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Ano 10 | outubro de 2010 | ISSN 16790995 A perda de autonomia na modernidade: reflexões a partir do romantismo e do pensamento nietzscheano Marcio Acselrad 1 Uma idéia é algo que você tem. Uma ideologia é algo que tem você. Morris Berman That the world is not the epitome of an eternal rationality can be conclusively proved by the fact that that piece of the world which we know--I mean our own human rationality--is not so very rational. F. Nietzsche Resumo A revolução mecânica, decorrente dos avanços científicos voltados para a produção mais que para o mero conhecimento, irá modificar por inteiro a visão do trabalho e do ócio e o papel que cabe ao homem no processo de produção, transformando as relações sociais e as estratégias de comunicação ao separar em definitivo o indivíduo da coletividade. Em paralelo aos avanços tecnológicos, desenvolve-se a visão industrial da produção, baseada na divisão social do trabalho, dando início à sociedade de massas. Era preciso agora que os trabalhadores tivessem algum tipo de discernimento, que fossem capazes de tomar decisões e de escolher determinados procedimentos a serem adotados. O homem-músculo, o homem-máquina, torna-se cada vez mais obsoleto, perdendo seu lugar para a força mecânica e cedendo espaço para o trabalhador da indústria. A partir daqui surge uma cisão entre educação e esclarecimento. Ao contrário do preconizado pelo pensamento iluminista, torna-se perfeitamente possível uma educação não emancipadora, em que o trabalhador era educado apenas para garantir a eficiência do modelo industrial. O objetivo deste trabalho é refletir criticamente sobre estas transformações tendo como base o pensamento romântico e a filosofia de Friedrich Nietsche. 1 Doutor em Comunicação pela UFRJ e Professor Titular da UNIFOR Universidade de Fortaleza e da FA7, Faculdade Sete de Setembro. Coordenador do Cineclube Unifor e do LABGRAÇA Laboratório de Estudos do Humor e do Riso. E-mail: [email protected] .

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Ano 10 | outubro de 2010 | ISSN 16790995

A perda de autonomia na modernidade: reflexões a partir do romantismo e do pensamento nietzscheano

Marcio Acselrad 1

Uma idéia é algo que você tem.

Uma ideologia é algo que tem você. Morris Berman

That the world is not the epitome of an

eternal rationality can be conclusively proved by the fact that that piece of the world which we know--I mean our own

human rationality--is not so very rational. F. Nietzsche

Resumo A revolução mecânica, decorrente dos avanços científicos voltados para a produção mais que para o mero conhecimento, irá modificar por inteiro a visão do trabalho e do ócio e o papel que cabe ao homem no processo de produção, transformando as relações sociais e as estratégias de comunicação ao separar em definitivo o indivíduo da coletividade. Em paralelo aos avanços tecnológicos, desenvolve-se a visão industrial da produção, baseada na divisão social do trabalho, dando início à sociedade de massas. Era preciso agora que os trabalhadores tivessem algum tipo de discernimento, que fossem capazes de tomar decisões e de escolher determinados procedimentos a serem adotados. O homem-músculo, o homem-máquina, torna-se cada vez mais obsoleto, perdendo seu lugar para a força mecânica e cedendo espaço para o trabalhador da indústria. A partir daqui surge uma cisão entre educação e esclarecimento. Ao contrário do preconizado pelo pensamento iluminista, torna-se perfeitamente possível uma educação não emancipadora, em que o trabalhador era educado apenas para garantir a eficiência do modelo industrial. O objetivo deste trabalho é refletir criticamente sobre estas transformações tendo como base o pensamento romântico e a filosofia de Friedrich Nietsche.

1 Doutor em Comunicação pela UFRJ e Professor Titular da UNIFOR – Universidade de Fortaleza e da FA7, Faculdade Sete de Setembro. Coordenador do Cineclube Unifor e do LABGRAÇA – Laboratório de Estudos do Humor e do Riso. E-mail: [email protected].

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Palavras-chave: autonomia, modernidade, emancipação, trabalho, iluminismo Abstract The mechanical revolution and the scientific advances lead to great changes in the production process of the XIX century, transforming both the social relations and the communication strategies and separating individual and collectivity. Parallel to such advances, an industrial vision of production is developed, based on social division of labor and giving birth to mass society. It was now necessary to provide workers with some kind of education, making them able to take decisions and chose between several procedures. The muscle-man, the machine-man, becomes more and more obsolete, losing its place to the mechanical force. Therefore a division is created between education and enlightenment. Contrary to what was expected by the enlightenment project, it becomes possible for an education not to obtain human emancipation, its goal being to guarantee the efficiency of the industrial model. The main goal of this paper is to critically discuss such transformations based on the romantic movement and the philosophy of Friedrich Nietzsche. Key-words: autonomy, modernity,emancipation, labour, enlightenment.

No início do século XIX, palavras como esclarecimento,

autonomia e individualidade estavam em baixa na Europa. A

França começava a superar o trauma do terror imposto pelos

jacobinos e lançava-se à aventura imperial napoleônica, culto à

personalidade em nada semelhante aos ideais de autonomia

propostos pela filosofia do iluminismo. Chegava ao fim a era

dos déspotas esclarecidos. De Alexandre I da Rússia, por

exemplo, dizia-se que “concordaria alegremente que todos

fossem livres contanto que cada um estivesse preparado para

fazer, livremente, o que ele exatamente desejasse”2.

2 Wells, H. G. História universal. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939, p. 170.

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Napoleão, que poderia ter sido o construtor de uma

nova ordem, o complemento da revolução e o porta-voz de

uma sociedade iluminista, preferiu ser ‘o genro do velho

mundo’. Casando-se com a arquiduquesa austríaca, selou seu

destino e escolheu seus aliados, tornando-se mais um líder

autocrático e despótico.

