A Obrigacao Segundo Bergson

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  A OBRIGAÇÃO DO PONTO DE VISTA DE BERGSON: ALGUNS ASPECTOS DE S D U S F ONTES D M OR L E D R ELIGIÃO  L  A OBLIGACIÓN DEL P UNTO DE VISTA DE BERGSON:  ALGUNOS ASPECTOS DE L  AS DOS FUEN TES DE LA MOR AL Y DE LA R ELIGIÓN  THE OBLIGATION FROM BERGSON'S POINT OF VIEW: SOME ASPECTS OF T HE T WO S OURCES OF M ORALITY AND R ELIGION  Rafael Henrique Teixeira Universidade Federal de São Carlos / FAPESP E-mail: [email protected] Natal (RN), v. 21, n. 35 Janeiro/Junho de 2014, p. 351-387

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Texto acadêmico que versa sobre a temática da obrigação em Henri Bergson.

Transcript of A Obrigacao Segundo Bergson

  • A OBRIGAO DO PONTO DE VISTA DE BERGSON:

    ALGUNS ASPECTOS DE

    AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIO

    LA OBLIGACIN DEL PUNTO DE VISTA DE BERGSON:

    ALGUNOS ASPECTOS DE

    LAS DOS FUENTES DE LA MORAL Y DE LA RELIGIN

    THE OBLIGATION FROM BERGSON'S POINT OF VIEW:

    SOME ASPECTS OF

    THE TWO SOURCES OF MORALITY AND RELIGION

    Rafael Henrique Teixeira

    Universidade Federal de So Carlos / FAPESP

    E-mail: [email protected]

    Natal (RN), v. 21, n. 35

    Janeiro/Junho de 2014, p. 351-387

  • Rafael Henrique Teixeira

    Resumo: O presente artigo trata da noo de obrigao que Bergson

    apresenta em As duas fontes da moral e da religio. Em primeiro

    lugar mostraremos de que maneira o ponto de vista de Bergson se

    afasta de duas maneiras habituais de encarar o problema, aquela da

    sociologia de Durkheim e da filosofia moral de Kant. Bergson

    demonstra que a moral no diz respeito a uma exigncia da razo e

    que ela um fato apenas relativamente social. Seu fundamento

    verdadeiro se encontra em uma inteno da vida. Veremos ainda

    que uma ao realizada por dever se define por um abandono ou

    deixar-se levar, e no por uma tenso entre ordens distintas de

    determinao acompanhada de uma coao sobre o querer, tal

    como postularia uma filosofia de inspirao kantiana. Em seguida

    examinaremos como Bergson levado a definir a moralidade das

    aes como um instinto virtual, modo pelo qual a vida obtm, em

    uma associao de seres livres e inteligentes, uma regularidade que

    em outras linhas da evoluo foi alcanada pelo instinto.

    Retomaremos para tanto algumas teses de A evoluo criadora.

    Palavras-chave: moral, sociedade, vida.

    Resumen: El presente artculo trata de la nocin de obligacin que

    Bergson presenta en Las dos fuentes de la moral y de la religin. En

    primer lugar mostraremos de qu forma el punto de vista de

    Bergson se aleja de dos modos habituales de encarar el problema,

    aquella de la sociologa de Durkheim y de la filosofa moral de Kant.

    Bergson demuestra que la moral no tiene que ver con una exigencia

    de la razn y que es apenas relativamente social. Su fundamento

    verdadero se encuentra en una intencin de vida. Veremos an que

    una accin realizada por deber se define por un abandono o dejarse

    llevar, y no por una tensin sobre el querer, tal como postulara una

    filosofa de inspiracin kantiana. En seguida, examinaremos cmo

    Bergson es llevado a definir la moralidad de las acciones como un

    instinto virtual, modo por el cual la vida obtiene, en una asociacin

    de seres libres e inteligentes, una regularidad que en otras lneas de

    la evolucin fue alcanzada por el instinto. Retomaremos para eso

    algunas tesis de La evolucin creadora.

    352

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    Palabras clave: moral, sociedad, vida.

    Abstract: This article presents the notion of obligation that Bergson

    develops in The Two Sources of Morality and Religion. First of all

    we will show how Bergsons point of view is different from two

    usual ways of examine the problem, those of Durkheims sociology

    and Kants moral philosophy. Bergson shows that morality its not a

    matter of reason and only relatively a social fact. Its true foundation

    lies in a life intention. We shall consider that an action made by

    duty is defined by one kind of passive acquiescence or non-exertion,

    and not by a tension between different orders of determination that

    is immediately followed by a coercion upon the will, as could

    postulate a philosophy of kantian inspiration. Thereafter we will

    examine how Bergson defines the morality of actions as a virtual

    instinct, the way in which life gets in an association of free and

    intelligent beings a kind of regularity that in other lines of evolution

    was reached with instinct. So we must return to some Creative

    Evolution theses.

    Keywords: life, morality, society.

    353

  • Rafael Henrique Teixeira

    O tema central da tica bergsoniana, afirma Janklvitch (1959, p.

    186), a ausncia de pacto ou transao gradual entre a moral

    esttica e a moral dinmica. A primeira a moral dos agrupamentos

    fechados, que compreendem determinado nmero de indivduos e

    exclui outros, a outra aquela de uma sociedade nica, que

    abarcaria a humanidade em sua totalidade. A abertura do fechado,

    verdadeira transfigurao, implica a conduo de uma diversidade

    blica a uma unidade fraterna, uma transformao que acabaria por

    excluir toda diferena.

    A natureza fragmentou a humanidade em individualidades

    distintas ao mesmo tempo em que lhes forneceu uma estrutura

    moral que lhes permite viver em grupos numericamente restritos.

    Foi o que ela colocou disposio do homem. Como todo ato

    constitutivo de uma espcie, este foi uma parada. Retomando a

    marcha adiante, quebra-se a deciso de quebrar (Bergson, 1932, p.

    50) Para tanto seria preciso, verdade, que algo arrastasse atrs de

    si essa humanidade que a natureza fragmentou.

    A vida bem poderia ter se detido a, e nada mais fazer seno constituir

    sociedades fechadas cujos membros tivessem sido ligados uns aos outros

    por obrigaes estritas. Compostas de seres inteligentes, essas sociedades

    teriam apresentado uma variabilidade que no encontramos nas

    sociedades animais, regidas pelo instinto; mas a variao no teria

    chegado a encorajar o sonho de uma transformao radical; a

    humanidade no teria se modificado ao ponto em que uma sociedade

    nica, abarcando todos os homens, aparecesse como possvel. Por isso,

    essa no existe ainda, e talvez sequer exista um dia: fornecendo ao

    homem a conformao moral que lhe preciso para viver em grupo, a

    natureza fez provavelmente espcie tudo o que ela podia (Bergson,

    1932, p. 97).

    354

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    A moral que permite ao homem viver em sociedade possibilita

    uma intensificao criativa que no seria alcanada caso ele se

    encontrasse abandonado solido de um trabalho no dividido

    socialmente. Mas uma coisa so as vantagens que a associao das

    inteligncias carrega, outra a transformao radical da

    humanidade, a efetivao do horizonte tico de uma moral

    absoluta. Ser preciso, para tanto, muito mais do que permite os

    quadros da inteligncia. O homem ter de se fazer objeto da ao

    de almas privilegiadas que, sentindo-se aparentadas a todas as

    almas, ao invs de permanecerem nos limites do grupo e de se

    acomodarem soliedariedade estabelecida pela natureza, voltaram-

    se para a humanidade em geral em um el de amor (Bergson,

    1932, p. 97). Caber ao mstico constituir a obra que no apenas

    subverter a estrutura estacionria da moral, mas que, ao faz-lo,

    pretender fazer da humanidade uma espcie nova, ou, antes,

    livr-la da necessidade de ser uma espcie (Bergson, 1932, p. 332).

    No obstante a diferena entre as duas morais, elas so duas

    manifestaes complementares da vida (Bergson, 1932, p. 99). A

    primeira destinada a conservar a forma social caracterstica da

    espcie, a segunda, por intermdio de almas privilegiadas, capaz de

    transfigurar a estrutura moral fundamental e, com isso, a prpria

    humanidade. Nos dois casos nos encontramos diante de foras que

    no so propriamente nem exclusivamente morais, e das quais no

    cabe ao moralista realizar a gnese (Bergson, 1932, p. 98). Toda

    moral, concluir Bergson (1932, p. 103), de essncia biolgica 1

    .

    1

    possvel observar a distncia desse ponto de vista com relao s

    criticas e expectativas do perodo que precede a publicao de As duas

    fontes. Segundo Soulez e Worms (1997, p. 208) tratava-se de uma crtica

    lanada por autores de inspirao kantiana que exigiam da filosofia uma

    regra racional capaz de guiar a conscincia moral, duvidando da

    possibilidade, para um sujeito moral ou para um cidado poltico, de

    retomar por sua conta a liberdade que Bergson descreve no Ensaio sobre

    os dados imediatos da conscincia. Bergson no pareceu dar ouvido a essa

    expectativa, limitando-se a circunscrever o lugar muito pouco ativo da

    razo na constituio dos fatos morais. Se com o kantismo o que temos o

    reconhecimento da autonomia de uma razo legisladora, o intento

    bergsoniano pode ser ilustrado como uma tentativa de salvaguardar a

    355

  • Rafael Henrique Teixeira

    Uma vez reconhecido o duplo postulado pelo qual se apresenta o

    problema da moral em As duas fontes uma diferena de natureza

    entre duas morais e sua fundamentao na unidade do movimento

    da vida hora de delimitar o campo sobre o qual se deter minha

    anlise. Voltar-me-ei ao que h de esttico no quadro da vida moral

    traado por Bergson, ou seja, sociabilidade fechada e estrutura

    moral que a sustenta. Comearemos por tratar da noo de

    obrigao bergsoniana contrapondo-a a dois modos habituais de

    encarar o problema e contra os quais Bergson se volta em As duas

    fontes.

