueimpedeaescolhahamletiana–aausênciade
termos–éomotordaAntropofagia.
6. “[A]bsolutamente nada cheira à tapuia, lembra tapuia, prova a passagem de tapuias.
Tudo, absolutamente tudo, é tupi” (Plínio Ayrosa). O canibalismo de vingança tupinambá
remeteaoutro fator importantea ser abordado.Pois, não sepodeperderde vista– e é
sintomáticoquetodaumatradiçãoqueenfatizaexcessivamenteohumoreamordacidade
oswaldianos o tenha feito – que a questão doManifesto é essencialmente indígena, na
formadeumsarcasmoferozreferenteaumaquerelaque lheeracontemporânea.Aceso,
umpoucoaoacaso,emfinsdoséculoXIX,odebateseprolongariaatépelomenosadécada
de 1930, dizendo respeito aos povos indígenas que “dominavam” São Paulo nos tempos
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coloniais,eque,portanto,seriamosantepassadossimbólicosemesmobiológicosdaelitee
da população de um estado que buscava afirmar seu poderio e construir sua identidade.
“Estavaemjogo”,afirmaJohnManuelMonteiro(1992:125)emumareconstruçãorecente
dodebatenaqualestamosnos fiando,“omitodeorigemdasociedadepaulista”.Avisão
consensual (e acrítica) até então era de que o posto cabia aos Guaianá, um povo
supostamente tupi. Todavia, em 1888, JoãoMendes de Almeida levantou lateralmente a
hipótesedequeestesnão teriamsidoos “‘dominadores’dePiratininga” (ibidem:125),e,
poucos anos depois, Capistrano de Abreu, junto a outros, sugeriu que “os Guaianá da
documentaçãoantiganãoconfiguravamgrupostupie,pelocontrário,seriamnadamaisque
os remotos ancestrais dos modernos Kaingang – portanto, Tapuia, uma ‘raça’ indígena
desprezada pela ciência moderna e pelos defensores do progresso” (ibid.: 126). 5 “Eram
tupis, tapuios ou guaranis?”, perguntava, sem conseguir responder ao certo, Couto de
Magalhães (1975: 143). Tupy or not tupy?, perguntaria também oManifesto, tornando a
resposta,comoveremos,nolimite,impossível.
O debate retomava o binômio por meio do qual o empreendimento colonial
sobrecodificouemchavesubstancialistaumtermodaslínguastupi-guarani.Afinal,ahistória
pós-contatodapalavra“tapuia”,ahistóriadasuaapropriação(pelalíngua)portuguesa,está
intimamente ligada à colonização. Emumde suas primeiras ocorrências registradas, uma
cartadojesuítaJoãodeAzpilcueta,datadade1555,onomeparecedesignarumgrupoou
povo indígena:“Nodiaseguintepartimosepassamosmuitosdespovoados,especialmente
umdevinteetrêsjornadasporentreunsíndiosquechamamtapuia,queéumgênerode
índiosbestialeferoz,porqueandampelosbosquescomomanadasdeveados,desnudose
comcabelosmuilongoscomodemulheres;suafalaémuibárbara,eelesmuicarniceiros,e
trazemflechaservadas,edespedaçamumhomememummomento”(emHue,2006:135).
Bárbaros,nômades,carniceirosecomumalínguaestranha,ostapuzos,talcomografadona
missiva, se contrapunham, ponto a ponto, aos Tupi que acompanhavamo jesuíta e eram
objetodesuacatequese.Domesmomodo,aindaemreferênciaaumgrupoespecífico,háa
menção,em1576,deGândavo. Inscritasintomaticamentenocapítulo“Damortequedão
aoscativos”,adiferençaseapresentanointeriormesmodapráticaquemaishorrorizavaos
5Não faltaramacusaçõesque flertavamcomaxenofobiaaosdois responsáveisporacenderodebate,ambosnordestinos,“logo”,tapuios.Cf.Monteiro,1992:130-1.
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europeus, a antropofagia. Contrastado com o endo-canibalismo funerário tapuia, o exo-
canibalismoguerreirotupitornava-semaispalatável:
Também há uns certos índios junto do rio doMaranhão, da banda dooriente,naalturademaisoumenosdoisgraus,quesechamamtapuias,osquaisdizemquesãodamesmanaçãodessesaimorés,oupelomenosirmãosemarmas,porqueaindaqueseencontrem,nãoseofendemunsaosoutros.Essestapuiasnãocomemacarnedenenhumcontrário,antessão inimigoscapitaisdaquelesquea costumamcomer,eosperseguemcommortalódio.Porém,pelocontrário,têmoutroritomuitomaisfeioediabólico,contraanatureza,edignodemaiorespanto.Eéque,quandoalgumchegaaestardoentedemaneiraquesedesconfiedesuavida,seupai ou mãe, irmãos ou irmãs, ou quaisquer outros parentes maischegados, o acabam de matar com suas próprias mãos, havendo queusam assim com ele demais piedade que consentirem que amorte oesteja senhoreandoeconsumindopor termos tãovagarosos.Eopioréque,depoisdisto,oassamecozemelhecomemtodacarne,edizemquenãohãodesofrerquecoisatãobaixaevil,comoéaterra, lhescomaocorpodequem tanto amam, e quepois é seuparente, e entre eles hátanta razão de amor, que sepultura mais honrada lhe podem dar quemetê-lo dentro em si e agasalhá-lo para sempre em suas entranhas(Gândavo,2004:167-8)
Todavia, já no relato de Fernão Cardim, o termo não mais designa um povo
homogêneo,masservedeformaumtantogenéricaparaabarcarosinimigosdosTupi,que
sãooseu(deCardim)pontodereferência:“Háoutrasnaçõescontráriase inimigasdestas
[dos Tupi], de diferentes línguas, que em nome geral se chamam de Tapuya, e também
entre si são contrárias” (Cardim, 2009: 205). À continuação, ele elenca e descreve várias
destas outras nações, distintas e inimigas entre si, algumas nômades, “como ciganos”
(ibidem: 209), outras “cruéis como leões”, (ibid.: 206), etc. Nessas três ocorrências (e
poderíamos passar por muitas outras), nos deparamos com uma mesma estrutura: são
grupos tupi que nomeiam a um oumais outros, inimigos seus, como tapuias, como se o
termodesignasseooutrodoaliado(ooutrodosTupi),ooutrodooutro.
Emboraaetimologia–tarefasempre(eaindamais)árduaemsetratandodelínguas
indígenas–sejadifícildeestabelecer,apalavra“tapuia”ressoa“taba”ou“tapui”, termos
de línguas tupi-guarani para choupana, casa, ou aldeia, parecendo marcar uma certa
oposiçãoaeles:osdeforadaaldeia,osafastadosdela(oumesmo,comoaventaramalguns,
os fugitivos): no limite, comopropôs SimãodeVasconcelos em1663, “tapuia” significava
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“contrários,ouinimigos”(apudPuntoni,1998:10).Contudo,issonãoétudo.Poisoponto
dereferência (oTupidoqualoTapuiaéoutro)estava longedeserunívoco,ouseja,para
dizeroóbvio,nãohaviaumagrandeNaçãoTupiúnica(comodemonstram,ficandonomais
evidente,asguerrasentrepovostupi,easaliançasdeunscomosportugueseseoutroscom
os franceses), para a qual se colocava um outro por exclusão, uma grandeNação Tapuia
única(GabrielSoaresdeSousa(2010:327),emseuTratadodescritivodoBrasil,jáafirmava:
“osTapuyassãotantoseestãodivididosembandos,costumeselinguagens,parasepoder
dizer deles muito”). Além disso, mesmo que aceitemos a definição, acima citada, de
“tapuia”comoinimigo,restaofatodequenãosetratavadaúnicapalavradaslínguastupi-
guaraniparadesignaroscontrários(haviaoutras,comootovajartupinambá).Assim,tapuia
parece ser muito mais um termo relativo ao e variável com o ponto de referência (se é
tapuia-para-alguém), podendo, sem grandes esforços, ser, de fato, glosado grosso modo
como “não tupi”, desde que se tenha em mente que “Tupi” aqui não possui o sentido
substancialdeconjuntodospovostupi-guarani (conjuntoquenãoexistiaparaospróprios
tupi-guarani–seéquefazsentidofalarnessestermos),esimumsentidopronominalmais
oumenosamplo, um“nós”maisoumenosexclusivo, variandodeacordo comogrupoe
comocontexto.6Designandocertograudeumarelaçãonegativa(deinimizadeouexclusão,
cujaespecificidadeougeneralidadenosescapapelanãoconfiabilidadeepoucainformação
das fontes coloniais) com o grupo que o enuncia, “tapuia”, arriscaríamos dizer, parece
marcarumadistânciaemrelaçãoaele (ogrupoenunciador)maioroudistintaqueoutras
palavrasdas línguas tupi-guaranipara inimigo,umafastamentoqueédiferentedeoutros
grupos rivais (muitos dos quais tupi) e cujo traço distintivo talvez seja a língua (e
“costumes”), podendo servir inclusive para nomear os brancos (ou certos grupos deles),
comoapontaJosédeAlencar(2017:89)emumanotaaIracema:“Brancostapuias:emtupi
6“[A]scategoriasindígenasdeidentidadecoletivatêmaquelaenormevariabilidadedeescopocaracterísticadospronomes, marcando contrastivamente contextual e desde a parentela imediata de um Ego até todos oshumanos,outodososseresdotadosdeconsciência;suacoagulaçãocomoetnônimopareceser,namaioriadoscasos,umartefatoproduzidonocontextodainteraçãocomoetnógrafo.Nãoé,tampouco,acasoqueamaioriados etnônimos ameríndios que passaram à literatura não são autodesignações,mas nomes (frequentementepejorativos)conferidosporoutrospovos:aobjetivaçãoetnonímicaincideprimordialmentesobreosoutros,nãosobrequemestáemposiçãodesujeito” (ViveirosdeCastro,2002:372).Nessecaso,acrescentemos,estamosdiantedeumetnônimodadoporterceiroscomavariabilidadedas“categoriasindígenasdeidentidadecoletiva”,ouseja,umaespéciedepronomeemnegativo(quemarca,variavelmente,aausênciadessa“identidade”).
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– tapuitinga.Nomequeospitiguaras [povo tupi]davamaos francesesparadiferenciá-los
dostupinambás”.
Porém,emborafluida,relativaevariável,aoposiçãotupi-tapuia(seéquesetratava
deumaoposição, pois o primeiro termonão é exatamente fixo, e o segundoé dadopor
ele), foi estabilizada numa matriz substancialista como fruto do empreendimento de
colonização, no qual o outro segundo a ótica (variável emúltipla) tupi foi desviado pelas
lentes coloniais, que codificou numa lógica binária a multiplicidade de povos indígenas.
