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Ano 10 | outubro de 2010 | ISSN 16790995
A perda de autonomia na modernidade: reflexões a partir do romantismo e do pensamento nietzscheano
Marcio Acselrad 1
Uma idéia é algo que você tem.
Uma ideologia é algo que tem você. Morris Berman
That the world is not the epitome of an
eternal rationality can be conclusively proved by the fact that that piece of the world which we know--I mean our own
human rationality--is not so very rational. F. Nietzsche
Resumo A revolução mecânica, decorrente dos avanços científicos voltados para a produção mais que para o mero conhecimento, irá modificar por inteiro a visão do trabalho e do ócio e o papel que cabe ao homem no processo de produção, transformando as relações sociais e as estratégias de comunicação ao separar em definitivo o indivíduo da coletividade. Em paralelo aos avanços tecnológicos, desenvolve-se a visão industrial da produção, baseada na divisão social do trabalho, dando início à sociedade de massas. Era preciso agora que os trabalhadores tivessem algum tipo de discernimento, que fossem capazes de tomar decisões e de escolher determinados procedimentos a serem adotados. O homem-músculo, o homem-máquina, torna-se cada vez mais obsoleto, perdendo seu lugar para a força mecânica e cedendo espaço para o trabalhador da indústria. A partir daqui surge uma cisão entre educação e esclarecimento. Ao contrário do preconizado pelo pensamento iluminista, torna-se perfeitamente possível uma educação não emancipadora, em que o trabalhador era educado apenas para garantir a eficiência do modelo industrial. O objetivo deste trabalho é refletir criticamente sobre estas transformações tendo como base o pensamento romântico e a filosofia de Friedrich Nietsche.
1 Doutor em Comunicação pela UFRJ e Professor Titular da UNIFOR – Universidade de Fortaleza e da FA7, Faculdade Sete de Setembro. Coordenador do Cineclube Unifor e do LABGRAÇA – Laboratório de Estudos do Humor e do Riso. E-mail: [email protected].
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Palavras-chave: autonomia, modernidade, emancipação, trabalho, iluminismo Abstract The mechanical revolution and the scientific advances lead to great changes in the production process of the XIX century, transforming both the social relations and the communication strategies and separating individual and collectivity. Parallel to such advances, an industrial vision of production is developed, based on social division of labor and giving birth to mass society. It was now necessary to provide workers with some kind of education, making them able to take decisions and chose between several procedures. The muscle-man, the machine-man, becomes more and more obsolete, losing its place to the mechanical force. Therefore a division is created between education and enlightenment. Contrary to what was expected by the enlightenment project, it becomes possible for an education not to obtain human emancipation, its goal being to guarantee the efficiency of the industrial model. The main goal of this paper is to critically discuss such transformations based on the romantic movement and the philosophy of Friedrich Nietzsche. Key-words: autonomy, modernity,emancipation, labour, enlightenment.
No início do século XIX, palavras como esclarecimento,
autonomia e individualidade estavam em baixa na Europa. A
França começava a superar o trauma do terror imposto pelos
jacobinos e lançava-se à aventura imperial napoleônica, culto à
personalidade em nada semelhante aos ideais de autonomia
propostos pela filosofia do iluminismo. Chegava ao fim a era
dos déspotas esclarecidos. De Alexandre I da Rússia, por
exemplo, dizia-se que “concordaria alegremente que todos
fossem livres contanto que cada um estivesse preparado para
fazer, livremente, o que ele exatamente desejasse”2.
2 Wells, H. G. História universal. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939, p. 170.
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Napoleão, que poderia ter sido o construtor de uma
nova ordem, o complemento da revolução e o porta-voz de
uma sociedade iluminista, preferiu ser ‘o genro do velho
mundo’. Casando-se com a arquiduquesa austríaca, selou seu
destino e escolheu seus aliados, tornando-se mais um líder
autocrático e despótico.
Em breve a velha ordem que ele ajudara a restaurar
iria traí-lo assim como ele havia traído a nova. O que se seguiu
à sua queda não guarda tampouco qualquer semelhança com
os ideais de liberdade e emancipação que moveram o
iluminismo. A tarefa de construir um sistema mundial de
justiça e esforço livre não foi retomada e a Europa cai nas
mãos da velha monarquia travestida de valores humanitários.
“A Santa Aliança dos monarcas da Russia, Áustria e Prussia
laborou na ilusão de que, derrotando Napoleão, haviam
derrotado a revolução e atrasado o relógio do destino,
restaurando para sempre a grande monarquia”3.
Segue-se um período de censura e intolerância política
e de anti-republicanismo exacerbado. Falta aqui a idéia de uma
visão política mundial e esclarecida, uma que dê conta das
diferenças entre povos e nações sem a necessidade de guerras
e que tenha em vista a formação de uma sociedade humana,
em que o trabalho possa se tornar fim e não meio. Falta acima
de tudo a noção eminentemente política de que é preciso um
sistema de educação mundial que sustente a posição
iluminista de humanidade, de uma comunidade mundial de
homens livres. Neste sentido o início do século XIX representa
3 Idem, p. 180.
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um retrocesso, uma amostra de como a história não caminha
necessariamente para frente.
E, no entanto, são este mesmo século XIX e esta mesma
era napoleônica os responsáveis pelo processo de expansão e
universalização da consciência européia. O culto à
personalidade do imperador é diverso de todos os que o
antecederam na história, pois concentra em si as noções de
indivíduo, nação e sociedade. Napoleão representa com
perfeição o anseio universalizante do sujeito moderno, o
ímpeto de transcendência e objetivação do novo homem que
impõe ao mundo uma nova ordem4.
