A Metafora Do Olho (Roland Barthes)

6
urna irredutível molecagem ao longo de tribuíales que nao há como nao situar num período de férias prolongadas, em todos os aspectos táo ilimitadas quanto os devaneios tortuosos da ado- lescencia sao capazes de sugerir. Era de liberdade que jamais parece desabrida demais, de diversao no sentido que Bataille dará ao termo quando, em 1930, escreverá que “ a diversao é a necessidade mais gritante e, é claro, mais terrificante da natureza humana” (Documents , ano II, núm. 4, artigo “ Les Pieds Nickelés” , onde se diz que o trio popular cujas proezas ilícitas eram conta- das em quadrinhos pela revista infantil L ’Epatant participa em alguma medida das “figuras ao mesmo tempo sanguinolentas e galhofeiras do Walhalla mexicano”). Era durante a qual os tabus imemoriais sao violados sistemáticamente por esses jovens deu- ses ansiosos e turbulentos, o narrador e Simone, e por seu acóli- to, os tres tentando infinitamente ocupar seu ocio absoluto com os gestos aberrantes que exige sua sede inextinguível de se sentir ao mesmo tempo fora de toda lei e fora de si mesmos. Tradugao de Samuel Titan Jr. 114 A metáfora do olho' por Roland Barthes Por mais que a Historia do olho comporte algumas personagens dotadas de nome e o relato de seus jogos eróticos, Bataille abso- lutamente nao escreveu a historia de Simone, de Marcela ou do narrador (como Sade escreveu a historia de Justine ou de Juliette). A Historia do olho é, na verdade, a historia de um objeto. Com o um objeto pode ter urna historia? Certamente, ele pode passar de mao em máo (ensejando fic^óes insípidas do género da Historia do meu cachimbo ou Memorias de um sofá), ou ainda passar de ima- gem em imagem; sua historia é entáo a de urna migra^ao, o ciclo dos avatares (no sentido próprio) que ele percorre a partir de seu ser original, seguindo a índole de urna certa imaginafao que o deforma sem contudo abandoná-lo: é o caso do livro de Bataille. O que acontece ao Olho (e nao a Marcela, a Simone ou ao narrador) nao pode ser assimilado a urna fic^áo comum; as “aventuras” de um objeto que simplesmente muda de proprietário 1 Publicado originalmente em Critique 195-196, agosto-setembro de 1963, número especial dedicado a Bataille. [n. t.] 115

description

O que acontece ao Olho não pode ser assimiliado a uma ficção comum.

Transcript of A Metafora Do Olho (Roland Barthes)

  • urna irred u tvel m o le c a g e m ao lo n g o de t r i b u a le s q u e n ao h

    c o m o n ao situar n u m p e r o d o d e frias prolon gad as, e m tod os

    os aspectos to ilim itadas q u an to os devan eios tortu o sos da a d o

    le sc e n c ia sao cap azes d e su gerir. E ra d e lib erd a d e q u e jam a is

    p a re ce d esabrida d em ais, d e d iversao n o se n tid o q u e B a ta ille

    dar ao te rm o q u an d o, e m 1930, escrever q u e a d iversao a

    n ecessidad e m ais g ritan te e, claro, m ais terrifican te da natureza

    h u m a n a (Docum ents, an o II, n m . 4, a rtig o Les Pieds N ickels ,

    o n d e se d iz q u e o tr io p o p u lar cujas p roezas ilcitas eram co n ta

    das e m q u a d rin h o s p e la revista in fan til L Epatant p a rtic ip a em

    algu m a m ed id a das figuras ao m esm o te m p o san gu in olen tas e

    galh ofeiras d o W alh alla m e x ic a n o ). E ra d uran te a qual os tabus

    im e m o ria is sao v io la d o s sistem ticam en te p o r esses jo v e n s d e u -

    ses ansiosos e tu rb u len to s, o n arrad or e S im o n e, e p o r seu a c li

    to, os tres ten tan d o in fin itam en te o cu p a r seu o c io ab so luto c o m

    os gestos aberrantes q u e e x ig e sua sede in e x tin g u v e l de se sentir

    ao m esm o te m p o fora de toda le i e fora de si m esm os.