Assim,convertidaembinômio,passouaservirdeclivagementre índiosafeitosouaptosà
obra missionária e aqueles resistentes a ela (seja de “fato”, seja pela barreira da língua
adotadacomoinstrumentodacatequese,otupipadronizado):
O termo “Tapuia”, portanto, não pode ser compreendido como umetnônimo, mas sim como noção historicamente construída. Seusignificado básico está associado à uma noção de barbárie duplamenteconstruída.Sãobárbarosaquelesassimconsideradospelos“outros”quepodemser integrados imediatamenteà cristandade:osTupi.Emoutraspalavras,seMontaignediziaque“cadaqualconsiderabárbarooquenãosepratica em sua terra”, devemos ter aindaqueadivisãoentre Tupi eTapuia compreendia uma noção de uma “dupla barbárie”, se assimpodemos dizê-lo: a integração ou aceitação abstrata dos Tupi como ahumanidade a ser incorporada (e, portanto, como elementos legítimosdo Império cristão), implicavana inscriçãodos Tapuia comoabarbaria.(Puntoni,1998:11).
Com a Independência – em especial, na versão hegemônica do indianismo (que
comporta suas exceções, destacando-se, entre elas, Gonçalves Dias (cf. Sá, 2012)) –, o
binômioganhaaindamaisrelevânciaideológica,namedidaemquesebuscapostularuma
origem,símboloou“raça”autóctoneparaanovaNação.Oescolhidonãopoderiadeixarde
ser o Tupi, o qual, napseudo-etimologia de Teodoro Sampaio, significaria “pai supremo”,
repaginando outra (pseudo-etimologia), a de Luís Figueira, que deriva o termo de ypy
(princípio,começo),demodoqueosTupiseriamosprimeiros–lembre-sedetodoodrama
hamletiano concernente à origem e ao Pai... Mas, evidentemente, o Tupi unificado e
idealizado como “bom selvagem” (dócil, aliado, afeito à catequese – ou então, legal,
corajoso,bravo,e,quandoantropófago,porhonra),opostoaoTapuiaestigmatizadocomo
“mau selvagem” (traiçoeiro, indócil, feroz, bravio, canibal por obstinação e maldade),
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oposição que, além de ideológica, informava um projeto de unificação da identidade
nacional, separando também os “assimilados” daqueles resistentes à “civilização”. Tal
substancializaçãodobinômioganhariaforos“científicos”racialistasnaviradadoséculoXIX
paraoXX,comHermannvonIhering(1907:202,203),figuraimportantedodebatesobrea
questão indígenaàépoca,aduzindodiferençasfisiológicasverificáveispelamediçãoetipo
decrânio,sendoqueosGêsseriam“oelementopredominanteentreosTapuias”:
OlitoraldoBrasil,naépocadadescoberta,estavahabitadoporindígenaspertencentes às duas nações: Tupi e Tapuia. Estes últimos, os antigosdonos desta região, tinham sido rechaçados da costa à Serra doMar eparaointeriordopaís,pelospovostupis,queocupavamacosta,desdeafozdoAmazonasatéadoRiodaPrata (...)Adenominaçãode ‘Tapuias’paraospovosquenãoeram tupis, aparentementedeumvalorpráticoapenas, foi reconhecida como sendo bem fundada, pelas investigaçõesmodernas, que nos demonstrar serem estas numerosas tribosaparentadasentresi,nãosósobpontodevistaetnográfico,mastambémcom relação aos seus caracteres físicos. O crânio dos Tapuias édolicocéfalo, o dos Tupis braquicéfalo”, sendo que os Gês seriam “oelementopredominanteentreosTapuias.
Assimseexplicaporque,paracertapartedaintelectualidadeligadaàelitepaulista,
como aponta Monteiro (1992: 128), “aceitar a noção de que os Guaianá eram Tapuia
significava que todo o modelo da nacionalidade defendida pelos paulistas, calcado na
unidade do Tupi-Guarani, podia ser desafiado”, chocando-se frontalmente com um
pensamentoque“idealizavaoTupi–sobretudoodaépocadaconquista–econdenavao
Tapuia”(ibid.:135).Masessenãoeraoúnicomotivodaceleuma.
7.“Adescidaagoraéoutra”(OswaldoCosta,“Adescidaantropófaga”).Aquestãoindígena
paulista não remetia apenas ao passado,mas se relacionava a um “problema” presente,
acarretando,porisso,posiçõesquantoaofuturodospovosindígenasdoestadoedopaís.A
ideia de que os Guaianá não só não eram um povo tupi, como ainda antepassados dos
Kaingang, era “inadmissível no contexto da época, em que o espelho kaingang não
proporcionava o retrato desejado pelos paulistas” (Monteiro, 1992: 128). Refratários à
política assimilacionista que visava convertê-los em mão-de-obra, os Kaingang resistiam
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ativamenteàexpansãoparaooeste,atacandoinsistentementeoscolonosrecém-chegados
eequipese construçãodaestradade ferroNoroeste.Ou seja, aquestão levantava “duas
polêmicas – uma sobre o passado e outro sobre o futuro dos índios” (ibid.: 135), “que
estavamsendodeliberadamentedizimadospeloprocessodeexpansãoparaoOeste”(ibid.:
125), pormeiode “dádas”,massacresordenadospor fazendeirose colonoseexecutados
pelos“bugreiros”emretaliaçãoaosindígenas.
Em“AquestãodosíndiosnoBrazil”, Iheringcaracterizavaesse“conflito”7 comoo
“problema essencial da questão dos índios – a anarquia que atualmente caracteriza as
relações das autoridades nacionais com os índios bravios” (ibid.:125), supostamente
derivada de um “filoindianismo epidêmico” (ibid.: 127), de um excesso de piedade dos
órgãosdegovernoedaopiniãopúblicacomrelaçãoaosKaingang:“Amarchaascendente
danossa culturaestáemperigo; éprecisopor cobroaestaanormalidadequeaameaça.
Protejam-seos índiospacíficos,masgarantam-seaomesmotempoaoscolonosavidaea
propriedade contra assaltosde índiosbravios” (ibid.:113).A “solução”quepropunhaera
tratarestes“índiosbravios”deformadiferentedos“mansos”,pormeiodoseualdeamento
forçado: “O problema consiste em prender ‘fraternalmente’ [as aspas são dele, em uma
ironia ao projeto indigenista de Rondon] esses índios bravios, aldeá-los em condições de
futura existência, e que possam extinguir os costumes criminosos”. Pois, do contrário,
advertia,“osassaltosemassacrescontinuarãonosertãodoBrasilmeridional,e,comoaté
agora, serão os sertanejos obrigados a tratar da própria defesa e do extermínio dos
indígenas”(ibid.:126).Aofimeaocabo,o“futuro”quecabiaaos índioseraadedeixara
indianidadenopassado,numgestopaternalistalevadoacabopelosbrancos:“Oelemento
indígena desaparece do Brazil absorvido pela raça branca. A legislação e administração
pública devem-se inclinar perante essa lição da ciência e da experiência. (...) asmedidas
postasempráticaemfavordosindígenassedevemconsiderar(...)simplesmentecomoum
atodenobrezaedeamordaraçavencedoraparacomavencida”(ibid.:132).
Tratava-se, dessemodo, de catequizar os índios, o que não necessariamente era
sinônimodeconversãoreligiosa(Iheringdiscuteseacatequesedeveserreligiosaouleiga),
7 Asaspassãonossas,poistratava-se,ontem,comohoje,deumainvasãoviolenta,emsituaçãoassimétrica,deterritóriosindígenas–oque,aliás,oprópriovonIheringreconheceaodenegá-lopormeiodeumaquestãoirônica:“Pertenceráaterraaindaaosprimitivosdonos?”(Ihering,1911:129).
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mas sim de assimilação, conversão à “civilização” (leia-se, omundo do trabalho branco).
Lembre-se, nesse sentido, que o aforismo que segue imediatamente a questão do
Manifesto enuncia: “Contra todas as catequeses”. Se a Antropofagia visava, assim,
“[r]eabilitar o índio não catequizado” (Andrade, 2009: 61), poder-se-ia pensar (não sem
razão)que,defato,Tupiornottupithatisthequestionéumfalsodilema,masnãoporque
a resposta seja “Tupi”, e sim, “não tupi”, uma reivindicação do Tapuia. Todavia, como
justamente a questão dos Guaianá, junto à maleabilidade e variabilidade do “binômio”,
demonstravamdemodopatente,distinguiroTupidonãotupi,oTupidoTapuia,o“bom”
do “mau” selvagem, o catequizado do bravio, além de conseguir equacionar os termos
dessesbinômios,eratudomenosquefácil.EisoqueOswaldacentuará,pois,numaespécie
demantra, uma variação do bordão anti-catequista se repetirá duas vezes noManifesto:
“Nunca fomos catequizados”, como que a marcar positivamente a inconstância da alma
selvagem,ou“aabsoluta inconstâncianocumprirosdeveresouocupaçõesespontâneas”
(Ihering,1911:119)que Iheringatribuiaos índios recém-aldeados,ouseja,a resistênciaà
assimilaçãopresenteepersistentemesmoentreaquelessupostamente catequizados. Isso
porque a rejeição à catequização não necessariamente aparecia de forma categórica no
comportamento dos índios, estando mais relacionada a uma instabilidade pela qual se
mostravam ”[c]ontra a verdade dos povos missionários”, fosse ela religiosa ou laica.
ViveirosdeCastroargumentouqueomotivopeloqualhaviatantadificuldadeemconverter
osTupinambáaocristianismonãoeraadescrençaaodogmacristão,masaindiferençaao
dogma em si: entre eles, “a palavra de Deus era acolhida alacremente por um ouvido e
ignorada com displicência pelo outro” (Viveiros de Castro, 2002: 185). A reabilitação do
“índio não catequizado”, portanto, era a reivindicação não de uma parcela (em termos
substanciais)dosíndios,osnão-tupi,massimdessarecusaindígenaativaà“catequese”que
persiste e resiste mesmo ali onde ela parece ter se realizado: “Com toda a coação e a
libidinagemdagentebranca,nãofoi,noentanto,destruídooquemelhorrestavanonatural
das Américas. A sua cultura resistiu no fundo das florestas, como na recusa a toda força
escravizante”. A questão indígena do Manifesto não visa acomodar o índio no nosso
passado,elegendoumaraça fundadora (Tupi),nemtampoucodarum lugaraos índiosno
nossopresente,mas,partindodalutapassadaepresentedeles,criarroteirospossíveispara
o nosso (nosso e deles) futuro: “Só o selvagem nos salvará. Essa força profunda que
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sentimosequecumpreconservar,lutandosempre,édele,nosveiodele.Acatequesenão
tirou o índio domato. Ele ficou na floresta e dela só agora saiu para a vitoriosa descida
antropofágica”. Nesse sentido, o que os antropófagos estavam propondo era uma outra
“descida”(termoquedesignavaosdescimentosoureduções,ouseja,capturaealdeamento
de indígenas), uma descida de outra ordem, em sentido oposto aquele apregoado por
Ihering:“Háquatroséculos,a‘descida’paraaescravidão.Hoje,a‘descida’paralibertação”.