Em breve a velha ordem que ele ajudara a restaurar

iria traí-lo assim como ele havia traído a nova. O que se seguiu

à sua queda não guarda tampouco qualquer semelhança com

os ideais de liberdade e emancipação que moveram o

iluminismo. A tarefa de construir um sistema mundial de

justiça e esforço livre não foi retomada e a Europa cai nas

mãos da velha monarquia travestida de valores humanitários.

“A Santa Aliança dos monarcas da Russia, Áustria e Prussia

laborou na ilusão de que, derrotando Napoleão, haviam

derrotado a revolução e atrasado o relógio do destino,

restaurando para sempre a grande monarquia”3.

Segue-se um período de censura e intolerância política

e de anti-republicanismo exacerbado. Falta aqui a idéia de uma

visão política mundial e esclarecida, uma que dê conta das

diferenças entre povos e nações sem a necessidade de guerras

e que tenha em vista a formação de uma sociedade humana,

em que o trabalho possa se tornar fim e não meio. Falta acima

de tudo a noção eminentemente política de que é preciso um

sistema de educação mundial que sustente a posição

iluminista de humanidade, de uma comunidade mundial de

homens livres. Neste sentido o início do século XIX representa

3 Idem, p. 180.

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um retrocesso, uma amostra de como a história não caminha

necessariamente para frente.

E, no entanto, são este mesmo século XIX e esta mesma

era napoleônica os responsáveis pelo processo de expansão e

universalização da consciência européia. O culto à

personalidade do imperador é diverso de todos os que o

antecederam na história, pois concentra em si as noções de

indivíduo, nação e sociedade. Napoleão representa com

perfeição o anseio universalizante do sujeito moderno, o

ímpeto de transcendência e objetivação do novo homem que

impõe ao mundo uma nova ordem4.

Em relação ao aspecto econômico, uma mudança sem

precedentes se avizinha; uma revolução tão intensa quanto

aquela que transformou comunidades nômades de caçadores e

coletores em povos sedentários e estruturados em uma base

de produção agrícola. A revolução mecânica, decorrente dos

avanços científicos voltados para a produção mais que para o

mero conhecimento, irá modificar por inteiro a visão do

trabalho e do ócio e o papel que cabe ao homem neste

processo, transformando inclusive as relações sociais e as

estratégias de comunicação ao separar em definitivo o

indivíduo da coletividade. Em paralelo aos avanços

tecnológicos, desenvolve-se a visão industrial da produção,

baseada na divisão social do trabalho. É o início da sociedade

de massas. Wells defende que a revolução industrial teria

acontecido mesmo que não houvesse carvão, nem vapor, nem

máquinas. O método industrial é bem anterior ao advento da

tecnologia, mas foi só aliando-se a ela que pôde desenvolver-se

4 Cf. Cavalcante, M. C. S. Introdução de A essência da liberdade humana. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 9.

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maximamente. O burguês empreendedor, ansioso por riquezas

sem par, irá buscar na idéia da máquina e da força mecânica os

novos recursos para seu êxito e seu lucro.

Se uma grande parte da força de trabalho humano até

então empregava-se em tarefas puramente mecânicas,

doravante haverá uma tendência de libertação da mesma. Tem

início a era da especialização. Se num primeiro momento

poucas foram as mudanças efetivas, com boa parte da mão de

obra ainda sendo empregada em mineiração e na construção

civil, a medida que avança o século XIX a nova situação começa

a se afirmar. Era preciso agora que os trabalhadores tivessem

algum tipo de discernimento, que fossem capazes de tomar

decisões e de escolher determinados procedimentos a serem

adotados. O homem-músculo, o homem-máquina, torna-se

cada vez mais obsoleto, perdendo seu lugar para a força

mecânica e cedendo espaço para o trabalhador da indústria. A

partir daqui surge uma cisão entre educação e esclarecimento.

Ao contrário do preconizado pelo pensamento iluminista,

torna-se perfeitamente possível uma educação não

emancipadora. O trabalhador devia ser educado, sim, mas

apenas para garantir a eficiência do modelo industrial.

Buscava-se a produção de uma nova mente e principalmente

de um novo corpo. Condicionamento é o nome correto desta

nova forma de educação, com sua correlata justificativa, o

progresso industrial bem como seu arcabouço teórico

científico.

O processo histórico de expansão acelerada do

mercado, da indústria e das cidades engendra novas

desordens. Entram em cena de forma decisiva novos

dispositivos com função de produzir normalização social e

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disciplina. A nova forma de coerção ideológica é diferente de

tudo o que já se viu em matéria de domínio sobre o outro. Até

então o poder era eminentemente exercido através da

soberania. Sua estratégia, que ocupou o ocidente até boa parte

da Idade Média, limitava-se à posse, ao açambarcamento, ao

monopólio. A posse era suficiente para a determinação do

poder: decidir sobre a morte mais do que gerir a vida. No

sistema feudal, a organização e a produtividade eram quesitos

de importância secundária. A submissão e o respeito ao rei e à

igreja, em última instância, o temor a Deus, estes eram os

valores primordiais. Neste mundo da comunidade tradicional,

a Gemeinshaft de que fala Ferdinand Tonnies, palavra e

verdade são equivalentes imediatas uma vez que não há

questionamento de nenhuma espécie: um controle genérico e

universal sob a voz de um Deus onipresente, aquilo que

Adorno denomina religião objetiva5.