    O automatismo das aes obrigatrias. Bergson descreve porque nos

    ligamos a nossos concidados e familiares, de um lado, totalidade

    da humanidade, de outro. Nesses termos suas teses abstrao feita

    do evolucionismo de A evoluo criadora que lhes serve de

    embasamento no se encontram na contramo absoluta daquelas

    de Durkheim, que afirma um lao indissocivel entre moral e

    sociedade. moral tudo o que fonte de soliedariedade, tudo o

    que fora o homem a contar com outrem, regular seus

    movimentos sobre outra coisa que as impulses de seu egosmo

    (Durkheim, 1893, p. 394). A obrigao social que Bergson descreve

    cumpre essa funo reguladora. Mas no na sociedade, e sim na

    vida ainda que por intermdio de mecanismos de obedincia

    socialmente institudos, mas no socialmente fundamentados que

    Bergson encontra a fonte da moral das sociedades fechadas.

    Contenta-se em dizer que a sociedade existe, que a partir de ento ele

    exerce necessariamente sobre seus membros uma coao, e que essa

    coao a obrigao. Mas, em primeiro lugar, para que a sociedade

    exista, preciso que o indivduo carregue todo um conjunto de

    disposies inatas; a sociedade no se explica ento por si mesma;

    devemos consequentemente buscar abaixo das aquisies sociais, chegar

    vida, da qual as sociedades humanas no so, como a espcie humana,

    alis, outra coisa seno manifestaes (Bergson, 1932, p. 103).

    heteronomia da vontade por meio das disposies que a vida apresenta

    espcie e dos meios excepcionais que fornece para a superao de seus

    prprios limites.

    356

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    Como para Durkheim sociedade e obrigao se encontram

    implicadas. Mas essa sociedade que se avizinha da obrigao no

    o termo ltimo no qual a gnese da moral se detm. Para Bergson o

    carter moral das regras, seu carter obrigatrio, no se liga

    sociedade pela coao que ele exerce do exterior sobre a conscincia

    do sujeito moral, tal qual postula Durkheim. H disposies morais

    inatas que inclinam o homem a obedecer e que, ao faz-lo,

    condicionam a prpria sociedade.

    A sociedade do ponto de vista durkheimiano condio

    necessria da moralidade das aes. Apenas temos deveres diante

    de conscincias; todos os nossos deveres se endeream a pessoas

    morais (Durkheim, 1906, p. 71). Essa pessoa moral deve ser

    qualitativamente distinta das personalidades individuais, e a nica

    personalidade moral que se encontra acima das personalidades

    particulares aquela que forma a coletividade (Durkheim, 1893, p.

    V). Fora da soliedariedade social na qual se encontra imiscudo, o

    indivduo no pode ser objeto de devotamento moral. O que nos

    liga moralmente a outrem no nada do que constitui sua

    individualidade emprica, o fim superior da qual ela a servidora

    e o rgo (Durkheim, 1906, p. 76); em suma, a sociedade.

    Para Bergson a sociedade no cria por sua exterioridade relativa

    para com os indivduos regras de carter moral. A moralidade das

    aes quem torna possvel a existncia da sociedade, imanente s

    disposies naturais que o indivduo carrega em sua constituio.

    Na verdade o problema das origens da sociedade no se coloca

    sociologia durkheimiana, satisfeita em reconhecer nela fonte da

    vida moral. Bergson, por seu lado, no se ocupa da gnese da moral

    sem fazer o mesmo com a sociedade.

    A exterioridade para Durkheim trao distintivo de todo fato

    social, maneira de fazer, fixada ou no, susceptvel de exercer

    sobre o indivduo uma coao exterior (Durkheim, 1894, p. 14).

    Transcendncia que distingue o social durkheimiano daquele

    apresentado por Bergson em termos de disposies imanentes que

    traam no indivduo o programa de sua existncia. Mais que

    imanentes, so disposies naturais que manifestam uma inteno

    da vida temos o direito de proceder como o bilogo, que fala de

    uma inteno da natureza todas as vezes que assinala uma funo a

    357

  • Rafael Henrique Teixeira

    um rgo: ele exprime assim a adequao do rgo funo

    (Bergson, 1932, p. 54). rgo e funo dizem respeito s

    sociedades fechadas e estrutura moral que lhes coextensiva.

    A humanidade bem pode ter se civilizado, a sociedade bem pode ter se

    transformado, pretendemos que as tendncias orgnicas vida social

    permaneceram o que elas eram na origem [...] Essas tendncias orgnicas

    no mais aparecem claramente nossa conscincia, eu o sei. Mas elas no

    constituem menos o que h de mais slido na obrigao (Bergson, 1932,

    p. 54).

    A obrigao no , portanto, fenomeno estritamente sociolgico.

    Bergson demonstra a ligao entre a moralidade das aes e a vida

    observando na obrigao social uma tendncia orgnica cujo

    imanentismo nos afasta das teses de Durkheim a respeito de sua

    origem social. Como reconhece Bouaniche (2002, p. 149), a

    biologia se reveza com a sociologia absorvendo a moral numa

    gnese que far aparecer a obrigao como forma que a necessidade

    adquire no homem. Mas antes de tratar do modo como Bergson,

    atravs do evolucionismo de A evoluo criadora, localiza

    disposies morais ao longo da evoluo, h outro aspecto do

    problema a tratar.

    Trata-se de descrever o mecanismo de obedincia de que a vida

    se utiliza demonstrando a natureza peculiar da ao que dele

    decorre, uma ao obrigatria cujo mvel2

    no implica uma coao

    da vontade. Excetuados o instinto e o hbito, no h ao direta

    sobre nosso querer a no ser aquela da sensibilidade (Bergson,

    1932, p. 35). Se nosso objetivo lanar alguma luz sobre a noo

    de obrigao bergsoniana, ao hbito que temos de nos voltar.

    [...] a vida social nos aparece como um sistema de hbitos mais ou menos

    fortemente enraizados que correspondem s necessidades da comunidade.

    Alguns dentre eles so hbitos de comandar, a maioria so hbitos de

    obedecer, seja que obedeamos a uma pessoa que comanda em virtude de

    uma delegao social, seja que a prpria sociedade, confusamente

    percebida ou sentida, emane uma ordem impessoal. Cada um desses

    hbitos de obedecer exerce uma presso sobre nossa vontade. Podemos

    2

    Na acepo kantiana do termo princpio determinante subjetivo da

    vontade (Kant, 1788, p. 105).

    358

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    nos subtrair a ele, do mesmo modo que o pendulo se afasta da vertical.

    Certa ordem foi desarranjada, ela deveria se restabelecer. Logo, como

    para todo hbito, ns nos sentimos obrigados (Bergson, 1932, p. 02).

    O fato de cada hbito corresponder a uma exigncia social no

    o que lhe fornece seu carter obrigatrio. Sua fora se liga presso

    exercida pela sntese do conjunto. A obrigao que representa cada

    ato tomado isoladamente pouca coisa frente presso que exerce

    o bloco formado por todos os hbitos reunidos. A eficcia moral de

    cada hbito se deve precisamente ao fato de que o todo formado

    pelos hbitos reunidos oferece em contrapartida a cada um a fora

    da presso exercida pelo conjunto.

    Represente a obrigao pesando sobre a vontade maneira de um hbito,

    cada obrigao arrastando atrs de si a massa acumulada das outras e

    utilizando assim, para a presso que exerce, o peso do conjunto: voc ter

    o todo da obrigao para uma conscincia moral simples, elementar. o

    essencial, ao que a obrigao poderia rigorosamente se reduzir

    (Bergson, 1932, p. 19).

    O todo da obrigao uma fora que se afirma, extrato

    concentrado, quintessncia dos mil hbitos especiais que contramos

    ao obedecer s mil exigncias especiais da vida social (Bergson,

    1932, p. 17). Tal a imanncia do todo para com cada uma de suas

    partes que todos os deveres se colorem do tom que tomou

    excepcionalmente tal ou qual dentre eles (Bergson, 1932, p. 13).

    Essa sntese, embora indefinida (no se trata de impor

    preferencialmente uma atitude em detrimento de outra, mas de

    emprestar sua fora a todas), o que fornece s aes carter

    obrigatrio.

    Se ela social, a sua fora, a eficcia de sua ao sobre a

    vontade, no se deve, como pleitearia Durkheim, transcendncia

    pela qual se apresentaria s conscincias que determina, coagindo-

    as do exterior. Bergson define a ao da sociedade por meio da

    presso exercida pelo todo da obrigao por um deixar-se levar. Tal

    a aderncia do indivduo sociedade que basta que nos deixemos

    levar para darmos sociedade o que ela espera de ns.

    No se pode viver em famlia, exercer sua profisso, tratar das mil

    atividades da vida cotidiana, fazer suas compras, caminhar na rua ou

    359

  • Rafael Henrique Teixeira

    mesmo ficar em casa, sem obedecer a prescries e se dobrar a obrigaes.

    Uma escolha se impe a todo instante; optamos naturalmente por aquilo

    que conforme a regra. Mal temos conscincia disso; no fazemos esforo

    algum. Um caminho foi traado pela sociedade; encontramo-lo aberto

    diante de ns e o seguimos [...] o dever assim entendido se realiza quase

    sempre automaticamente e a obedincia ao dever, caso nos atenhamos aos

    casos os mais frequentes, se definiria por um deixar-se levar ou um

    abandono (Bergson, 1932, p. 12).

    Como se ao agir de acordo com uma regra, por dever,

    simplesmente desdobrssemos uma atitude desenhada no esprito

    por um hbito que corresponde a uma exigncia social. O hbito

    figura como mvel que no se encontra em conflito com inclinaes

    de outra natureza e que buscariam, em detrimento dele, determinar

    o querer. Cedemos a uma presso, verdade, mas essa atitude do

    esprito no implica um conflito entre mveis; o hbito basta,

    afirma Bergson (1932, p. 12). essa naturalidade do deixar-se

    levar, a suficincia do hbito e o automatismo de sua execuo que

    no devemos perder de vista quando se trata de definir uma ao

    realizada por dever do ponto de vista da tica bergsoniana3

    .