    Tradugao de Samuel Titan Jr.

    114

    A metfora do olho' p o r R o la n d B arthes

    P or m ais q u e a Historia do olho c o m p o rte algum as p erso n agen s

    dotadas de n o m e e o relato de seus jo g o s ertico s, B ata ille ab so

    lu tam en te n ao escreveu a h istoria de S im o n e, de M arce la o u do

    n arrad or (co m o Sade escreveu a h istoria de Justine o u de Juliette).

    A Historia do olho , na verdade, a h isto ria de u m o b je to . C o m o

    u m o b je to p o d e ter urna historia? C e rta m e n te , ele p o d e passar de

    m ao e m m o (en sejan do fic^ es inspidas d o g n ero da Historia

    do meu cachimbo o u Memorias de um sof), o u ainda passar de ima-

    gem em imagem; sua h istoria ento a de urna m igra^ ao, o c ic lo

    dos avatares (no sen tido p rp rio ) q u e ele p erco rre a partir de seu

    ser o rig in a l, se g u in d o a n d o le de urna certa im a g in a fa o q u e o

    d e fo rm a sem c o n tu d o aban d on -lo: o caso d o livro de B ataille.

    O q u e a co n te ce ao O lh o (e n ao a M arcela , a S im o n e o u ao

    n arrad or) n ao p o d e ser assim ilad o a urna fic^ o c o m u m ; as

    aventuras de u m o b je to q u e sim plesm en te m u da de p ro p rie trio

    1 P u b lic a d o o r ig in a lm e n te e m Critique 19 5 -19 6 , a g o s to -se te m b ro d e 1963,

    n m ero especial d ed ica d o a B ataille. [n. t.]

    115

  • d e riv am de urna rn agm acao rom anesca q u e se co n ten ta em o r

    d en a r o real; a o co n tra rio , os seus avatares , se n d o fo rzo sa e

    ab so lu tam e n te im ag in a rio s (e n ao m ais sim p lesm en te in ven ta

    d o s ), s p o d e m ser a p r p ria im a g in a d o : n a o seus p ro d u to s,

    m as a sua substancia; ao d escrev er a m igrago d o O lh o ru m o a

    o u tros o b je to s (e, p o r co n se g u in te , ru m o a outros usos q u e nao

    o de v e r ), B a ta ille nao se c o m p ro m e te c o m o rom an ce, q u e

    p o r definicpao tira p artid o de u m im ag in rio parcial, d eriv ad o e

    im p u ro (to d o m esclad o de real): ao co n trario , ele se m ove ap e

    nas n u m a essncia d e im ag in rio . Ser o caso de dar a esse g n e

    ro de co m p osi^ ao o n o m e de p o e m a ? N a o h outra coisa a se

    o p o r ao rom an ce , e essa oposi^ o necessria: a im a g in a d o ro

    m an esca p ro v v e l , o ro m a n ce aq u ilo qu e, feitas as contas,

    p o d e ria a co n tecer, im a g in a r io tm id a (m esm o na m ais lu x u ria n -

    te de suas criatpes), urna v e z q u e n ao ousa d eclarar-se sem a

    cau^o d o real; a im ag m ac o p o tic a , ao co n trrio , improvvel,

    o p o e m a a q u ilo q u e n ao p o d e ria aco n tecer, em n e n h u m caso,

    salvo ju s ta m e n te na reg ia o ten eb ro sa o u arden te dos fantasm as

    que, p o r isso m esm o, ele o n ic o a p o d e r designar; o rom an ce

    p ro c e d e p o r com b in a^ oes aleatorias de e lem en to s reais; o p o em a,

    pela e x p lo r a d o exata e co m p le ta d e elem en to s virtuais.