O que há de inédito na educação do novo homem,

segundo Foucault6, é a escala do controle: trata-se de cuidar do

corpo minuciosamente, de trabalhá-lo nos mínimos detalhes,

exercendo sobre ele uma coerção sem folga. O novo homem

não pode ser livre uma vez que terá de lidar com máquinas

que tampouco desfrutam de liberdade. Doravante trata-se de

administrar o corpo, de gerir a forma como a vida irá se

desenvolver, aquilo que Foucault denominou de biopolítica. O

corpo deve, portanto, ser mantido no nível da mecânica. A

modalidade educacional que se instaura é a da coerção

ininterrupta baseada na força da disciplina. Tempo e espaço

são minuciosamente esquadrinhados, todos os movimentos

5 Adorno, T. Dialética do esclarecimento, p. 113. 6 Foucault, M. Vigiar e punir. , p. 127.

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são controlados, há que se aprender a responder com

objetividade e eficiência. A disciplina, que já existia em

diversas instituições fechadas (principalmente nas forças

armadas), torna-se a fórmula geral de dominação, passando a

ser exercida em escolas, fábricas, etc. O próximo passo será a

dominação da família e dos meios de comunicação.

Com a ascensão da burguesia, a classe que organiza a

produção e domina o sistema disciplinar inaugura-se o

período histórico em que não basta que o corpo se assujeite a

uma ordem qualquer: doravante é preciso extrair deste corpo

o máximo de eficácia e produtividade. Sujeição e utilidade

tornam-se as duas faces de uma mesma moeda. Quanto mais

submisso e dócil, mais forte (aumento da utilidade econômica)

e controlado (diminuição da força política). A disciplina

dissocia assim o poder do corpo. Aumenta ainda mais a

distância já existente entre um corpo e o que ele pode,

distância esta que já havia sido diagnosticada por Spinosa. A

exploração econômica separa o trabalho de seu produto

enquanto a disciplina produz no próprio corpo a marca desta

separação. Se por um lado aliena-se economicamente o

indivíduo do fruto do seu trabalho, por outro, e aqui a questão

é ainda mais grave, aliena-se politicamente o indivíduo da

produção de sua própria subjetividade. Junto com a

industrialização da produção inicia-se o processo de

‘industrialização do espírito’, na feliz expressão de Edgar

Morin7.

Os dois objetivos principais do poder disciplinar são o

ordenamento do espaço e do tempo. Decidir o lugar que o

7 Morin, E. Cultura de massas no século XX.

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corpo irá ocupar, mas principalmente extrair deste corpo o

máximo de produção no mínimo de tempo. O tempo passa a

ser regido pelo princípio de utilidade e o ócio passa a ser o

principal inimigo. É preciso extrair de cada instante sua

máxima potência produtiva. Mas tudo dentro da ordem e da lei

constituídas. O período da sociedade disciplinar coincide com

o fim da escravidão. “É até a elegância da disciplina”, diz

Foucault, “dispensar esta (como qualquer outra) relação

custosa e violenta”8. Curioso notar que a disciplina é superior à

soberania não por ser mais humanitária, mas por ser mais

eficiente e econômica. As razões são pragmáticas e econômicas,

não humanas e justas.

No espaço disciplinar são de pouca importância tanto o

lugar do indivíduo dentro da comunidade quanto o uso da

razão como ferramenta crítica emancipatória. O que

determina a individualidade não é nem o pertencimento a um

grupo ou clã, como nas comunidades tradicionais descritas por

Tonnies, e nem a faculdade universal da razão, como

pregavam os iluministas. O que é de fundamental importância

é o lugar que se ocupa numa série, aquilo que irá facilitar o

reconhecimento em um mundo em que todos são ordinários,

isto é, postos em ordem, e não há mais um ente extra-

ordinário, um ser divino que se diferencie de todos e ordene as

relações sociais. Anatomia política do detalhe, a disciplina

caracteriza-se pela intercambialidade e pela flexibilidade.

Perde-se de vista qualquer noção de natureza ou essência,

trocada pela idéia mais eficaz de posição. Disciplinar é a antes

de tudo dispor, organizar, ordenar. Os que a esta ordem se

submetem são ordinários, aqueles que se pode contar e com os 8 Ibidem.

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quais se pode contar. Os restantes são preguiçosos e

vagabundos.

Com o pensamento romântico entra em cena uma

valorização da figura do indivíduo que, diferentemente do

sujeito do iluminismo, não vê aí uma manifestação da

racionalidade, um momento particular que reflete em si uma

universalidade. Com ênfase da noção de auto-desenvolvimento,

o romantismo aposta em fenômenos como o cultivo de si, que

enfatiza o aspecto qualitativo da individualidade em oposição

ao seu aspecto numérico. Aqui percebe-se claramente uma

insubordinação à lógica do capital e do trabalho e um

verdadeiro elogio do ócio artístico e filosófico. O que

caracteriza os indivíduos não é o que tem de comum, a razão

ou o pertencimento a um grupo qualquer, a comunidade, mas

antes o ser ele uma unidade única e incomparável.

Com forte influência do movimento poético e literário

intitulado “Sturm Und Drang” (Tempestade e ímpeto),

idealizado por Johann Gottfried Herder e do qual participaram

os jovens Goethe e Schiller, o movimento romântico aposta

suas cartas no valor dado ao sentimento e à intuição mística

como opostos complementares à razão, considerada incapaz

de alcançar a substância das coisas nos limites prescritos por

Kant9. Longe de negar a influência da filosofia kantiana, o que

buscaram os românticos era a compreensão dos fenômenos

que a razão não era capaz de abarcar, tais como a vida, o

sentimento, a natureza e a arte. Se desde Parmênides o

fundamento do pensar ocidental eram as idéias claras e

distintas (ser e não-ser como a primeira das distinções), o ser

9 Cf. Abbagnano, N. História da filosofia volume VIII, p. 151 e 162.

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arrancado do caos sendo capaz de produzir um pensamento

lógico, ao mesmo tempo a espécie humana encontrava-se

condenada a uma espécie de ilegalidade de todas as outras

tentativas de se capturar o ser. A condição romântica buscou

retirar a mística e a poesia da clandestinidade a que foram

lançadas pela filosofia.