    3

    verdade que proposies dessa natureza causariam estranhamento ao

    leitor de Bergson acostumado causalidade prpria ao ato livre. No

    haveria contradio entre o deixar-se levar caracterstico de uma

    causalidade que podemos reconhecer como social e que recorre ao hbito e

    aquela que diz respeito a um ato que emana de nossa personalidade, do

    eu, e somente dele, na medida em que somente nosso eu reivindicar sua

    paternidade (Bergson, 1889, p. 130)? No cabe aqui explorar os

    problemas que se colocam na relao entre a durao do eu profundo e as

    aes de carter social que se desenrolam em sua superfcie. Devemos

    apenas reconhecer que as teses de As duas fontes no contradizem aquelas

    do Ensaio, apenas lanam nova luz sobre esses eus que se desenvolvem em

    diferentes profundidades. Bergson reconhecera j no Ensaio que o eu

    superficial, espacializado, era um eu socializado; ele apenas torna a

    reconhecer em As duas fontes essa relao entre eu superficial e

    socializao afirmando que na superfcie, em seu ponto de interseco

    no tecido das outras personalidades exteriorizadas, que nosso eu encontra

    geralmente onde se ligar (Bergson, 1932, p. 08). Essa retomada ocupa-se

    da obrigao que sustenta a ligao entre os indivduos exteriorizados,

    entre os eus superficiais.

    360

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    Aspectos aparentemente paradoxais na medida em que estamos

    tratando de aes marcadas por seu carter obrigatrio, e que

    acabam por fazer da noo de dever bergsoniana coisa

    completamente distinta daquela que elabora a filosofia moral de

    Kant. A autonomia da vontade que se desenha no conflito entre

    razo e sensibilidade no tem sentido em um universo moral como

    aquele descrito por Bergson, em que obedece ao dever aquele que

    se deixa levar no automatismo de um abandono, por que no,

    sonamblico. Distinta tambm da noo de obrigao presente na

    sociologia de Durkheim, em que a coao da sociedade,

    necessariamente exterior ao que determina, implica uma imposio

    sobre a vontade que afasta qualquer possibilidade da naturalidade

    do abandono que Bergson descreve.

    Como se diante da opo apresentada por Kant entre uma querer

    condicionado empiricamente ou incondicionalmente determinado

    pela razo prtica Bergson tivesse optado por um querer cuja

    atividade se define pela unidade de um movimento que retira da

    ao toda tenso entre ordens distintas de determinao, fonte,

    para Kant, do carter imperativo de uma regra.

    Do ponto de vista kantiano a suposio de uma vontade pura

    coisa distinta do reconhecimento de uma vontade que fosse

    completamente submetida ao imprio das leis objetivas caso o

    fosse no existiram aes propriamente obrigatrias. Essa vontade

    no poderia ser representada como obrigada a aes conforme a

    essas leis, pois no h imperativo vlido para a vontade divina e

    em geral para uma vontade santa; o verbo dever no se encontra

    aqui em seu lugar, pois j por si mesmo o querer se encontra

    necessariamente de acordo com a lei (Kant, 1785, p. 116). Dever e

    obrigao so noes ligadas a uma tenso entre ordens distintas de

    determinao. a submisso do homem a necessidades e mveis

    sensveis, a mximas que entram em oposio com a lei moral, que

    faz com que esta lhe figure como um imperativo.

    Esta ltima ento para os homens um imperativo que ordena

    categoricamente, pois a lei incondicionada; a relao de tal vontade com

    essa lei a dependncia que, sob o nome de obrigao, designa uma

    coao imposta, verdade, somente pela razo e por sua lei objetiva a

    uma ao chamada dever, pois um arbtrio, afetado patologicamente

    [...] encerra um desejo que, tendo origem em causas subjetivas, pode se

    361

  • Rafael Henrique Teixeira

    opor ao puro princpio determinante objetivo, e tem necessidade,

    consequentemente, como coao moral, de uma resistncia da razo

    prtica que pode ser chamada uma coao interior, mas intelectual (Kant,

    1788, p. 56).

    Bergson retira da noo de dever kantiana precisamente a tenso

    nela implicada, alm, claro, do carter racional da moralidade das

    regras como o fizera, verdade, com o carter social do qual as

    regras morais eram tributrias do ponto de vista de Durkheim4

    . Na

    verdade no deixa de soar estranho falar em dever para uma ao

    na qual no h uma tenso entre mundos (por exemplo, o sensvel e

    o suprassensvel anunciado pela liberdade transcendental kantiana),

    como no caso em que se trata de fazer com que as leis da razo

    prtica tenham influncia sobre mximas cujos mveis vm de outro

    universo de determinaes. Mas tal parece ser precisamente o caso

    do dever bergsoniano.

    No obstante, no devemos ver no automatismo que

    encontramos na execuo do dever a excluso absoluta de

    hesitao. Procedendo assim no haveria motivo para qualquer

    considerao sobre a liberdade, seja a liberdade metafsica do eu

    profundo, seja a liberdade biolgica da inteligencia, e no haveria,

    no limite, necessidade de uma moral. Se a estrutura moral das

    sociedades fechadas uma soluo que a vida encontrou para a

    supresso do egosmo que se insinua no campo da atividade

    inteligente, a hesitao diante de um dever no objeto estranho

    tica bergsoniana.

    4

    Se no se trata de depurar os princpios determinantes da vontade de

    toda matria na direo de uma vontade que possa ser imediatamente

    determinada pela pura forma da regra no se trata, por outro lado, como

    o caso durkheimiano, de dobrar-se a um heteros como aquele representado

    pela sociedade. Se uma heteronomia de fato salvaguardada ao campo da

    moralidade com a inteno que a vida apresenta atravs de um sistema de

    hbitos que corresponde a exigncias sociais, o modo como ela se faz

    impor a uma conscincia que age por dever no o mesmo que aquele da

    heteronomia que se apresenta com a sociedade durkheimiana. Se a

    obrigao , com efeito, de carter social, isso no anula seu fundamento

    ltimo, na atividade vital, tampouco justifica o socius hipostasiado da

    sociologia de Durkheim.

    362

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    [...] constataremos atitudes diferentes frente ao dever. Elas marcam o intervalo

    entre duas atitudes ou, antes, dois hbitos extremos: circulao to natural

    sobre as vias traadas pela sociedade que mal as observamos; hesitao e

    deliberao, ao contrrio, sobre qual tomaremos, sobre o ponto at onde iremos

    nela, sobre os trajetos de ida e volta que faremos ao se engajar sucessivamente

    sobre muitas dentre elas. No segundo caso, problemas novos se colocam, mais

    ou menos frequentes; e, l mesmo onde o dever completamente traado,

    colocamos sobre ele mais ou menos de nuances ao realiza-lo. Mas, em primeiro

    lugar, a primeira atitude aquela da imensa maioria dos homens [...] Em

    segundo lugar ns bem podemos raciocinar em cada caso particular, formular a

    mxima, enunciar o princpio, deduzir as consequncias: se o desejo e a paixo

    tomam a palavra, se a tentao grande, se vamos cair nela, se imediatamente

    nos restabelecemos, onde ento estava a mola? (Bergson, 1932, p. 17).

    No na ao do intelecto sobre o querer, certamente. O erro de

    boa parte dos filsofos, sobretudo daqueles que se ligam Kant,

    que eles confundiram o sentimento da obrigao, estado tranquilo

    e aparentado inclinao, com o abalo que nos damos s vezes para

    romper com o que se oporia a ela (Bergson, 1932, p. 14). A

    resistncia nesse caso no implica uma oposio que autoriza e

    mesmo exige reconhecer na ao obrigatria uma coao sobre o

    querer, como ocorre com as morais intelectualistas que confundem

    uma operao da inteligencia com a fonte da obrigao. Quando a

    inteligncia faz frente sua prpria hesitao ela produz, com

    efeito, um estado de tenso ou contrao. esse rigor que

    exteriorizamos quando atribumos ao dever um aspecto to severo

    (Bergson, 1932, p. 15).

    A inteligncia delibera, hesita; em seguida motivos so

    formulados, frmulas so construdas para o restabelecimento da

    ordem temporariamente suspensa. Mas essas representaes no

    fundam a obrigao. Elas funcionam como uma espcie de

    autoimunidade da inteligncia cuja eficcia, contudo, se funda em

    uma atividade pr-representativa; uma ao obrigatria no pode se

    desprender de um simples embate de representaes sobrepondo-se

    umas s outras.

    Por naturalmente, com efeito, que faamos nosso dever,

    podemos encontrar em ns a resistncia; til observar isso, e no

    tomar por certo que seja fcil permanecer bom esposo, bom

    cidado, trabalhador consciencioso, enfim, homem honesto

    363

  • Rafael Henrique Teixeira

    (Bergson, 1932, p. 14). Diante de uma hesitao dessa natureza a

    inteligencia formula suas mximas e enuncia seus princpios, nos

    oferece razoes para que nos mantenhamos no caminho exigido pelo

    dever. Mas Bergson (1932, p. 98) taxativo: como se uma idia

    pudesse alguma vez exigir categoricamente sua prpria realizao!.

    O que h de obrigatrio na obrigao no vem, como quer Kant

    (1788, p. 56), de uma resistncia da razo prtica que pode ser

    chamada uma coao interior. A inteligencia apenas explica da

    obrigao aquilo que nela encontramos de hesitao. L onde ela

    parece fundar a obrigao, ela se limita a mant-la resistindo uma

    resistncia, impedindo-se de impedir (Bergson, 1932, p. 95). Uma

    frmula elaborada com elementos da razo apenas expressa uma

    necessidade que se afirma atravs dela, fundamentalmente vital e

    correspondente a exigncias sociais. Os conceitos presentes nessa

    frmula so uma projeo sobre o plano intelectual de exigncias de

    outra ordem. De modo que se essas frmulas expressam a

    necessidade de uma regra (necessidade que no fundamentam), se

    elas servem ao restabelecimento uma ordem momentaneamente

    suspensa, elas no constituem imperativos no sentido kantiano do

    termo.

    Imperativos categricos so frmulas que exprimem a relao

    entre leis objetivas e formais da razo com a imperfeio subjetiva

    da vontade; representam a coao da vontade enunciada na tarefa a

    realizar. A representao de um princpio objetivo, na medida em

    que esse princpio coage a vontade, se chama um comando (da

    razo), e a frmula do comando se chama um imperativo (Kant,

    1785, p. 115). Quando, resistindo a uma resistncia, utilizamo-nos

    de razoes que reconduzem a aes diante das quais hesitamos

    temporariamente no a coao da vontade que elas representam.

