A Filha Do Rei Dragão - Contos Da Dinastia Tangue

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Narrativas folclóricas chinesas AA sseerrppeennttee bbrraannccaa

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Narrativas folclóricas chinesas AA sseerrppeennttee bbrraannccaa

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[Orelhas]

A serpente branca A filha do rei dragão Narrativas folclóricas chinesas Contos da dinastia Tangue

A presente coleção contém 20 contos populares do lago do Oeste, de Ancheu, tão célebre por sua singular beleza e valiosos monumentos artísticos e históricos. Ancheu é um dos lugares turísticos mais visitados da China. O povo de Ancheu, ao longo de milênios, enquanto usufruía e embelezava o lago e arredor, criou belos e originais contos de variada temática. Temas que abarcam desde os mais conhecidos e pitorescos lugares e os monumentos de valor histórico até os originais produtos autóctones, desde as lides indômitas do povo até as lendas de mutações naturais acerca do Sol, da Lua e das estrelas, assim como as montanhas, rios, lagos e mares. Ademais, narrativas sobre poetas e bonzos.

A dinastia Tangue (618–907) constituiu a idade áurea da literatura chinesa. Seus numerosos contos de temas sobrenaturais, políticos, aventurescos e amorosos, com linguagem polida e riqueza de detalhe, brindaram uma imagem autêntica e vívida do povo e da sociedade de então.

Nessa edição se recopilaram dez dos melhores contos dessa dinastia, com cinco ilustrações pertinentes à dinastia Mingue (1368–1644).

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Digitalizado em abril de 2014

Nas notas de rodapé, onde aparece nota do tradutor, é a que estava originalmente em papel. São notas do tradutor do chinês ao castelhano. Onde aparece nota do digitalizador-tradutor, são minhas notas, na tradução do castelhano ao português.

A edição em papel é capa dura, tendo uma sobrecapa solta, que são as duas ilustrações acima.

A filha do rei dragão Contos da dinastia Tangue

As ilustrações foram obtidas em edições de peças teatrais de fim do século 16 e começo do 18, inspiradas em contos pertencentes ao período da

dinastia Tangue

Primeira edição, 1980

Edições em línguas estrangeiras Baiwanzhuang 24, Pequim, China

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Distribuidor: Guoji Shudian

Caixa postal 399, Pequim, China

Impresso na República Popular da China Impressão: Oficinas gráficas de línguas estrangeiras

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Índice Prefácio

O mico branco - anônimo Rem, a raposa encantada - Shen Jiji A filha do rei dragão - Li Chaowei A filha do príncipe Huo - Jiang Fang O governador do estado tributário do sul - Li Gongzuo A história da bela Li Wa - Bai Xingjian Wushuang, a incomparável - Xue Diao O esbanjador e o alquimista - Li Fuião O escravo cunlum - Pei Xing O homem de barba crespa - Du Guangting

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Prefácio I

A dinastia Tangue (618–907) foi a idade áurea da literatura chinesa. No curto espaço de 290 anos se manifestaram numerosos poetas e escritores tais como Li Bai, Du Fu, Bai Juyi, Li Gongzuo e Bai Xingjian, que deixaram imortais obras-primas. Mais de 50 mil poemas e 400 relatos da dinastia Tangue permanecem, ressaltando a glória da secular civilização chinesa.

A novela existia em estado embrionário na época das seis dinastias (222–589). Então brotaram múltiplos contos e anedotas interessantes. Mas talvez porque se tratavam de histórias estranhas ou atos e frases de homens célebres, a maioria desses relatos não passava de esboço ou simples anedota. Hu Yinglin (1551–1602), um crítico pertencente à dinastia Mingue, escreveu:

O período das seis dinastias é fértil em contos estranhos, cuja maior parte não foi inventada deliberadamente mas baseada em rumores, em narrativas deformadas pela tradição oral. Recém durante a dinastia Tangue os escritores começaram a escrever com sua própria imaginação.

De fato, nessa dinastia apareceram contos de grande vôo, com linguagem polida e riqueza de detalhes que brindam uma imagem autêntica e vívida do povo e da sociedade de então. A poesia e a novela foram as duas formas literárias mais desenvolvidas nessa época. Na dinastia Songue, Hong Mai (1123–1202) expressou:

Devemos estudar as novelas tangue. Até os menores fatos são delicadamente emocionantes e freqüentemente o leitor sucumbe a seu encanto, sem perceber. A novela e a poesia tangue são as maravilhas de sua época.

Pra entender o motivo desse progresso tão rápido temos que retroceder no tempo. A dinastia Tangue se estabeleceu após a revolta camponesa do final da dinastia Sui (581–618). Li

Yuan, primeiro imperador dos Tangue, e seu filho Li Shimin aproveitaram a sublevação camponesa pra ocupar Chang'an e desfrutar os frutos da vitória. No começo do século 7 completaram a unificação do país, assim pondo fim a quatro séculos de separatismo local, de invasão estrangeira e de caos que seguiram à queda da dinastia Han (-220). Li Shimin foi um dos mais destacados imperadores da China medieval. Deteve a ameaça de invasões forâneas, desenvolveu as regiões fronteiriças e abriu a rota ao oeste, dando assim novo impulso ao intercâmbio econômico e cultural entre o leste e o oeste. Com o desenvolvimento de forças produtivas se engendrou uma grande renascença cultural. Literatura, arte, música, dança e escultura floresceram como nunca.

À medida que o comércio prosperava surgiam grandes cidades. Chang'an, atual Xi'an, serve de quadro a seis contos do presente livro: Liangzhou, Yangzhou, Guangzhou e outras cidades, eram centros prósperos do comércio com o exterior. Comerciantes árabes, sacerdotes e professores estrangeiros chegaram em grande número à China. Havia de 4000 a 5000 estrangeiros na cidade de Chang'an. As exigências da nova classe urbana de comerciantes, quanto a literatura e entretenimento, constituíram um forte estímulo ao progresso da poesia e da literatura nacional e regional, nos gêneros mais variados. Nessa base se desenvolveu a novela curta.

Outro fator a ter em conta é o conflito que estouraria inevitavelmente entre a classe urbana nascente e tudo o que caía em decadência no velho sistema feudal. Esse conflito foi uma mina temática prà literatura. Assim, pois, o posto importante outorgado aos relatos da dinastia Tangue na história da literatura chinesa repousa no fato de que seus autores nos brindaram cuma pintura romântica mas relativamente realista e emotiva, da vida naquela época. As rivalidades intestinas da classe dominante e a oposição popular aos senhores feudais no curso da dinastia Tangue estão bem refletidas nessas obras.

II Os dez relatos desta recopilação podem ser divididos em três categorias principais: Histórias

sobrenaturais, com tema político ou aventuresco, e amorosas. Os eventos sobrenaturais constituem o motivo da maioria de todas as primitivas novelas curtas. A

China sempre teve uma rica mitologia. Logo após a introdução do budismo no país as histórias de fantasma e de espírito se tornaram ainda mais populares que durante as seis dinastias, período no qual, no entanto, proliferaram esses contos. Rem, a raposa encantada, A filha do rei dragão e O esbanjador e o alquimista pertencem à primeira categoria. Diferem das primitivas novelas do mesmo tipo por suas intrigas severas e detalhes mais coloridos. São, de fato, obras de arte consumadas, impregnadas de toda a vitalidade de seu tempo.

As sátiras políticas e as narrativas aventurescas são outro aspecto bem caracterizado dos contos da dinastia Tangue. O governador do estado tributário do sul, O mico branco, O homem de barba crespa e O escravo cunlum pertencem a essa classe.

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Os contos aventurescos se originaram no fim da dinastia Tangue, quando o poder imperial declinava. Depois da revolta de An Lushan, em 755, o governo central se debilitava a passo acelerado, enquanto os caudilhos militares locais ficavam cada vez mais poderosos e criavam feudos independentes.