Em relação ao aspecto econômico, uma mudança sem
precedentes se avizinha; uma revolução tão intensa quanto
aquela que transformou comunidades nômades de caçadores e
coletores em povos sedentários e estruturados em uma base
de produção agrícola. A revolução mecânica, decorrente dos
avanços científicos voltados para a produção mais que para o
mero conhecimento, irá modificar por inteiro a visão do
trabalho e do ócio e o papel que cabe ao homem neste
processo, transformando inclusive as relações sociais e as
estratégias de comunicação ao separar em definitivo o
indivíduo da coletividade. Em paralelo aos avanços
tecnológicos, desenvolve-se a visão industrial da produção,
baseada na divisão social do trabalho. É o início da sociedade
de massas. Wells defende que a revolução industrial teria
acontecido mesmo que não houvesse carvão, nem vapor, nem
máquinas. O método industrial é bem anterior ao advento da
tecnologia, mas foi só aliando-se a ela que pôde desenvolver-se
4 Cf. Cavalcante, M. C. S. Introdução de A essência da liberdade humana. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 9.
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maximamente. O burguês empreendedor, ansioso por riquezas
sem par, irá buscar na idéia da máquina e da força mecânica os
novos recursos para seu êxito e seu lucro.
Se uma grande parte da força de trabalho humano até
então empregava-se em tarefas puramente mecânicas,
doravante haverá uma tendência de libertação da mesma. Tem
início a era da especialização. Se num primeiro momento
poucas foram as mudanças efetivas, com boa parte da mão de
obra ainda sendo empregada em mineiração e na construção
civil, a medida que avança o século XIX a nova situação começa
a se afirmar. Era preciso agora que os trabalhadores tivessem
algum tipo de discernimento, que fossem capazes de tomar
decisões e de escolher determinados procedimentos a serem
adotados. O homem-músculo, o homem-máquina, torna-se
cada vez mais obsoleto, perdendo seu lugar para a força
mecânica e cedendo espaço para o trabalhador da indústria. A
partir daqui surge uma cisão entre educação e esclarecimento.
Ao contrário do preconizado pelo pensamento iluminista,
torna-se perfeitamente possível uma educação não
emancipadora. O trabalhador devia ser educado, sim, mas
apenas para garantir a eficiência do modelo industrial.
Buscava-se a produção de uma nova mente e principalmente
de um novo corpo. Condicionamento é o nome correto desta
nova forma de educação, com sua correlata justificativa, o
progresso industrial bem como seu arcabouço teórico
científico.
O processo histórico de expansão acelerada do
mercado, da indústria e das cidades engendra novas
desordens. Entram em cena de forma decisiva novos
dispositivos com função de produzir normalização social e
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disciplina. A nova forma de coerção ideológica é diferente de
tudo o que já se viu em matéria de domínio sobre o outro. Até
então o poder era eminentemente exercido através da
soberania. Sua estratégia, que ocupou o ocidente até boa parte
da Idade Média, limitava-se à posse, ao açambarcamento, ao
monopólio. A posse era suficiente para a determinação do
poder: decidir sobre a morte mais do que gerir a vida. No
sistema feudal, a organização e a produtividade eram quesitos
de importância secundária. A submissão e o respeito ao rei e à
igreja, em última instância, o temor a Deus, estes eram os
valores primordiais. Neste mundo da comunidade tradicional,
a Gemeinshaft de que fala Ferdinand Tonnies, palavra e
verdade são equivalentes imediatas uma vez que não há
questionamento de nenhuma espécie: um controle genérico e
universal sob a voz de um Deus onipresente, aquilo que
Adorno denomina religião objetiva5.
O que há de inédito na educação do novo homem,
segundo Foucault6, é a escala do controle: trata-se de cuidar do
corpo minuciosamente, de trabalhá-lo nos mínimos detalhes,
exercendo sobre ele uma coerção sem folga. O novo homem
não pode ser livre uma vez que terá de lidar com máquinas
que tampouco desfrutam de liberdade. Doravante trata-se de
administrar o corpo, de gerir a forma como a vida irá se
desenvolver, aquilo que Foucault denominou de biopolítica. O
corpo deve, portanto, ser mantido no nível da mecânica. A
modalidade educacional que se instaura é a da coerção
ininterrupta baseada na força da disciplina. Tempo e espaço
são minuciosamente esquadrinhados, todos os movimentos
5 Adorno, T. Dialética do esclarecimento, p. 113. 6 Foucault, M. Vigiar e punir. , p. 127.
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são controlados, há que se aprender a responder com
objetividade e eficiência. A disciplina, que já existia em
diversas instituições fechadas (principalmente nas forças
armadas), torna-se a fórmula geral de dominação, passando a
ser exercida em escolas, fábricas, etc. O próximo passo será a
dominação da família e dos meios de comunicação.
Com a ascensão da burguesia, a classe que organiza a
produção e domina o sistema disciplinar inaugura-se o
período histórico em que não basta que o corpo se assujeite a
uma ordem qualquer: doravante é preciso extrair deste corpo
o máximo de eficácia e produtividade. Sujeição e utilidade
tornam-se as duas faces de uma mesma moeda. Quanto mais
submisso e dócil, mais forte (aumento da utilidade econômica)
e controlado (diminuição da força política). A disciplina
dissocia assim o poder do corpo. Aumenta ainda mais a
distância já existente entre um corpo e o que ele pode,
distância esta que já havia sido diagnosticada por Spinosa. A
exploração econômica separa o trabalho de seu produto
enquanto a disciplina produz no próprio corpo a marca desta
separação. Se por um lado aliena-se economicamente o
indivíduo do fruto do seu trabalho, por outro, e aqui a questão
é ainda mais grave, aliena-se politicamente o indivíduo da
produção de sua própria subjetividade. Junto com a
industrialização da produção inicia-se o processo de
‘industrialização do espírito’, na feliz expressão de Edgar
Morin7.