    Suas frmulas so a reconstruo intelectual de um trabalho de

    ordem infra-intelectual, cujos efeitos se encontram no mais ntimo

    da espcie, na estrutura moral que ela carrega e que a inclina a

    obedecer. Uma hesitao apenas mede uma suspenso momentnea

    do movimento que nos conduz realizao do dever, e as frmulas,

    mximas e princpios que a razo enuncia so apenas a palavra

    pela qual designamos o efeito suposto ltimo dessa ao, sentida

    como contnua, o termo hipottico do movimento que j nos anima

    (Bergson, 1932, p. 288).

    364

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    A coerncia que essas frmulas introduzem uma expresso

    daquilo que possui, verdadeiramente, eficcia moral. Sobre o plano

    intelectual, com efeito, todas as exigncias sociais se compenetram

    em conceitos (Bergson, 1932, p. 82). Uma ideia, enquanto tal, no

    pode determinar a vontade; se ela possui alguma fora, ao menos

    para retirar o querer de sua suspenso momentnea, ela a toma de

    emprstimo de todo o trabalho que a precede e que, este sim,

    condiciona a vontade e torna natural a obedincia a determinadas

    regras.

    Podemos ento afirmar que Bergson reconhece a resistncia

    realizao de uma ao por dever como elemento da vida moral ao

    mesmo tempo em que preserva aquela que a marca de sua noo

    de dever, uma inclinao, um deixar-se levar. E ao faz-lo, acaba

    por demonstrar o papel secundrio de representaes no

    condicionamento da vontade. Elementos que representam

    verdadeiro golpe filosofia moral de Kant, na qual o dever resulta

    de um conflito entre inclinaes subjetivas e leis objetivas da razo

    prtica. Totalmente distinta a hesitao que Bergson reconhece na

    vida moral. No a tenso que ela insinua que funda a obrigao5

    .

    5

    Bergson admite na verdade uma tenso de outra ordem, acompanhada

    de verdadeiro esforo. No se trata da suspenso momentnea do querer

    de um sujeito que hesita, mas do momento da converso do eu profundo

    em um eu socializado, submetido a partir de ento aos ditames de aes

    necessrias: se relativamente fcil se manter no quadro social, seria

    antes preciso inserir-se nele, e a insero exige um esforo (Bergson,

    1932, p. 14). Esforo violento, com efeitos devastadores mobilidade que

    caracteriza a durao do eu profundo. Sociedade e inteligncia, a servio

    das exigncias da vida prtica, trabalham em unssono: o objetivo

    essencial da sociedade inserir certa fixidez na mobilidade universal

    (Bergson, 1922, p. 89). A vida social no elemento estranho sombra do

    eu que se projeta no espao homogneo e que adquire uma diviso e

    fixidez que desnaturalizam sua durao verdadeira, em suma, ao eu

    superficial. Este se presta infinitamente melhor s exigncias da vida

    social em geral e da linguagem em particular, ela a prefere, e perde pouco

    a pouco de vista o eu fundamental (Bergson, 1889, p. 96). Mas no a

    relao entre esses nveis do eu que funda a obrigao, e seu

    reconhecimento nada retira do automatismo que Bergson confere sua

    execuo. O esforo se encontraria em um eu no socializado se inserindo

    365

  • Rafael Henrique Teixeira

    Quando a atividade momentaneamente suspensa, quando o

    sujeito hesita, ele o faz diante de um dever ao qual j se encontra

    inclinado a obedecer; a ao que efetua , j, obrigatria, ela no

    depende de uma razo legisladora universal que lhe confira, pela

    tenso que estabelece com as inclinaes de outra natureza, esse

    carter.

    No porque ela se encontra na dependncia de outra ordem de

    determinao, racional e suprassensvel, que venha suplantar aquela

    que lhe inclinava at ento e que tal sua distino para com

    aquilo que vem suplantar revela uma vida independente da

    animalidade, e mesmo de todo mundo sensvel (Kant, 1788, p.

    211), que a inteligncia formula o carter necessrio de uma ao.

    O que essa frmula expressa por meios que so da inteligncia

    uma obrigao infra-intelectual, que fundamenta sua necessidade

    em um mecanismo natural de obedincia, o hbito. Esse raciocnio

    no funda a obrigao, a verdade que tal fundamento seria muito

    pouco slido, e que a obrigao preexistia em toda sua fora: a

    inteligencia apenas fez obstculo a um obstculo que vinha dela

    (Bergson, 1932, p. 96).

    Para obter esse efeito os meios que a inteligencia possui no so

    suficientes. A necessidade que ela retoma tem origem em foras

    profundas, cujo trabalho no levado em considerao a cada vez

    que afirmamos a necessidade de uma regra. Afinal, agir por dever

    no atividade exclusiva do moralista; caso o fosse a cada ao

    seria preciso retomar, fosse ele um moralista bergsoniano, todo o

    evolucionismo de A evoluo criadora! E precisamente uma

    retomada desse gnero que empreenderemos agora.

    At aqui nos ocupamos em mostrar o que distingue a noo de

    obrigao bergsoniana de duas teses que fundam a obrigao em

    uma coao sobre o querer; uma coao exterior e social

    nos quadros da sociedade; uma vez socializado a ao obrigatria se faz

    obedecer atravs do automatismo que lhe caracteriza. correto que

    consideremos no indivduo o consentimento virtualmente dado ao

    conjunto de suas obrigaes, mesmo que ele no tenha mais que se

    consultar acerca de cada uma delas. O cavaleiro apenas tem de se deixar

    carregar; mas ele teria antes de se colocar sobre a cela. Assim para o

    indivduo frente sociedade (Bergson, 1932, p. 14).

    366

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    (Durkheim) e uma coao interior e racional ou intelectual (Kant).

    Bergson nos apresentou uma ao obrigatria que se efetua sem a

    rigidez com a qual a filosofia se acostumou a nos descrever a

    moralidade das aes. Sabemos j que o hbito pelo qual nos

    sentimos obrigados fruto de uma inteno da vida. Mas a

    descrio da natureza precisa dessa ligao entre moral e vida e

    suas consequncias foi subsumida at aqui demonstrao do

    carter sui generis de uma ao que dispensa a coao da vontade

    para se fazer obrigatria. a essa descrio que nos dedicaremos

    agora.

    A obrigao como uma reao natureza. Continuaremos, verdade,

    a tratar do hbito que se encontra na origem da obrigao. Porm

    buscaremos seu fundamento na atividade de diferenciao que

    caracteriza a evoluo vital. Veremos que com o hbito a vida

    estabelece uma ordem em sociedades compostas por seres livres e

    inteligentes que, em outras linhas da evoluo, foi alcanada atravs

    do instinto. Dessa analogia entre efeitos obtidos em linhas

    divergentes da evoluo Bergson retirar consequncias para sua

    teoria da obrigao. Operao que Worms (2004, p. 285 e 286)

    reconhece com preciso: trata-se do abatimento do hbito

    psicolgico sobre o instinto biolgico, que autoriza e mesmo exige o

    recurso teoria da vida de A evoluo criadora, e que fornece ao

    fato psicolgico (hbito) e sociolgico (todo da obrigao) um fim,

    uma estrutura, e um meio de ao prprio na vida.

    Bergson afirma a necessidade de um fio condutor na busca dos

    fundamentos da moral, e o que obtm ao se dar conta, observando

    a extremidade das linhas de evoluo que desembocam nos insetos

    himenpteros e no homem, que a vida social se faz presente em

    ambos os casos.

    Reportemo-nos sem cessar ao que teria sido a obrigao se a sociedade

    humana tivesse sido instintiva ao invs de inteligente: no explicaremos

    assim nenhuma obrigao em particular, daramos at da obrigao uma

    ideia falsa se nos ativssemos a ela; contudo nessa sociedade instintiva

    deveremos pensar, como em uma contrapartida da sociedade inteligente,

    caso no queiramos nos engajar sem fio condutor na busca dos

    fundamentos da moral. Desse ponto de vista, a obrigao perde seu

    367

  • Rafael Henrique Teixeira

    carter especfico. Ela se liga aos fenmenos os mais gerais da vida

    (Bergson, 1932, p. 23).

    Uma sociedade, humana ou animal, uma organizao, ela

    implica uma coordenao e geralmente tambm subordinao de

    elementos uns sobre os outros (Bergson, 1932, p. 22). A natureza

    se utiliza de meios diferentes, do hbito e do instinto, para realizar

    essas condies em cada um dos pontos da evoluo em que a

    forma social se encontra em sua forma acabada. Estamos diante de

    meios distintos que cumprem uma mesma funo reguladora. Uma

    vez essa diferena remetida unidade do movimento de criao da

    vida, Bergson poder amparar sua concluso acerca da essncia

    biolgica da moral no apenas em uma analogia entre meios (que,

    para um observador desatento, poderiam figurar como exteriores

    um ao outro), mas na prpria maneira pela qual o el da vida cria.

    Retomemos ento alguns aspectos essenciais do evolucionismo de

    Bergson.

    Dizamos que a vida, desde suas origens, a continuao de um nico e

    mesmo el que se dividiu entre linhas de evoluo divergentes. Alguma

    coisa cresceu, alguma coisa se desenvolveu por uma srie de adies que

    foram igualmente criaes. Foi esse prprio desenvolvimento que levou a

    se dissociarem tendncias que no podiam crescer alm de certo ponto

    sem tornarem-se incompatveis entre si (Bergson, 1907, p. 53).

    A unidade da vida se encontra em seu incio, impulso que se

    prolonga e se divide em direes divergentes. Criao que

    prossegue em virtude de um movimento inicial, esse movimento

    quem faz a unidade do mundo organizado (Bergson, 1907, p.

    106). verdade que matria figura como fator de individuao que

    separa e distingue tendncias outrora confundidas no el, mas a

    causa fundamental da diviso operada ao longo de seu

    desenvolvimento a vida carrega nela, ela prpria tendncia, e a

    essncia de uma tendncia se desenvolver em forma de germe,

    criando, pelo simples fato de seu crescimento, direes divergentes

    entre as quais se dividir seu el (Bergson, 1907, p. 100).