Pra reforçar seu poderio e estender seu território, esses senhores exploravam e subjugavam cruelmente o cidadão comum, enquanto por medo de ser assassinados se rodeavam de espadachins e guardas. O cidadão comum sonhava com heróis que logo apareceriam pra os liberar do sofrimento e derrubar os tiranos opressores. Então esses inúmeros contos sobre espadachins e campeões populares. Gu Sheng, em Wushuang, a incomparável, é o mesmo tipo de herói admirado pelo povo. Idem o bravo Mole, que em O escravo cunlum ajudou seu amigo Cui a encontrar a jovem amada.

Mas a maioria dos melhores contos tangue é história de amor. A filha do príncipe Huo, A história da bela Li Wa e Wushuang, a incomparável são contos relidos em sua época.

Essas histórias refletem com clareza, através do problema do matrimônio, o agudo conflito entre a velha e a nova classe na época tangue. Quer dizer, entre as antigas famílias feudais e a classe que se desenvolvia nas cidades. Os poderosos clãs feudais davam muito valor ao nível oficial e à origem de berço. Observavam com rigidez as distinções de classe e arranjavam as bodas seguindo a condição e o nível social. Seus descendentes não tinham, pois, autorização pra se casar com plebeu. As cantoras não podiam pretender matrimônio com letrado. Inclusive as filhas de famílias respeitáveis não eram livres pra escolher conforme o coração. Por isso justamente é ao amor verdadeiro de personagens tais quais a filha do príncipe Huo e o letrado Zheng. Ou seja, uma paixão que não se deixa arrastar por falsos respeitos às condições sociais ou ao convencional, que os escritores dedicam suas loas. Ao contrário, o infiel Li é censurado por se casar cuma dama rica e abandonar a jovem que o amava sinceramente.

Nesses relatos a ausência de liberdade nos matrimônios feudais é criticada severamente enquanto se cantam louvores aos enamorados que combatem os convencionalismos retrógrados e aspiram a um casamento livre e feliz, baseado num amor autêntico. Então que as histórias de amor do período Tangue, plenas de aspiração popular, foram vistas como temas ideais pelos dramaturgos das dinastias Iuã (1280–1368) e Mingue (1368–1644).

III Vimos também que os relatos Tangue se multiplicaram na crista do movimento político, econômico e

cultural da época. Continuaram a tradição das seis dinastias enquanto a histórias sobrenaturais e, influenciados pela arte contemporânea e o artesanato tanto quanto pela literatura budista do país, brotaram rapidamente. Ricas em conteúdo ideológico, refletem os diversos conflitos da sociedade feudatária na época Tangue, ao mesmo tempo que a vida brilhante e opulenta de então. Evidentemente esses relatos têm limite. A linguagem é tão imaginativa que só os leitores das classes mais cultas os apreciariam. Isso explica porquê, quando o sistema social da dinastia Tangue ruiu, foram substituídos por uma literatura mais popular nas dinastias Songue e Iuã, que se adaptou melhor às necessidades da classe urbana.

Os relatos desta edição estão classificados em ordem cronológica, cuma breve nota sobre o autor. Estes dez contos dão um bom exemplo das principais histórias nascidas na dinastia Tangue, e através delas poderemos ter uma idéia da riqueza e variedade do patrimônio literário da China.

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O mico branco Anônimo

Este conto é uma sátira sobre o famoso calígrafo Ouyang Xiu, que tinha a fama de parecer um mico

Nota do editor

o ano 545, sob a dinastia Liangue, o imperador enviou ao sul uma expedição comandada por general Lin Qin, que ao chegar a Guilim enfrentou as forças rebeldes coligadas de Li Shigu e de Chen Che, enquanto seu lugar-tenente

Ouyang Ge avançava até Changle, limpando de inimigos todas as cavernas e se internando em terreno perigoso.

Ocorreu que a mulher de Ouyang, que tinha a cútis delicada e branca, era duma beleza arrebatadora. Disseram seus homens:

— General, por que trouxeste uma mulher tão bela? Nesta região há um deus que se jacta de raptar todas as moças, e sobretudo não perdoa as mais belas. É preciso redobrar a guarda.

Vivamente alarmado, nessa noite Ouyang ordenou que seus guardas rodeassem a casa, e escondeu sua mulher num aposento secreto, a encerrando cuma dezena de servas a quem encomendou a missão de a proteger.

A noite era muito escura e soprava um vento lúgubre. Mas tudo permaneceu tranqüilo até a alvorada. Finalmente, cansados de velar, todos começaram a dormitar. Repentinamente acreditaram sentir uma presença insólita. Surpresos, despertaram e saltaram do chão, mas a mulher já desaparecera. A porta permanecia cerrada e ninguém soube como pôde sair. Saíram, buscando com o olhar na montanha escarpada que tinham enfrente, mas a noite era tão escura que nada se podia ver a um passo, e foi impossível continuar a busca. Amanheceu e tampouco se encontrou rastro.

Profundamente indignado e aflito, Ouyang jurou que jamais voltaria sem encontrar sua mulher. Com o pretexto de estar doente fez acampar ali seu exército. A cada dia buscava em todas as direções, perscrutando até nas quebradas mais profundas e perigosas. Um mês depois, a 120km do acampamento, num bambuzal, encontrou um dos sapatos bordados de sua mulher, que mesmo empapado pela chuva foi fácil reconhecer. Mais aflito que nunca, Ouyang continuou a busca. Cuma trintena de seus homens mais aguerridos, passava as noites dormindo nas grutas ou simplesmente ao ar livre. Depois de marchar dez dias mais e se afastar cerca de 250km do acampamento, descobriu a sul uma montanha sinuosa e coberta de bosque. Chegado à falda da montanha a encontrou rodeada por um rio profundo. A travessia foi feita sobre uma balsa improvisada. Ao longe, entre precipícios e através dos bambus de esmeralda, perceberam o brilho avermelhado de vestidos de seda e escutaram vozes e risos femininos.

Com auxílio de corda e se agarrando às parreiras selvagens os guerreiros escalaram o penhasco. No alto se alinhavam árvores suntuosas, que se alternavam com quadros de flores estranhas, e se estendiam os prados encantadores. Tudo calmo e fresco como um retiro fora do mundo terreno. Até o leste, sob um portal cavado no mesmo rochedo, dezenas de mulheres, vestidas com todo luxo, passavam e voltavam a passar com gesto de diversão, rindo e cantando a vontade. Quando viram os homens ficaram como paralisadas. Deixaram se aproximarem e as mulheres perguntaram:

— Por que viestes? Ao escutar a resposta de Ouyang as mulheres suspiraram e se olharam entre si:

NN

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— Tua mulher está entre nós há mais dum mês. Agora está doente e de cama. Venhas a ver.

Passando a grade de madeira do portal, viu três aposentos espaçosos arranjados como um grande salão. Ao longo das paredes se viam fileiras de leitos recobertos de coxins de seda. Ali estava a esposa, deitada num leito de mármore, coberta com mantas luxuosas, e diante dela se expunha toda classe de alimento exótico. Quando Ouyang se aproximou ela se virou a ele, o reconheceu, mas vivamente fez um gesto pedindo pra ir embora. As mulheres disseram:

— Algumas de nós estão aqui há dez anos, enquanto tua esposa acabou de chegar. Aqui vive um monstro matador de homem. Mesmo com cem moços bem armados nada podereis fazer. Será melhor que voltes antes de nosso amo retornar. Mas trazei dois barris de bom vinho e dez cães que servirão de isca, e algumas dezenas de quilos de cânhamo. Então te ajudaremos a o matar. É preciso que voltes dentro de dez dias, pontualmente meio-dia, e de nenhum modo mais cedo.

As mulheres imploraram que partisse o mais rápido possível, e Ouyang se retirou imediatamente.

Ouyang voltou no dia marcado cum excelente licor, o cânhamo e os cães. As mulheres contaram:

— O monstro é um grande bebedor. Freqüentemente costuma beber até cair bêbado, então gosta de medir sua força. Pede que atemos seus pés e mãos a sua cama, com lençóis de seda. Então basta dar um salto pra rasgar todas as ataduras. Mas quando o atamos com tripla volta de seda, em vão se esforça pra se libertar. Nesta vez, se o atar com o cânhamo escondido na tela de seda, temos certeza de que seu esforço será inútil. Todo seu corpo é duro como ferro, mas observamos que sempre protege uma parte, alguns centímetros abaixo do umbigo. Certamente ali é vulnerável.