A nosso ver, agora estamos em condições de entender a série de deslocamentos
simultâneosqueOswaldproduzaoseapropriardaquestãoindígenapaulista.Emprimeiro
lugar,maisobviamente,tratava-sedeumsarcasmoemrelaçãoàpretensãodaelitepaulista
de postular como sua origem os Tupi (leia-se, “mansos”) para depois descobrirem-se
dependentesdenão-tupi,tapuia,bárbaros(“bravios”),umpovocujosremanescentesagora
se encontravam em guerra contra seus (da elite) interesses. Além disso, e mais
fundamentalmente, tratava-se de baralhar os termos (Tupi e Tapuia, manso e bravo),
ressaltandopor todooManifesto a ferocidade, resistênciaanti-coloniale canibalismodos
Tupinambá:“nãooelogiodo‘bomselvagem’masdomau”(Andrade,1974:202).Assim,a
deglutiçãodoBispoSardinhapelosCaetés,povotupi,utilizadacomomarcozeroparadatar
otextooswaldiano,nãodeixadeecoarumamortemaisrecentedeumoutromembrodo
clero, o Monsenhor Claro do Amaral, perpetrada justamente pelos Kaingang quando ele
estava em uma expedição catequista... Por último e como consequência, tratava-se de
questionar toda a lógica binária e substancialista (do ser) da identidade e da origem que
subjaziaaformulaçãocolonialenacionalistadaoposiçãotupi-tapuia.
8. “Verde e amarelo dá azul? / Não, dá azar” (Oswald de Andrade). Que a questão do
Manifesto estivessecolocandoodedona feridadaquerelapaulistae suaspremissas, fica
patente na resposta a ele dada pelo indianismomodernista proto-fascista. Referimo-nos
aqui ao Nheengaçu Verde-Amarelo, ápice quase cômico da depuração colonial e depois
nacionalistadobinômiotupi-tapuia.“Ostupisdesceramparaseremabsorvidos”,lemosali,
como se tivessemsidoaldeados voluntariamente, “[p]ara sediluíremno sanguedagente
nova. Para viver subjetivamente e transformar numa prodigiosa força a bondade do
brasileiroeseugrandesentimentodehumanidade”.Eemumacontraposiçãoexplícitaao
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Manifesto Antropófago, a anta e sua herbivoria, no lugar do canibal e sua antropofagia,
aparececomosímbolotupi:“Seutotemnãoécarnívoro:Anta.Éesteumanimalqueabre
caminhos, e aí parece estar indicada a predestinaçãoda gente tupi” (emSchwartz, 2008:
181).Lembremosque,nomanifestooswaldiano,aocontráriodopacifismoedaassimilação,
éavingança(passadaeapregoada)quedáotom,comojabutiocupandoolugardaanta:
“Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos
comendo,porquesomosfortesevingativoscomooJabuti”.Ora,équasecertoqueOswald
estivesse remetendo a uma série de mitos referentes ao jabuti coletados por Couto de
MagalhãesemOselvagem,oprimeirodosquaissendoorelatodecomoele,ojabuti,após
a anta querer lhe expulsar de onde colhia seu sustento e enterrar-lhe, pacientemente
aguardaconseguirsairdaterra,apersegueevinga-sedela(cf.CoutodeMagalhães,1975:
115 e ss8). Ou seja, noManifesto Antropófago, a anta aparece como elemento invasor,
colonial,paraoqual,maiscedooumaistarde,chegaráasuahora.MasoNheengaçuVerde-
Amarelo não para por aí, a sua “antologia” – para usar o título de um mordaz artigo
oswaldianoqueatacavirulentamenteomodernismoreacionáriotravestidodeindianismo–
prossegueemtomnheengaíba,defalaatravessadaetorta:“Otupisignificaaausênciade
preconceitos.Otapuiaéoprópriopreconceitoemfugaparaosertão.(....)Otapuiaisolou-
se na selva, para viver; e foi morto pelos arcabuzes e pelas flechas inimigas. O tupi
socializou-sesemtemordamorte;eficoueternizadonosanguedanossaraça.Otapuiaé
morto, o tupi é vivo. (...) Todas as formas de jacobinismo na América são tapuias. O
nacionalismo sadio, de grande finalidade histórica, de predestinação humana, esse é
forçosamente tupi. Jacobinismo quer dizer isolamento, portanto desagregação” (em
Schwartz,2008:181-2).Otupiseriaassim“araçatransformadoradasraças,eissoporque
não declara guerra, porque não oferece a nenhumadas outras o elemento vitalizante da
resistência” (ibid.: 183). Cremos ser suficiente. Para além de todos os problemas (e
falsificações), o problema é que os verdeamarelos erraram o alvo, achando que Oswald
tomara partido dos Tapuia, fosse de forma direta, reivindicando o “not tupy”, fosse
indiretamente, tomando como tupi (o jacobinismo, a resistência à assimilação) o Tapuia,
quandoOswaldestavabaralhandoostermos.OTapuia-para-Oswaldpoderiaseropróprio
8Note-sequenaversãotranscritaemnheengatu(segundaparte, fac-similar,pp.175ess),otermotraduzidocomo“seusenhor”,“seupai”é“iara”–voltaremosaisso.
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Tupi, entendido nos termos verdeamarelos como “a força centrípeta” (ibid.: 184), afinal,
tratava-se de reivindicar o seu oposto: a resistência indígena como força centrífuga, que
refugaaunificação.
9. “Antropofagiaé simplesmentea ida (nãoo regresso) aohomemnatural (...)Ohomem
natural que nós queremos pode tranquilamente ser branco, andar de casaca e de avião.
Como também pode ser preto e até índio. Por isso o chamamos de ‘antropófago’ e não
tolamentede‘tupi’ou‘pareci’”(OswalddeAndrade,RevistadeAntropofagia).Éimportante
salientarqueaquestãoéaúnicavezemqueapalavra“tupi”aparecenoManifesto,oque
já abala a sua aparência de lema identitário. Havia uma evitação deliberada do termo
enquanto bandeira pelo movimento antropófago, devido à hipóstase indianista e
nacionalistapelaqual apalavrapassara, vindoaunificarumamultiplicidadedepovos (os
diversos e diferentes grupos tupi-guarani) e excluir uma vasta gama deles (os Tapuia, os
não-tupi),alémdemetonimicamentecarregarapretensãodeumaunidadeda identidade
nacional.A substancialização, aglomerando centripetamente sobreumconjuntodepovos
convertidosemumsó,sobreuma família linguísticaunificada,centravanoTupi,os índios,
situando-o, ademais, no passado, como “assimilado” a Nação e sua história. Em jogo na
recusaantropófaga,assim,estavaa reivindicaçãodospovos indígenase suascosmologias
nãocomoumaidentidadeaserafirmada,massimcomopráticascontraaunificação.Pois
tratava-se de trazer a questão indígena, e o passado, ao presente, apontar a sua
contemporaneidade para poder construir futuros. Assim, devemos lembrar, como
apontamosacima,queaquestãodoaforismoéumexercíciotradutório,detransposiçãoe
superposição de línguas. Nesse sentido, ele remete à única citação aparentemente em
língua(s)indígena(s),supostamenteem“tupi”,queconstanoManifesto,equedevemosler
tendocomopanodefundotantoapadronizaçãocolonialdonheengatu,aboafala(oufala
bonita),quantoapaixãofilológicadoindianismoromânticoporela:
CatitiCatitiImaraNotiáNotiáImaraIpeju
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ExtraídodeOselvagem(CoutodeMagalhães,1975:89),essetrechoda“Cançãoda
LuaNova”(queinspiraratambémumpoemadeMachadodeAssis),comoexplicaopróprio
CoutodeMagalhães,nãoétotalmenteoupuramenteem“tupi”,ouaomenosnãonasua
formacodificadagramaticalmentepelosbrancos,sendo-lheimpossívelcompreenderalguns
versos: “Como são curtas, aqui transcrevo [as canções de invocação a Rudá e seus dois
satélites] tais quais as vi, ou parecendo-meque, ou a língua está adulterada, ou é algum
fragmentodetupianterioràstransformaçõesporquejátinhapassadoalíngua,quandonos
foi conhecida, porque palavras há que não entendo” (ibid.: 88). A canção, assim como o
Tupyornottupy,épossivelmenteemmaisdeumalíngua (e lembremos,novamente,que
“tupi(-guarani)”designaumconjuntomúltiplodepovoselínguas,enãoumasólínguaeum
só povo unificados). Não é à toa que ela leva Couto deMagalhães a refletir, com vários
exemplos, sobre as transformações pelas quais as línguas passam “quando entram em
contatoumascomasoutras,confundindo-seoselementosesignoscaracterísticos”.Emais:
essacançãodeinvocaçãoàLuaNovafoitransmitidapeloquepareceser,devidoàposição
social,umabranca,outalvezumamestiça:a“mãedosr.coronelMiranda,ex-tesoureiroda
ThesourariadaFazendadoPará, senhora respeitávelde cercade70anosde idadeeque
resideemBelém”(ibid.:86).Serão,portanto,osversosemtupiounão?Tupyornottupy?A
quemcabeatestar isso?AquemcabedeterminaroqueéTupi,oqueé índio?Aquestão,
vistaassim,émaisumavezeminentementeirônica,jáque,dizoManifesto“nuncativemos
gramáticas”: toda pretensão de comprovação de autenticidade, toda reivindicação de
origem,todapurezaéummito,comodiráHélioOiticica.Valeaduzirqueumdoscernesda
polêmica paulista tupi-tapuia era justamente linguístico: o fato de documentos coloniais
assinalarem que os Guaianás compreendiam seus vizinhos Carijós, povo guarani; e que,
além domais, a linha de corte da língua (tupi / não-tupi) foi crucial na substancialização
opositivaTupi-tapuia,primeironoempreendimentocolonialedepoisnacriaçãodoideário
nacional:“Desconsideradascomoobjeto(instrumento)dacatequeseoudacolonização,as
línguas outras foramentendidas num todo genérico e indefinido a que imprimiram (...) o
nome de Tapuia, isto é, ‘aqueles que falam a língua travada’: a ‘barbaria’. A imensa
heterogeneidade dos povos habitantes das terras interiores da região Nordeste, era
compreendida, então, como um mundo da ‘alteridade’ em relação ao universo tupi”
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(Puntoni, 1998: 10). A questão oswaldiana, portanto, visava colocar em questão –
questionar, e não afirmaruma identidade.O Tupi, tal como concebidopelonacionalismo
românticoe integralista, enquantoorigemeunidade,eraumaconstruçãoque ignoravaa
transformação e a multiplicidade, tanto aquilo que está entre o ser e o não ser – a
metamorfose, o devir –, quanto aquilo que está entre o Tupi (enquanto arquétipo
nacionalista do índio unívoco) e o não-tupi (o branco, ou o Tapuia), e mesmo entre os
diversoscoletivostupi:amultiplicidadedepovoselínguasindígenaseseusagenciamentos
econflitoshistóricoseatuaiscomosbrancos.