    P o d e -se r e c o n h e c e r nessa oposi^ ao caso ten h a fu n d a

    m e n to as duas g ran d es c a te g o r ia s (op era^ oes, o b je to s o u f i

    guras) q u e a lin g s tic a n o s e n s in o u r e c e n te m e n te a d istin g u ir

    e a n o m ea r: a disposi^ao e a sele^ao, o sintagm a e o paradigm a, a

    m eton im ia e a m etfora. Assim , a Historia do olho essencialm ente

    urna c o m p o s ir o m etafrica (mas lo g o se ver q u e a m eto n im ia

    in te rv m na seq n cia): u m te rm o , o O lh o , passa p o r variares

    atravs de u m ce rto n m e ro de o b je to s substitutivos, q u e m a n -

    t m c o m ele a rela9ao estrita de o b jetos afins (urna ve z q u e sao

    tod o s globulares) e, co n tu d o , dessem elhan tes (pois sao n o m ead o s

    d iversam en te); essa d u p la p ro p ried ad e a con d i^ ao necessria e

    su fic ie n te de to d o paradigm a; os substitutos d o O lh o sao declina

    dos, e m to d o s os sen tid o s d o te rm o : recitad os c o m o as form as

    fle x io n a is de urna m esm a palavra; revelados c o m o estados d e

    urna m esm a id en tid ad e , ev itad o s c o m o prop osi^ es q u e nao se

    s o b re p e m urnas as outras; esten d id os c o m o m o m e n to s sucessi-

    vo s de urna m esm a historia . A ssim , em seu p ercu rso m e ta f rico ,

    o O lh o persiste e varia a o m e sm o tem p o : sua fo rm a capital su b

    siste atravs d o m o v im e n to de urna n o m e n c la tu ra , c o m o a de

    u m espado to p o l g ic o ; p o is a q u i cada flex o u m n o m e n o vo ,

    d e acep^es novas.

    O O lh o assem elh a-se, p o rta n to , m a triz de u m p ercu rso

    d e o b je to s q u e sao c o m o q u e as d iferentes esta9es da m etfo

    ra ocular. A p rim eira varia^ao a de o lh o [oeil] a o vo [oeuf] ; urna

    v a riac o dup la, a u m s te m p o de fo rm a (as duas palavras t m

    u m so m c o m u m e u m so m diferente) e de c o n te d o (ainda q u e

    a b so lu ta m e n te d istan tes, os dois o b je to s sao g lo b u la res e b ra n -

    cos). U rn a ve z dadas c o m o e lem en to s invarian tes, a brancu ra e a

    ro tu n d id a d e p e r m ite m novas e x ten s e s m etafricas: a d o prato

    d e le ite d o gato, q u e serve ao p rim e iro jo g o e r tic o de S im o n e

    e d o n arrador; q u a n d o se to rn a carm in ad a (co m o a de u m o lh o

    m o rto e re v irad o ), essa b ran cu ra leva a u m n o v o d e se n v o lv im e n -

    to da m etfo ra sa n cio n a d o p e la acep^ o c o rre n te q u e d o

    n o m e de ovos aos testcu los de anim is. A ssim se co n stitu i p len a

    m e n te a esfera m e ta f r ic a em q u e se m o v e to d a a Historia do

    olho, d o p r a to d e le ite d o g a to e n u c le a f o d e G r a n e r o e

    castra^ao d o to u ro ( aqu elas g ln d u las, d o tam a n h o e da fo rm a

    d e u m o vo , eram d e urna b ra n cu ra carm in ad a, salpicada d e san-

    gu e , anloga d o g lo b o o c u la r ).