    Uma primeira divergncia se d entre plantas e animais. Os

    vegetais adormecem na imobilidade, desenvolvendo a funo

    cloroflica. Os animais trazem a marca da mobilidade no espao e

    368

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    abrem caminho ao progresso do sistema sensrio-motor

    6

    . O

    essencial que se observa na busca da variao do movimento um

    esforo para a construo de aparelhos capazes de acumular

    energia e para solt-la depois em canais flexveis, deformveis, na

    extremidade dos quais realizar trabalhos infinitamente variados

    (Bergson, 1907, p. 254). Da mais humilde Monera at os Insetos

    mais bem dotados, at os Vertebrados os mais inteligentes, afirma

    Bergson (1907, p. 127), um progresso de aparelhos dessa

    natureza que observamos na evoluo da vida7

    .

    O que esse progresso anuncia um compromisso do el com a

    matria, quando a vida se contenta em introduzir certa economia no

    jogo de foras materiais (Riquier, 2009, p. 400). A vida cria com a

    matria, que a prpria necessidade, um instrumento de

    liberdade (Bergson, 1907, p. 264). Ela comea procedendo por

    insinuao; l onde ela deve tomar a direo de um movimento,

    ela comea por adot-lo (Bergson, 1907, p. 71). nesses termos

    que devemos compreender o esforo em acumular energia

    6

    O sistema sensrio-motor se define pelo sistema nervoso crebro-

    espinhal com, no mais, os aparelhos sensoriais nos quais ele se prolonga e

    os msculos motores que ele governa (Bergson, 1907, p. 125).

    7

    A vida cria organismos capazes de escolher entre movimentos possveis e

    faz-los variar. Sobretudo nas vias sobre as quais evoluram artrpodes e

    vertebrados a flexibilidade e a variedade dos movimentos foram obtidas,

    caractersticas que se ligam a progressos do sistema sensrio-motor.

    Quanto mais este desenvolvido menor o carter necessrio das aes,

    mais numerosos e distantes se tornam os pontos do espao que ele coloca

    em relao com mecanismos motores sempre mais complexos: assim

    aumenta a latitude que ele deixa nossa ao, e nisso consiste justamente

    sua perfeio crescente (Bergson, 1896, p. 27). Trata-se de uma liberdade

    dependente de mecanismos que a vida montara com a matria para vencer

    seu automatismo, ligada a uma complexificao que uma diviso

    fisiolgica do trabalho. possvel observar nas linhas superiores da

    evoluo o trabalho fisiolgico se dividir. Clulas nervosas aparecem, se

    diversificam, tendem a se agrupar em sistema. Ao mesmo tempo, o animal

    reage por movimentos mais variados excitao exterior (Bergson, 1896,

    p. 24).

    369

  • Rafael Henrique Teixeira

    potencial

    8

    para desencadear em movimentos mais ou menos

    indeterminados.

    [...] a vida em seu conjunto um duplo trabalho de acumulao gradual e

    de gasto brusco: trata-se para ela de conseguir que a matria, por uma

    operao lenta e difcil, armazene uma energia de potncia que se tornar

    de repente energia de movimento. Ora, como procederia de outro modo

    uma causa livre, incapaz de romper a necessidade qual a matria

    submetida, capaz, contudo, de dobr-la, e que desejaria, com a minscula

    influncia que dispe sobre a matria, obter dela, em uma direo cada

    vez mais bem escolhida, movimentos cada vez mais poderosos? (Bergson,

    1911, p. 15).

    Esses mecanismos montados pela vida so, com efeito, essenciais.

    Se o que se encontra na origem da vida uma supraconscincia ou

    exigncia de criao, ela apenas se manifesta onde a criao

    possvel. Ela adormece quando a vida condenada ao

    automatismo; ela renasce a partir do momento em que nasce a

    possibilidade de uma escolha (Bergson, 1907, p. 262). Porm a

    fixidez das plantas e a mobilidade dos animais so apenas sinais

    superficiais de tendncias mais profundas (Bergson, 1907, p. 111).

    O que essa histria exterior das espcies permite a Bergson observar

    a aventura interior do impulso vital (Prado Jr., 1989, p. 194).

    No se trata de ver na anlise da estrutura neurofisiolgica das

    espcies e do progresso que se desenha da massa protoplasmtica

    irritvel at o vertebrado que ocupa o espao e age sobre ele de

    modo varivel o sinal de uma insuficincia. Mas por detrs do que

    se v h o que se adivinha, dir Bergson, potncias imanentes vida

    e inicialmente confundidas que tiveram de se dissociar para crescer.

    Para definir essas potncias Bergson considera respectivamente na

    evoluo dos artrpodes e dos vertebrados as espcies que marcam

    seus pontos culminantes.

    A evoluo dos Artrpodes teria atingido seu ponto culminante com o

    Inseto e em particular com os Himenpteros, como aquela dos vertebrados

    com o Homem. Agora, se observarmos que em nenhuma parte o instinto

    to desenvolvido quanto no mundo dos Insetos, e que em nenhum grupo

    8

    Cuja origem invariavelmente a energia solar armazenada pelo vegetal e

    transmitida direta ou indiretamente ao animal pela alimentao.

    370

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    de Insetos ele to maravilhoso do que entre os Himenpteros,

    poderemos dizer que toda a evoluo do reino animal, abstrao feita dos

    recuos vida vegetativa, se realizou sobre duas vias divergentes das quais

    uma foi na direo do instinto e a outra da inteligncia. Torpor vegetativo,

    instinto e inteligencia, eis enfim os elementos que coincidiam na impulso

    vital comum s plantas e aos animais, e que, ao longo de um

    desenvolvimento em que eles se manifestaram nas formas as mais

    imprevisveis, se dissociaram pelo simples fato de seu crescimento

    (Bergson, 1907, p. 136).

    Quando Bergson reconhece potncias imanentes vida ele alia

    aos imperativos do compromisso da vida com a matria a unidade

    do el no qual tendncias se interpenetravam9

    . Em outros termos, a

    matria enquanto fator de individuao no deve subsumir o que a

    vida carrega consigo na qualidade de tendncia, de direito,

    independente da matria (ainda que, como sabemos, ela no possa

    criar absolutamente, ou seja, sem a matria). Instinto e inteligencia,

    tendncias que se compenetravam no el, se apresentam em suas

    manifestaes concretas ao longo das linhas de evoluo como

    formas de atividade psquica que so solues divergentes,

    igualmente elegantes, para um nico e mesmo problema, dois

    mtodos de ao sobre a matria inerte (Bergson, 1907, p. 137 e

    144).

    A vida fornece os meios para essa ao imediatamente ao criar

    um instrumento organizado ou mediatamente em um organismo

    que, ao invs de possuir naturalmente o instrumento requerido, o

    fabricar ele prprio moldando a matria inorgnica (Bergson,

    1907, p. 143). Se com a inteligencia a natureza renuncia a dotar o

    ser vivo do instrumento para que ele possa, segundo as

    circunstncias, variar sua fabricao (Bergson, 1907, p. 151) 10

    . O

    9

    Em seu ponto de partida a vida tem necessidade de um mnimo de

    matria, como se as foras organizadoras s entrassem no espao a

    contragosto (Bergson, 1907, p. 93). O que o el organizador explica ao

    atravessar a matria, afirma Janklvitch (1959, p. 166), so as estruturas

    prodigiosamente complicadas dos vivos, mas por detrs dessas formas

    impressionantes h o el vital [...] que no se esgota em suas obras as

    fontes inesgotveis de seu gnio.

    10

    A inteligncia descrita em A evoluo criadora como faculdade de

    fabricar objetos, especialmente utenslios que possibilitam a fabricao de

    371

  • Rafael Henrique Teixeira

    instinto, faculdade natural de utilizao de um mecanismo inato,

    encontra ao seu alcance o instrumento a ser utilizado.

    Para distinguir nas linhas divergentes da evoluo seus pontos

    culminantes e, a partir deles, discernir as tendncias essenciais que

    se manifestam ao longo da evoluo e que se compenetravam

    originariamente, histria do vivo em um presente atual e

    material que Bergson se volta. Afinal, o que faz a viabilidade de um

    organismo? Por que himenpteros e homens se encontram no topo

    da cadeia evolutiva?

    Por sucesso preciso entender, quando se trata de um ser vivo, uma

    aptido a se desenvolver nos meios os mais diversos, atravs da maior

    variedade possvel de obstculos, de modo a cobrir a mais vasta extenso

    possvel de terra. Uma espcie que reivindique como domnio a terra

    inteira verdadeiramente uma espcie dominadora e consequentemente

    superior. Tal a espcie humana, que representar o ponto culminante da

    evoluo dos vertebrados. Mas tais so tambm, na srie dos Articulados,

    os Insetos e em particular alguns Himenpteros. Tem-se o hbito de dizer

    que a formigas foram dominadoras do subsolo da terra, como o homem

    o mestre do solo (Bergson, 1907, p. 135).

    A viabilidade de uma espcie, cuja liberdade e meios de ao

    sobre o universo material se encontram ancorados em disposies

    sadas do movimento evolutivo, no deixa de se apresentar como

    uma espcie de acomodao em comparao com o esforo da vida

    que lhe precede. Cada espcie acomoda-se com vistas a mais fcil

    explorao possvel do ambiente imediato. De qualquer modo que

    expliquemos a adaptao do organismo suas condies de

    existncia, essa adaptao necessariamente suficiente a partir do

    momento em que a espcie subsiste (Bergson, 1907, p. 130).

    As formas so dotadas de um mtodo de ao sobre a matria

    que lhe confere espontaneidade e indeterminao na ao. Ao falar

    em adaptao no se trata de uma insero meramente passiva nos

    molde das condies exteriores. Mas preciso reconhecer que h

    condies exteriores, que elas so materiais, de subsistncia e

    sobrevivncia, e sobre elas que o organismo exerce sua liberdade

    outros utenslios, fazendo-os variar indefinidamente: no diramos talvez

    Homo sapiens, mas Homo faber (Bergson, 1907, p. 140).

    372

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    biolgica. As condies no so um molde no qual a vida se insere

    e das quais retira sua forma [...] No h ainda forma, e vida que

    caber criar para si mesma uma forma apropriada para as condies

    que lhe so apresentadas (Bergson, 1907, p. 58).

    Essa breve e esquemtica exposio mostrou as duas

    dimenses pelas quais se apresenta a unidade do mundo

    organizado, aquela de um impulso e de um problema. Trata-se

    daquilo que podemos reconhecer como a histria geral da vida, de

    um movimento de diferenciao que constitui organismos capazes

    de fazer variar sua ao e dotados de mtodos para uma ao eficaz

    sobre a matria que se trata de dominar para perseverar, subsistir.