10.“Aantropofagianãoéumdecalque românticodo índio.Nãoéadeformação líricado
índio. Ela arrancou do bravo tupi das ficções literárias a camisa dos sentimentos
portugueseseasmiçangasdacatequese.Botouelenovamentenu,comoconvinha”(Revista
deAntropofagia). Amesmaevitaçãoestratégica sedava com relação ao termo “índio”. É
sintomáticonessesentidoque,paraumManifestoaindahojemuitasvezeserroneamente
consideradocomodeumindianismoingênuoounaïf,apalavra“índio”apareçaapenastrês
vezes,eemapenasdoisaforismos,todasdeformanegativa,comocríticaaumaconstrução
unificadoraeassimilacionistadafiguraindígena:
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido desenadordoImpério.FingindodePitt.OufigurandonasóperasdeAlencarcheiodebonssentimentosportugueses.(...)Contraoíndiodetocheiro.OíndiofilhodeMaria,afilhadodeCatarinadeMédicisegenrodeD.AntôniodeMariz.
Háduasformas,não-excludentes,decompreenderoprimeirodosaforismos.Uma
delas,comoapontamosacima,éverneleumaremissãoàinconstânciadaalmaselvagem:a
aparentecatequese,ouassimilação,podeserevelar umjogodecena,um“carnaval”dos
índios, numa atitude perante a catequização caracterizada por Viveiros de Castro (2002:
195) como “crer sem fé”: o “problema da conversão religiosa dos indígenas poderia
também receber alguma luz daí. A experiência indígena da ‘aculturação’ parece focalizar
mais a incorporação e a encorporação de práticas corporais ocidentais – alimentação,
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vestuário, sexo interétnico, a linguagemcomocapacidade somática–quea ideiadeuma
assimilação espiritual” (ibid,: 390-1). Etnografias recentes (cf. Albert e Ramos, 2002) têm
apontadocomoaabsorçãodeelementosocidentais,entreosquaisaprópriareligião,sedá
emoutrostermos,nostermosindígenas,nosquaisarelaçãonãovisaaestabilização(uma
novasubstância)esimatransformação:“Seoseuropeusdesejaramosíndiosporqueviram
neles,ouanimaisúteis,ouhomenseuropeusecristãosempotência,osTupidesejaramos
europeus em sua alteridade plena, que lhes apareceu como uma possibilidade de
autotransfiguração” (ibid.: 206). A catequese funciona – mas não como os brancos
imaginam...Afinal,“[t]odaaliteratura,mesmoamissionária,quenoséculoXVIencheude
novidadeomundo,aquipermaneceuparaescândalodomundovestidoealgemadoquenos
traziam”. O outro modo de compreendê-lo, assim como ao segundo aforismo citado,
consisteemvernelesumacríticaàoperaçãoideológicalevadaacabopelaintelligentsiade
“vestir” os índios, operação falha, pois as roupas nacionalistas, cristãs e ocidentalizantes
visivelmente não passam de fantasias de carnaval colocadas a contragosto nos índios...
Tomemos Peri, a última das diversas referências a índios “vestidos” pela roupagem
ideológicaqueaparecemnosdoisaforismos(JuanDiego,Paraguaçu,etc.)..Personagemde
O Guarani (1857), romance de José de Alencar, ele aparece como chefe dos Goitacá e
apaixona-seporCeci,filhadofidalgoportuguêsD.AntôniodeMariz.Caracterizadonotexto
como“umcavalheiroportuguêsnocorpodeumselvagem”(Alencar,1996:30),Periéum
símbolodaconstruçãodaimagemindígenadentrodofigurinoocidental,“índiodepapelão
que originou outra coisa de papelão também, essa ópera de Carlos Gomes!” (Andrade,
1974: 202-203). Sua bravura, beleza e honra combinam-se com sua total entrega ao
colonizador, a aceitação da religião cristã e sua recusa da antropofagia. Nesse sentido, é
relevanteresgataramaneiracomoAlencarabordaoritualcanibal.AmortedeumaAimoré,
provocadaporDiogo,irmãodeCeci,motivaodesejoporvingança,iniciando-se,assim,uma
guerraentreosAimoréeosbrancos, ladoemquetambémestáPeri.Diferentementedos
Goitacá,osAimoré sãodescritos comouma“naçãodegenerada” (Alencar, 1996:156),na
qual reina a “ferocidade e o espírito vingativo” (ibid.: 136), em suma, a antropofagia:
“Guerreirogoitacá, tuésprisioneiro; tua cabeçapertenceaoguerreiroAimoré; teu corpo
aos filhos de sua tribo; tuas entranhas servirão aobanqueteda vingança Tu vaismorrer”
(ibid.: 203). Mas, n’O Guarani, corrompe-se a lógica do ritual antropófago – no qual a
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vingançaporumamorteindividualeraaformademantersemprevivoocorposocialeas
relaçõesqueestemantinhacomoutrosgrupos,emsuma,odevirinterminável,comovimos.
Peri envenena a simesmo para que, nomomento em que sua carne fosse devorada, os
Aimorése intoxicassememorressem.O índio“vestido”,o tupi idealizado,éanegaçãoda
Antropofagia.
Assim, se “Portugal vestiuo selvagem”,eagora “[c]umpredespi-lo”,não sedeve,
dadooque jáexpusemosatéaqui, tomaressegestocomoumadefesada“nudez” literal
e/ousimbólicaenquantopretensãodeautenticidade.PoisemboraoManifestoafirmeque
“[o] que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o
mundoexterior”, apregoando, logoa seguir, “[a] reação contraohomemvestido”,oque
estáemjogosãoduaslógicasdistintas,doismodosdeserelacionarcoma“roupa”,comos
“hábitos”: “Contra o animal que se veste, o animal que se enfeita”, lemos naRevista. O
fantasiar-sedocarnavaléummododistintodelidarcomaroupadoqueouniformizar-se:
despiro índionãoaponta,assim,paraumaaçãopaternalistadeemanciparos índiosreais
(afinal,porbaixodasvestimentas letradasoudacatequese,o“espíritodeluta”subsistee
persiste), mas antes para uma ação libertadora do índio simbólico no imaginário letrado
paradaravero índioemnós,paradaraverquepodemostrocarde“roupas”,oumelhor,
quepodemosnão vesti-las,masenfeitar-nos comelas.Não se tratade “salvar”os índios
dos “hábitos” dos brancos (pois, ao contrário, só o selvagem nos salvará),mas se deixar
contaminarpelosseusepelosmodoscomosquaiselesseapropriamemseustermosdos
nossos,invertendoo“Errodeportuguês”numdiadeSolqueaAntropofagiaanuncia:
QuandooportuguêschegouDebaixodeumabrutachuvaVestiuoíndioQuepena!FosseumamanhãdesolOíndiotinhadespidoOportuguês.(Andrade,1972:115)
11.“AntesdosportuguesesdescobriremoBrasil,oBrasiltinhadescobertoafelicidade”.Há,
porém,umaexpressãoindígenanoManifestoquepareceassumircontornosidentitários,a
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saber,apalavra“caraíba”,quecompareceemquatroaforismos:1)“QueremosaRevolução
Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na
direçãodohomem.SemnósaEuropanãoteriasequerasuapobredeclaraçãodosdireitos
do homem.”; 2) “Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Où Villegaignon print terre.
Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à
Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling.
Caminhamos.”;3)“OinstintoCaraíba.”;4)“Éprecisopartirdeumprofundoateísmoparase
chegar à ideia de Deus. Mas o caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.” A quase
totalidadedosestudiososquesedetiveramsobreapresençadotermonoManifestootoma
como uma referência aos Caribe (também conhecidos como Caraíba), povos não-tupi,
embora talvez também não-tapuia (povos não-não-tupi?). Assim, tratar-se-ia de uma
remissãoàquelaspopulaçõesameríndiasaquemprimeiroseatribuiuaantropofagia,edos
quais deriva o termo canibal. Como se sabe, Cristóvão Colombo, ouvindo os índios Taino
falaremdeseusvizinhoseinimigoscomopraticantesdaantropofagia,os“Cariba”(palavra
que,como“taino”,eumasériedeoutrosauto-etnônimos,significasimplesmentehomem,
pessoa, gente, funcionando pronominalmente), num erro de escuta (afinal, “[a] gente
escreve o que ouve – nunca o que houve” (Andrade, 2011a: 62)), anota: “Caniba”, e
“canibales”,entendendotambémqueestesestavamemguerracomograndeCã...Mesmo
que posteriormente a prática de canibalismo entre os Caniba/Cariba/Caribe fosse
desmentida pelo próprio Colombo, a palavra “canibal” e sua associação com os povos
ameríndios permaneceu, entrando no léxico demuitíssimas línguasmodernas –mais um
exemplo,juntocom“índio”e“tapuia”,dodesencontroquefundaapercepçãoenomeação
dospovosorigináriospeloseuropeus.9
9 “Colombo!”,escreveGastãoCruls(1938:88-9;grifosdoautor)noseudiário(posteriormentepublicadocomoo livroAAmazônia que eu vi: Óbidos – Tumucumaque) a 12 de outubro de 1929, ou seja, contemporâneo àAntropofagia: “Volto os olhos para o passado e vejo algumas caravelas aportando, em 1493, quando da suasegundaviagem,aomardasPequenasAntilhas.FoiaíqueeleteveoprimeirocontatocomanaçãoCaraíba,araçavalorosae forte,queemgrandepartepovoouaGuianaecomosdescendentesdaqualaindaagoranosdeveremosencontrar.Parecequeesses indígenasnãoeramprimitivamente insulares.NaopiniãodeVondenSteinen,elestiveramberçonaMesopotâmiacompreendidaentreoMadeiraeoXingu,esómaistarde,grandeshordas da sua gente rumarampara o norte, caminho daGuiana, e se afoitarammesmo até omar. Assim seexplicaque sejam tambémcaraíbasosBaikiri doXingueosPalmelladoMatoGrosso. É aessaNação,muitoaguerridaederitualimpiedosonosacrifíciodosvencidosquesedeveafamadaAntropofagia,espalhadamaistardepelo conquistador, a todosos outros indígenas.Calinagua, Calina, Calibe, Caribe e, finalmente,Caraíba
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Ainterpretaçãoquetoma“Caraíba”comoremetendoaosCaribeouentãoàprática
do canibalismo a eles associado, numa postulação do mau selvagem, se coaduna com
apariçõesdotermonaRevistadeAntropofagia.Porexemplo,éemreferênciaexplícitaaos
CaribequeOswaldoCosta,em“A‘descida’antropófaga”,mencionaos“Caraíbas”deforma
reivindicatória,citandoaHistóriadoRioAmazonas,deSantaRosa,naqualéditoqueeles
“se opuseram a que Diogo de Lepe desembarcasse, investindo contra as caravelas e
reduzindoonúmerodeseustripulantes”.Enoverbete“guerra”, lemos:“Anaçãocaraíba,
de tacapenamunheca,olhaascomidasquevempulando.E ferveocauim.Gulosíssima”,
como se os Caribe, ocupando o papel desempenhado pelos Tupi nas formulações
românticas, embora de forma invertida (trata-se agora, repitamos, do mau selvagem),
servissemdemetonímiadospovos indígenasedo ideáriocanibal.Dessemodo,diziamos
antropófagos, “[c]ontinuamos a tradição caraíba interrompida pela descoberta e durante
quatro séculos sufocada pela influência perniciosa da conquista espiritual. Contra
Ararigboia,soldadodeCristo–CunhambebeeoscaetésquecomeramoBispoSardinha”.