Mostrando uma gruta ao lado da casa, indicaram: — Eis sua despensa. Te escondas dentro e em silêncio espies sua chegada. Deixes o

vinho junto às flores e soltes os cães no bosque. Quando se completar nosso plano te chamaremos e sairás do esconderijo.

Ouyang fez o que recomendaram e, retendo a respiração, ficou esperando. Ao cair o Sol, algo parecido a uma longa peça de seda branca caiu do alto duma montanha vizinha, pousou no chão e penetrou na caverna. Dali, um instante depois, saiu um homem de bela barba, de 2m de altura, vestindo túnica branca. Avançou cuma bengala na mão, rodeado de suas mulheres. Ao ver os cães, surpreso, se curvou sobre eles, os despedaçou e os devorou até a saciedade. E todas as mulheres competiram na forma encantadora e risonha com a qual lhe ofereceram o vinho em canecos de jade. Quando já bebera vários litros1 de licor, as mulheres o ajudaram a entrar na casa. Continuou escutando alguns risos femininos. Momentos depois as mulheres saíram pra avisar Ouyang, que entrou com a espada na mão e se encontrou cum grande mico branco com os quatro membros atados à cama. Ao ver se aproximar o forasteiro e ante a impossibilidade de se soltar, se encolheu e fez girar os olhos fulgurantes. Se abateu a espada sobre ele, mas encontrou um corpo de ferro e pedra. Finalmente, cravando embaixo do umbigo, a lâmina entrou diretamente no corpo e bruscamente começou a brotar sangue. Então o mico branco disse, gemendo:

— Se morro é porque o Céu quis. Não tens suficiente força pra me matar. Tua mulher já está prenha. Não mates seu filho, pois com o tempo servirá a um grande monarca e fará que sua família seja mais próspera que nunca.

Apenas pronunciou essas palavras e morreu.

1 No original castelhano pinta: Antiga medida de capacidade pra líquido, equivalente a meio azumbre (azumbre equivale a cerca de 2ℓ) escassa nalgunas regiões da España. Nota do digitalizador-tradutor

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Então os guerreiros se dedicaram a buscar os bens do monstro. Encontraram montões de objetos preciosos e, sobre as mesas, imensa quantidade de comestível. Ali estavam todos os tesouros conhecidos do mundo, incluindo vários galões de essências exóticas e um par de excelentes espadas. Havia 30 mulheres, todas de beleza incomparável, e algumas estavam ali havia dez anos. Contaram que quando uma envelhecia ou se desgastava a levavam não sabiam aonde. O mico branco gozava solitário de suas mulheres e nunca se lhe conheceu cúmplice.

A cada manhã se lavava e se cobria cum chapéu. No inverno e no verão usava uma túnica de seda branca com colarinho da mesma cor. Todo seu corpo estava coberto de pêlo branco com largura de vários centímetros. Quando ficava em casa gostava de ler tabuletas de madeira com escrituras que pareciam indecifráveis hieroglifos. Quando terminava de ler os ocultava num esconderijo no rochedo. Às vezes, quando reinava bom tempo, se exercitava com suas duas espadas, traçando círculos fulgurantes, que o rodeavam cum halo luminoso, como se fosse a Lua. Bebia e comia os alimentos mais diversos, particularmente fruta, noz, e sobretudo cão, do qual gostava de chupar o sangue. No meio-dia ia embora voando e desaparecia no horizonte. Em apenas meia jornada fazia uma viagem de milhares de quilômetros. Costumava voltar a casa todas as noites.

Todos seus desejos eram imediatamente satisfeitos. Nunca dormiu na noite. A passava de cama a cama, gozando de todas as mulheres. Muito erudito, se expressava com eloqüência magnífica e penetrante. Mas fisicamente nunca deixou de ser uma espécie de gorila.

Nesse ano, na época das folhas começarem a crescer, o mico branco, triste e apagado, se lamentou:

— Fui acusado pelas divindades da montanha e serei condenado à morte. Mas pedirei proteção a outros espíritos e talvez consiga escapar da condenação.

Justamente depois da lua cheia seu esconderijo se incendiou e todas as tabuletas foram destruídas. Então se considerou perdido:

— Vivi mil anos sem descendente. Agora terei um filho. Significa que minha morte está próxima.

Depois, contemplando todas suas mulheres, chorou longamente. — Esta montanha é inacessível. Nunca alguém pôde chegar até aqui. Do alto jamais

pude ver algum lenhador, já que embaixo está cheio de tigre, lobo e todo tipo de besta feroz. Como os homens chegarão àqui se não for vontade do Céu?

Ouyang voltou a casa levando jade, jóia e todo tipo de coisa preciosa. Também levou todas as mulheres, algumas das quais ainda se lembravam da família.

No fim dum ano a mulher de Ouyang pariu uma criatura que se parecia em tudo cum mico. Mais tarde Ouyang foi executado pelo imperador Wu, sob a dinastia Chen. Mas seu velho amigo Jiang Zong, que gostava muito do filho de Ouyang por sua extraordinária inteligência, o abrigou sob seu teto. Assim o menino foi salvo da morte. Ao crescer se converteu num bom escritor e excelente calígrafo. Em suma: Foi uma personagem famosa em seu tempo.

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Rem, a raposa encantada Shen Jiji

Shen Jiji nasceu em Suzhou no ano 790 e morreu em 800. Conhecido literato e historiador, também é autor de Confidências duma almofada.

avia um senhor chamado Wei Ying, que era o nono filho da filha do príncipe de Xin'an. Na juventude desfrutou vida fácil e foi aficionado à bebida. O marido de sua prima, de sobrenome Zheng (cujo nome não se conhece),

estudara desde muito jovem o manejo das armas e era também aficionado ao vinho e às mulheres. Pobre e sem casa, Zheng vivia com a família da esposa. Ambos se entendiam muito bem e sempre se divertiam juntos. Na sexta lua do nono ano do período de Tianbao (em 750) passeavam através de Chang'an, a capital, quando ao chegar ao sul do bairro de Xuanping, com o pretexto de atender a assuntos privados, Zheng abandonou Wei, dizendo que se reuniria mais tarde consigo num lugar marcado. Montado em seu cavalo branco, se dirigiu ao leste, enquanto Zheng, em seu asno, tomou a direção sul, passando na porta Norte do bairro de Shengping.

Por acaso Zheng encontrou três moças no caminho. Uma, de vestido branco, era uma beleza sem par. Agradavelmente surpreso, lançou seu asno a diante, ultrapassando a beleza ou a seguindo sem se animar à abordar. De vez em quando a moça de vestido branco lhe lançava olhares intencionados. Então, com cavalheirismo, Zheng perguntou:

— Como é possível que semelhante beleza vá a pé? A moça respondeu, sorridente: — Como posso ir doutra maneira, se os que têm uma montaria não sabem a ceder? — Meu pobre burrico não é bom o suficiente pra servir de montaria a uma beleza

como tu. Mas peço que o aceites. Me sentirei feliz de andar atrás. Ambos se olharam e riram alegremente. As outras duas moças não tardaram a nos

imitar e logo o ambiente ficou amistoso. Zheng as acompanhou em direção leste, até o parque Leyou. Ao chegar já escurecia. Se detiveram diante duma casa magnífica, rodeada dum muro de adobe cuma grande porta. A beleza de vestido branco, antes de entrar, se virou e disse:

— Esperes um momento. Uma das servas ficou perto da porta e perguntou o nome. Zheng o deu e aproveitou

pra pedir o nome da jovem. Então se inteirou de que se chamava Rem e pertencia a uma família muito numerosa. Um momento depois pediram pra Zheng entrar na casa. Zheng atou seu asno ao portão, deixando o chapéu na montaria. Primeiro viu uma mulher de cerca de 30 anos, que o recebeu. Era a irmã maior da moça. Acenderam fileiras de lampiões e foi servida a ceia.