    1 1 7

  • Essa a m et fo ra p r im e ira d o p o em a. M as n ao a n ica ,

    dla d eriva urna cadeia secu n d ria , con stitu ida p o r tod o s os ava-

    tares d o lq u id o , cu ja im a g e m ig u a lm e n te lig ad a ao o lh o , ao

    o v o e as g ln d u las, e n a o apenas o l ic o r q u e varia (lgrim as,

    le ite d o p ra to / o lh o d o gato, g e m a cru a d o ovo, esp erm a o u u r i

    na), m as, p o r assim dizer, o m o d o d e aparico d o m id o ; aq u i a

    m e t fo ra b e m m ais r ic a q u e c o m o g lo b u la r; do molhado ao

    escoamento, todas as varied ad es d o inundar v m co m p le ta r a m e

    tfora o r ig in a l d o g lo b o ; o b je to s a p a re n te m e n te lo n g n q u o s

    v e m -s e ap risio n ad o s na cad eia m etaf rica , c o m o as entranhas

    d o cavalo fe r id o , jo r r a n d o c o m o urna catarata ch ifrada d o

    to u ro . C o m e fe ito (pois a forqa da m etfora in fin ita), basta a

    presenqa de urna das cadeias m etafricas para fa ze r co m p a re ce r

    a outra: o q u e p o d e ria ser m ais s e c o q u e o S ol? M as basta q u e ,

    n o ca m p o m e te o r o l g ic o trabado p o r B ata ille guisa d e ar sp i-

    ce, o S o l seja d isco e d ep ois g lo b o para q u e sua lu z esco e c o m o

    u m lq u id o e v e n h a se ju n tar, atravs da id ia d e urna luminosi-

    dade mole o u d e urna liquefago urinaria do cu, ao tem a d o o lh o ,

    d o o vo e da glnd ula.

    E is en tao duas series m etafricas o u , se q u iserm os, c o n fo r

    m e a d efin iq o da m etfora , duas cadeias de sign ifican tes, p o is

    jam ais, e m cada urna dlas, u m te rm o outra co isa seno o sig

    n ific a n te d o te r m o v iz in h o . T o d o s esses significan tes esca lo n a

    d o s re m e te m a u m sig n ifica d o estvel e to m ais secreto p o r se

    ach ar se p u ltad o sob urna arq u itetu ra de m scaras? Essa urna

    q u e st o d e p s ic o lo g a p ro fu n d a q u e seria fo ra de p ro p s ito

    ab o rd ar aqui. N o te -s e apenas isto: se a cadeia tem u m in icio , se

    a m etfo ra c o m p o r ta u m te r m o g e ra d o r (e p o r c o n s e g u in te

    p r iv ile g ia d o ), a partir d o qu al o p arad igm a se co n str i de v iz i

    n h o a v iz in h o , d e v e -se ao m e n o s re c o n h e c e r q u e a Historia do

    118

    olho n ao d esign a a b so lu ta m e n te o sexu al c o m o te rm o p r im e iro

    da cadeia: nada a u to riz a a se d ize r q u e a m etfo ra p a rte d o g e

    n ital para ch e g a r a o b je to s ap aren te m en te assexuados c o m o o

    o vo , o o lh o o u o S o l; o im a g in rio q u e se d esen vo lve aq u i nao

    te m u m fan tasm a se x u a l c o m o s e g r e d o ; se fosse esse o caso,

    seria p re c iso e x p lic a r p o r q u e o tem a e r tic o n u n ca d ireta-

    m e n te f lic o (trata-se de u m falism o re d o n d o ); m as, so b retu d o ,

    o p r p r io B a ta ille to r n o u p a rc ia lm e n te va q u a lq u e r decifra^ ao

    de seu p o e m a , ao re fe r ir (no fim d o livro) as fo n tes (biogrficas)

    de sua m etfora; n a o h o u tro recu rso senao co n te m p la r na H is

    toria do olho urna m e t fo ra p e rfe ita m e n te esfrica: cada u m de

    seus te rm o s sem p re sig n ifican te de u m o u tro te rm o (n en h u m

    te r m o u m sim ples sign ificad o), sem q u e jam ais se possa d eter

    a cadeia; ce rta m e n te , o O lh o , urna v e z q u e esta sua h isto ria ,

    p a re ce p re d o m in a r - ele, d e q u e m sabem os q u e era o p r p rio

    Pai, ce g , o g lo b o esbranquicpado rev iran d o q u a n d o ele u rin ava

    na fren te da crian za; m as, nesse caso, a eq u iva len cia d o o cu lar

    e d o g e n ita l q u e est na o r ig e m , n ao a lg u m de seus term o s: o

    p arad igm a n ao c o m e ta em lu g ar n e n h u m . Essa in d eterm in aijao

    da o rd e m m e ta f r ic a , g e ra lm e n te re legad a p ela p s ic o lo g a dos