Comosevê,àdiferençadaselaboraçõesnacionalistas,o índio (“Caraíba”)nãoservemais
comofiguraemtornodoqualseestabeleceumaunidade;antes,demarcaumconflitotanto
externoquanto interno, “o conflitoexistenteentreoBrasil caraíba, verdadeiro,eooutro
quesótrazonome.PorquenoBrasilhádedistinguiraelite,europeia,dopovo,brasileiro”.
Todavia, se com “Caraíba” Oswald estivesse se referindo a um conjuntomais ou
menos específico de coletividades indígenas, qual seria o motivo dessa escolha,
especialmente tendo em vista que o horizonte referencial que ampara a Antropofagia é
constituídopelosTupinambá(Cunhambebenãopertenceexatamenteàtradiçãocaraíba)?
Ditodeoutromodo:seo“BrasilCaraíba”éodosCaribe,apresençadestesnãofoiatestada
onde Villegaignon aportou, a França Antártica da Baía de Guanabara, território tupi:
“Filiação.OcontatocomoBrasilCaraíba.OùVillegaignonprintterre”(diga-sedepassagem
que esse aforismo deixa claro, como estamos argumentando, o não-nacionalismo do
Manifesto, que se filia àhistóriado contatodoelementoautóctonenãocomoelemento
foramosváriosnomesqueseamalgamaramparadaroespantalhocannibal,dequetantoseserviramespanhóiseportuguesesparaseexculparemdosatrozesprocessosusadosnacivilizaçãodonativo”.
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português,esimcomo(mais)estrangeiro,emespecial,ofrancês10).Talvezdevidoàpouca
familiaridade com a etnologia, os críticos literários que se detiveram a comentar e
interpretaroManifesto(exceçãofeitaaBeatrizAzevedo)ignoraramqueapalavratinhaum
sentido bemmais corrente na bibliografia colonial de que Oswald dispunha e bemmais
condizente com oManifesto: entre muitos povos tupi-guarani do tempo da Conquista,
“caraíba” (e variantes, como karaí) designava um tipo especial ou específico de pajés,
cantadores maiores ou principais, glosados pelos cronistas como profetas. Que essa
acepçãodotermonãofossedesconhecidadocírculomodernistadeOswaldseatestapela
sua presença noDicionário musical brasileiro, deMário de Andrade: “Feiticeiro entre os
índiosbrasileiros.Eramoscantadoresprofissionaisdatriboeiniciavamoscantosreligiosos
docerimonial,bemcomoacuradosdoentes”(Andrade,1989:114).Mais importanteque
isso, referências ao xamanismo abundam noManifesto: “A magia e a vida. Tínhamos a
relaçãoeadistribuiçãodosbens físicos,dosbensmorais,dosbensdignários.Esabíamos
transporomistérioeamortecomoauxíliodealgumasformasgramaticais”(grifosnossos).
Ouentão:“Nãotivemosespeculação.Mastínhamosadivinhação.TínhamosPolíticaqueéa
ciência da distribuição. E um sistema social-planetário” (grifos nossos) – sistema social-
planetário, ouoquea antropologia recente temchamadode “cosmopolítica indígena”, a
consideraçãodocosmoscomocompostodeagenteserelaçõessociaisepolíticas(cabendo
aoxamãopapeldediplomaciaoudaguerracomessessujeitosoutros).Poderíamoselencar
outras, que revelam ou a intuição etnológica de Oswald, ou, mais plausivelmente, sua
leitura atenta (mesmo que não sistemática) das fontes coloniais, como “Só podemos 10Verainusitada“HistóriadoBrasilem10Tomos”,deJaymeAdourdaCâmaranaRevistadeAntropofagia,quenão passavam de nove curtos parágrafos, alguns de apenas uma frase, dedicados a Rocha Pombo, um dosrepresentantes do que se costuma chamar de história oficial. Nela, ao desleixo da colonização portuguesa éopostaadescobertadopaís,a“segundavezpelosfranceses”(IV),que,aocontráriodoslusos,entenderam“asignificaçãodonovopaís”(VIII):“EnquantoPortugalnosenviavaosseuscolonos,daFrançavinhamaténósosseusmelhorescavalheiros.(…)EdasbrumasdanovaterrafoisurgindoaFrançaAntárctica”(VII).Aforçadestemarco inaugural teria sido tamanha que, mesmo depois da expulsão dos franceses (“Dolorosa foi essaseparação. Separação vital, tremenda!” – VIII), semanteve uma “ligação filosófica da França eterna ao Brasilnovoemisterioso”(X),quevaideMontaigneatéosurrealismo,passandoporRousseau:“AAméricarevelouàEuropaohomemsimples,ohomemnatural,integradonasuamáximaexpressãodeliberdade”(X).AquiloqueoBrasilapresentavaàFrançacarregadade“história”(eestaligaçãoéoúltimo“tomo”denossahistória)nãoeraum estágio pré-histórico a ser restituído (o “primitivo”), mas “o homem natural, integrado na sua máximaexpressãodeliberdade”,istoé,apossibilidadedefazerhistória:“EaqueleshomenssimplesmandadosdoBrasilàcortedeFrança,nacoroaçãodoRei,estranharamquesedignificasseohomemfracoemirrado,deixandoaseulado o homem forte que tudo pode. E esse reflexo do homem forte e simples impressionou o espírito dosfilósofos.Montaigne.Eoqueeraumamerasugestão,maistardesepositivounumacampanhareivindicadora”,ouseja,naRevoluçãoFrancesa.Voltaremosaisso.
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atenderaomundoorecular”,ouaindaaideiaperspectivistadeque“Oespíritorecusa-sea
conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo”. Seria possível também aludir à
presença do xamanismo na Revista de Antropofagia, como nessa deliciosa passagem:
“Todasasreligiões.Masnenhumaigreja.E,sobretudo,muitafeitiçaria”.Emaisdoqueisso,
poderíamosargumentarcomoOswaldmaisoumenosacertadamenteaproximavaopróprio
ritual canibal do xamanismo: o guerreiro tupinambá, diz ele numa entrevista, “sempre
comeuaquelequelhepareciasuperior.Aquele,donodequalquerdomsobrenatural,sobre-
humanoqueofaziaaproximar-sedospajés.(...)OfimquereservamosaPeroVazSardinha
temumaduplainterpretação:era,aumtempo,admiraçãonossaporele(representantede
umpovoqueseesforçaraporderrubaraquelepresenteutópico,quefoidadoaoHomem
aonascer,equesechamaFelicidade)eanossavingança.Porque,queelesviessemaquinos
visitar,estábem,válá;masqueeles,hóspedes,nosquisessemimpingirseusdeuses,seus
hábitos, sua língua... isso não! Devoramo-lo. Não tínhamos, de resto, nadamais a fazer”
(Andrade, 2009: 66-7). Contudo,paranossospropósitos, bastanosdetermosbrevemente
emumdosaforismosqueestamostratando:“Éprecisopartirdeumprofundoateísmopara
sechegarà ideiadeDeus.Maso caraíbanãoprecisava.Porque tinhaGuaraci”. “Caraíba”
aqui indica claramente a posição xamânica de diálogo com o sobrenatural, na figura de
Guaraci (o/a Sol), umdos seres que formamo sistema social planetário tendencialmente
antropomorfo, mais especificamente, “a mãe dos viventes”, como glosa o próprio
Manifesto.
Como dissemos, “caraíba” nomeava, geralmente, uma categoria específica de
pajés11,caracterizados,emprimeirolugar,peloseualtopodertransformador,tornando-os,
assim, semelhantes aos demiurgos transformadores ou heróis culturais damitologia tupi-
guarani, algumas vezes referidos também como caraí (veja-se por exemplo, o karaí da
cosmogoniaguarani coletadaporCadogán): “Ospoderesque lhesatribuíamevocavamos
dos caraíbasmíticos; assim como esses últimos, passavam por transformadores: capazes,
por exemplo, como narra Thevet, de mudar os homens em pássaros ou animais, ou de
metamorfosear a si próprios (de preferência em jaguar, entre os chiriguanos)” (Clastres,
11 Estamos cientesdequeadivisãodos xamãs tupi-guaranido tempodaConquistaem tiposoucategorias éhoje,nomínimo,contestável (cf.Sztutman,2012,eViveirosdeCastro,2002:201ess); todavia,optamospormantê-laparafinsheurísticos(emboramesmonanossaargumentação–enoManifestooswaldiano–,osentidodecaraíbadeslizedeumxamanismomaisgenéricoparaummaisespecífico,leia-se,profético).