Os dois objetivos principais do poder disciplinar são o
ordenamento do espaço e do tempo. Decidir o lugar que o
7 Morin, E. Cultura de massas no século XX.
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corpo irá ocupar, mas principalmente extrair deste corpo o
máximo de produção no mínimo de tempo. O tempo passa a
ser regido pelo princípio de utilidade e o ócio passa a ser o
principal inimigo. É preciso extrair de cada instante sua
máxima potência produtiva. Mas tudo dentro da ordem e da lei
constituídas. O período da sociedade disciplinar coincide com
o fim da escravidão. “É até a elegância da disciplina”, diz
Foucault, “dispensar esta (como qualquer outra) relação
custosa e violenta”8. Curioso notar que a disciplina é superior à
soberania não por ser mais humanitária, mas por ser mais
eficiente e econômica. As razões são pragmáticas e econômicas,
não humanas e justas.
No espaço disciplinar são de pouca importância tanto o
lugar do indivíduo dentro da comunidade quanto o uso da
razão como ferramenta crítica emancipatória. O que
determina a individualidade não é nem o pertencimento a um
grupo ou clã, como nas comunidades tradicionais descritas por
Tonnies, e nem a faculdade universal da razão, como
pregavam os iluministas. O que é de fundamental importância
é o lugar que se ocupa numa série, aquilo que irá facilitar o
reconhecimento em um mundo em que todos são ordinários,
isto é, postos em ordem, e não há mais um ente extra-
ordinário, um ser divino que se diferencie de todos e ordene as
relações sociais. Anatomia política do detalhe, a disciplina
caracteriza-se pela intercambialidade e pela flexibilidade.
Perde-se de vista qualquer noção de natureza ou essência,
trocada pela idéia mais eficaz de posição. Disciplinar é a antes
de tudo dispor, organizar, ordenar. Os que a esta ordem se
submetem são ordinários, aqueles que se pode contar e com os 8 Ibidem.
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quais se pode contar. Os restantes são preguiçosos e
vagabundos.
Com o pensamento romântico entra em cena uma
valorização da figura do indivíduo que, diferentemente do
sujeito do iluminismo, não vê aí uma manifestação da
racionalidade, um momento particular que reflete em si uma
universalidade. Com ênfase da noção de auto-desenvolvimento,
o romantismo aposta em fenômenos como o cultivo de si, que
enfatiza o aspecto qualitativo da individualidade em oposição
ao seu aspecto numérico. Aqui percebe-se claramente uma
insubordinação à lógica do capital e do trabalho e um
verdadeiro elogio do ócio artístico e filosófico. O que
caracteriza os indivíduos não é o que tem de comum, a razão
ou o pertencimento a um grupo qualquer, a comunidade, mas
antes o ser ele uma unidade única e incomparável.
Com forte influência do movimento poético e literário
intitulado “Sturm Und Drang” (Tempestade e ímpeto),
idealizado por Johann Gottfried Herder e do qual participaram
os jovens Goethe e Schiller, o movimento romântico aposta
suas cartas no valor dado ao sentimento e à intuição mística
como opostos complementares à razão, considerada incapaz
de alcançar a substância das coisas nos limites prescritos por
Kant9. Longe de negar a influência da filosofia kantiana, o que
buscaram os românticos era a compreensão dos fenômenos
que a razão não era capaz de abarcar, tais como a vida, o
sentimento, a natureza e a arte. Se desde Parmênides o
fundamento do pensar ocidental eram as idéias claras e
distintas (ser e não-ser como a primeira das distinções), o ser
9 Cf. Abbagnano, N. História da filosofia volume VIII, p. 151 e 162.
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arrancado do caos sendo capaz de produzir um pensamento
lógico, ao mesmo tempo a espécie humana encontrava-se
condenada a uma espécie de ilegalidade de todas as outras
tentativas de se capturar o ser. A condição romântica buscou
retirar a mística e a poesia da clandestinidade a que foram
lançadas pela filosofia.
O romantismo contribuiu sobremaneira para a
produção de um pensamento mais humilde quanto ao poder
da razão e do trabalho, buscando colocar a própria idéia de
razão dentro de um contexto histórico, afirmando, por
exemplo, que “não é a história que é racional, é a razão que é
histórica”. Assim é possível se perceber que o iluminismo,
motivo máximo do orgulho do pensamento ocidental, acabara
transformando-se de certo modo naquilo que mais buscava
combater: um pensamento dogmático e opressor. Ao conferir
dimensões de eternidade a uma maneira de pensar particular
e provisória, ao erigir um determinado sistema em categoria
universal, intencionalmente ou não o iluminismo se trai. Ao se
ver a mercê da nova ordem econômica nascente, a razão
emancipadora dá lugar à razão tecnocrática e operacional,
subjugando os homens que buscara libertar.
Com Herder e o romantismo, o que se busca é mostrar
a incomparabilidade de cada povo, de cada cultura, de cada
nação. Doravante, humanidade se declinará no plural.