    arq u tip o s, n ao fa z m ais q u e rep ro d u zir o carter d eso rd en ad o

    dos ca m p o s associativos, a firm a d o e n f tica m e n te p o r Saussure:

    n ao se p o d e c o n fe rir ascendftcia a n e n h u m dos term o s d e urna

    d e c lin a f o . A s co n seq n cia s crticas sao im p ortan tes: a Historia

    do olho n ao urna o b ra p rofu n d a, tu d o se d na su p e rfic ie e sem

    h ierarq u ia, a m etfora se espraia p o r in te iro ; circu lar e ex p lc ita ,

    ela n ao re m e te a n e n h u m segred o, trata-se aqui d e urna sign ifi-

    caqao sem sig n ifica d o (ou n a qual tu d o sign ificad o); e n a o ser

    n e m a m e n o r das suas belezas n e m a m e n o r das suas n o vid ad es

    q u e esse te x to c o m p o n h a , p o r m e io da t cn ic a q u e se p ro cu ra

    119

  • d e scre v e r a q u i, urna lite ra tu ra a c u a b e rto , situada a l m d e

    q u a lq u e r d e c ifra f o e q u e apenas urna crtica fo rm a l p o d e de

    m u ito lo n g e aco m p an h ar.

    R e to rn e m o s agora as duas cadeias m etafricas, a do O lh o (para

    d iz - lo sim p lificad am en te) e a das lgrim as. C o m o reserva d e

    signos virtuais, urna m etfora pura nao p o d e , p o r si s, co n stitu ir

    u m discurso: q u an d o se recitam seus term o s, isto , q u an d o se in-

    serem seus te rm o s e m u m relato q u e os c im en ta , sua n atu reza

    parad igm tica ced e lu g a r e m b e n e fic io da d im en sao de toda fala,

    q u e fatalm en te e x ten so sin tagm tica;2 a Historia do olho , de

    fato, u m relato cu jos ep iso d io s sao p red ete rm in a d o s pelas d ife

    rentes estacpes da d u p la m etfora; o relato nao m ais q u e urna

    esp ecie de m atria c o rre n te e m q u e se engasta a preciosa subs

    tan cia m etafrica: se estam os e m u m parq ue, n oite, para q u e

    u m ra io d e lu ar v e n h a to rn a r tran slcid a a m an ch a m id a d o

    le n c o l de M arcela , q u e flu tu a jan e la d e seu quarto; se estam os

    e m M a d r i, para q u e haja urna corrida, o feren d a dos ovos crus

    d o to u ro , en uclea^ o d o o lh o d e G ra n e ro ; se e m S e v ilh a , para

    q u e o c u e x p rim a a q u e la lu m in o s id a d e am arelada e lq u id a ,

    cu ja n a tu re z a m e ta f r ic a , alis, j c o n h e c e m o s p e lo resto da

    ca d e ia . O relato urna form a, cujas constri^ es, fecun das c o m o

    2 Ser p reciso e x p lic a r esses te rm o s p ro ven ien tes da lin g stica e q u e urna

    certa literatura c o m e ta a aclim atar? O sintagm a o p lano de e n ca d eam en to e

    de com b in a^ o dos sign os n o n ive l d o d iscurso real (por exem p lo , a linha das

    palavras); o paradigm a , para cada sign o d o sintagm a, a reserva de signos irm ao s

    e c o n tu d o dessem elhan tes d en tre os quais se faz a escolha; de resto, esses

    te rm o s figu ram na ltim a ed iqao d o Petit Larousse.

    120

    as antigas regras m tricas o u trgicas, p e rm ite m que se tirem os

    term o s da m etfora de sua v irtu a lid ad e con stitu tiva.