Terminavam de esvaziar muitas taças de vinho, quando reapareceu a formosa, vestida com roupa nova, e todos continuaram bebendo alegremente. Já muito avançada a noite, Zheng se deitou com a beleza. Seu encanto, delicadeza, modo de cantar, de rir e se mover, tudo nela era tão delicado quanto estranho a este mundo. Um pouco antes do amanhecer, Rem disse:

— Chegou a hora de ir embora. Meu irmão é membro do conservatório musical e serve na guarda real. Volta a casa na aurora e é preciso não te encontrar aqui.

Quando chegou ao fim da rua o portão da muralha da zona ainda estava fechado. Perto da porta havia uma confeitaria. O dono começou a suspender as lanternas e avivar

HH

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o fogo do forno. Esperando toque matinal de diana,2 Zheng descansou na cornija da loja e começou a conversar com o patrão. Indicando o lugar onde passou a noite, perguntou:

— Girando à esquerda há um portão. A quem pertence a casa? — Ali não há casa. Só um terreno baldio com entulho. — Mas vim dali. Por que dizes que não há casa? De repente, entendendo do que se tratava, o patrão exclamou: — Á! Agora entendi. Ali costuma haver uma raposa, que a miúdo atrai os homens

pra passar a noite consigo. Três vezes a encontrei. Também a viste? Envergonhado e confuso, saiu do passo3 dizendo que não. No amanhecer voltou ao

mesmo lugar. Ali encontrou o mesmo muro e o mesmo portão, mas adentro só encontrou um terreno baldio, onde só crescia matagal.

Indo até casa se encontrou com Wei, que o reprochou por faltar ao encontro combinado. Zheng se limitou a formular algumas desculpas, cuidando de não transparecer o segredo. Desde então, obsedado pelos encantos da bela, tratou de a ver uma vez mais, guardando a imagem no fundo do coração.

Dez dias depois, num passeio no mercado do Oeste, diante duma loja de vestido, inesperadamente a viu, sempre acompanhada pelas servas. A chamou em voz alta, mas ela o evitou e se perdeu entre a multidão. Então a perseguiu, sem deixar de gritar seu nome. Finalmente ela parou. Lhe dando as costas e escondendo o rosto atrás de seu abanico, perguntou:

— Por que me procuras? Sabes quem sou. — Ainda que saiba, que importância tem? — Que vergonha! Fico embaraçada ficando em tua frente! — Te amo tanto! Não tens remorso de me abandonar? — Como posso pensar em te abandonar? Acontece que tenho medo de que me tomes

horror. Zheng protestou, dando tal acento de sinceridade a seu juramento, que ela terminou

baixando o abanico e, se virando até ele, apareceu com toda a resplandecente formosura. — Não sou a única de minha espécie entre as mulheres do mundo humano. Mas

acontece que não sabeis nos reconhecer. Mas o meu não é estranho! Quando Zheng suplicou o acompanhar, ela advertiu: — Se não se apreciam as mulheres como eu é porque são consideradas fatais. Mas

não sou. Se não me achas desagradável estou disposta a te servir toda minha vida. Zheng propôs então viver juntos. Rem disse: — Continuando nesta rua até leste, encontrarás um bairro tranqüilo e uma casa na

qual uma enorme árvore domina todo o telhado. Essa casa se aluga. No outro dia, quando te encontrei no sul do bairro de Xuanping, ali havia um homem montado num cavalo branco, indo ao leste. Acaso é teu cunhado? Em sua casa há muitos móveis. Podes pedir te emprestar alguns.

Justamente nessa época os tios de Wei se ausentariam ao ser chamados pra cumprir função oficial, deixando seus móveis num depósito. Aproveitando o conselho de Rem, Zheng foi à casa de Wei pra pedir o empréstimo. Interrogado sobre o uso que daria aos móveis, Zheng respondeu:

— Agora tenho uma bela amante e aluguei uma casa. Os móveis necessito pra ela. Wei respondeu cuma risota: — Sobre qual beleza me falas? Com aparência como a tua, imagino que valerá pouca

coisa.

2 Toque matinal de diana: Sinal pra se despertar na manhã. Nas forças armadas é uma corneta ao nascer do Sol. http://www.lexipedia.com/spanish/toque+de+diana Nota do digitalizador-tradutor 3 Passo no sentido de ponto de passagem. No caso entre a loja e o exterior. Nota do digitalizador-tradutor

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Wei entregou cortinas, mosquiteiros, camas e esteiras. Enviou também um servente astuto pra espiar a mulher. Instantes depois o servente voltou sem fôlego e inundado de suor. Wei perguntou:

— A viste? Como é? — Maravilhosa! Jamais se viu uma mulher como ela! Wei tinha muitas relações e em sua vida aventureira teve oportunidade de conhecer

muitas mulheres belas. Perguntou ao servente se a amante de Zheng era comparável a alguma.

— Ninguém pode se comparar! Wei pretendeu a comparar às quatro ou cinco mulheres que conceituava as mais

formosas, mas o outro insistiu: — Ninguém pode se comparar! Wei tinha uma cunhada, a sexta filha do príncipe de Wu, cuja majestosa beleza era

considerada, por seus primos, algo ímpar. — Será a amante de Zheng comparável à sexta filha do príncipe de Wu? Mas o servente declarou uma vez mais: — Ninguém pode se comparar! Estupefato, Wei esfregou as mãos e exclamou: — É possível que exista semelhante mulher neste mundo? Então bruscamente ordenou trazer água pra lavar o colarinho, fez um novo penteado,

passou batom nos lábios, e foi à casa de Zheng mas o dono de casa estava ausente. Ao entrar, Wei viu um pequeno criado varrendo, uma serva cuidando uma porta e ninguém mais. Perguntou ao criado, quem, cum sorriso, respondeu que ninguém havia na casa. Mas percorrendo as aposentos com a olhar, percebeu a ponta dum vestido vermelho sob uma porta e ao se aproximar descobriu que ali se escondia a bela. Wei a fez sair da escuridão prà olhar, e a viu muito mais formosa do que imaginara. Louco de paixão, a tomou entre os braços, prà possuir, mas ela resistiu. A apertou tão forte, que a ponto de ser vencida ela disse:

— Me rendo. Mas me soltes um instante, pra tomar fôlego. Mas quando ele voltou à carga ela continuou resistindo. E isso se repetiu várias

vezes. Finalmente, com toda força, Wei conseguiu dominar a jovem, que, já sem fôlego, banhada em suor e se considerando perdida, caiu indefesa e empalideceu como morta.

— Por que estás tão triste? Ela respondeu cum longo suspiro: — Meu pobre e desgraçado Zheng! — O que queres dizer? — Com sua estatura de 1,9m não pode proteger uma mulher! Pode se considerar um

homem? A ti, que é jovem e rico e que tem tantas belas amantes, não pode faltar uma mulher como eu. Mas Zheng é pobre e somente eu o quero. Tens coragem de lhe arrebatar seu único amor, tu, que podes satisfazer todos teus desejos? Tenho pena do pobre Zheng! Caiu na miséria e ao mesmo tempo perdeu a independência. Veste tua roupa e come tua comida. Por isso está a tua mercê. Se tivesse o que comer não passaríamos tudo isto.

Ao escutar essas palavras, Wei, que não deixava de ser um homem galante e magnânimo, desistiu imediatamente da intenção, e com todo respeito se desculpou ante a dama.

Momentos depois Zheng voltou a sua casa. Se cumprimentaram, com Wei sorrindo, muito cordiais. Desde então Wei forneceu amplamente tudo o que o casal necessitava.

Rem saía a miúdo com Wei, em carroça ou a pé, aceitando ir a toda parte. Todos os dias Wei gozava, sem reticência, de sua companhia, numa intimidade sem limite. Ela

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tinha todas as complacências, salvo a de se entregar, o que aos olhos do jovem cavalheiro a fazia mais adorável e digna de respeito. Ele se mostrava pródigo. Não o vinho nem as comidas deliciosas afastavam Rem de seu pensamento.