Contrariando as regras desde sempre estabelecidas pela
ordem social, a saber, que os indivíduos devem se adaptar à
sociedade constituída uma vez que o homem nasce da
sociedade e não o contrário, os iluministas buscaram reverter
esta ordem e fixar as novas regras do jogo social. Mais até do
que isto, suprema pretensão, buscaram fixar leis universais,
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como se fossem dotados de algum poder demiúrgico, quase
como uma missão salvadora. A crítica que começava a se
produzir e que teria em Marx seu principal intérprete ia no
sentido de que não se libertava ninguém mas, ao contrário,
aprisionava-se o homem em uma miragem, qual seja, a ilusão
de que é livre para escolher aqueles que irão oprimi-lo.
À visão do homem como um universal abstrato,
responde o contra-revolucionário Joseph de Maistre em
fórmula que se tornou célebre: “Não há homem no mundo. Vi
em minha vida franceses, italianos, russos. Sei mesmo, graças a
Montesquieu, que se pode ser persa, mas quanto ao homem,
declaro nunca tê-lo encontrado; se ele existe, eu ignoro”.
Tomando a si mesmos como base, iluministas e
revolucionários acreditaram-se no direito de constituir uma
sociedade para todos. Teriam esquecido, ou antes, abdicado do
direito constituinte da sociedade sobre a razão individual.
Segundo a crítica romântica, o iluminismo teria caído em sua
própria armadilha: acreditando poder libertar o homem,
acabara criando uma situação insustentável, já que partia do
princípio de que ele queria e podia tornar-se senhor de seus
atos, uma premissa que não é compartilhada de forma
universal. Tudo isto, evidentemente, trouxe inúmeras
conseqüências para o campo do trabalho e de sua
contrapartida, o ócio. O homem universal torna-se preza fácil
para o sistema capitalista, que se quer universal.
Finkielkraut descreve o resultado deste processo na
visão dos contra-revolucionários:
Arrancaram os homens de sua cultura no momento em que se vangloriavam de cultivá-los. Enxotaram a história acreditando banir a
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superstição e o erro. Só conseguiram desenraizar os espíritos. Não libertaram o entendimento de suas correntes, mas o cortaram de suas origens. Por ter querido ser causa de si, o indivíduo renunciou a si próprio. Em sua luta pela independência, perdeu a substância. Pois as promessas do cogito são enganosas: liberto do preconceito, o sujeito não é livre, mas ressecado, desvitalizado, como uma árvore privada da seiva.10
Ao contrário da premissa iluminista de aproximar o
povo da filosofia, parte do projeto enciclopédico de Diderot,
trata-se agora de tentar aproximar os filósofos do ponto onde
ficou a sabedoria popular. Desta forma poder-se-ia, quem sabe,
dotar o pensamento racional daquilo que lhe falta: a vitalidade,
algo que só a vida coletiva, e jamais o confinamento intelectual,
poderia produzir. O romantismo busca fazer com que a razão
obedeça ao sentimento, e não o contrário.
Desta forma multifacetada perde-se de vista os ideais
que alimentaram o pensamento iluminista, utopias como
universalidade, individualidade, igualdade política, cultural e
econômica. Tais utopias são afastadas do cotidiano, ocupado
cada vez mais pelas doutrinas liberais, e passam a habitar
então o pensamento revolucionário a partir da constituição
dos ideais anarquistas, socialistas e comunistas, no fundo a
contrapartida, a outra face da mesma moeda sistemática. O
século XIX foi assim um período rico em experimentações,
desde as primeiras tentativas do industrial Robert Owen de
melhorar as condições de vida dos operários das fábricas de
algodão em Manchester e New Lanark até a consolidação dos
ideais socialistas com os escritos de Marx e Engels, passando
10 Finkelkraut, A. A derrota do pensamento, p. 34.
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pelas experiências da comuna de Paris e pelos textos de
Bakunin.
O único modo de se alcançar um mundo melhor, afirma
o pensamento revolucionário, é mudar radicalmente a
estrutura da sociedade e todas as relações sociais vigentes.
Dentro do sistema capitalista, a criação de uma sociedade
mundial em que os homens valham por si mesmos e não pelo
lugar que ocupam será sempre uma ilusão. O ideal
revolucionário busca uma intervenção direta na história,
fazendo com que esta tenha seu curso radicalmente alterado.
O socialismo, termo que surge por volta de 183011,
insistirá numa concretização ainda maior do conceito de
universalidade. Esta, no entanto, passa antes pela noção de
classe social do que de individualidade ou nacionalidade.
Acredita-se que uma classe em particular traz consigo uma
característica que a diferencia de todas as outras presentes ou
passadas: seus interesses transcendem as fronteiras de todas
as espécies. O proletariado é assim considerado a classe
universal, sendo responsável pela abolição de todas as
diferenças, pelo fim de todas as classes, pelo advento da
humanidade emancipada e capaz de comunicar plenamente. A
crítica marxista ao individualismo tem o sentido de que este
acreditava serem os homens engrenagens que se agregam
mecanicamente, quer por vontade própria quer por obrigação.
Na sociedade liberal o indivíduo não poderia ser
considerado livre, pois que, burgues ou proletário, estaria
sempre aprisionado por um sistema de classes. O socialismo
assim equivaleria ao mundo da comunicação plena, da troca
11 Rouanet, S. P. Iluminismo ou barbárie in Mal-estar na modernidade, p. 28.
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espontânea, do trabalho como forma de realização ao mesmo
tempo individual e coletiva. Promoveria o ideal cosmopolita de
um mundo sem fronteiras que, desde Diógenes, vinha
povoando o imaginário ocidental. Seria o fim das convenções
que separam e isolam homens e etnias, produzindo a discórdia
e o preconceito. O iluminismo marxista propunha que esta
classe heróica viesse a realizar sua nobre tarefa histórica,
fazendo com que cada um dos homens se tornasse cidadão do
mundo, emancipando o gênero humano para sua maior
aquisição, a liberdade, e procurando formar o homem para o
cultivo e o aperfeiçoamento de si e para a concórdia na vida
em sociedade12.