O romantismo contribuiu sobremaneira para a

produção de um pensamento mais humilde quanto ao poder

da razão e do trabalho, buscando colocar a própria idéia de

razão dentro de um contexto histórico, afirmando, por

exemplo, que “não é a história que é racional, é a razão que é

histórica”. Assim é possível se perceber que o iluminismo,

motivo máximo do orgulho do pensamento ocidental, acabara

transformando-se de certo modo naquilo que mais buscava

combater: um pensamento dogmático e opressor. Ao conferir

dimensões de eternidade a uma maneira de pensar particular

e provisória, ao erigir um determinado sistema em categoria

universal, intencionalmente ou não o iluminismo se trai. Ao se

ver a mercê da nova ordem econômica nascente, a razão

emancipadora dá lugar à razão tecnocrática e operacional,

subjugando os homens que buscara libertar.

Com Herder e o romantismo, o que se busca é mostrar

a incomparabilidade de cada povo, de cada cultura, de cada

nação. Doravante, humanidade se declinará no plural.

Contrariando as regras desde sempre estabelecidas pela

ordem social, a saber, que os indivíduos devem se adaptar à

sociedade constituída uma vez que o homem nasce da

sociedade e não o contrário, os iluministas buscaram reverter

esta ordem e fixar as novas regras do jogo social. Mais até do

que isto, suprema pretensão, buscaram fixar leis universais,

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como se fossem dotados de algum poder demiúrgico, quase

como uma missão salvadora. A crítica que começava a se

produzir e que teria em Marx seu principal intérprete ia no

sentido de que não se libertava ninguém mas, ao contrário,

aprisionava-se o homem em uma miragem, qual seja, a ilusão

de que é livre para escolher aqueles que irão oprimi-lo.

À visão do homem como um universal abstrato,

responde o contra-revolucionário Joseph de Maistre em

fórmula que se tornou célebre: “Não há homem no mundo. Vi

em minha vida franceses, italianos, russos. Sei mesmo, graças a

Montesquieu, que se pode ser persa, mas quanto ao homem,

declaro nunca tê-lo encontrado; se ele existe, eu ignoro”.

Tomando a si mesmos como base, iluministas e

revolucionários acreditaram-se no direito de constituir uma

sociedade para todos. Teriam esquecido, ou antes, abdicado do

direito constituinte da sociedade sobre a razão individual.

Segundo a crítica romântica, o iluminismo teria caído em sua

própria armadilha: acreditando poder libertar o homem,

acabara criando uma situação insustentável, já que partia do

princípio de que ele queria e podia tornar-se senhor de seus

atos, uma premissa que não é compartilhada de forma

universal. Tudo isto, evidentemente, trouxe inúmeras

conseqüências para o campo do trabalho e de sua

contrapartida, o ócio. O homem universal torna-se preza fácil

para o sistema capitalista, que se quer universal.

Finkielkraut descreve o resultado deste processo na

visão dos contra-revolucionários:

Arrancaram os homens de sua cultura no momento em que se vangloriavam de cultivá-los. Enxotaram a história acreditando banir a

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superstição e o erro. Só conseguiram desenraizar os espíritos. Não libertaram o entendimento de suas correntes, mas o cortaram de suas origens. Por ter querido ser causa de si, o indivíduo renunciou a si próprio. Em sua luta pela independência, perdeu a substância. Pois as promessas do cogito são enganosas: liberto do preconceito, o sujeito não é livre, mas ressecado, desvitalizado, como uma árvore privada da seiva.10

Ao contrário da premissa iluminista de aproximar o

povo da filosofia, parte do projeto enciclopédico de Diderot,

trata-se agora de tentar aproximar os filósofos do ponto onde

ficou a sabedoria popular. Desta forma poder-se-ia, quem sabe,

dotar o pensamento racional daquilo que lhe falta: a vitalidade,

algo que só a vida coletiva, e jamais o confinamento intelectual,

poderia produzir. O romantismo busca fazer com que a razão

obedeça ao sentimento, e não o contrário.

Desta forma multifacetada perde-se de vista os ideais

que alimentaram o pensamento iluminista, utopias como

universalidade, individualidade, igualdade política, cultural e

econômica. Tais utopias são afastadas do cotidiano, ocupado

cada vez mais pelas doutrinas liberais, e passam a habitar

então o pensamento revolucionário a partir da constituição

dos ideais anarquistas, socialistas e comunistas, no fundo a

contrapartida, a outra face da mesma moeda sistemática. O

século XIX foi assim um período rico em experimentações,

desde as primeiras tentativas do industrial Robert Owen de

melhorar as condições de vida dos operários das fábricas de

algodão em Manchester e New Lanark até a consolidação dos

ideais socialistas com os escritos de Marx e Engels, passando

10 Finkelkraut, A. A derrota do pensamento, p. 34.

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pelas experiências da comuna de Paris e pelos textos de

Bakunin.

O único modo de se alcançar um mundo melhor, afirma

o pensamento revolucionário, é mudar radicalmente a

estrutura da sociedade e todas as relações sociais vigentes.

Dentro do sistema capitalista, a criação de uma sociedade

mundial em que os homens valham por si mesmos e não pelo

lugar que ocupam será sempre uma ilusão. O ideal

revolucionário busca uma intervenção direta na história,

fazendo com que esta tenha seu curso radicalmente alterado.

O socialismo, termo que surge por volta de 183011,

insistirá numa concretização ainda maior do conceito de

universalidade. Esta, no entanto, passa antes pela noção de

classe social do que de individualidade ou nacionalidade.