Um dia, sabendo que ele a adorava, se expressou assim: — Tantos favores me confundem. Sei que sou indigna de tua bondade. Mas não

posso trair meu Zheng nem satisfazer teus desejos. Em compensação posso testemunhar minha gratidão. Nasci em Shaanxi e fui educada na capital. Os membros de minha família foram gente de teatro e a maioria de meus parentes é favorito ou concubina de homem rico. Então estão relacionados com todos os libertinos. Se estás de olho nalguma beleza, apetecível mas difícil de conquistar, posso fazer com que seja tua. De tal modo quero mostrar meu reconhecimento.

— Ó! Aceito muito feliz! No mercado havia uma costureira chamada Zhang a Décima-quinta, que agradava a

Wei pela pureza de suas formas. Perguntou a Rem se a conhecia. — É minha prima e será facilmente tua. Dez dias depois se realizou essa conquista. Passados alguns meses, quando o jovem

se saciou, Rem disse: — Conquistar as mulheres do mercado é coisa demasiado fácil. Não está à altura do

serviço que posso oferecer a ti. Digas se te apetece alguma que seja tão formosa quanto pouco acessível, e farei o possível pra te comprazer.

— Ontem, festa de Hanxi,4 fui ao templo Qianfu com alguns amigos e vi o general Diao Miã, oferecendo um concerto na grande sala. Entre as músicas havia uma executante de xengue,5 de cerca de 16 anos, com os cachos tapando as orelhas. Estava encantadora, adorável! A conheces?

— É a favorita do general. Sua mãe é justamente minha irmã. Me ocuparei de teu pedido.

Wei a saudou com deferência e Rem prometeu ajudar. Ela começou a freqüentar a casa do general. Um mês depois, Wei a apressou a cumprir seu plano. Rem pediu duas peças de seda pra presente e ele se apressou a entregar. Dois dias depois, quando Rem e Wei se sentaram pra jantar, o general enviou um criado cum cavalo negro, rogando ir a sua casa. Ao anúncio desse convite, ela, sorridente, disse a Wei:

— Muito bem! Pra começar, Rem conseguira que a favorita do general fosse atacada por uma

doença contra a qual a medicina era impotente. A mãe da jovem e o general, muito alarmados, resolveram consultar um adivinho. E Rem sorrateiramente untou a mão do adivinho e, indicando seu endereço, lhe fez dizer que a jovem enferma devia ser alojada nessa casa, pra conjurar os espíritos malignos.

Chegado o momento da consulta, o adivinho disse ao general: — Esta casa é nefasta pra ela. É preciso que vá ao sudeste, a uma casa onde

recuperará seu ar vital. Ao se informar sobre o lugar designado, o general e a mãe da jovem descobriram que

era a casa de Rem. Então o general pediu licença pra hospedar ali sua favorita. No princípio Rem se negou com o pretexto de que não podia oferecer o necessário conforto e só aceitou depois de muita súplica. Então o general enviou numa carroça a jovem e com a mãe, com seus instrumentos musicais, utilitários de escrivaninha e objetos pessoais. Mal chegou à nova casa, a enferma se sentiu sã e salva. Em poucos dias Rem pôs secretamente Wei em relação íntima com a jovem e um mês depois ela ficou grávida. A mãe teve muito medo, e a toda pressa voltou a levar a filha ao general. Assim

4 Hanxi (Hanshi): Festa que acontecia na primavera. Nesse dia havia de se abster de fazer fogo e se comeria tudo frio (hanshi) 5 Xengue (sheng): Instrumento musical de sopro, tradicional na China. Nota do tradutor

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terminou essa aventura. Um dia Rem disse a Zheng: — Se podes encontrar 5000 ou 6000 sapecas me encarregarei que te beneficiem. Ele consentiu e pediu emprestado 6000 sapecas. Então ela disse: — Vás à feira, onde encontrarás um cavalo cuma mancha na garupa. O compres e o

tragas. Zheng foi à feira e viu a um homem levando a um cavalo a venda, em cuja garupa se

via uma mancha negra. O comprou e voltou à casa. Seus cunhados o atormentaram com burla:

— Por que compraste um cavalo que ninguém quer? Pouco tempo depois Rem disse: — Chegou o momento de vender o cavalo. Não peças menos que 30 mil sapecas. Zheng o pôs a venda. Ofereceram 20 mil mas não aceitou. Na feira todos se

surpreenderam: — Por que um se empenha em comprar tão caro e o outro não vende? Zheng voltou a sua casa cavalgando e o outro o seguiu até a porta. Ofereceu 25 mil

sapecas. Zheng as rechaçou rotundamente, declarando que não o venderia por menos de 30 mil. Mas como todos seus cunhados começaram a reprochar sua teimosia, Zheng foi pressionado a vender o cavalo um pouco abaixo desse valor.

Mais tarde terminou descobrindo a razão da insistência do comprador. Era o zelador da cavalariça imperial do distrito de Zhaoying. Havia três anos morrera um cavalo cuma mancha na garupa. Na véspera de abandonar o emprego foi obrigado a reembolsar a soma de 60 mil sapecas pela perda do animal. Comprando outro na metade do preço ganharia uma boa soma. E um cavalo vivo aumentaria seu benefício, pois correspondia a um valor de três anos de forragem não consumida. Essa foi a razão pra insistir em comprar o cavalo.

Uma vez Rem pediu vestido a Wei, porque os seus estavam muito puídos. Wei propôs comprar uma peça de seda mas ela não quis, dizendo preferir roupa confeccionada. Então Wei chamou um lojista chamado Zhang Da e o apresentou a Rem, pra pedir o necessário. Zhang Da a viu e ficou tão assombrado, que disse a Wei:

— Essa que tens na casa não é uma mulher comum. Espero que a leves de volta aonde a sacaste, a fim de evitar desgraça.

Tal era a impressão sobrenatural que provocava sua beleza. Mas ninguém entendia por que não cosia, se contentando com roupa de confecção.

Um ano depois Zheng foi nomeado capitão da governadoria6 de Huaili, e seu quartel-general estava no distrito de Jinchengue. Como então Zheng tinha uma mulher legítima na casa, se via obrigado a sair durante o dia e voltar a casa pra dormir, sempre se lamentando não poder passar a noite com Rem. De tal modo, antes de ocupar seu cargo na campanha, rogou a sua amante o acompanhar mas ela não aceitou:

— Estar juntos em viagem durante apenas um ou dois meses não nos dará muito prazer. Será melhor que me entregues o suficiente pra viver nesse tempo e cuidarei da casa esperando tua volta.

Zheng insistiu mas isso reforçou a resistência. Então Zheng pediu a Wei uma ajuda pecuniária e ele ajudou a persuadir Rem, perguntando o motivo do rechaço. Após longa hesitação ela confessou:

— Um adivinho previu que uma viagem ao oeste me seria fatal. Mas Zheng, demasiado enamorado pra pensar nisso, começou a rir com Wei, e

opinou:

6 No original castelhano, prefectura. Prefecto é, na França, governador dum departamento, como o da Espanha o é duma província, segundo http://lema.rae.es/drae/?val=prefecto. Nota do digitalizador-tradutor

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— Como uma mulher inteligente pode ser tão supersticiosa? — E continuou insistindo pra ela ir.

— E se as palavras do adivinho forem verdadeiras? Preferis que eu morra por vossa causa?

— Que absurdo! — Ambos declararam e continuaram insistindo. Finalmente Rem foi obrigada a partir a contragosto.

Wei lhes emprestou seu cavalo e desejou feliz viagem, os acompanhando até Lingao. No dia seguinte chegaram a Mawei. Rem ia na frente, cavalgando o animal. Zheng a seguia em seu asno, e a serva e o resto da comitiva iam atrás. Justamente havia cerca de dez dias os mestres da cavalariça da porta do Oeste adestravam os sabujos em Luochuã. Se cruzaram no caminho. De repente os cães saíram do matagal. Zheng viu Rem cair ao chão, se transformar numa raposa e fugir ao sul, seguida por toda a matilha. Zheng começou a gritar desesperadamente e correu atrás dos cães mas não os pôde deter. Depois de correr algumas centenas de metros foi capturada pelos cães. Chorando como um menino, Zheng tirou dinheiro de sua bolsa pra comprar um ataúde e o enterrou ali mesmo, plantando uma vara pra marcar o lugar. Quando deu uma olhada atrás, o cavalo de Rem pastava na beira do caminho. A roupa permanecia na cadeira de montar e os sapatos e meias ainda pendurados nos estribos. Somente os adornos da cabeça estavam no chão. Tudo o mais desaparecera e o mesmo aconteceu à serva. Era como se evaporaram.