A grande contribuição do pensamento socialista,
segundo Rouanet13 , foi a transformação do conceito de
autonomia. Ao invés de pensá-la como liberdade abstrata, ao
modo do pensamento liberal, no socialismo a liberdade é vista
segundo o viés da segurança e garantia. Não basta ter direitos
abstratos para ser livre: é preciso ser capaz de obter pelo
trabalho os bens necessários à própria sobrevivência e a uma
vida digna. Liberdade não é ausência de coação, como pensava
Kant quando diz que “a liberdade necessária à ilustração é a de
fazer uso público da razão”14. A liberdade negativa não é
suficiente, não basta para promover a autonomia, que não é
mais apenas intelectual mas antes de tudo vital. O socialismo
então busca reunir esclarecimento e realização, pensamento e
vida.
12 Cf. Matos, O. “Sociedade: tolerância, confiança, amizade” em http://www2.rantac.com.br/users/lazaro/direitoshumanos2.htm 13 Rouanet, S. P. Iluminismo ou barbárie in Mal-estar na modernidade, p. 29 a 32. 14 Kant, E. Resposta à pergunta: o que é o iluminismo, p. 13.
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Retoma-se assim a proposta iluminista de uma
educação transformadora do caráter no que diz respeito tanto
à vida privada quanto à tolerância no espaço público. Educar
vem do latim, educere, que significa “conduzir para fora de”,
levar de um lugar a outro, de uma pessoa a outra. Entretanto o
ideal socialista acaba também recaindo em um problema
quando é adaptado à realidade histórica. Isaiah Berlin aponta
para as conseqüências da má aplicação desta visão ingênua de
uma liberdade como progressiva autonomização. Este sentido
de liberdade pode se aproximar perigosamente de uma nova
forma de servidão quando a referência deixa de ser o homem
em sua existência real e passa a considerar uma abstração
qualquer (neste caso, a coletividade) como mais elevada e
digna e da qual ele não passa de um membro. A existência de
um self superior e mais abrangente tende a apagar as
diferenças reais sempre que postula a obediência
incondicional a uma ordem, seja ela religiosa, nacional, estatal,
partidária, seja mesmo a crença em um bem comum, em forças
esclarecedoras da sociedade, em uma classe que represente a
vanguarda dos acontecimentos. O socialismo teria, pois,
tentado transferir a tarefa de salvar a humanidade do
indivíduo esclarecido, o intelectual, para a classe
revolucionária, o proletariado. Permanece, no entanto, a
mesma tendência messiânica. O que a princípio se apresenta
como meio de libertação torna-se, principalmente a partir de
sua efetivação na realidade histórica, uma doutrina autoritária
e por vezes opressora, tornando-se então ferramenta do
despotismo15.
15 Cf. Lukes, S. Individualism, p. 56.
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Nietzsche: não somos todos iguais.
Malgrado sua positividade, presente na promessa de
libertação do homem pelo conhecimento, o iluminismo não
deixou de trazer consigo alguns riscos e perigos. Seu ethos
flertava muito de perto com o totalitarismo ao propor uma
visão de homem universal baseada claramente no modelo
europeu de sua época. O iluminismo corre assim o risco de
fazer calar a diferença, ameaçando silenciar as vozes
consideradas não esclarecidas ou irracionais, isto é, aquelas
que não se encaixavam no modelo de racionalidade proposto
pelo pensamento cartesiano. Este viés totalitário precisa ser
levado em consideração se desejarmos superar o iluminismo
histórico e encontrar ainda algum sentido para o termo. A
história desta superação começa bem antes de nosso tempo e
tem em Friedrich Nietzsche um dos seus mais importantes
expoentes16.
O mais virulento pensador do século XIX calou sua voz
no mesmo momento em que o século expirava. Ouvir novamente
a voz do arauto do niilismo pode nos ser de valia se quisermos
compreender melhor este outro século que há pouco terminou
sem conseguir se recuperar da premonição nietzscheana.
Nietzsche via o iluminismo como um poder terrível que
precisava ser detido a qualquer custo. Para ele, tratava-se de
um erro da pior espécie: a arrogância intelectual, a pretensão
de alguns poucos pensadores de terem a resposta para todas
16 Cf. Call, Lewis Nietzsche as Critic and Captive of Enlightenment. Tese de doutorado, Universidade da California, Irvine,1995. Em http://scrye.com/~station/dissertation.html.
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as perguntas. O iluminismo com que Nietzsche se bateu
afirmava que os seres humanos eram ou ao menos desejavam
ser sujeitos racionais e autonomos, que buscavam e mereciam
a liberdade para decidirem sobre suas vidas racionalmente.
Para Nietzsche, no entanto, a consciência nada mais
era do que “uma rede de comunicação entre seres
humanos”17, . Sua verdadeira função, portanto, não era o
conhecimento do mundo mas tão somente uma estratégia de
sobrevivência. Se o homem fosse um ser solitário, que fosse
tão dependesse dos outros humanos, jamais se teria formado
algo como a consciência. Afinal o animal selvagem que busca
alimento e luta por ele não precisa desta ferramenta, pois têm
outras bem mais eficientes. Nietzsche nos ajuda, pois, a colocar
a consciência em seu devido lugar histórico, retirando dela
qualquer resquício de universalidade ou determinismo. Da
mesma forma, o próprio sujeito é visto como uma construção,
e uma das mais perigosas que o homem já criou, uma vez que
‘dotado’ de misteriosos poderes tais como o determinar o que
é o verdadeiro e o que é o falso.