Acredita-se que uma classe em particular traz consigo uma

característica que a diferencia de todas as outras presentes ou

passadas: seus interesses transcendem as fronteiras de todas

as espécies. O proletariado é assim considerado a classe

universal, sendo responsável pela abolição de todas as

diferenças, pelo fim de todas as classes, pelo advento da

humanidade emancipada e capaz de comunicar plenamente. A

crítica marxista ao individualismo tem o sentido de que este

acreditava serem os homens engrenagens que se agregam

mecanicamente, quer por vontade própria quer por obrigação.

Na sociedade liberal o indivíduo não poderia ser

considerado livre, pois que, burgues ou proletário, estaria

sempre aprisionado por um sistema de classes. O socialismo

assim equivaleria ao mundo da comunicação plena, da troca

11 Rouanet, S. P. Iluminismo ou barbárie in Mal-estar na modernidade, p. 28.

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espontânea, do trabalho como forma de realização ao mesmo

tempo individual e coletiva. Promoveria o ideal cosmopolita de

um mundo sem fronteiras que, desde Diógenes, vinha

povoando o imaginário ocidental. Seria o fim das convenções

que separam e isolam homens e etnias, produzindo a discórdia

e o preconceito. O iluminismo marxista propunha que esta

classe heróica viesse a realizar sua nobre tarefa histórica,

fazendo com que cada um dos homens se tornasse cidadão do

mundo, emancipando o gênero humano para sua maior

aquisição, a liberdade, e procurando formar o homem para o

cultivo e o aperfeiçoamento de si e para a concórdia na vida

em sociedade12.

A grande contribuição do pensamento socialista,

segundo Rouanet13 , foi a transformação do conceito de

autonomia. Ao invés de pensá-la como liberdade abstrata, ao

modo do pensamento liberal, no socialismo a liberdade é vista

segundo o viés da segurança e garantia. Não basta ter direitos

abstratos para ser livre: é preciso ser capaz de obter pelo

trabalho os bens necessários à própria sobrevivência e a uma

vida digna. Liberdade não é ausência de coação, como pensava

Kant quando diz que “a liberdade necessária à ilustração é a de

fazer uso público da razão”14. A liberdade negativa não é

suficiente, não basta para promover a autonomia, que não é

mais apenas intelectual mas antes de tudo vital. O socialismo

então busca reunir esclarecimento e realização, pensamento e

vida.

12 Cf. Matos, O. “Sociedade: tolerância, confiança, amizade” em http://www2.rantac.com.br/users/lazaro/direitoshumanos2.htm 13 Rouanet, S. P. Iluminismo ou barbárie in Mal-estar na modernidade, p. 29 a 32. 14 Kant, E. Resposta à pergunta: o que é o iluminismo, p. 13.

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Retoma-se assim a proposta iluminista de uma

educação transformadora do caráter no que diz respeito tanto

à vida privada quanto à tolerância no espaço público. Educar

vem do latim, educere, que significa “conduzir para fora de”,

levar de um lugar a outro, de uma pessoa a outra. Entretanto o

ideal socialista acaba também recaindo em um problema

quando é adaptado à realidade histórica. Isaiah Berlin aponta

para as conseqüências da má aplicação desta visão ingênua de

uma liberdade como progressiva autonomização. Este sentido

de liberdade pode se aproximar perigosamente de uma nova

forma de servidão quando a referência deixa de ser o homem

em sua existência real e passa a considerar uma abstração

qualquer (neste caso, a coletividade) como mais elevada e

digna e da qual ele não passa de um membro. A existência de

um self superior e mais abrangente tende a apagar as

diferenças reais sempre que postula a obediência

incondicional a uma ordem, seja ela religiosa, nacional, estatal,

partidária, seja mesmo a crença em um bem comum, em forças

esclarecedoras da sociedade, em uma classe que represente a

vanguarda dos acontecimentos. O socialismo teria, pois,

tentado transferir a tarefa de salvar a humanidade do

indivíduo esclarecido, o intelectual, para a classe

revolucionária, o proletariado. Permanece, no entanto, a

mesma tendência messiânica. O que a princípio se apresenta

como meio de libertação torna-se, principalmente a partir de

sua efetivação na realidade histórica, uma doutrina autoritária

e por vezes opressora, tornando-se então ferramenta do

despotismo15.

15 Cf. Lukes, S. Individualism, p. 56.

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Nietzsche: não somos todos iguais.

Malgrado sua positividade, presente na promessa de

libertação do homem pelo conhecimento, o iluminismo não

deixou de trazer consigo alguns riscos e perigos. Seu ethos

flertava muito de perto com o totalitarismo ao propor uma

visão de homem universal baseada claramente no modelo

europeu de sua época. O iluminismo corre assim o risco de

fazer calar a diferença, ameaçando silenciar as vozes

consideradas não esclarecidas ou irracionais, isto é, aquelas

que não se encaixavam no modelo de racionalidade proposto

pelo pensamento cartesiano. Este viés totalitário precisa ser

levado em consideração se desejarmos superar o iluminismo

histórico e encontrar ainda algum sentido para o termo. A

história desta superação começa bem antes de nosso tempo e

tem em Friedrich Nietzsche um dos seus mais importantes

expoentes16.

O mais virulento pensador do século XIX calou sua voz

no mesmo momento em que o século expirava. Ouvir novamente

a voz do arauto do niilismo pode nos ser de valia se quisermos

compreender melhor este outro século que há pouco terminou

sem conseguir se recuperar da premonição nietzscheana.

Nietzsche via o iluminismo como um poder terrível que

precisava ser detido a qualquer custo. Para ele, tratava-se de

um erro da pior espécie: a arrogância intelectual, a pretensão

de alguns poucos pensadores de terem a resposta para todas

16 Cf. Call, Lewis Nietzsche as Critic and Captive of Enlightenment. Tese de doutorado, Universidade da California, Irvine,1995. Em http://scrye.com/~station/dissertation.html.