    Mas de outro lado teramos as aes que estes organismos

    desenrolam ao longo de sua existncia, numa temporalidade que

    aquela de sua viabilidade, da execuo de seu imprio sobre o

    universo material. Teramos desse modo suspensa ao longo da

    histria geral da vida a histria de suas formas. Essa histria no

    menos contingente que a atividade de criao da qual procede. A

    vida fornece a direo da ao, no garante ao vivo os pormenores

    de sua execuo de modo que este no caia em impasses. Seria de

    se estranhar uma evoluo que caminha na direo de uma

    indeterminao crescente tornar a introduzir a necessidade nas

    aes dos seres que cria.

    Se o el obteve relativo sucesso na criao de seres capazes de

    agir livremente com os meios que a inteligencia lhes fornece, ele o

    fez precisamente onde o risco era maior (Bergson, 1907, p. 144).

    A mesma inteligencia fabricadora que foi capaz de assegurar ao

    homem um domnio sobre o universo material sem precedentes,

    sobretudo a partir de um trabalho socialmente dividido, aquela

    que conduzir a impasses que exigem da vida uma soluo. Essa

    soluo, que a criao da estrutura moral do todo da obrigao, se

    liga natureza particular da causalidade criadora da vida. Ela no

    apenas cria de modo a interiorizar os impasses que surgem ao longo

    de seu desenvolvimento como o faz na medida em que algo da

    unidade originria do el persiste virtualmente nas formas atuais.

    Mas sigamos o fio condutor que Bergson nos props. Observando

    o termo das linhas de evoluo dos artrpodes e dos vertebrados,

    Bergson levado a crer que a vida em sociedade no mero

    acessrio ao movimento evolutivo, o qual apenas ornamentaria com

    373

  • Rafael Henrique Teixeira

    a complicao de um trabalho socialmente dividido o xito

    representado por himenpteros e homens.

    Instinto e inteligencia tm por objetivo essencial utilizar instrumentos:

    aqui ferramentas inventadas; l rgos fornecidos pela natureza, e

    consequentemente imutveis. O instrumento destinado a um trabalho, e

    esse trabalho to mais eficaz quanto mais especializado, mais dividido

    consequentemente entre trabalhadores diversamente qualificados que se

    completam reciprocamente. A vida social assim imanente, como um

    vago ideal, ao instinto e inteligencia; esse ideal encontra sua realizao

    a mais completa na colmia ou no formigueiro de um lado, nas sociedades

    humanas de outro (Bergson, 1932, p. 22).

    Malgrado a diversidade das formas que a vida alcana e o

    afastamento crescente implicado no desenvolvimento de cada uma

    de suas linhas vida social que ela chega. Como se sua

    necessidade se fizesse sentir desde o incio, ou, antes, como se

    alguma aspirao original e essencial da vida apenas pudesse

    encontrar na sociedade sua plena satisfao (Bergson, 1911, p.

    26). No se trata de reconhecer no el uma impulso particular

    vida social. Como para instinto e inteligencia, sua presena no topo

    das duas principais linhas apenas manifesta a divergncia de vias

    ao mesmo tempo em que a comunidade do el (Bergson, 1907,

    p.102). Afinal as formas vivas e as atitudes que so o

    desdobramento de sua estrutura no so a realizao de um plano

    no extremo do qual teramos as sociedades.

    No obstante, os produtos da vida oferecem o testemunho de

    uma direo essencial de seus progressos: agir de modo

    indeterminado e eficaz sobre o universo material. Quando Bergson

    afirma que o social se encontra no fundo do vital trata-se de um

    trabalho organizado e dividido que permite intensificar esse imprio

    sobre a natureza. A sociedade se apresenta como o meio pelo qual a

    fora que evolui atravs do mundo organizado, que escolheu entre

    dois modos de agir sobre a matria, intensifica os efeitos e estende o

    campo de ao do instinto e da inteligencia a patamares inatingveis

    nos limites de um trabalho no dividido11

    .

    11

    A sociedade no a entidade absoluta e transcendente tal qual queria

    Durkheim. J o vimos com relao ao carter apenas relativo da sociedade

    374

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    Uma sociedade no pode sobreviver caso no subordine o

    indivduo, mas no pode progredir, intensificando a variabilidade

    das aes que se desenrolam em seu interior, se no deixar esse

    mesmo indivduo exercer alguma liberdade. na conciliao dessas

    exigncias contraditrias, sobretudo nas sociedades compostas de

    seres inteligentes, que a necessidade de regras morais se afirma. A

    sociedade, colocao em unssono das energias individuais, apenas

    pode subsistir se subordina o indivduo, ela apenas pode progredir

    se ela o deixa seguir: exigncias opostas, que seria preciso

    reconciliar (Bergson, 1911, p. 26). Quando a natureza estabelece

    uma estrutura moral que inclina o ser inteligente a obedecer um

    ajuste entre essas duas exigncias que se encontra em jogo.

    Consideremos duas linhas divergentes de evoluo, e sociedades na

    extremidade de uma e outra. O tipo de sociedade que parecer a mais

    natural ser evidentemente a de tipo instintivo: o lao que une entre si as

    abelhas de uma colmeia se assemelham muito mais aquele que mantm

    unidas, coordenadas e subordinadas umas s outras, as clulas de um

    organismo. Suponhamos um instante que a natureza tenha desejado, na

    extremidade da outra linha, obter sociedades em que certa latitude fosse

    deixada escolha individual: ela teria feito com que a inteligencia

    obtivesse resultados comparveis, quanto sua regularidade, queles do

    instinto na outra; ela teria recorrido ao hbito (Bergson, 1932, p. 21).

    O que os dois pontos terminais da evoluo apresentam , de um

    lado, uma sociedade de seres inteligentes e parcialmente livres, de

    outro, sociedades regidas pelo puro instinto, nas o indivduo segue

    cegamente os interesses da comunidade (Bergson, 1932, p. 123).

    na determinao do carter moral das aes. Tornamos a observ-lo

    quando Bergson encontra na origem do socius uma resposta da vida ao

    problema da ao sobre a matria. Uma vez que o homem um ser vivo e

    que a evoluo da vida, em duas de suas principais linhas, se deu na

    direo da vida social, Bergson (1932, p. 96) pode admitir que a

    associao a forma a mais geral da atividade viva, pois a vida

    organizao, e que ento passa-se por gradaes insensveis das relaes

    entre clulas em um organismo s relaes entre indivduos na sociedade.

    Esse abatimento da sociedade sobre o movimento geral da vida nos afasta

    de vez do sociologismo de Durkheim, cujo esforo se d em demonstrar a

    especificidade do social frente ao psicolgico e ao natural.

    375

  • Rafael Henrique Teixeira

    Nesse caso a coeso foi facilmente obtida pela natureza. Bastou

    dotar o inseto de instintos apropriados. Assim ela fez para a

    colmia e o formigueiro. Seu sucesso foi, alis, completo: os

    indivduos apenas vivem aqui para a comunidade (Bergson, 1932,

    p. 124).

    Congelando seus membros em uma imutvel rotina, a

    necessidade de coeso plenamente satisfeita. Mas, como podemos

    suspeitar, sacrifica-se desse modo a exigncia que lhe

    complementar, e que apenas se faz presente na sociedade humana

    que, de forma varivel, aberta a todos os progressos. Mas a tal

    ponto que a ausncia de uma regularidade que ao menos lembrasse

    aquela das sociedades instintivas colocaria em risco sua existncia.

    Diante desse impasse, dessa necessidade em conciliar duas

    exigncias opostas pois para que a sociedade progrida, antes

    preciso que ela subsista (Bergson, 1932, p. 126) a obrigao fruto

    do hbito surge como a forma que a necessidade adquire no

    domnio da vida quando ela exige, para realizar certos fins, a

    inteligencia, a escolha e a liberdade (Bergson, 1932, p. 24).

    Quanto mais, portanto, em uma sociedade humana, escavarmos at a raiz

    das obrigaes diversas para chegar obrigao em geral, mais a

    obrigao tender a se tornar necessidade, mais ela se aproximar do

    instinto no que ele tem de imperioso. No entanto nos enganaramos se

    quisssemos atribuir ao instinto uma obrigao particular, qualquer que

    ela fosse. O que preciso sempre afirmar que nenhuma obrigao sendo

    de natureza instintiva, o todo da obrigao teria sido instinto se as

    sociedades humanas no tivessem certo lastro de variabilidade e de

    inteligencia. Trata-se de um instinto virtual (Bergson, 1932, p. 23).

    No h vida em sociedade sem a existncia de regras capazes de

    mobilizar minimamente as inclinaes individuais. O que se

    constituiria como verdadeiro problema nas sociedades inteligentes

    caso elas se encontrassem abandonadas s inclinaes do intelecto.

    Mas a natureza vigia, recorre ao hbito que, encontrando-se na

    prpria base das sociedades e condicionando sua existncia, ter

    uma fora comparvel quela do instinto, quer como intensidade,

    quer como regularidade (Bergson, 1932, p. 21).

    O hbito condiciona a existncia da sociedade composta por

    seres inteligentes. Inclinando-nos a obedecer, ele a torna vivel.

    376

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    Preserva a iniciativa criadora da inteligencia sem, contudo, declin-

    la em atitudes egostas. Enquanto na colmia e no formigueiro cada

    regra necessria, cada qual imposta pela natureza, nas sociedades

    humanas uma nica coisa natural, a necessidade de uma regra

    (Bergson, 1932, p. 22). Afinal o hbito imita o instinto, no uma

    rplica, pea por pea, da necessidade de seus procedimentos. Um

    hbito que se utiliza daquilo que h de instintivo na inteligencia no

    transforma a inteligencia em instinto. Na verdade poderamos dizer

    que o hbito toma do instinto aquilo que nele h de imperioso, o

    modo como se afirma o carter necessrio de suas aes.

    Abelhas e formigas no se devotam colmia e ao formigueiro

    simplesmente por que preciso faz-lo. Essa necessidade, intestinal,

    no tem de aparecer conscincia instintiva sob a forma de uma

    representao que fizesse frente a uma vontade que titubeia. A

    necessidade de suas aes no se liga fora de representaes que

    denotariam o carter necessrio de aes e entre as quais o

    indivduo hesitaria12

    . Bergson se utiliza do exemplo de uma formiga

    atravessada repentinamente por um claro de inteligencia.