Dez dias depois Zheng voltou à capital. Wei, muito feliz em o ver, perguntou: — Como está Rem? — Morreu! — Respondeu Zheng, soluçando. Wei o acompanhou na dor. Se abraçaram no meio do quarto e choraram juntos

desesperados. Depois Wei perguntou qual doença a arrebatara. — Os perdigueiros a mataram. — Por mais ferozes que sejam os perdigueiros, não são capazes de matar um ser

humano! — Mas não era um ser humano. — Então quem era? — Exclamou Wei, muito espantado. Quando Zheng contou toda a história, Wei chegou ao cúmulo da estupefação, sem

deixar de suspirar. No dia seguinte chamaram um carro e foram juntos a Mawei. Depois de abrir a tumba pra a ver uma vez mais, retornaram chorando. Ao recordar as coisas do passado perceberam que a única coisa que persistia parecendo estranha era que nunca quis coser a própria roupa.

Mais tarde Zheng foi nomeado inspetor-geral da corte e ficou sumamente rico, chegando a mais de doze cavalos em sua cavalariça. Morreu com a idade de 65 anos.

Durante o período de Dali (766–779), quando fui viver em Zhongling, fiz amizade com Wei, quem muitas vezes me contou esta história, sobre a qual conhecia os detalhes. Tempo depois Wei foi nomeado chanceler da corte imperial, ao mesmo tempo que prefeito de Longzhou, onde faleceu no cargo.

Ó! Tudo isso significa que inclusive um animal é capaz de abrigar sentimento humano, conservar a castidade diante da violência e sacrificar a vida por um homem. Tantas coisas que uma imensa quantidade de mulheres não é capaz de sentir nem expressar! Lástima que o tal Zheng não fosse mais inteligente, pois amara a beleza de Rem sem apreciar seu coração. Se fosse sábio descobriria as leis da metamorfose, discerniria os limites entre o humano e o divino, e de tal modo expressaria com a arte da literatura o mistério dos sentimentos de sua bela, em vez de se limitar ao simples gozo de seu encanto. Que pena tudo isso!

No segundo ano do período de Jianzhong parti a Suzhou na qualidade de conselheiro

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à esquerda do príncipe. Ao mesmo tempo o general Pei Ji, o prefeito da capital, Sun Cheng, o vice-ministro Cui Xu, do ministério de assunto civil e o conselheiro à direita, Lu Chun, foram ao sudeste. Da província de Shaanxi até Suzhou viajamos juntos em terra e em barco. Conosco estava também o ex-conselheiro Zhu Fang, em viagem de lazer. Nosso barco desceu os rios Ying e Huai. Passamos os dias numa permanente festa, na alta noite conversávamos e cada qual contava as lendas mais estranhas. Ao escutar a história de Rem todos ficaram profundamente comovidos, me pedindo a redigir. Assim foi escrito o presente relato.

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A filha do rei dragão Li Chaowei

Li Chaowei nasceu cerca do ano 800, em Longxi, atual província de Gansu

o período Yifeng (676–678) um bacharel chamado Liu Yi, ao fracassar num exame oficial, decidiu regressar à margem do rio Xiang, província de Hunã. Como tinha um conterrâneo que morava em Jingyang, província de Shaanxi, foi

até lá dizer adeus. Mal percorreu alguns quilômetros, quando o repentino alçar de vôo dum bando de pássaro fez o cavalo pinotear e galopar desembestado, só parando 8km depois, onde o ginete viu uma mulher pastoreando uns cordeiros não muito longe do caminho. A olhando detidamente a achou maravilhosa. Mas as sobrancelhas finamente arqueadas expressavam preocupação, e a roupa puída e arremangada acentuava o gesto pesaroso e absorto de quem está aflito.

— O que aconteceu pra te preocupar tanto? No começo ela agradeceu cum sorrisinho. Depois começou a chorar: — Sou tão desgraçada! Sendo que te dignas se interessar pela dor que me penetra até

a medula dos ossos, por mais que a vergonha me constranja é impossível manter silêncio. Peço me escutar com atenção: Sou a filha menor do rei dragão do lago Dongtingue. Meus pais me casaram com o segundo filho do dragão do rio Jingue, mas meu marido, de natureza volúvel, foi seduzido pelas criadas e a cada dia me maltratava mais. Então me queixei a meus sogros, mas mimavam demais o filho e por isso não me defenderam. Ofendidos por minhas reiteradas queixas me exilaram aqui.

Ao terminar de falar desfaleceu e começou a chorar: — O lago Dongtingue fica tão longe! Solitária, ante deste imenso horizonte, como

enviar um mensagem aos meus? Tenho o coração destroçado e os olhos fatigados de tanta espera, mas ninguém sabe de minha desgraça. Se vais ao sul passarás muito perto do lago Dongtingue. Posso confiar uma carta em tuas mãos?

— Sou um homem de bem. Ao escutar tuas palavras sinto o sangue ferver! Peço me aceitar como humilde servidor. Não peço mais que chegar até ali voando, ainda que seja sem asa. Mas o lago Dongtingue é muito fundo e só ando na terra. Como poderei levar tua mensagem? Sendo que as vias terrestres e ultraterrestres não se comunicam, temo te decepcionar, fracassando. Sabes como posso cumprir a missão?

— Nunca poderei expressar o quanto me comove tua bondade! — Respondeu no meio do pranto. — Se alguma vez conseguisse uma resposta a minha mensagem, a vida toda é pouco pra testemunhar minha gratidão. Como me atrevi a falar sem teu prévio consentimento? Agora posso dizer que não é mais difícil chegar a Dongtingue que ir à capital.

Respondendo às perguntas de Liu, precisou: — A norte do lago Dongtingue há uma grande laranjeira, venerada pelos camponeses

como a árvore sagrada da aldeia. Tomes este cinturão, ates algo na ponta e batas três vezes no tronco da árvore. Alguém responderá ao chamado. O sigas e não terás dificuldade. Serei muito feliz que além da carta possas dizer a meus pais tudo o que confiei a ti com o coração aberto. Não deixes de fazer. Suplico mil e mil vezes!

NN

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Ao terminar de falar desfaleceu e começou a chorar

— Estou a tua ordem.

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Então ela retirou uma carta do bolso e a entregou cuma reverência. Depois dirigiu o olhar ao oriente e chorou, incapaz de conter a dor. Profundamente emocionado, Liu pôs a carta na bolsa e formulou a última pergunta:

— Por que cuidas destes cordeiros? As divindades também comem carne? — Não. Não são cordeiros mas manda-chuvas. — O que queres dizer? — Que pertencem à categoria de relâmpago e trovão. Liu olhou com atenção aos cordeiros e observou que andavam com a cabeça alta e os

olhos fulgurantes. O modo de pastar e de beber era surpreendente, mas quanto ao talhe, chifres e lã, em nada se distinguiam dos cordeiros comuns. Acrescentou:

— Como sou teu mensageiro, espero que quando voltes ao lago Dongtingue não te negues me receber.