    C o n tu d o , a Historia do olho b em d iferen te de u m relato,

    p o r te m tico q u e fosse. Isso p o rq u e, dada a d up la m etfora , B a

    taille faz in te rv ir urna n ova tcn ica: ele p e rm u ta as duas cadeias.

    Essa troca p ossvel p o r n atu reza , urna v e z q u e n ao se trata d o

    m esm o parad igm a (da m esm a m etfora) e q u e, p o r co n seg u in te ,

    as duas cadeias p o d e m estab elece r rela^oes de co n tig id a d e e n

    tre si: p o d e -s e em parelh ar u m te rm o da p rim eira a u m te rm o da

    segu n d a, o sin tagm a imediatamente p o ssvel, nada se o p e , n o

    p lan o d o b o m -se n so co rre n te , e tu d o at c o n d u z a u m discurso

    q u e d iz q u e o olho chora, q u e o ovo quebrado escoa o u q u e a lu z

    (o Sol) se espalha; em u m p rim e iro m o m e n to , q u e o de to d o

    m u n d o, os term o s da p rim eira m etfora e os da segunda sao de

    con serva , sabiam en te em p arelh ados segu n d o estereotip os an ces-

    trais. N ascid os de m aneira bastante clssica da conjun^ao de duas

    cadeias, esses sintagm as trad icion ais co m p o rta m e v id e n te m e n te

    p o u c a in fo rm a fa o : quebrar um ovo o u Jurar um olho sao in fo rm a

    l e s globais, que s tm e fe ito em v irtu d e de seu co n tex to , e nao

    em v ir tu d e de seus co m p o n en tes: que fa ze r de u m o vo seno

    q u ebr-lo , e que fazer de u m o lh o senao fur-lo?

    M as tu d o m u da q u an d o se c o m e ta a p ertu rb ar a co rre sp o n

    d en cia das duas cadeias, q u an d o, ao invs de em parelhar os o b je

    tos e os atos co n fo rm e as leis tradicionais d e parentesco (quebrar

    um ovo, Jurar um olho), d esarticu la-se a associa^ao, retiran d o cada

    u m de seus term o s de lin h as d iferentes, e m sum a, d an d o -se o

    d ireito de quebrar um olho e Jurar um ovo; e m rela^ao as duas m et

    foras paralelas (do o lh o e d o c h o ro ), o sintagm a torn a-se cru zad o ,

    p o is a lig a f o q u e ele p ro p e vai procurar, d e urna cadeia outra,

    term o s n ao co m p lem en tares, mas distantes: reen con tram o s a le i

    121

  • da im a g e m surrealista, fo rm u lad a p o r R e v e r d y e retom ada p o r

    B re to n (quanto mais distantes as relates entre duas realidades, mais

    forte ser a imagem). A im ag em de B ataille, p o r m , b em m ais d e

    liberada; nao urna im a g e m desvairada, n e m m esm o urna im a

    g e m livre, pois a co in cid e n c ia de seus term os nao aleatoria, e o

    sin tagm a se v lim itad o p o r urna c o n s tr i o : a da se le fo , que

    o b rig a a se lecio n ar os te rm o s da im agem em apenas duas series

    finitas. D essa c o n s tr i o nasce, e v id en te m en te , urna in fo rm a f o

    m u ito fo rte , situada a igual distancia do banal e do absurdo, urna

    v e z que o relato en cerrad o na esfera m etafrica, dentro da qual

    p o d e m udar de regiao (o q u e lh e co n fere alent), mas sem trans

    gred ir seus lim ites (o q u e lh e garante sentido); co n fo rm e a le i que

    estipula q u e o ser da literatura n ao p o d e jam ais ser outra coisa

    seno sua tcn ica , a insistencia e a lib erd ade desse can to sao os

    p rodutos de urna arte exata, que soube sim ultneam ente m ed ir o

    cam p o associativo e liberar as con tig id ad es de term os.