Em “Sobre verdade e mentira no sentido extra moral”
debruça-se especificamente sobre a questão do engano do
intelecto. Não se trata de um engano qualquer, como se o
intelecto se enganasse acerca de alguma coisa ou de alguém em
particular. Trata-se do engano do intelecto acerca de si mesmo.
O intelecto engana ao homem e a si mesmo quando se julga a si
mesmo como o mais importante, o mais valioso, o central no
destino do universo. Nietzsche espanta-se, como o fazem os
filósofos, mas seu o que vê de espantoso é o fato de o intelecto
17 Nietzsche, A gaia ciência, p. 171.
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humano se arrogar direitos que não tem, já que não há
rigorosamente nada que determine este valor e esta importância
salvo ele mesmo. Este juízo, o homem o faz desde si mesmo, sem
porém perceber que o olhar que tudo olha e que tudo julga
esquece de olhar para si.
Mesmo quando é de metafísica que se trata, o homem
não deixa de tomar a si mesmo como medida de todas as coisas.
Apenas disto não se dá conta, passando então a utilizar a
palavra verdade. O que Nietzsche faz é colocar o homem e o
intelecto num lugar onde se instaure a dúvida sobre seu valor,
sobre este valor que o homem sempre se confere, para que se
possa pensar sobre o intelecto e sobre o próprio homem sob
outro angulo, talvez numa posição mais humilde. Vejam, isto a
que dão o maior dos valores talvez não signifique grande coisa,
parece dizer. Talvez não seja mais que a única estratégia
possível para a sobrevivencia de um antropóide fraco,
“desprovido de presas ou garras afiadas”.
Nietzsche chama a atenção para a fragilidade do
intelecto humano justamente no momento em que este atingia o
grau máximo de sua valoração, com a filosofia de Hegel.
Enquanto Hegel afirmava que “a essência do universo, a
princípio oculta e encerrada, não dispõe de força capaz de
resistir à tentativa de conhecê-la; acaba sempre por se
desvendar e patentear a sua riqueza e profundidade, para que o
homem dela desfrute”, Nietzsche alertava para os perigos de se
acreditar com demasiado otimismo nesta potência desveladora
do pensamento. Se Hegel afirma que o homem é mais forte que
o universo e pode coagi-lo a revelar seus segredos, Nietzsche,
por outro lado, alerta-nos que o intelecto é o “mestre do
disfarce” porque consegue esconder do homem sua própria
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pequenez. O que sabe o homem de si mesmo? Muito pouco,
quase nada. Como pode o homem, que pouco sabe de si,
imaginar que domina o segredo do universo.
A princípio seria de se imaginar que o pensador de Iena
é mais conforme ao pensamento iluminista, mas isto seria um
erro de interpretação, já que o verdadeiro esclarecimento não
pode andar desacompanhado da consciência dos próprios
limites, e neste sentido foi Nietzsche quem mais se aproximou.
Nietzsche traz para o pensamento esclarecido um ingrediente
fundamental: a humildade. O homem, que muito pode, se vê
despotencializado justamente pela razão, aquela ferramenta
que deveria libertá-lo.
Mas de onde se originou uma tal prepotência do homem?
Uma tal convicção de que é absolutamente capaz de conhecer e
saber o que é a verdade última das coisas? Nietzsche diz que os
homens precisam de verdades para viver, é a partir de certezas
que podem estabelecer as condições da vida. Isto quer dizer que
o homem precisa estabelecer um certo padrão de “julgamentos
certos” para edificar seu mundo. Precisa, como diz Julian Marías,
saber a que se ater. Assim um povo sempre se forma em torno
de determinadas certezas: sobre o que seja a riqueza e a
pobreza, o justo e o injusto, o honrado e o desonrado. Tais
certezas, ou juízos, tidos como verdadeiros, não possuem
qualquer fundamento na realidade, são noções criadas para
garantir certa estabilidade social e nas quais acredita porque
disso parece depender a vida.
A grande força enganadora do intelecto está
precisamente em fazer com que o homem acredite que aquilo
que julga verdadeiro é verdadeiro, e não só, o intelecto ainda faz
crer que o verdadeiro não é algo que o próprio homem institui,
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mas que é algo verdadeiro em si, independente do contexto. O
intelecto oculta ao homem sua própria pequenez e, em última
instância, é isso que lhe permite viver, já que é a partir das
verdades instauradas pelo intelecto que o homem pode
organizar-se socialmente, pois a organização social funda-se em
certos pressupostos comuns a todos que dela participam, e tais
pressupostos têm de ter o estatuto de certeza e verdade para
que a sociedade e o próprio homem sobrevivam.
É assim que brota no ceio de um povo, por exemplo, a
idéia de edificar um templo em honra a deusa da fertilidade
para que a colheita seja boa. Para que uma tal obra se dê é
preciso que cada indivíduo compreenda a fertilidade como um
grande bem ao qual deva erguer-se uma tal obra e deve convir
também ao povo que a construção do templo irá efetivamente
determinar a fertilidade. Havendo um consenso entre os
homens acerca de tais prerrogativas, o templo é erguido. Mas
não há nada que efetivamente diga ao homem que a fertilidade é
um bem ligado a uma deusa, nem há nada que diga ao homem
que erguendo-se um templo a terra dará frutos. Esta certeza
coletiva é o que Nietzsche chama mentir em rebanho, e é assim
que não só o templo, mas outras verdades são erguidos.