    12

    Bergson mostrou em A evoluo criadora que as aes de carter

    instintivo podem ser ditas inconscientes. Cabe observar que relao essa

    inconscincia guarda com o automatismo pelo qual, por exemplo, abelhas

    e formigas se devotam ao formigueiro e, por que no, com o hbito. A

    conscincia uma inadequao entre o ato e sua representao. Ela

    significa hesitao e escolha, ela mede o afastamento entre a representao

    e a ao. Onde a ao real a nica possvel a conscincia se torna nula.

    Nesse caso no h representao que assinala a distancia entre as aes

    virtuais e o ato propriamente dito, mas apenas um conjunto de

    movimentos sistematizados que se efetuam automaticamente. A

    inconscincia do instinto se deve a quantidades iguais que se neutralizam,

    a representao do ato anulada por sua execuo: onde o instrumento a

    lidar organizado pela natureza, o ponto de aplicao fornecido pela

    natureza, uma pequena parte deixada escolha: a conscincia inerente

    representao ser ento contrabalanada, na medida em que ela tendesse

    a se separar, pela realizao do ato, idntico representao, que lhe faz

    contrapeso (Bergson, 1907, p. 146). No poderamos dizer que uma

    formiga que hesitasse o faria precisamente porque representaes se

    acrescentariam e precederiam a srie de movimentos que deixariam por

    isso de ser automticos e simplesmente desempenhados, pois conscientes?

    377

  • Rafael Henrique Teixeira

    Deparando-se com o absurdo de seu trabalho, ela ameaaria

    romper os laos que a ligam ao formigueiro. Mas ento, no

    momento preciso em que o instinto iniciasse a retomada do seu

    lugar a inteligencia, prestes a ser reabsorvida no automatismo da

    atividade desempenhada do instinto, diria categoricamente:

    preciso porque preciso. Comando semelhante se apresentaria ao

    ouvido do sonambulo que tivesse comeado a deixar o sonho que

    desempenha. De modo que o imperativo categrico exprimiria em

    palavras, ao sonambulo e formiga, a inevitabilidade do retorno

    para uma reflexo que to logo surgisse se apagaria quase

    imediatamente.

    [...] um imperativo absolutamente categrico de natureza instintiva ou

    sonamblica: desempenhado como tal no estado normal, representado

    como tal se a reflexo desperta tempo suficiente para que ele possa se

    formular, no o tempo suficiente para que ele possa buscar razoes. Mas

    ento no evidente que, em um ser racional, um imperativo tender a

    tomar forma categrica quanto mais a atividade desempenhada, ainda que

    inteligente, tender a tomar a forma instintiva? Mas uma atividade que, de

    incio inteligente, caminha na direo de uma imitao do instinto

    precisamente o que chamamos no homem de um hbito [...] Seria ento

    impressionante que, no curto momento que separa a obrigao puramente

    vivida da obrigao plenamente representada e justificada por todo tipo

    de razoes, a obrigao tome a forma de um imperativo categrico:

    preciso porque preciso? (Bergson, 1932, p. 20).

    No caso hipottico da formiga que, por um momento, fosse

    dotada de um claro de inteligencia, as coisas naturalmente voltam

    ao lugar, e o raciocnio que restabelece o interesse da formiga em

    trabalhar para o formigueiro no funda a obrigao. Ele exprime a

    inevitabilidade do retorno, a necessidade que esse claro de

    De outro lado, quando um ser inteligente hesita diante do

    desencadeamento automtico de sua ao por dever, no precisamente

    por representaes que extrapolam em nmero a atitude que se desenha

    como o seu desdobramento natural? Do ponto de vista dessa inconscincia

    descrita por Bergson, no apenas a formiga e a abelha, mas tambm o ser

    inteligente que age por dever o faz de certo modo inconscientemente. Uma

    inconscincia sempre pronta a desabrochar em conscincia, verdade, ao

    passo que o mesmo no pode ser dito para a formiga e para a abelha a no

    ser em situaes hipotticas.

    378

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    inteligencia apenas veio problematizar pontualmente, mas no

    fundar. Ora, no foi precisamente algo desse gnero que vimos

    quando Bergson afirmou que imperativos categricos formulados

    pela inteligncia se limitam a reconduzir necessidade de uma ao

    diante da qual hesitamos temporariamente? Na verdade o que se

    apresenta como excepcional para o caso da formiga parece ser o

    modo como as coisas se passam em condies normais em uma

    sociedade de seres inteligentes.

    claro que, distintamente do caso da formiga, o imperativo no

    exprimir a inevitabilidade de um retorno ao instinto. Mas ele

    exprimir a necessidade do retorno a uma ao diante da qual nossa

    vontade se encontraria momentaneamente suspensa. Como vimos,

    um imperativo categrico se apresenta quando a inteligencia faz

    obstculo a um obstculo que tem origem nela prpria, ele no

    funda a obrigao, apenas reconduz o querer ao automatismo

    habitual de suas aes. Esse automatismo do dever, podemos agora

    concluir, precisamente o que h de instintivo na inteligencia.

    Alis, o carter vivido e desempenhado das regras que garantem

    a coeso da colmia e do formigueiro no apresenta algo que nos

    faz lembrar o automatismo da ao realizada por dever? Enquanto a

    ao se desenrola sem que uma hesitao lhe retire de sua execuo

    habitual maneira pela qual as coisas se do em condies normais

    na colmia e no formigueiro , em um deixar-se levar que imita o

    automatismo do instinto, no h necessidade de o intelecto

    expressar com meios que so da inteligncia uma necessidade que,

    se no instintiva absolutamente, imita o instinto nos efeitos que

    obtm. Como tivemos ocasio de dizer a natureza, que vigia, recorre

    ao hbito.

    [...] em uma humanidade que a natureza no tivesse feito inteligente, e

    onde o indivduo no tivesse nenhuma possibilidade de escolha, a ao

    destinada a manter a conservao e a coeso social se realizaria

    necessariamente; ela se realizaria sob a influncia de uma fora bem

    determinada, a mesma que faz com que cada formiga trabalhe para o

    formigueiro e cada clula de um tecido para o organismo. Mas a

    inteligncia intervm, com ela a faculdade de escolher: uma outra fora,

    sempre atual, que mantm a precedente em estado de virtualidade ou

    antes de realidade mal visvel em sua ao, sensvel contudo em sua

    presso (Bergson, 1932, p. 94).

    379

  • Rafael Henrique Teixeira

    Ao depositar a espcie humana ao longo de uma de suas linhas

    de evoluo, a natureza a quis socivel, assim como as abelhas e

    formigas. Levando em considerao o esforo que anima a histria

    geral da vida, essa organizao e subordinao dos elementos uns

    aos outros proporcionou uma intensificao considervel para uma

    atividade que busca dominar a matria e retirar dela tanto quanto

    possvel. Mas com a inteligencia a manuteno da vida social teve

    de ser confiada a um mecanismo quase-inteligente. Inteligente na

    medida em que cada pea poderia ser remodelada pela inteligencia

    humana, mas instintivo na medida em que o homem no poderia,

    sem deixar de ser homem, rejeitar o conjunto das peas e no mais

    aceitar o mecanismo conservador 13

    (Bergson, 1932, p. 53).

    Resta, por fim, um ltimo ponto a examinar. Comeamos por

    descrever como a noo de obrigao que Bergson apresenta em As

    duas fontes se define por um deixar-se levar ou abandono. Em

    seguida, mostramos de que modo Bergson levado a observar no

    hbito um instinto virtual. Tivemos ocasio de observar que, para

    tanto, Bergson admitiu a necessidade de um fio condutor: pensar

    13

    verdade que uma transformao radical possvel, mas

    verdadeiramente radical, pois ela tem de ultrapassar a inteligencia, e no

    se dar sem a intuio mstica. Os acrscimos e remodelaes que a

    obrigao social elementar sofre no modificam a inteno original que ela

    manifesta. H uma natureza fundamental, e h aquisies que, se

    superpondo natureza, imitam-na sem se confundir com ela. Essa

    natureza indestrutvel, o natural no se deixa expulsar. Ele est sempre

    presente (Bergson, 1932, p. 289). A soliedariedade estreita que a

    natureza estabelece entre seres inteligentes no retira da inteligencia a

    iniciativa necessria ao desenvolvimento do indivduo, mas no fornece os

    meios para que, abandonados a si mesmos, os homens pudessem fazer da

    obrigao outra coisa que o mecanismo montado pela natureza. Se h uma

    natureza primitiva, elementar, uma moral original que tem de ser colocada

    ao mesmo tempo em que a espcie humana (Bergson, 1932, p. 288), sua

    distncia para com o que poderamos chamar de homem moderno no

    uma distncia civilizacional; no nos afastamos dela com os progressos da

    civilizao. Se retirarmos do homem atual o que nele foi depositado pela

    educao veramos idnticos, ou quase, aos seus ancestrais os mais

    longnquos (Bergson, 1932, p. 290).

    380

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    nas sociedades instintivas como uma contrapartida das sociedades

    inteligentes. Essa comparao, afirma Bergson (1932, p. 123), no

    autorizar concluses firmes, mas ela poder sugerir

    interpretaes. Grosso modo as concluses que apresentamos at

    aqui acerca da relao que guardam hbito e instinto se deram por

    uma analogia entre os efeitos distintamente obtidos no termo das

    duas principais linhas do movimento evolutivo.

    Segundo Bergson (1911, p. 06) se a analogia no pode nos

    fornecer nada alm de uma probabilidade, h, no obstante, uma

    multido de casos em que essa probabilidade alta o suficiente para

    equivaler certeza. Na ocasio dessa afirmao a preocupao de

    Bergson era saber at onde a conscincia se estende; Sigamos

    ento o fio da analogia, diz. Tal parece ter sido a postura adotada

    diante do fio condutor que encontramos em As duas fontes. Mas a

    analogia de que Bergson faz uso apresenta um trao essencial, no

    se trata de uma semelhana exterior entre relaes, mas sim de uma

    comunicao interior entre tendncias ou movimentos (Lapoujade,

    2010, p. 60).

    uma comunicao desse gnero que permite vida, ao criar

    uma estrutura moral para as sociedades fechadas, recorrer ao que

    h de instintivo na inteligencia. Quando Bergson afirma que a vida

    recorre ao hbito preciso compreender essa atitude como

    completamente afeita maneira pela qual o el cria. Ou seja,

    Bergson no se limita a reconhecer uma similitude de efeitos

    distintamente conquistados. Sim, isso um fato, e de suma

    importncia para que Bergson pudesse encontrar um fundamento

    verdadeiramente vital para a moralidade das sociedades. Ele

    igualmente demonstra como a maneira particular pela qual a vida

    cria possibilita esse trnsito entre tendncias que tm de se dissociar

    para crescer.