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2007: 53). Isso explica porque, por extensão, a palavra foi (e continua sendo) aplicada
igualmenteaosbrancos(ouumconjuntodeles,ouosseussacerdotes)queaquichegaram,
vistostambémcomoserespoderososeextraordináriosedotadosdeartefatosigualmente
potentes. Oscilando entre o tempomítico e o tempo histórico,movimento constante no
Manifesto, que sobrepõe referênciashistóricasemençõesao “paísdaCobraGrande”, ao
“mundonão-datado”,etc.,eentreoíndioeobranco,emsuma,entreotupieonão-tupi,
“caraíba” se apresenta como um terceiro termo que põe em questão, ou transforma em
termosindígenas,aquestãoindígenatalcomovistapelosbrancos:obrancocomocaraíba
nãoénão-tupi,masobrancotalcomofoivisto,transformadopelooutro,pelostupi,uma
figura (ou figurino) tupiparaosbrancos.E,de fato,argumentaHélèneClastres (2007:50-
52),oscaraíbaeramalgocomo“terceiros”,osoutrosdosoutros,pois,isoladosgeográficae
socialmente das aldeias, vivendo nomadicamente sem pertencer ou se identificar
plenamenteanenhumacomunidade,estesxamãspossuíamumestatutoextraterritorial:
[E]sse isolamento deliberado era uma maneira de marcar que elespossuíam um estatuto à parte, que, de fato, não pertenciamverdadeiramenteaumacomunidade,quenãoeramdelugaralgum.Comefeito, eles não só viviam afastados numa morada feita para seu usoexclusivo, como ainda permaneciam pouco tempo na mesma aldeia.Todos os autores insistem na sua vida errante e Thevet, por exemplo,trata-osde‘vagabundos’(...)nãosópodiampercorrertodasasaldeiasdeuma ‘província’ [conjunto de aldeias aliadas], mas também dirigir-se aaldeiasinimigas.(...)Essaduplaliberdadedoscaraísquantoaoespaço–exteriores à aldeia e exteriores à ‘província’ – é o sinal deumestatutoduplamentemarginal. Pelo menos idealmente, seu estatuto tornava-osexterioresàsaliançaspolíticaseexterioresaoparentesco.Poisestarforada comunidade não significa apenas morar afastado; ou melhor, essepróprio afastamento só comparece para manifestar uma exterioridademaisprofunda:aquesituaoprofetafora,dopontodevistasocial(enãoapenas espacial), do que precisamente constitui uma comunidade: darededeparentesco.//Aimpressãoquenosficadaleituradetodosessestestemunhosédequenuncasesabedeondevêmoscaraís:nemdequallugardoespaço,nem–porconseguinte–dequepontodagenealogia.Indo e vindo constantemente, portanto, sem residência, estão em todaparteeporissomesmoemnenhumlugar.RecordemosoqueLozanodizaseurespeito:queàsvezeselesafirmavamnãoseremnascidosdepai,mas somente de mãe (...) não ter pai significa, para os tupis-guaranis,patrilineares,nãoterparentes.Nascerdemulherpode,emcompensaçãoser aceito semmaiores dificuldades: não, como afirma Lozano, porquehouvetestemunhasdonascimentoetalevidêncianãopodesernegada,masporqueamãe tempouca importância, tanto ‘naturalmente’ (nãoé
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geradora, mas mero receptáculo) como socialmente (não é por seuintermédio que a pessoa se insere no parentesco). De modo que,enunciandotal‘pretensão’oscaraísnãofaziammaisdoqueexprimiroureivindicaroestatutoidealque,efetivamente,eraoseu.12
Alongacitação,quesejustificaporconterumasériedeelementosquenosservirão
deroteiroparafinalizaroargumento,começaadeixaraindamaisclaraaescolhadeOswald
pelotermo(alémdoxamanismogenérico):aoinvésdepostularmaisumametonímiapara
ospovosindígenas,tratava-se,aocontrário,deafirmar,aumsótempo,anão-totalidade(a
resistênciaàcatequese,ouoconflitoquevimosaoexploraraoutraacepçãodecaraíba)ea
quebra de um pertencimento identitário único, fosse ele genealógico-histórica (passado),
fosse ele sócio-político (presente): “nunca soubemos o que era urbano, suburbano,
fronteiriçoe continental”.Ocaraíbaé,emumsentido, (uma figura) tupi,mas,aomesmo
tempo,emoutro,nãotupi(poisperfura,parafora,seuslimites).13
Mas a extraterritorialidade de origem dos caraíba era também a que visavam
produzirentreaquelesaosquaiscantavam.Estamosnosreferindo,éclaro,àrazãopelaqual
os colonizadores os chamavam de profetas: a pregação e busca da Terra sem Mal
promovida pelos cantores caraíba, que lideraram migrações (muitas em massa, e em
diferentes sentidos,é importante salientar: erammuitosos roteiros).Aoque tudo indica,
nascosmologiastupi-guaranipré-profetismo,aTerrasemMaleraumlugarreservadopost-
mortemapenasaosgrandesguerreiros,aquelesquecontabilizavammuitasmortes–leia-se,
muitos nomes, muitos rituais canibais. O que os caraíba passaram a apregoar era que o
acessoaelanãoestavamaisrestritoaosguerreiros,possuindouma“localizaçãogeográfica
precisa”esendoagora“acessívelaosvivos,aondeerapossível, ‘sempassarpelaprovada
morte’, irde corpo e alma”. (Clastres, 2007: 31; grifo da autora). Beatriz Azevedo (2016:
162-4) já sublinhoucomoabuscadaTerra semMalestápresentenumdosaforismosdo
Manifesto: “Asmigrações.A fugadosestados tediosos.Contraasesclerosesurbanas”.As
migrações aqui se refeririam não só às de brancos pelo mundo, mas também àquelas
12AfiliaçãosómaternadealgunscaraíbaressoaumtemacorrentenaRevistadeAntropofagia:aaceitaçãodeJesuscomofilhosódeMaria:assim,paracitarumdentreváriosexemplos,“OBrasil índionãopodiadeixardeadotarumdeusfilhosódamãe”,escreveOswald.Acrescentemosque,emboraobviamenteelenãoconhecesseClastres,conheciaaquase(senão)totalidadedasfontescoloniaisqueelamobilizanaspassagensquecitamos.13Háindíciosdequepovosoriginariamentenão-tupiforam“tupinizados”pelaaçãodessescantores,ou,oquedánamesma,queoprofetismotupifoi“não-tupinizado”poressespovos–cf.,paraumcaso,Calheiros,2014.Tupiornottupi?
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promovidas pelos profetas caraíba em busca da Terra sem Mal, de modo que,
clastreanamenteantesdeClastres,Oswaldteriapercebidocomoaconcentraçãodepoder
namão dos grandesmorubixaba, chefes guerreiros líderes de “confederações”, estariam
formandocomoque“cidadesindígenas”(aexpressãoédosAikewara,cf.Calheiros,2014),
com suas “escleroses urbanas”, às quais reagiriamos cantores xamãs.Masnãoé só isso.
Passado e presente se articulam novamente na necessidade de uma ação caraíba – uma
“vacinaantropofágica”–contraasnossasatuaisesclerosesurbanas.
Retomemos, a partir disso, duas das aparições de “Caraíba” no Manifesto, em
aforismosconsecutivos:
Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. Aunificaçãodetodasasrevoltaseficazesnadireçãodohomem.SemnósaEuropanãoteriasequerasuapobredeclaraçãodosdireitosdohomem.A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas asgirls.Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Où Villegaignon print terre.Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa aoRomantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e aobárbarotecnizadodeKeyserling.Caminhamos.
Neles,Oswaldpropõeumaespéciedegenealogia (filiação)“anômala”(lembremos
que os caraíba se situavam fora da rede de parentesco): trata-se de uma série de
transformações (revoluções no pensamento, na estética, na política, nosmodos de vida)
quetemcomopontodepartidao“BrasilCaraíba”,nummovimentodacolôniaemdireçãoà
metrópole, do índio em direção ao branco (e sem passar por Portugal...). É como se as
“migrações”tivessemmigradogloboaforaesetransformadoemrevoltaspolíticasvisando
a “idade de ouro anunciada pela América”. Anos mais tarde, ao desenvolver os dois
aforismosnum longoensaio,Oswaldvai argumentarquea “descoberta”doNovoMundo
nãoimplicouapenasnacolonizaçãoeuniformizaçãodomundo:ocontatodoeuropeucom
uma humanidade completamente distinta do ponto de vista político, social e metafísico
tambémrevelouacontingênciadoscostumes,davestimentamoraleinstitucionaleuropeia,
e sua possibilidade de transformação radical, o que teria sido consignado nas diversas
utopias,eque,maisdepois,daria lugaràsRevoluçõesFrancesaeRussa (Andrade,2011b:
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220-298).14“Influêncianossa”,diztambémemumaentrevista(2009:68-9),“[d]aAmérica,
queacenava,aolonge,comoseugrandesolingênuodeliberdade,defelicidade”.
Os aforismos, assim, apresentam um roteiro histórico percorrido: “Caminhamos”
(no que, diga-se de passagem, parece ser mais uma referência às migrações no ato de
caminhar). Mas, além disso, como já aponta a conjugação do verbo caminhar, que, na
primeira pessoa do plural, é amesma tanto para o pretérito quanto para o presente do
indicativo, estamos diante também de movimento que continua (ou pode continuar),
traçando roteiros de futuro, sempre no plural, sempre múltiplos, pois avessos à
uniformizaçãodomundo.Éporissoque,noprimeiroaforismocitadoacima,a“Revolução
Caraíba”nãoé,comonosegundo,opontodepartida(o“contatocomoBrasilCaraíba”,que
iniciaasériedetransformações),massimodechegada:“QueremosaRevoluçãoCaraíba.
Maior que a Revolução Francesa”. A resistência passada e presente dos índios aparece,
assim,comoomotorparaumarevoltaatualcomomododeabrirofuturo:“Odocumental
índio(osonhoauguraleestratégicoemAmorim,BarbosaRodrigues,CoutodeMagalhães,
Macunaíma)émaisdoque tudoodesenvolvimentodeumestadode lutaqueamemória
desperta” (Andrade, 2009: 90; grifo nosso). Essa dupla dimensão (passado-presente) do
“caminhamos”aparecetambémnaformadoparalelismoentreareivindicaçãodaquiloque
“tínhamos”(ocomunismo,osurrealismo,aadivinhação,adistribuiçãoigualitária,etc.)ea
enunciaçãodeumasériedecoisas“contra”asquaisoManifestosecoloca(“asreligiõesde
meridiano”,os“importadoresdeconsciênciaenlatada”),comoseoque“tínhamos”“antes”
amparasseomovimentoderesistência:o“instintoCaraíba”dopassadoseconectacoma
“Revolução Caraíba” apregoada no presente, enquanto uma referência aos roteiros que
levam a uma Terra semMal, à “idade de ouro” que “ já (...) tínhamos”. O que os dois
aforismos em conjunto propõem, portanto, é uma revolução também no sentido
astronômico, uma volta que é uma revolta, na qual colocar-se contra algo é reivindicar o
14 Ainda que Silviano Santiago (2006: 143) afirme que, apesar de não estar “de todo incorreto”, “Oswald deAndrade terá certamente exagerado”, Federico Pensado (2003: 37) lembra a importância da obra do IncaGarcilaso,Comentariosreales,publicadaemLisboaem1609,paraodebatequedaránaRevoluçãoFrancesa:“Enel fragor de la revolución francesa, la Academia de Lyon organizó un concurso de ensayos con el tema: ‘Lainfluenciadeldescubrimientosobrelafelicidaddelgénerohumano’.EltrabajovencedorfueeldelabateGenty,quien revelaba que las enseñanzas del Inca Garcilaso integraron el contexto del debate que provocó larevoluciónFrancesayqueposteriormente se cristalizaríanen laDeclaraciónde losDerechosdelHombreyelCiudadano”.
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quejátínhamosevice-versa:seo“BrasilCaraíba” levaa“RevoluçãoCaraíba”,arecíproca
tambéméverdadeira.