— Imagines! Me afeiçoarei a ti como só se faz a um parente! Disseram adeus e se separaram. Liu se dirigiu ao leste. Depois de percorrer várias

dezenas de passos voltou: A mulher e os cordeiros já desapareceram. Nessa noite chegou à cidade e se despediu do amigo. Um mês depois chegou a seu

país natal, ordenou suas coisas e logo se dirigiu ao lago Dongtingue. Exatamente ao sul do lago encontrou a laranjeira sagrada, retirou o cinturão, bateu três vezes no tronco e esperou. Logo viu sair da água um guerreiro, que perguntou:

— De parte de quem vens?, estimado hóspede. Sem revelar ainda toda a verdade, respondeu: — Desejo visitar teu grande rei. Fendendo a água pra abrir caminho, o guerreiro guiou Liu até o fundo do lago,

recomendando: — Feches os olhos e chegarás num instante. Liu obedeceu e num instante ficou diante dum grande palácio, com grupos de

pavilhões com milhares de portais e arcadas, rodeados de todos os tipos de planta e de árvore dos mais estranhos do mundo. O guerreiro fez sinal pra parar na ponta dum grande salão:

— Tenhas a gentileza de esperar aqui. — Que edifício é este? — É o palácio da Abóbada Divina. Olhando com atenção ao redor, viu que o palácio continha todas as pedras preciosas

conhecidas: Coluna de jade branco, escadaria de jaspe, leito de coral, cortina de cristal, dintel de esmeralda incrustada de esmalte, artesanato de luz de arco-íris com aplicações de âmbar. Do conjunto surgia uma impressão de estranha e inefável beleza.

Enquanto o rei se fazia esperar, Liu perguntou: — Onde está o príncipe de Dongtingue? — Sua majestade está no pavilhão Pérolas Negras, conversando com o sacerdote do

Sol sobre a teoria do elemento fogo. Mas logo terminarão. — O que significa essa teoria? — Nosso príncipe é um dragão. Vale dizer que a água é seu elemento. Cuma gota

dágua pode inundar montanhas e vales. O sacerdote taoísta é um homem, em conseqüência o fogo é seu elemento. Cuma tocha pode incendiar um palácio inteiro. As propriedades dos elementos são diferentes. Os efeitos não são os mesmos. Como o sacerdote do Sol é um experto nas leis da natureza humana, nosso príncipe o convidou pra conversar.

Mal terminou a explicação e a porta do palácio se abriu. No meio duma escolta de nuvens carregadas apareceu um homem vestido de púrpura, cum cetro de jaspe na mão. Jubiloso, o guerreiro exclamou:

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— Eis nosso rei! O guia se adiantou pra anunciar a chegada de Liu. O rei virou o olhar ao viajante e

perguntou: — Não és do mundo humano? Liu respondeu afirmativamente enquanto reverenciava. O rei devolveu o saudação e

o fez se sentar no palácio da Abóbada Divina. — Nosso reino aquático é profundo e sombrio. E sou apenas um ignorante. Que

razão te traz, senhor, numa distância de 4000km? — Sou um compatriota de sua majestade. Nascido no sul, estudei no noroeste. Assim

que fracassei num exame, há pouco tempo, passando na margem do rio Jingue encontrei tua querida filha, que fazia pastar uns cordeiros em pleno campo. Cabelo ao vento, molhada pela chuva, senti pena. A interroguei e respondeu estar nessa condição pelos maus-tratos do marido e o abandono dos sogros. Enquanto falava vertia muita lágrima, que me chegou diretamente ao coração. Depois me confiou uma carta e prometi entregar a ti. Eis porque estou ante tua presença.

Então entregou a carta ao rei, quem depois de ler escondeu o rosto atrás da manga e começou a chorar.

— Toda a culpa foi minha. Culpa de teu velho pai! Fui como um cego e surdo, sem suspeitar que longe daqui minha pobre filha caiu em desgraça. Mas, senhor, mesmo estranho a nós, vieste nos ajudar. Enquanto viver nunca poderei olvidar tua bondade!

O rei chorou um pouco mais e seu séquito o acompanhou em lágrima. Então um eunuco do palácio se aproximou do rei e recebeu a carta com a ordem de a

passar às mulheres que estavam no palácio interior. Momento depois se escutaram os lamentos que chegavam dos apartamentos interiores. Alarmado, o rei disse aos súditos:

— Ordenai, rápido, às mulheres não se alvoroçar. Espero que o príncipe de Quiantangue não as escute.

— Quem é esse príncipe? — É meu irmão menor. Foi príncipe do rio Quiantangue, mas agora vive retirado. — Por que não queres que saiba a novidade? — Porque é impetuoso demais. Os nove anos de dilúvio sob o reinado de Yao, o

sábio, foram em conseqüência dum de seus acessos de cólera. Ultimamente querelou com os generais do Céu e inundou as cinco montanhas. Como tenho a meu favor alguns méritos antigos e recentes, o soberano do Céu concordou em perdoar meu irmão, mas em troca deve ficar acorrentado aqui. O povo de Quiantangue espera todos os dias seu retorno.

Ao terminar de falar começou um grande alvoroço. Parecia que o céu desabou e a terra se afundou. Todo o palácio foi sacudido como uma espiga no temporal. Entre os turbilhões de fumaça e nuvens carregadas surgindo de toda parte, apareceu um dragão escarlate, de 300km de comprimento, olhos de relâmpago, língua de sangue, escamas vermelhão, crina flamejante. No pescoço levava uma grande corrente de ouro atada a um pilar de jade. E repentinamente envolto em trovões e relâmpagos, ao mesmo tempo que se desencadeava uma tempestade de neve e granizo, se lançou ao céu azul e desapareceu.7

Dominado pelo pânico, Liu caiu a terra. O rei o levantou e tranqüilizou: — Não tenhas medo. Isso é nada. Depois dum bom momento o bacharel começou a recobrar o alento. Quando se

sentiu recuperado pediu licença pra se retirar: — Permitas sair vivo daqui e não voltar. — Não há necessidade de partir. Meu irmão tem o costume de ir assim, mas não

7 Com toda essa tempestade o céu estava azul? Nota do digitalizador-tradutor

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voltará do mesmo modo. Tenhas a bondade de permanecer um pouco mais. Ordenou que trouxessem licor. E com toda cordialidade começou a brindar. Logo se elevou uma brisa de alegria que trouxe nuvens de bom augúrio. Num desfile

de estandarte e bandeira, ao som de flauta e pífaro, atrás de milhares e milhares de donzelas vestidas de vermelho, que conversavam e riam a gargalhada, avançava uma bela donzela de sobrancelhas bem arqueadas, coberta de jóias resplandecentes e vestida de seda flutuando em longas tiras. Quando se aproximou, Liu comprovou que era a bela aflita que lhe confiou o mensagem. Tinha um gesto feliz e triste ao mesmo tempo, e ainda se lhe deslizava lágrima de alegria. E enquanto fumaceira vermelha e púrpura se elevava ao redor e destacava sua figura, penetrou no palácio interior, no meio de densos perfumes dançando ao redor.

Rindo, o rei disse a Liu: — Eis de volta a cativa do rio Jingue! Se desculpou e voltou a entrar no palácio interior, sentindo os ecos de doces efusões

persistentes. Depois o rei voltou e começou a beber com Liu. Estava ali outro homem, vestido de púrpura, um cetro de jaspe na mão, que se mantinha ao lado do rei com gesto de orgulho e magnificência. O rei o apresentou a Liu:

— Este é o príncipe de Quiantangue. Liu se levantou pra o saudar. O príncipe devolveu a saudação com muita cortesia e

disse: — Minha pobre sobrinha foi lamentavelmente humilhada pelo marido cafajeste.

Graças a tua magnanimidade a notícia tão longínqua de sua desgraça pôde chegar a nossos ouvidos. Sem tua gentil intervenção a pobrezinha se misturaria ao lodo do rio Jingue. Minhas palavras são impotentes pra expressar gratidão.

Liu agradeceu cuma reverência e voltou a seu lugar sem se atrever a acrescentar mais palavra. Então o príncipe se voltou ao irmão maior e contou sua aventura:

— Depois de partir, nesta manhã, do palácio da Abóbada Divina, cheguei em duas horas ao rio Jingue. O combate que ali travei demorou outras duas horas, e outro tanto me levou voltar àqui. No caminho de volta voei até o nono céu e tive uma entrevista com o soberano celestial. Quando soube a injustiça cometida me perdoou e me absolveu da velha condenação. Nesta manhã estive demasiado dominado pela indignação e apressado demais pra dizer adeus. Lamento alvoroçar todo o palácio e, sobretudo, considero imperdoável alarmar nosso querido hóspede.