Embora se possa dizer que tais certezas são arbitrárias,
são elas que possibilitam a vida, pois é a partir delas que o
homem constrói, trabalha, edifica e isto é o viver. Sem tais
certezas, sem nenhuma verdade, os homens não seriam
provavelmente capazes sequer de acordar pela manhã, pois o
que é que garante, por exemplo, que a vida do homem é boa? o
que é que garante que a passagem do homem pela terra tem
alguma finalidade? Nada nos permite afirmar isso e há milênios
que se trabalha e empenha-se para viver e melhorar. É esta
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certeza enganosa, mas necessária que o intelecto incute ao
homem.
É por isso que Nietzsche pode dizer, numa visão
bastante pragmática, que o homem “deseja as conseqüências da
verdade que são agradáveis e conservam a vida”. Tais verdades
que possibilitam a vida instauram-se pela linguagem, e assim
utiliza-se da linguagem para iludir-se. Este iludir-se não está
apenas no uso da linguagem, vai ainda mais fundo, está na
própria gênese da linguagem, pois ela também é inegavelmente
antropomorfa, sendo composta de “transposições arbitrárias”.
Qual a relação do nome com a coisa nomeada? Nenhuma. Nisto
coloca-se a própria linguagem em cheque. Mas por que a
linguagem não se liga ao que ela nomeia? Porque a linguagem só
nos diz o universal jamais o particular, deste modo entre o que
se diz e o que se vê abre-se um abismo intransponível. Assim a
beleza da árvore que se viu é indizível porque a linguagem não
consegue dizer a particularidade que está envolvida em toda
sensação.
O que a linguagem faz é retirar da multiplicidade das
diferenças o comum e dizer apenas esta comunidade. Isto é uma
necessidade, pois se a linguagem nomeasse o específico haveria
uma palavra diferente para cada árvore, para cada sensação,
para cada experiência, o que inviabilizaria a própria existência
da linguagem. A linguagem se viabiliza por sua universalidade,
pela padronização do diferente, pois se não fosse assim cada
homem teria um vocabulário particular. A universalização faz
com que /felicidade/ seja uma palavra que designa aquilo que
todo homem vivencia de forma única.
Este caráter universal ao mesmo tempo em que a
possibilita a afasta das vivências, da particularidade de toda
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sensação, pois na sensação entra em jogo o particular, o
individual que a linguagem não abarca. É isto um conceito: a
igualação do não igual. O que está sendo dito é que a essência da
palavra, sua universalidade, reside na desconsideração com o
que é o essencial para a experiência; a individuação. Isto
significa que o mundo do conceito, da palavra e do universal no
qual o homem vive e onde se movimenta é próprio do homem e
não possui nenhuma relação com o natural, o mundo do
conceito é absolutamente antropomórfico.
Aquilo de que se fala não equivale àquilo que se vê, que
se vivencia ou sente. A experiência é indizível e, portanto a
linguagem é nada mais que um instrumento do homem para o
homem. O intelecto também nos engana acerca disto, pois faz
crer na coisa à qual a palavra se coaduna. Isto traz
conseqüências epistemológicas, mas também e acima de tudo
traz conseqüências éticas, pois também a prática humana se
verá restrita a um modo único de pensar e agir. No que
concerne à ação humana, a moral é a responsável por esta
igualação do não igual, sendo rígida o suficiente para não
permitir manifestações autênticas e criadoras, mas apenas
aquelas que se adaptem à racionalidade vigente. Nietzsche
aponta assim para o caráter metafórico tanto de conceitos
quanto das estruturas morais, ambos esquecidos de sua origem
artificial.
Para que o discurso se faça e possa ser julgado
“verdadeiro” ou “falso” é imperioso que as articulações dos
conceitos sejam bem determinadas, pois é a partir destas
articulações que se pode julgar a veracidade ou a falsidade do
discurso e o que possibilita este julgamento é sempre um
estabelecimento prévio e rígido daquilo que é válido. O que vale
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para a verdade do discurso vale igualmente para a verdade da
ação moral. O homem pode valer-se da linguagem para gerar
saber e para garantir sua existência, mas pode também
abandonar esta rigidez despotencializadora e gerar a arte que
vale-se da linguagem de modo completamente outro que aquele
do saber e da moral. Enquanto o saber e a moral têm de ser
rígidos e cuidadosamente armados para garantir o verdadeiro e
o falso, o certo e o errado, a arte simplesmente retira da
linguagem este caráter rígido que, de certo modo, a refreia e
abandonando-se à pura ilusão que a linguagem também
propicia.
A estas duas possibilidades fundamentais da linguagem
estão ligadas duas posturas fundamentais do homem: a postura
racional e a intuitiva. O homem racional tem diante da vida,
antes de tudo, o desejo de segurança ele quer garantir a si
mesmo que não haverá risco em seu fazer e em seu agir, para tal,
encarrega-se de montar uma complicada estrutura de conceitos
e a guiar-se por ela e nisto tenta excluir da vida, o inesperado, o
incerto, o incontrolável. Já o homem intuitivo comporta-se de
modo absolutamente diverso, para ele o que importa é a beleza,
e assim utiliza-se da linguagem para iludir-se de modo belo, por
isso o homem intuitivo não pode preocupar-se em evitar o
inesperado ou proteger-se do incontrolável, pois a arte nasce
exatamente do encontro do homem com o inesperado. O artista
sabe que não existe modo de se garantir previamente que uma
obra será bela, pode apenas esperar que ela assim seja, e é por
isso que o artista tem de conviver com o fracasso, com o erro e é
também por isso que o artista é aquele que se defronta também
com as maiores realizações, pois só assumindo a possibilidade
da derrota é capaz de atingir a vitória. Ao contrário do artista, o
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homem racional e moral teme horrivelmente a derrota e vive
para garantir sua vitória e com isso jamais entra
verdadeiramente em um combate, vive assim eternamente
precavendo-se da possibilidade da derrota, incapaz de encarar a
batalha.