12. “Talvez hoje seja uma portamística a que se escancara (...) na direção inflexível das
realizações terrenas.Desta terra, nesta terra, para esta terra” (Andrade, 2011b: 84).Mas
por que a “Revolução Caraíba” seria maior que a Revolução Francesa? Aqui, precisamos
explicitar um ponto que deixamos implícito sobre o profetismo tupi-guarani: não
necessariamente ele implicava uma migração literal. Antes e principalmente, o acesso à
TerrasemMalpassavaporepoderiaseresumiraumacompletametamorfosesócio-moral-
política.Paratanto,eraprecisoumasériedeprocedimentos(rituais,migrações,etc.),que,
no limite, implicavam a total transformação do socius em outra coisa, em uma utopia
terrena, um paraíso pagão, como notaram os cronistas, dos quais citamos Manuel da
Nóbrega,queofereceadescriçãocolonialmaiscompletadosdiscursoscaraíba:
De certos em certos anos, vêm uns feiticeiros de longínquas terras,fingindotrazersantidade;e,aomesmotempodasuachegada,mandam-lhes limparoscaminhosevãorecebê-loscomdançase festas, segundoseucostume(...).Chegandoofeiticeiro,commuitafesta,aolugar,entranumacasaescura,epõeumacabaçadefigurahumanaquelevanapartemaisconvenienteparaseusenganos,emudandoasuaprópriavozcomodemenino,ejuntodacabaçalhesdiz,quenãocuidemdetrabalhar,nemvãoàroça,queomantimentoporsicrescerá,equenuncalhesfaltarádecomer,equeporsiviráàcasa;eque(...)as flechas irãoaomatocaçarparaseusenhor,ehãodematarmuitosdosseuscontrários,ecativarãomuitosparaosseuscomeres.Epromete-lheslongavida,equeasvelhashãodesetornarmoças,equedeemasfilhasaquemquiserem,eoutrascoisas semelhantes lhes diz e promete, comas quais os engana” (apudClastres,2007:58-9).
Aocomentarapassagem,HélèneClastrespontuacomoosroteirosproféticoseram
acimadetudosócio-políticos,comoasmigraçõesparaaTerrasemMaleramantesdemais
nadaético-espirituais:
A terraemque tudoéprodutodaabundância semquesejanecessáriotrabalhar,ondesegozadeperpétua juventude,etc.–éoadventodelaqueprometem.Sãoelesos fiadoresdequeelaépossívelaquieagora,
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pois podem comprometer-se a conduzir os outros até lá. Sem dúvida,essetextonãotratademigração:nãoseincitamaspessoasaabandonaras aldeias e pôr-se a caminho da Terra semMal. Mas é dessa própriaterra que os caraíbas são senhores, é sua realização possível nestemundoqueelesanunciam:paraisso,apenascabeaosoutrosconformar-searegrasdevidaespecíficas,submeter-seaosexercíciosnecessáriosdoespíritooudo corpo.O saberdosprofetas consisteempossuir a chavedessenovolugar:elesconhecemocaminhodaTerrasemMal,oquenãoquer dizer propriamente sua localização geográfica, mas sim as regraséticasúnicasapropiciaremoacessoaela(ibid.:59).
Ora, a nosso ver, é essa transformação total e imediata, uma revolução desse e
nesse mundo, aqui e agora, sem adiamento messiânico, que faz com que a “Revolução
Caraíba”apareçanoManifestomaiorqueasdemaisrevoltas:“Adescidaantropofágicanão
éumarevoluçãoliterária.Nemsocial.Nempolítica.Nemreligiosa.Elaétudoissoaomesmo
tempo”. Ou ainda: “A Antropofagia é uma revolução de princípios, de roteiro, de
identificação”(Andrade,2009:78).Assim,anosmaistarde,OswaldcriticaráaURSSpor“se
concentra[r] numa ênfase – a do setor da propriedade”, ou seja, por não levar adiante a
metamorfose de outros setores da vida, retardando-a: “No prenúncio atual de um novo
Matriarcado,queseprocessanacrisedoparentesco(...)–omarxismomilitantefixou-seno
setordapropriedade.OEstadoquesereforçaraparaseextinguir,prolongaefortaleceos
seusarsenaisarmados”(Andrade,2011b:204,191).Eissoapontaparaoutradimensãoda
insuficiência da série de revoluções elencadas nos aforismos. Lembremos da alusão que
fizemosacimaaumadasexplicaçõesdePierreClastresparaaemergênciadoprofetismo
tupi-guarani,aqualconsisteemverneleumareaçãoàconcentraçãodepoderdosgrandes
chefes e as suas confederações guerreiras, uma revolta contra um Estado em formação,
contraaformaçãodoEstado,naformadaeclosãodeummovimentocentrífugodianteda
substancializaçãodeumaforçacentrípeta:“Oprofetismotupi-guaraniéatentativaheroica
de uma sociedade primitiva para abolir a infelicidade na recusa radical do Um como
essênciauniversal doEstado” (Clastres, 2003: 233). Nesse sentido, comoassinalaBeatriz
Azevedo(2016:144),a“RevoluçãoCaraíba”é“umaespéciede‘revoluçãodarevolução’,ou
seja,umarevoluçãodopróprioconceitoderevolução,destavezapartirdaperspectivado
ameríndio”,uma“revoluçãodeoutraordem”,quenãopassapeloEstado,masécontraele.
Seguidamente,Oswaldsecolocoufavorávelà“anticodificação”(Andrade,2009:78),tendo
afirmadotambém,naRevista,que“oqueparamimvaiestragaroOcidente,éaplacenta
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jurídicaemqueseenvolveohomemdesdeoatodeamorque,aliás,nadatemavercoma
concepção”.Nãoéumacaso,assim,acaracterizaçãodadeclaraçãodosdireitosdohomem
como“pobre”.Invertendoalógicaeuropeiaquevianosameríndiosumasériedeausências
(instituições,direito,etc.),ouseja,umapobrezacivilizacional,Oswaldpositivaráessa falta
comooquetínhamos(positivamente),enquantooqueelestinham(Estado),porcontraste,
aparecia negativamente como uma falta; daí a “pobreza” da declaração, por se amparar
num sistema jurídico estatal, enquanto “tínhamos”, sem (contra) este e vivendo num
“direito sonâmbulo”, “a relação e a distribuição dos bens físicos”, e a “[p]olítica que é a
ciênciadadistribuição”,alémdeum“sistemasocial-planetário”:“Játínhamosocomunismo
(...).Aidadedeouro”.Seoscaraíbapossuíama“chavedessenovolugar”,oManifesto,por
suavez,apresentava“achavequeomundocegamenteprocura:aAntropofagia”(Andrade,
2009:79).
13.“Contraarealidadesocial,vestidaeopressora,cadastradaporFreud–arealidadesem
complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de
Pindorama””. Há um último elemento referente à questão (indígena) doManifesto que,
aludido de passagem, gostaríamos de apontar e que está intimamente relacionado ao
anterior, pois que parece ser o objetivo (ou a origem) da “Revolução Caraíba”: o
“MatriarcadodePindorama”.Apesarde,naretomadafilosóficadaAntropofagiaapartirde
1945, Oswald tentar sistematizar a noção via Bachofen, a Revista de Antropofagia não
forneceindíciosdequeelefosseasuareferênciaàépocadaredaçãodoManifesto.Antes,
parecequeestamosdiante,maisumavez,defontes(aindaqueindiretamente)indígenas,e
de uma íntima conexão entre o “Matriarcado” e o “comunismo”, que teria faltado à
RevoluçãoRussa.ComomostrouBeatrizAzevedo(2016:151),háumapassagem,arespeito,
deOselvagem, livrodecabeceiradeOswaldnaelaboraçãodaAntropofagia, intitulada“O
comunismoentreosKayapó”:
O comunismo de mulheres entre eles consiste no seguinte: a mulher,desde que atinge a idade em lhe é permitido entrar em relação comohomem, concebe daquele que lhe apraz. No período da gestação eamamentação é sustentada pelo pai do menino, o qual pode exercer
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igual encargo para com outras, as quais, durante períodos idênticos,moramnamesmacabana.Desdequeamulhercomeçaatrabalharélivredeconceberdomesmohomem,oupodeprocuraroutro,passandoparaeste o encargo da prole anterior. (...) Os selvagens são em geral muicaridososparacomtodososmeninos,inclusiveparaosdetribosinimigasquetomamnaguerra,aosquaiscriamcomose fossempróprios (CoutodeMagalhães,1975:77).
Mais uma vez, com o “Matriarcado de Pindorama”, estamos diante de uma
referêncianão-tupi (osKayapósãoumpovoJê)acopladaaumapalavratupi (pindorama),
numnovobaralhamentodostermos:osTupinambánemmatrilineareseram.Esemdiscutir
aqui a acuidade etnográfica do relato de Couto, podemos apontar como, a partir dele,
Oswald desenvolveu sua idéia de que o comunismo que “tínhamos” era da ordem do
Matriarcado e não do Patriarcado, consistindo numa recolocação do “parentesco”, da
“filiação”: o comunismo matriarcal, se podemos falar assim, implicaria não só outras
relaçõesmateriais,comosobjetos,mastambémoutromododelidarcomossujeitos,num
abandono da lógica binária de pertencimento, sem exclusão de princípio daqueles que
pertencem a outra linhagem (a outro pai, a outro povo). Nesse sentido, a chave para a
compreensãodoMatriarcadooswaldianoparece, paranós, se situar emoutrapassagem,
consoantecomaanterior,deOselvagem,igualmentelevantadaporBeatrizAzevedo:
Ateogoniadosíndiosassenta-sesobreestaideiacapital:todasascoisascriadas têmmãe. É de notar-se que eles não empregam a palavra pai;esta palavra pai não indica a origem de um homem, senão em umasociedade em que o casamento tenha já excluído a comunidade dasmulheres;e,portanto,nãopodiaserempregadapornossosselvagensemumestado tão rudimentar de civilização.O aforismo romano:pater estquemjustaenuptiaedemonstrantexplicaclaramentearazãoporqueumpovo primitivo, quando tivesse a necessidade de exprimir a filiação,empregasse de preferência a palavra mãe (...).O sistema geral deteogoniatupiparecesereste:Existem(...)deusessuperiores:oSol,queéo criador de todos os viventes; a Lua, que é a criadora de todos osvegetais (...).Cadaumdestes (...)grandessereséocriadordoreinodequesetrata:oSol,doreinoanimal;aLua,doreinovegetal(...).Cadaumdeles é servido por tantos outros deuses, quanto eram os gênerosadmitidospelosíndios:estesporsuavezeramservidosportantosoutrosseresquantaseramasespéciesqueelesreconheciam;eassimpordianteatéque, cada lagoou rio, ouespécie animalou vegetal, tem seugênioprotetor, suamãe. O Sol é a mães dos viventes, todos que habitam aterra; a Lua é a mãe de todos os vegetais (...). Não tinham termosabstratosparaexprimi-los:diziamsimplesmente:mãedosviventes,mãe
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dosvegetais.Ésabidoqueapalavrasoléguaracy,deguara,vivente,ecy,mãe.Luaéjacy,dejá,vegetal,cy,mãe(...).Conformedisseacima,osíndiosatribuemacadaordemdecriaçãoumdeusprotetor,umaespéciede mãe, que a defende contra tudo, e especialmente contra a açãodestruidoradohomem.Nashistóriasquenarram,háquasesempreumhomemquepersegueumacertaordemdecriação,eéessehomem,quepersegueessaordemdecriação,queodeusaparecefazendoalgummal;o mal, portanto, feito a tal homem, é uma punição justa e merecida,segundoasideiasdosselvagens(CoutodeMagalhães,1975:81-3;grifosdoautor).