    A exigncia qual corresponde a estrutura moral fundamental

    das sociedades fechadas no apenas social, embora seja um

    mecanismo de conservao da estrutura do sociedade. uma

    exigncia que se coloca a uma atividade de criao que busca em

    uma das linhas da evoluo meios para obter resultados aos quais

    chegara em outra linha, distinta daquela que coloca o problema a

    ser resolvido: colocar limites s inclinaes egostas da inteligencia

    381

  • Rafael Henrique Teixeira

    sem, contudo, submet-la a uma necessidade que lhe retire a

    iniciativa criadora.

    Poderamos enunciar essa lei: quando uma tendncia se analisa ao se

    desenvolver, cada uma das tendncias particulares que nascem assim

    gostaria de conservar e desenvolver, da tendncia primitiva, tudo o que

    no incompatvel com o trabalho no qual ela se especializou (Bergson,

    1907, p. 120).

    Talvez no seja completamente descabido atribuir esse

    comportamento tendncia com a qual estamos lidando aqui, a

    atividade inteligente que, especializando-se, tornando mais eficaz

    seu imprio sobre a matria, desemboca na vida social. como se a

    prpria atividade criadora da vida realizasse aquilo que Bergson

    prope como mtodo em sua anlise: reportar-se outra linha de

    evoluo. Trata-se de uma possibilidade interior ao movimento do

    el que se apresenta, na verdade, como verdadeira reconciliao

    entre tendncias que outrora se confundiam.

    A vida busca com o hbito inserir em uma sociedade de seres

    inteligentes uma regularidade que imita aquela das sociedades

    instintivas. Ao faz-lo, com um passado ao mesmo tempo

    originrio e virtual com elementos que foram abandonados ao

    longo do trajeto que fez da inteligncia o que ela que a vida

    pde estabelecer uma estrutura moral para a espcie humana.

    Instinto e inteligencia se interpenetravam outrora, antes da diviso

    do el em linhas divergentes. Essa simpatia remota entre as

    tendncias, que se conserva em estado virtual, acaba por suplantar a

    distncia que se apresenta entre o instinto dos himenpteros e a

    inteligencia dos homens.

    O que o desenvolvimento divergente do el distanciou ao longo

    da histria da vida, interpondo entre essas duas extremidades da

    evoluo toda a histria do mundo organizado, essa mesma

    causalidade da vida capaz de reaver quando cria algo que se

    apresenta, no ser inteligente, como um instinto virtual. A evoluo

    no vai, afirma Deleuze (1966, p. 80), de um termo atual a outro

    termo atual em uma sria unilinear homognea, mas de um virtual

    aos termos heterogneos que o atualizam ao longo de uma srie

    ramificada. Por sob a diferena e a incompatibilidade entre os

    382

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    atuais Bergson observa a diferena se fazendo no interior do

    movimento evolutivo. Sados de um movimento comum, as

    tendncias, mesmo uma vez espacializadas e especializadas ,

    guardam algo da totalidade original.

    Os elementos de uma tendncia no so comparveis, com efeito, a

    objetos justapostos no espao e exclusivos uns dos outros, mas sim a

    estados psicolgicos dos quais cada um, ainda que seja antes de tudo ele

    mesmo, participa no entanto dos outros e encerra assim virtualmente toda

    a personalidade qual ele pertence. No h manifestao essencial da

    vida, dizamos, que no nos apresente, no estado rudimentar ou virtual, as

    caractersticas das outras manifestaes. Reciprocamente, quando

    encontramos sobre uma linha de evoluo a lembrana, por assim dizer,

    do que se desenvolveu ao longo das outras linhas, devemos concluir que

    lidamos com elementos dissociados de uma mesma tendncia original

    (Bergson, 1907, p. 119).

    Afirmar que o el de natureza psicolgica reconhecer

    nele uma pluralidade confusa de termos que se interpenetram

    (Bergson, 1907, p. 258). Essas tendncias so, com efeito,

    exteriorizadas umas com relao s outras. A diviso do que se

    compenetrava no el acompanhada de uma especializao que

    uma acentuao de caracteres. Tivemos ocasio de observar que a

    vida teve de escolher entre dois modos de agir sobre a matria. Uma

    vez isso feito, os procedimentos teis ao instinto no eram os

    mesmos que aqueles da inteligncia. O que h de instintivo na

    inteligencia foi subsumido ao pleno desabrochar da atividade

    inteligente o mesmo sendo vlido para o instinto.

    Mas uma especializao que uma acentuao de caracteres no

    significa a supresso da contraparte que, inicialmente indistinta,

    comeou por se avizinhar, para ento se afastar progressivamente

    ao longo das linhas da evoluo. No demais lembrar que estamos

    lidando com instinto e inteligencia na qualidade de tendncias que

    se desenvolvem em forma de feixe, e que elas conservam alguma

    coisa de comum a despeito da diversidade de seus efeitos, como

    amigos separados h muito tempo guardam as mesmas lembranas

    da infncia (Bergson, 1907, p. 54). Se no se trata da restaurao

    de uma unidade perdida, e tal o caso para uma evoluo

    verdadeiramente criadora, no deixa de ser verdade que a

    383

  • Rafael Henrique Teixeira

    totalidade primitiva subsiste em cada espcie (Janklvitch, 1959,

    p. 149).

    A reminiscncia instintiva interior atividade inteligente o que

    possibilita que a vida crie uma estrutura moral que se apresenta

    como necessria no termo de uma de suas linhas de evoluo. Mas

    no se trata simplesmente de repetir o instinto, converter a

    inteligencia em instinto e estabelecer a coeso da cidade sob o

    traado do formigueiro ou da colmia. Trata-se de uma criao no

    sentido estrito do termo. A evoluo orgnica se aproxima daquela

    de uma conscincia, na qual o passado preme contra o presente e

    faz dele brotar uma forma nova, incomensurvel com seus

    antecedentes (Bergson, 1907, p. 27). Localizar a moral da

    humanidade ao longo da evoluo implica imputar-lhe esse mesmo

    carter.

    O problema diante do qual a obrigao social elementar figura

    como uma soluo aparece ao longo do processo evolutivo, na

    extremidade de uma de suas linhas. O impasse assim colocado to

    imprevisvel quanto a soluo que lhe oferecida. O que temos o

    direito de afirmar que essa soluo manifesta uma inteno, afinal

    a moral tem uma funo particular, conservar a coeso social sem

    sacrificar a indeterminao coextensiva atividade inteligente. E

    sua eficcia depende daquilo que repousa de instintivo na

    inteligencia, da unidade da vida, espcie de memria virtual que

    adormece em cada uma de suas manifestaes.

    Imprevisibilidade, inteno, soluo de um problema,

    atualizao da totalidade virtual coextensiva a cada uma das formas

    atuais, etc.; elementos indispensveis para a localizao ao longo do

    movimento evolutivo da obrigao que acompanha seres

    inteligentes vivendo em sociedade. Eles denotam uma espcie de

    circularidade do el. Afinal, no um ressarcimento do que h de

    excessivo na inteligncia que encontramos na moralidade sada da

    vida? Esse ressarcimento no implica uma retomada do el que, na

    qualidade de causa, capaz de tornar a criar mediante impasses

    apresentados por seus efeitos?

    Na histria do mundo organizado as causas fazem parte do

    efeito, afirma Bergson (1907, p. 165). Elas ganharam corpo ao

    mesmo tempo que ele, e so determinadas por ele tanto quanto elas

    o determinam. Como se a diviso que apontamos acima entre

    384

  • A obrigao do ponto de vista de Bergson

    histria das formas vivas e histria geral da vida se apresentasse sob

    um novo ngulo; aquele do inacabamento constitutivo da segunda

    diante do desenrolar da primeira, o que faz dela uma continuidade

    incessante de criao. Se a evoluo criadora, ela prpria apenas

    pode ser pensada de maneira evolutiva (Riquier, 2009, p. 399). A

    causa, uma virtualidade primitiva de compenetrao que se

    desenvolve em forma de feixe, reage aos seus efeitos, s espcies

    vivas com os impasses nos quais elas desembocam. A gnese da

    moral da qual nos ocupamos aqui se d a partir de uma criao que

    precisamente uma reao dessa natureza.

    Creio ter demonstrado que diante da majestade do dever descrito

    por Kant, que tem sua lei prpria bem como seu prprio tribunal,

    aquele de uma razo legisladora que revela uma vida independente

    da natureza, podemos observar o quo distinta a postura

    bergsoniana diante do fenomeno. E no intil observar essa

    distncia. Quando Bergson abate sobre o movimento geral da vida a

    moralidade de regras destinadas a tornar vivel a associao de

    seres inteligentes essa atitude completamente afeita sua filosofia

    da natureza.

    Para que uma moral possa ser concebida a partir de uma

    autonomia como aquela que descreve Kant, foi preciso que o cosmos

    tivesse j perdido sua funo constitutiva com relao ao sujeito, e

    que ele apenas aparecesse como decorao indiferente em que se

    desenvolve uma atividade humana que lhe , no fundo, estranha, e

    que no lhe deve nada do que o fez aceder sua humanidade

    (Brague, 1999, p. 316). Certamente no essa natureza inodora

    que Bergson nos apresenta. Inteligncia, sociedade e moral, os

    elementos da cultura de modo geral, se preferirmos, so todos, sem

    exceo e igualmente, determinaes da natureza. Realizar sua

    gnese implica remontar ao modo como ela cria e as direes que se

    desenham nessa atividade.

    Artigo recebido em 04.02.2014, aprovado em 31.05.2014

    385

  • Rafael Henrique Teixeira

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