As explicações racionais do universo seriam assim
tanto mais mitológicas quanto maior fosse sua pretensão a
terem um caráter global. Quanto mais as práticas de
conhecimento e ação se concentram na eficácia e na mestria,
mais se aproximam de uma atitude moral eurocêntrica
restrita. A ciência assim não está mais próxima de revelar a
essência das coisas do que o conhecimento mítico. Trata-se
num caso como no outro de intrepretações. “Em termos de
teoria”, diz Henri Atlan, “nada mais existe do que a
interpretação” 18 . E completa: “podemos entrever uma
ressonância da idéia nietzscheana segundo a qual o ideal
científico da clareza pode, por vezes, ser ele próprio um mito,
o ‘mito racional do ocidente’, eventualmente a serviço de
interesses particulares, de novos ‘sacerdotes’ numa sociedade
tecnocrática”19.
Com relação à visão política do iluminismo,
principalmente à sua vertente liberal, Nietzsche apresenta-se
implacável, conforme pode-se concluir do trecho a seguir:
Não somos de modo algum liberais. Não trabalhamos para o progresso, não precisamos conectar nossas orelhas às sirenes que cantam o futuro, suas canções sobre igualdade de direitos e uma sociedade livre, sem mestres ou escravos. Simplesmente não consideramos desejavel que a
18 Atlan, H. Com a razão e sem ela, p. 15. 19 Idem, p. 16.
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justiça e a concórdia se estabeleçam sobre a terra. Deleitamo-nos com todos os que, como nós, amam o perigo, a guerra, as aventuras, que se recusam a capitular, a ser capturados e castrados. Estamos entre os conquistadores20.
Para Nietzsche o grande perigo do iluminismo é
considerar os homens como iguais. Aqui se tem a impressão de
que dialoga diretamente com Rousseau, com suas idéias de
liberdade, direitos iguais e contrato social. Não, afirma ele,
definitivamente não queremos ser iguais. Queremos ser
diferentes, únicos, incomparáveis. Não que todos o queiram,
mas ao contrário, que apenas alguns poucos, esta é a
verdadeira crítica ao igualitarismo. Os que desejam a
igualdade são chamados cordeiros, homens do rebanho. Neste
sentido Nietzsche apresenta uma nova forma de se pensar o
esclarecimento, apontando para o direito à diferença, o direito
de não mentir reativamente, mas de afirmar ativamente. Se
para Rousseau o indivíduo não é mais que uma parte do todo,
para Nietzsche este é mais que o todo quando é capaz de se
fazer forte, ativo, afirmativo.
Mas Nietzsche não deve ser visto pura e simplesmente
como um inimigo do esclarecimento, como o irracionalista que
tantas vezes foi acusado de ser. Em “Humano, demasiado
humano” ele chega mesmo a fazer uma apologia do
movimento renascentista que bem poderia pertencer a um
panfleto iluminista:
A Renascença Italiana continha todas as forças positivas que encontramos na cultura moderna: liberdade de pensamento, desrespeito às autoridades, virtória da educação sobre a
20 Nietzsche, F. The gay science, p. 338. Tradução livre.
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arrogancia da tradição, entusiasmo pela ciência e pelo passado científico da humanidade21.
Laurence Lampert acredita que ele buscava, ao
contrário, aprofundar e ampliar o iluminismo, “forçando-o a
dar o próximo passo - o do esclarecimento acerca do próprio
esclarecimento”22. É preciso compreender que quando se bate
contra o iluminismo, Nietzsche tem em mente antes de tudo a
forma do iluminismo de inspiração cartesiana, que tem por
base um sujeito de conhecimento em um mundo de objetos.
Este iluminismo acabara funcionando mais como uma forma
de aprisionamento do que de libertação, de ignorancia mais do
que de sabedoria. E isto lhe era demasiado insuportável.
Em comum com o pensamento iluminista consta a
paixão pela liberdade, pela inquietude do espírito e pela
independência, bem como o desejo de superação do homem.
Lewis Call concorda com esta perspectiva, afirmando que
“Nietzsche ataca o iluminismo convencional sem hesitar, mas o
faz em nome de um projeto que é, em seu objetivo e em boa
parte de seu método, fundamentalmente pró-
esclarecimento”23. Afinal não é a toa que Zaratustra cante a
superação do homem e o advento do além-homem. O que há
de irônico na relação de Nietzsche com o iluminismo é que,
apesar das veementes críticas ao projeto e a seus principais
mentores, ele mantém viva a chama do progresso e do
aperfeiçoamento do ser humano visando a construção de um
mundo melhor.
21 Humano, demasiado humano, p. 306. 22 Lampert, L. Nietzsche and modern times, p. 360. Citado por Call, Lewis Nietzsche as Critic and Captive of Enlightenment. 23 Call, Lewis Nietzsche as Critic and Captive of Enlightenment.
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