    Essa arte n ao te m nada de gratu ito , urna v e z parece c o n fu n -

    d ir-se c o m o p r p rio erotism o, ao m en o s o de Bataille. D e c e r to ,

    p o d e -s e im ag in a r para o ero tism o outras d e fin if e s a lm da lin

    g stica (e o p r p rio B a ta ille j o m ostrou ). M as, se ch am arm os

    d e metonimia essa transla^ao de sen tid o op erad a de urna cadeia

    o utra, em nveis diferentes da metfora (olho sugado como um seio, be

    ber meu olho entre seus lbios), sem d vid a reco n h ece rem o s que o

    erotism o de B ataille essen cialm ente m eton m ico . C o m o aqui a

    t cn ic a p o tic a consiste e m d esfazer as con tig id ad es co stu m e i-

    ras de o b je to s e su b stitu -las p o r n ovos en co n tro s, p o r sua v e z

    lim ita d o s p e la p ersiste n cia de u m tem a n ic o n o in te r io r de

    cada m etfora, p ro d u z-se urna esp cie de c o n t g io gen era lizad o

    das q u alid ad es e dos atos: p o r sua d e p e n d e n cia m e ta f rica , o

    o lh o , o S o l e o o vo p a rtic ip a m estreitam en te d o genital; e, p o r

    122

    sua lib erd ade m e to n m ica , eles tro cam in fin ita m en te seu sen tido

    e suas acep q es, de m o d o q u e q u eb rar ovos e m urna b an h eira ,

    e n g o lir o u descascar ovos (crus), co rta r u m o lh o , e n u c le - lo o u

    d e sfru t -lo e r tica m e n te , associar o p rato d e le ite e o se x o , o

    raio de lu z e o ja to de u rin a, m o rd e r a g ln d u la do to u ro c o m o

    se fosse u m o v o o u a lo j-la n o p r p rio c o rp o , todas essas asso

    c i a t e s sao ao m esm o te m p o idn ticas e diversas; p o is a m e t fo

    ra, q u e as varia, m an ifesta en tre elas urna diferenqa regrada, q u e

    a m e to n im ia , ao p e rm u t -la s , lo g o se p e a ab o lir: o m u n d o

    to rn a -se tu rv o , as p ro p ried ad es j nao sao b e m divididas; escoar,

    soluqar, u rin ar, e jacu lar fo rm a m u m sen tido estrem ecid o , e tod a

    a Historia do olho s ig n ifica m an eira d e urna v ib r a f o q u e p r o -

    d u z sem p re o m esm o so m (mas qual som ?). A ssim , transgressao

    dos valores, p r in c ip io d eclarad o d o erotism o, co rresp o n d e se

    q u e esta nao fun da aquela urna transgressao tcn ica das fo rm as

    da lin g u a g e m , p o is a m e to n im ia n ao o u tra coisa seno u m

    sin tagm a forqado, a v io la d lo d e u m lim ite d o espado sign ifican te;

    ela p e rm ite , n o p r p rio n iv e l d o discurso, urna co n tra-d iv is o

    d os o b je to s , das acep q es, dos sentidos, dos espaqos e das p r o

    p ried ad es, q u e o p r p rio erotism o : d e m o d o qu e, na Historia

    do olho, o q u e o jo g o da m etfora e da m e to n im ia p e rm ite d e fi

    n itiv a m e n te tran sgred ir o se x o o q u e, en ten d a-se b em , n ao

    sign ifica su b lim -lo , m u ito a' co n trrio .