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as perguntas. O iluminismo com que Nietzsche se bateu

afirmava que os seres humanos eram ou ao menos desejavam

ser sujeitos racionais e autonomos, que buscavam e mereciam

a liberdade para decidirem sobre suas vidas racionalmente.

Para Nietzsche, no entanto, a consciência nada mais

era do que “uma rede de comunicação entre seres

humanos”17, . Sua verdadeira função, portanto, não era o

conhecimento do mundo mas tão somente uma estratégia de

sobrevivência. Se o homem fosse um ser solitário, que fosse

tão dependesse dos outros humanos, jamais se teria formado

algo como a consciência. Afinal o animal selvagem que busca

alimento e luta por ele não precisa desta ferramenta, pois têm

outras bem mais eficientes. Nietzsche nos ajuda, pois, a colocar

a consciência em seu devido lugar histórico, retirando dela

qualquer resquício de universalidade ou determinismo. Da

mesma forma, o próprio sujeito é visto como uma construção,

e uma das mais perigosas que o homem já criou, uma vez que

‘dotado’ de misteriosos poderes tais como o determinar o que

é o verdadeiro e o que é o falso.

Em “Sobre verdade e mentira no sentido extra moral”

debruça-se especificamente sobre a questão do engano do

intelecto. Não se trata de um engano qualquer, como se o

intelecto se enganasse acerca de alguma coisa ou de alguém em

particular. Trata-se do engano do intelecto acerca de si mesmo.

O intelecto engana ao homem e a si mesmo quando se julga a si

mesmo como o mais importante, o mais valioso, o central no

destino do universo. Nietzsche espanta-se, como o fazem os

filósofos, mas seu o que vê de espantoso é o fato de o intelecto

17 Nietzsche, A gaia ciência, p. 171.

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humano se arrogar direitos que não tem, já que não há

rigorosamente nada que determine este valor e esta importância

salvo ele mesmo. Este juízo, o homem o faz desde si mesmo, sem

porém perceber que o olhar que tudo olha e que tudo julga

esquece de olhar para si.

Mesmo quando é de metafísica que se trata, o homem

não deixa de tomar a si mesmo como medida de todas as coisas.

Apenas disto não se dá conta, passando então a utilizar a

palavra verdade. O que Nietzsche faz é colocar o homem e o

intelecto num lugar onde se instaure a dúvida sobre seu valor,

sobre este valor que o homem sempre se confere, para que se

possa pensar sobre o intelecto e sobre o próprio homem sob

outro angulo, talvez numa posição mais humilde. Vejam, isto a

que dão o maior dos valores talvez não signifique grande coisa,

parece dizer. Talvez não seja mais que a única estratégia

possível para a sobrevivencia de um antropóide fraco,

“desprovido de presas ou garras afiadas”.

Nietzsche chama a atenção para a fragilidade do

intelecto humano justamente no momento em que este atingia o

grau máximo de sua valoração, com a filosofia de Hegel.

Enquanto Hegel afirmava que “a essência do universo, a

princípio oculta e encerrada, não dispõe de força capaz de

resistir à tentativa de conhecê-la; acaba sempre por se

desvendar e patentear a sua riqueza e profundidade, para que o

homem dela desfrute”, Nietzsche alertava para os perigos de se

acreditar com demasiado otimismo nesta potência desveladora

do pensamento. Se Hegel afirma que o homem é mais forte que

o universo e pode coagi-lo a revelar seus segredos, Nietzsche,

por outro lado, alerta-nos que o intelecto é o “mestre do

disfarce” porque consegue esconder do homem sua própria

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pequenez. O que sabe o homem de si mesmo? Muito pouco,

quase nada. Como pode o homem, que pouco sabe de si,

imaginar que domina o segredo do universo.

A princípio seria de se imaginar que o pensador de Iena

é mais conforme ao pensamento iluminista, mas isto seria um

erro de interpretação, já que o verdadeiro esclarecimento não

pode andar desacompanhado da consciência dos próprios

limites, e neste sentido foi Nietzsche quem mais se aproximou.

Nietzsche traz para o pensamento esclarecido um ingrediente

fundamental: a humildade. O homem, que muito pode, se vê

despotencializado justamente pela razão, aquela ferramenta

que deveria libertá-lo.

Mas de onde se originou uma tal prepotência do homem?

Uma tal convicção de que é absolutamente capaz de conhecer e

saber o que é a verdade última das coisas? Nietzsche diz que os

homens precisam de verdades para viver, é a partir de certezas

que podem estabelecer as condições da vida. Isto quer dizer que

o homem precisa estabelecer um certo padrão de “julgamentos

certos” para edificar seu mundo. Precisa, como diz Julian Marías,

saber a que se ater. Assim um povo sempre se forma em torno

de determinadas certezas: sobre o que seja a riqueza e a

pobreza, o justo e o injusto, o honrado e o desonrado. Tais

certezas, ou juízos, tidos como verdadeiros, não possuem

qualquer fundamento na realidade, são noções criadas para

garantir certa estabilidade social e nas quais acredita porque

disso parece depender a vida.

A grande força enganadora do intelecto está

precisamente em fazer com que o homem acredite que aquilo

que julga verdadeiro é verdadeiro, e não só, o intelecto ainda faz

crer que o verdadeiro não é algo que o próprio homem institui,

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mas que é algo verdadeiro em si, independente do contexto. O

intelecto oculta ao homem sua própria pequenez e, em última

instância, é isso que lhe permite viver, já que é a partir das

verdades instauradas pelo intelecto que o homem pode

organizar-se socialmente, pois a organização social funda-se em

certos pressupostos comuns a todos que dela participam, e tais

pressupostos têm de ter o estatuto de certeza e verdade para

que a sociedade e o próprio homem sobrevivam.