Cremos serdesnecessário ressaltaroquantohádeevolucionismoegeneralização
nessetrecho;preferimos,antes,apontarparaoquesaltaaosolhosdaquelesfamiliarizados
comasetnografiasdospovosameríndios,asaber,oarde família (deparentesco,masde
uma filiação diferente da nossa) entre as “mães” e aquilo que, na antropologia, se
convencionouchamarde“donos”ou“mestres”,dacaça,derios,deacidentesgeográficos,
etc.,osquais,nojargãovulgar,recebemaalcunhade“espíritosprotetores”,ecujosnomes
nas línguas tupi-guarani são, geralmente, cognatos de “iara” (yara, jara, etc.) (cf. Fausto,
2008), sendo a transação diplomática ou bélica com eles uma atividade xamânica
(“caraíba”): “a noção de espíritos ‘donos’ dos animais (‘Mães da caça’, ‘Mestres dos
queixadas’etc.)é,comosesabe,deenormedifusãonocontinente.Essesespíritos-mestres,
invariavelmente dotados de uma intencionalidade análoga à humana, funcionam como
hipóstasesdasespéciesanimaisaqueestãoassociados, criandoumcampo intersubjetivo
humano-animalmesmoaliondeosanimaisempíricosnãosãoespiritualizados”(Viveirosde
Castro, 2002: 354). E é isso que, a nosso ver, interessa sublinhar nas remissões a essa
passagemfeitaspeloManifesto:
Filhosdosol,mãedosviventes.Encontradoseamadosferozmente,comtoda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelostouristes.Nopaísdacobragrande.(...)Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dosviventes.Jaciéamãedosvegetais(...).ÉprecisopartirdeumprofundoateísmoparasechegaràideiadeDeus.Masocaraíbanãoprecisava.PorquetinhaGuaraci.
ComosevêpelorelatodeCouto,epelaapropriaçãooswaldiana,ogênerobiológico
(elinguístico),deslizandoentreofemininoeomasculino,nãoétãodeterminantequantoo
gênerodacriação,docuidado,ouseja,quantoogênerosocial.Todavia,porissomesmo,as
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“mães”nãosãoumPai,eo“dono”indígenanãoéoproprietáriojurídicoocidental,muito
menos Guaraci equivale a um Deus intransitivo que cria ex nihilo, sem se submeter ele
mesmo à ordem da criação, transcendente e não imanente às criaturas. Lembremos do
“sistemasocial-planetário”:umavisãocosmopolíticadomundo(e,portanto,das“coisas”do
mundo) como uma sociedade (logo, de sujeitos).15 Se podemos falar tranquilamente de
propriedadenumarelaçãosujeito-objeto,omesmonãosedánumarelaçãoentresujeitos,
naqualprecisamosativaro“instintoCaraíba”.Otipoderelaçãoédeoutraordem–trata-se
de outrogênero jurídico, de uma juridicidadede outrogênero.16 E é esse, a nosso ver, o
contraponto entre Patriarcado e Matriarcado de Pindorama (a “luta entre o que se
chamaria Incriado e a Criatura”) estabelecido pela questão indígena doManifesto: entre
uma relação de sujeito e objeto, ancorada ordem baseada na propriedade, herança e
concentração(oEstado,osujeitodedireito,opoder),eoutra,entresujeitos,amparadano
princípiodareciprocidade,essencialmentetransitiva,semunificaremumasófigura(Deus,
oEstado,ohumanoenquantoespécie)opoderdeagência,afirmando,aocontrário,asua
multiplicidade e difusão centrífugas, seja na atribuiçãoda subjetividade a viventes e não-
viventes, seja na personificação dessa subjetividade na formas de “mães”, “donos” ou
espíritos”.PatriarcadoeMatriarcadonãosãoapenasdoisregimessócio-políticosdistintos,
masgênerossócio-cosmológicosdiferentes.Masoqueimplicatomarascoisas(viventesou
não)domundocomosujeitos,oucuidadosporsujeitos,por“mães”(semprenoplural)com
os/as quais se deve negociar e também tomar cuidado, já que podem se vingar? O que
significaser“filhosódemãe”,comooscaraíba,ouseja,recusarumprincípioúnicoúltimo
de pertencimento e identificação ancorado na figura do Pai, baseado na transmissão do
mesmo e que nega a transformação? O que significa participar de um continuum de
viventes, filhos da mesma “mãe”, sem uma prerrogativa especial destinada à espécie
15 Há diversas outras evidências de que aWeltanschauung canibal (para usar uma expressão de Oswald)apontavaparaumacondiçãodesubjetividadeouhumanidadecompartilhadacomoutrosseres,especialmenteosviventes.Cf.Nodari,2018.16Uma dasmaiores dificuldades que antropólogos e juristas ligados aos direitos indígenas encontramé a detraduzir na nossa nomenclatura jurídica não essa ou aquela reivindicação dos povos tradicionais perante oEstado,mas aprópria concepçãoepráxis jurídica, ou juridicidade,nativa.Oproblemavem,para ficarmosnoexemplomaisconhecido,aomenosdesdeatraduçãocategorialdo“tri-misterioso”tabu(parausaraexpressãodeMelville)comoaformaarquetípicadaproibição,esuaraizestánapobrezainstitucionaldodireitoocidentalmoderno(atémesmoemcomparaçãocomodireitoromanoemedieval)deabarcaraimaginaçãoinstitucionaldepovostradicionais,quenãosereduzàpropriedade(eaproibição:queéadeinfringirapropriedadealheia).
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(continuumqueparticipadeoutrocontinuum,omatriarcal,poisGuaracié sóumadentre
muitasmães,aoladodeJaci,amãedevegetais,eoutras,asquaisestãoimplicadasnavida
dos seus filhos, participam delas, como eles participam da sua)?17 Talvez fosse essa a
questão indígenaqueoManifesto lançavaequeos índiosnãocessamdenos lançar,nos
obrigando a nos questionar. Não uma questão identitária, mas sim um outro gênero de
questão, que aponta para uma identidade de outro gênero, que não diz respeito ao que
somos (ou seremos) imutavelmente (num futuro sempreadiado),masaoquepodemose
queremosnostransformar(agora).Elanãoserefereapenasaosíndioseaopassado,mas,a
partirdeles,apresenta“roteiros”paraonossofuturopresente,ameaçadopelatentativade
unificaromundo,excluindotudooquenãoseencaixanasualógicabinária,edereduzira
multiplicidadedepovos,sujeitosecoisasaobjetosequivalentes.
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17SobreaetimologiadeGuaracieJaciqueapresenta,Coutoapontaemumanota:“Estasetimologiasoferecemdificuldades em línguasnãoescritas.Os Tupi donortedizemGuaracy, cuára ouguara nãodiferem senãonomododeescrever,apalavrapronunciadaéamesma;guaratemdiversassignificações,entreelasade:morador,vivente,eadoverboser;todasestasredundamemtraduzir-seapalavraGuaracypormãedosviventes(...).Jacynãooferecedúvidaalguma:jásignificafruta,etambémbrotar,comoasementequeemergedosolo;apalavra,portanto,ousignificamãedasfrutas,oumãedetudoquantonascedosolo”(CoutodeMagalhães,1975:82).Aessa altura, não é necessário apontar a dificuldadedessas reconstruções, pois, como terá ficado claro, o queinteressaaquiéomodocomo,partindodelas,Oswaldpôdeelaborarumavisãoantropologicamenteavant lalettre dos povos ameríndios. A título de curiosidade, como mais uma possível fonte da concepção canibaloswaldiana, vejam-se essas duas (pseudo-)etimologias presentes em Iracema: “Guará— Cão selvagem, lobobrasileiro. Provémestapalavrado verbou— comer,doqual se forma como relativog e adesinência araoverbalg-u-ára—comedor.Asílabafinallongaéapartículapropositivaãqueserveparadarforçaàpalavra(...).Jaguar— Vimos que guará significa voraz. Jaguar tem inquestionavelmente amesma etimologia; é o verbalguaraeopronomejá—nós.Jaguarera,pois,paraosindígenas,todososanimaisqueosdevoravam.Jaguareté—ograndedevorador”(Alencar,2017:51,63).Guaraciseria,assim,amãedosviventesenquantodevoradores,animais enquanto contrapostos aos vegetais. Isso nos remete a uma questão espinhosa, tendo em vista aprevalênciadadevoraçãonafilosofiaantropófagaeosubstratomítico-xamânicodeumahumanidadeprimordialdetodasasespécies(o“antropomorfismo”),asaber:quemenunciaoManifesto?Proferidoporumnós,àsvezesinclusiveeàsvezesexclusivo,oúnicomomentoemqueseuenunciadorénomeadosedánuma referênciaaGuaraci:“Filhosdosol,mãedosviventes”.Issoimplicariadizerqueaquelesquesemanifestamporelenãosãoapenas humanos (índios ou brancos), mas todos os viventes? Faria sentido, pois, se “nada existe fora daDevoração”,nãoapenasosTupi(nambá),ouosíndios(incluindoosnão-tupi)emgeral,oumesmoahumanidadeenquantoespéciecomoumtodo,seriamantropófagos(eoantropófagoquesemanifestanoManifesto)...
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SobreosautoresAlexandreNodariProfessordeTeoriaLiteráriaeLiteraturaBrasileira,edosProgramasdePós-GraduaçãoemLetras e em Filosofia da Universidade Federal do Paraná. Fundador e coordenador dospecies–núcleodeantropologiaespeculativa.E-mail:alexandre.nodari@gmail.comMariaCarolinadeAlmeidaAmaralGraduandaemLetrasPortuguês/InglêspelaUniversidadeFederaldoParaná.Desenvolveu,durante três anos, pesquisa de Iniciação Científica, sob orientação de Alexandre Nodari,voltadaàproduçãodeuma leitura comentadadoManifestoAntropófago,queagoraestásendo convertida na monografia de conclusão de curso. E-mail:[email protected]ãoosúnicosresponsáveispelaredaçãodoartigo.