    R e s ta saber se a re t rica q u e acabam os d e descrever p e rm ite

    q u e se d co n ta de todo o erotism o ou se p ecu liar a Bataille. U m

    olhar sobre o erotism o de Sade p erm ite u m esb ozo de resposta. E

    verd ade q u e o relato de B ataille deve m u ito ao de Sade, mas isso

    se d p o rq u e Sade fu n d o u toda a narrativa ertica , na m ed id a em

    q u e seu erotism o de natureza essencialm ente sintagm tica; dado

    u m certo n m ero de lugares erticos, Sade d ed u z todas as figuras

    123

  • (ou conjun^ es de personagens) que p o d e m m ob iliz-los; as u n i

    dades prim eiras sao em n m ero fin ito , pois nada m ais lim itado

    que o m aterial ertico , mas sao suficientem ente num erosas para se

    prestarem a urna co m b in a to ria aparentem ente infinita (os lugares

    erticos co m b in a n d o -se em posturas, e as posturas, em cenas), cuja

    profuso form a o relato sadiano. E m Sade, nao h n en h u m recurso

    a urna im aginaqo m etaf rica ou m eto n m ica , sua ertica sim -

    p lesm en te com b in atoria ; mas p o r isso m esm o ela certam en te tem

    o u tro sentido q u e a d e B ataille. Pela troca m eton m ica , B ataille

    esgota urna m etfora, dupla, verdade, mas cujas cadeias sao fraca-

    m en te saturadas; Sade, ao contrrio, explora a fundo u m cam po de

    c o m b in a f e s livres de toda constriqo estrutural; seu erotism o

    e n c ic lo p d ico , p artic ip a d o m esm o espirito co n tb il q u e anim a

    N e w to n ou F ourier. Para Sade, trata-se de recensear urna co m b i

    natoria ertica, p ro jeto que nao co m p orta (tcnicam ente) n en h u -

    m a transgressao d o sexual. Para B ataille, trata-se de p erco rrer o

    tre m o r d e alguns o b je to s (n o fa o in te iram en te m od ern a , d esco -

    n h ecid a de Sade), de m o d o a perm utar as fun^es do obscen o e as

    da substancia (a con sisten cia do o vo cru, a cor san guin olen ta e

    carm in ad a das glndulas cruas, o v itre o d o o lh o). A lin gu agem

    ertica de Sade nao te m outra conotaqo q u e a de seu sculo, ela

    urna escritura; a d e B ataille con otad a p e lo p rp rio ser de B a

    taille, ela u m estilo; entre as duas, a lgo de novo nasceu, que trans

    fo rm a toda e x p e r ie n c ia em lin gu age m extraviada (para retom ar

    m ais u m term o surrealista) e que a literatura.

    Tradu(do de Samuel Titan Jr.

    C iclism o em G r ignan1 p o r Julio C o rt za r

    Ela se masturbava no selim com movimentos cada

    vez mais bruscos. Assim como cu, nao tinha esgota-

    do a tempestado evocada por sua nudez.

    G eorges Bataille, Historia do olho

    Insisto e m d e sco n fia r da causalidad e, essa fach ad a d e u m esta

    blishment o n to l g ic o q u e se ob stin a e m m an ter fechadas as p o r

    tas das m ais ve rtig in o sas aventuras hum an as, q u e ro d iz e r q u e se

    depois de 1e r u m ce rto liv ro de G e o rg e s B ata ille eu tivesse b eb id o urna taqa de v in h o n u m caf d e G rig n a n , a garota da b ic ic le ta

    n a o se teria situado antes, c o m essa aura q u e d istin gu e os instan

    tes p riv ile g ia d o s; ao estab elecer u m laqo entre o livro e a cena, a

    m e m o ria teria te c id o a m alha causal, a e x p l ic a d o sim plificadora

    d e tod a s rie en cad ead a p o r u m c o n d ic io n a m e n to p ro p ic io

    tra n q ilid a d e d o esp irito e a o rp id o e s q u e cim e n to . N a o fo i

    assim, m as p rim e iro p reciso d ize r q u e G rig n a n se h o n ra c o m a

    lem b ran ca de M ad a m e d e S e v ig n , e q u e o caf c o m m esas ao ar

    liv re est s itu ad o so m b ra d o m o n u m e n to o n d e esta sen h ora,

    p e n a de m rm o re na m ao , c o n tin u a e scre v en d o sua filha as

    crn icas d e u m te m p o ao qual n ao tem os acesso.

    I P u b lica d o o rig in a lm e n te e m ltimo Round (M x ico : S ig lo x x i , 1969). [n. t.]