É assim que brota no ceio de um povo, por exemplo, a

idéia de edificar um templo em honra a deusa da fertilidade

para que a colheita seja boa. Para que uma tal obra se dê é

preciso que cada indivíduo compreenda a fertilidade como um

grande bem ao qual deva erguer-se uma tal obra e deve convir

também ao povo que a construção do templo irá efetivamente

determinar a fertilidade. Havendo um consenso entre os

homens acerca de tais prerrogativas, o templo é erguido. Mas

não há nada que efetivamente diga ao homem que a fertilidade é

um bem ligado a uma deusa, nem há nada que diga ao homem

que erguendo-se um templo a terra dará frutos. Esta certeza

coletiva é o que Nietzsche chama mentir em rebanho, e é assim

que não só o templo, mas outras verdades são erguidos.

Embora se possa dizer que tais certezas são arbitrárias,

são elas que possibilitam a vida, pois é a partir delas que o

homem constrói, trabalha, edifica e isto é o viver. Sem tais

certezas, sem nenhuma verdade, os homens não seriam

provavelmente capazes sequer de acordar pela manhã, pois o

que é que garante, por exemplo, que a vida do homem é boa? o

que é que garante que a passagem do homem pela terra tem

alguma finalidade? Nada nos permite afirmar isso e há milênios

que se trabalha e empenha-se para viver e melhorar. É esta

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certeza enganosa, mas necessária que o intelecto incute ao

homem.

É por isso que Nietzsche pode dizer, numa visão

bastante pragmática, que o homem “deseja as conseqüências da

verdade que são agradáveis e conservam a vida”. Tais verdades

que possibilitam a vida instauram-se pela linguagem, e assim

utiliza-se da linguagem para iludir-se. Este iludir-se não está

apenas no uso da linguagem, vai ainda mais fundo, está na

própria gênese da linguagem, pois ela também é inegavelmente

antropomorfa, sendo composta de “transposições arbitrárias”.

Qual a relação do nome com a coisa nomeada? Nenhuma. Nisto

coloca-se a própria linguagem em cheque. Mas por que a

linguagem não se liga ao que ela nomeia? Porque a linguagem só

nos diz o universal jamais o particular, deste modo entre o que

se diz e o que se vê abre-se um abismo intransponível. Assim a

beleza da árvore que se viu é indizível porque a linguagem não

consegue dizer a particularidade que está envolvida em toda

sensação.

O que a linguagem faz é retirar da multiplicidade das

diferenças o comum e dizer apenas esta comunidade. Isto é uma

necessidade, pois se a linguagem nomeasse o específico haveria

uma palavra diferente para cada árvore, para cada sensação,

para cada experiência, o que inviabilizaria a própria existência

da linguagem. A linguagem se viabiliza por sua universalidade,

pela padronização do diferente, pois se não fosse assim cada

homem teria um vocabulário particular. A universalização faz

com que /felicidade/ seja uma palavra que designa aquilo que

todo homem vivencia de forma única.

Este caráter universal ao mesmo tempo em que a

possibilita a afasta das vivências, da particularidade de toda

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sensação, pois na sensação entra em jogo o particular, o

individual que a linguagem não abarca. É isto um conceito: a

igualação do não igual. O que está sendo dito é que a essência da

palavra, sua universalidade, reside na desconsideração com o

que é o essencial para a experiência; a individuação. Isto

significa que o mundo do conceito, da palavra e do universal no

qual o homem vive e onde se movimenta é próprio do homem e

não possui nenhuma relação com o natural, o mundo do

conceito é absolutamente antropomórfico.

Aquilo de que se fala não equivale àquilo que se vê, que

se vivencia ou sente. A experiência é indizível e, portanto a

linguagem é nada mais que um instrumento do homem para o

homem. O intelecto também nos engana acerca disto, pois faz

crer na coisa à qual a palavra se coaduna. Isto traz

conseqüências epistemológicas, mas também e acima de tudo

traz conseqüências éticas, pois também a prática humana se

verá restrita a um modo único de pensar e agir. No que

concerne à ação humana, a moral é a responsável por esta

igualação do não igual, sendo rígida o suficiente para não

permitir manifestações autênticas e criadoras, mas apenas

aquelas que se adaptem à racionalidade vigente. Nietzsche

aponta assim para o caráter metafórico tanto de conceitos

quanto das estruturas morais, ambos esquecidos de sua origem

artificial.

Para que o discurso se faça e possa ser julgado

“verdadeiro” ou “falso” é imperioso que as articulações dos

conceitos sejam bem determinadas, pois é a partir destas

articulações que se pode julgar a veracidade ou a falsidade do

discurso e o que possibilita este julgamento é sempre um

estabelecimento prévio e rígido daquilo que é válido. O que vale

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para a verdade do discurso vale igualmente para a verdade da

ação moral. O homem pode valer-se da linguagem para gerar

saber e para garantir sua existência, mas pode também

abandonar esta rigidez despotencializadora e gerar a arte que

vale-se da linguagem de modo completamente outro que aquele

do saber e da moral. Enquanto o saber e a moral têm de ser

rígidos e cuidadosamente armados para garantir o verdadeiro e

o falso, o certo e o errado, a arte simplesmente retira da

linguagem este caráter rígido que, de certo modo, a refreia e

abandonando-se à pura ilusão que a linguagem também

propicia.

A estas duas possibilidades fundamentais da linguagem

estão ligadas duas posturas fundamentais do homem: a postura

racional e a intuitiva. O homem racional tem diante da vida,

antes de tudo, o desejo de segurança ele quer garantir a si

mesmo que não haverá risco em seu fazer e em seu agir, para tal,

encarrega-se de montar uma complicada estrutura de conceitos

e a guiar-se por ela e nisto tenta excluir da vida, o inesperado, o

incerto, o incontrolável. Já o homem intuitivo comporta-se de

modo absolutamente diverso, para ele o que importa é a beleza,

e assim utiliza-se da linguagem para iludir-se de modo belo, por

isso o homem intuitivo não pode preocupar-se em evitar o

inesperado ou proteger-se do incontrolável, pois a arte nasce

exatamente do encontro do homem com o inesperado. O artista

sabe que não existe modo de se garantir previamente que uma

obra será bela, pode apenas esperar que ela assim seja, e é por

isso que o artista tem de conviver com o fracasso, com o erro e é

também por isso que o artista é aquele que se defronta também

com as maiores realizações, pois só assumindo a possibilidade

da derrota é capaz de atingir a vitória. Ao contrário do artista, o

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homem racional e moral teme horrivelmente a derrota e vive

para garantir sua vitória e com isso jamais entra

verdadeiramente em um combate, vive assim eternamente

precavendo-se da possibilidade da derrota, incapaz de encarar a

batalha.

As explicações racionais do universo seriam assim

tanto mais mitológicas quanto maior fosse sua pretensão a

terem um caráter global. Quanto mais as práticas de

conhecimento e ação se concentram na eficácia e na mestria,

mais se aproximam de uma atitude moral eurocêntrica

restrita. A ciência assim não está mais próxima de revelar a

essência das coisas do que o conhecimento mítico. Trata-se

num caso como no outro de intrepretações. “Em termos de

teoria”, diz Henri Atlan, “nada mais existe do que a

interpretação” 18 . E completa: “podemos entrever uma

ressonância da idéia nietzscheana segundo a qual o ideal

científico da clareza pode, por vezes, ser ele próprio um mito,

o ‘mito racional do ocidente’, eventualmente a serviço de

interesses particulares, de novos ‘sacerdotes’ numa sociedade

tecnocrática”19.

Com relação à visão política do iluminismo,

principalmente à sua vertente liberal, Nietzsche apresenta-se

implacável, conforme pode-se concluir do trecho a seguir:

Não somos de modo algum liberais. Não trabalhamos para o progresso, não precisamos conectar nossas orelhas às sirenes que cantam o futuro, suas canções sobre igualdade de direitos e uma sociedade livre, sem mestres ou escravos. Simplesmente não consideramos desejavel que a

18 Atlan, H. Com a razão e sem ela, p. 15. 19 Idem, p. 16.

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justiça e a concórdia se estabeleçam sobre a terra. Deleitamo-nos com todos os que, como nós, amam o perigo, a guerra, as aventuras, que se recusam a capitular, a ser capturados e castrados. Estamos entre os conquistadores20.

Para Nietzsche o grande perigo do iluminismo é

considerar os homens como iguais. Aqui se tem a impressão de

que dialoga diretamente com Rousseau, com suas idéias de

liberdade, direitos iguais e contrato social. Não, afirma ele,

definitivamente não queremos ser iguais. Queremos ser

diferentes, únicos, incomparáveis. Não que todos o queiram,

mas ao contrário, que apenas alguns poucos, esta é a

verdadeira crítica ao igualitarismo. Os que desejam a

igualdade são chamados cordeiros, homens do rebanho. Neste

sentido Nietzsche apresenta uma nova forma de se pensar o

esclarecimento, apontando para o direito à diferença, o direito

de não mentir reativamente, mas de afirmar ativamente. Se

para Rousseau o indivíduo não é mais que uma parte do todo,

para Nietzsche este é mais que o todo quando é capaz de se

fazer forte, ativo, afirmativo.

Mas Nietzsche não deve ser visto pura e simplesmente

como um inimigo do esclarecimento, como o irracionalista que

tantas vezes foi acusado de ser. Em “Humano, demasiado

humano” ele chega mesmo a fazer uma apologia do

movimento renascentista que bem poderia pertencer a um

panfleto iluminista:

A Renascença Italiana continha todas as forças positivas que encontramos na cultura moderna: liberdade de pensamento, desrespeito às autoridades, virtória da educação sobre a

20 Nietzsche, F. The gay science, p. 338. Tradução livre.

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arrogancia da tradição, entusiasmo pela ciência e pelo passado científico da humanidade21.

Laurence Lampert acredita que ele buscava, ao

contrário, aprofundar e ampliar o iluminismo, “forçando-o a

dar o próximo passo - o do esclarecimento acerca do próprio

esclarecimento”22. É preciso compreender que quando se bate

contra o iluminismo, Nietzsche tem em mente antes de tudo a

forma do iluminismo de inspiração cartesiana, que tem por

base um sujeito de conhecimento em um mundo de objetos.

Este iluminismo acabara funcionando mais como uma forma

de aprisionamento do que de libertação, de ignorancia mais do

que de sabedoria. E isto lhe era demasiado insuportável.

Em comum com o pensamento iluminista consta a

paixão pela liberdade, pela inquietude do espírito e pela

independência, bem como o desejo de superação do homem.

Lewis Call concorda com esta perspectiva, afirmando que

“Nietzsche ataca o iluminismo convencional sem hesitar, mas o

faz em nome de um projeto que é, em seu objetivo e em boa

parte de seu método, fundamentalmente pró-

esclarecimento”23. Afinal não é a toa que Zaratustra cante a

superação do homem e o advento do além-homem. O que há

de irônico na relação de Nietzsche com o iluminismo é que,

apesar das veementes críticas ao projeto e a seus principais

mentores, ele mantém viva a chama do progresso e do

aperfeiçoamento do ser humano visando a construção de um

mundo melhor.

21 Humano, demasiado humano, p. 306. 22 Lampert, L. Nietzsche and modern times, p. 360. Citado por Call, Lewis Nietzsche as Critic and Captive of Enlightenment. 23 Call, Lewis Nietzsche as Critic and Captive of Enlightenment.

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