E o príncipe retrocedeu, fazendo outra reverência. — Quanta gente matou? — Perguntou o rei. — 600 mil. — Destruiu campos? — Ao redor de 1200km. — Onde está esse marido ingrato? — O comi. Tocado pela piedade, o rei disse: — É certo que esse cafajeste era intolerável. Mas exageraste. Felizmente o imperador

do Céu, sempre clarividente, te perdoou por causa da grande injustiça que provocou tanta destruição. Doutro modo, como assumiria tua defesa? Doravante é preciso não mais agir assim.

O príncipe fez outra reverência. Nessa noite alojaram Liu no salão da Claridade Cristalina. No dia seguinte foi

oferecida, no palácio das Esmeraldas, outra festa em sua honra. Toda a família real participou. Houve um grande concerto e serviram todo tipo de bom vinho e fino manjar. Como preliminar, à ordem do salão, 10 mil soldados dançaram ao som de trombetas,

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chifres, tambores e jogos de sino, ostentando estandarte, espada e alabarda.8 Um dos guerreiros avançou pra anunciar que era da marcha triunfal do príncipe de Quiantangue. Essa dança marcial foi executada com tanta bravura e ímpeto que arrepiou todos os espectadores. Depois, ao som de gongo, címbalo e instrumento de corda e de bambu, mil donzelas vestidas de seda e adornadas com pérolas e jade dançaram no lado esquerdo do salão. Uma das dançarinas se destacou pra anunciar que era a celebração do retorno da princesa. As melodias eram tão suaves e tocantes que sem querer todos deixaram cair lágrima. Terminadas as duas danças, o rei dragão, ébrio de alegria, mandou distribuir peças de seda aos dançarinos. Depois todos os convidados se acotovelaram em seus lugares do festim e tomaram vinho até mais não poder.

Em plena festa o rei se recostou e, batendo a taça na mesa, cantou:

Vasto é o grande céu azul e a terra sem limite! Infinito o ideal que cada um guarda em si A raposa se crê deus e o rato se acha santo sujando o templo, escondida sob o muro De repente um trovão e tudo se dispersa! Graças a sua bondade, que transbordou os mares enfim minha filha voltou aos braços paternais! Não acho palavra pra agradecer.

Depois que cantou o rei, o príncipe de Quiantangue fez uma reverência e respondeu:

Unidos pelo céu e separados pela morte foi um esposo indigno e ela a mal-casada. Na margem do rio Jingue arrastou sua desgraça cabelo solto ao vento, roupa empapada de chuva Graças a ti, ó senhor, mensageiro valente aqui estamos reunidos, mais felizes que nunca! Jamais te olvidaremos!

Terminado o canto, o rei e o príncipe se levantaram e ofereceram, em uníssono, uma taça a Liu, quem, vacilando no princípio, terminou aceitando e a esvaziou cum trago. Depois apresentou duas taças aos dois príncipes e cantou:

As nuvens de jade passam, do mesmo modo que flui a água Ó, princesa que chora como uma flor na chuva! Uma mensagem enviada a libertou da pena Vingado seu ultraje, eis ela, serena Obrigado pelo concerto e pelo festim! Minha casa, na montanha, espera o peregrino. Direi adeus com o coração partido de dor!

Quando terminou de cantar, os vivas surgiram de toda parte. O rei retirou duma caixa de jaspe um chifre de rinoceronte, muito apropriado pra abrir os olhos. Ao mesmo tempo o príncipe dispôs sobre uma bandeja de âmbar um jade que clareava a noite. Em pé ofereceram esses presentes a Liu, quem os aceitou com muita gratidão. Depois todas as mulheres do palácio interior o cobriram com peças de seda, pérolas e pedras preciosas, que como montículos resplandecentes se elevaram diante e atrás dele. E Liu não deixava de olhar a todo lado, confuso e sorridente, saudando sem cessar. No fim do festim, já empachado de vinho e prazer, se retirou e passou a noite no salão da Claridade

8 (alabarda chinesa) Alabarda: sf Arma composta por uma haste rematada por um ferro pontiagudo, tendo noutro lado uma lâmina cortante. http://www.dicio.com.br/alabarda/ Nota do digitalizador-tradutor

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Cristalina. No dia seguinte voltaram a festejar uma vez mais no pavilhão da Luz Límpida. O príncipe de Quiantangue, com o vapor do vinho na cabeça, vergado como uma fera, disse a Liu, cum gesto brutal:

— Sabes que uma rocha dura racha mas não verga e que um bravo prefere se deixar matar antes que se humilhar? Quero propor algo: Se consentires tudo irá bem entre nós. Em caso contrário pereceremos os dois. O que achas?

— Tenhas a bondade de dizer de quê se trata. — Sabes que a mulher de senhor de Jingue é a filha de nosso soberano. Bela e

virtuosa, é altamente considerada por todos. Por desgraça foi vítima dum homem indigno. Mas tudo terminou. Quero a apresentar e seria feliz de contar contigo como um parente até sempre. De tal modo aquela que tudo te deve por reconhecimento terá a felicidade de te servir, e nós, que tanto a queremos, teríamos o prazer de a ver em boas mãos. Um homem magnânimo não se detém no meio do caminho. A aceites!

Liu se mostrou grave um instante. Depois começou a rir e disse: — Jamais pensei que o príncipe de Quiantangue tivesse idéias tão pouco dignas dum

homem galante. Creio ter ouvido bem que ao montar em cólera saltaste os nove continentes e deslocaste as cinco cordilheiras. Ademais te vi quebrar a corrente de ouro e arrancar o pilar de jade pra correr a vingar tua sobrinha. Me parecia que ninguém se compararia contigo em bravura e senso de honra. Correr à morte pra vingar uma ofensa, arriscar a vida por uma pessoa querida: Eis, de fato, verdadeiros gestos da grandeza. Mas agora que os músicos afinam suas melodias e que o hóspede e o anfitrião estão em perfeita harmonia, por que tratas de me impor tua vontade sem preocupação com a honra? Não é o que esperei de ti! Se me surpreendesses num mar revolto ou numa montanha tenebrosa, poderias me intimidar com tuas escamas e tua barba de ouriço, pra me cobrir de nuvem e chuva e me ameaçar de morte. Nesse caso te consideraria uma fera e não te reprocharia. Mas agora te apresentas como um ser humano, sentado aqui pra conversar sobre coisas mundanas, e tão bem conseguiu mostrar todos os sentimentos humanos e todas as delicadezas de conduta, que certamente entre os homens há poucos valentes e sábios que te possam igualar, sem falar dos monstros aquáticos. Será possível que empregando as vantagens de teu corpo de réptil, de teu temperamento violento e do pretexto da embriaguês te atrevas a me obrigar a torcer uma conduta? Eis o que não acho correto. É verdade que meu corpo é débil e caibo perfeitamente numa de tuas escamas. Mas com meu coração invencível espero triunfar sobre tua inumanidade. Príncipe: Espero que reflitas um pouco!

Envergonhado e confuso, o príncipe se desculpou: — Ainda que educado no palácio, permaneci ignorante nas regras de etiqueta. Por

isso me excedi nas palavras e feri teus princípios de honra. Reconheço que cometi uma falta realmente reprovável e me sentirei muito feliz conserves intata tua amizade comigo.

Nessa noite houve ainda outro festim, onde reinou a mesma alegria das vezes anteriores. Liu e o príncipe ficaram bons amigos. No dia seguinte Liu pediu licença pra ir. A rainha ofereceu outra festa em sua honra no salão da Luz Difusa, realizado em companhia de grande número de concubina, serva e eunuco. Derramando lágrima, a rainha disse:

— Minha filha se sente tão endividada por tua bondade, que jamais poderemos testemunhar satisfatoriamente nossa gratidão. E tão cedo queres nos abandonar!

Chamou a princesa, pra agradecer. A rainha perguntou: — Nos reencontraremos? Então Liu se arrependeu de não aceitar a proposta do príncipe de Quiantangue.

Sentia o coração pesado de pena. Terminado o ágape, todos se despediram com lágrima

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nos olhos. No momento de partir o carregaram com novos presentes, entre os quais incontáveis jóias preciosas.

Liu saiu do lago no mesmo caminho de chegada, escoltado por uma dezena de homens que, carregados com a equipagem, não o abandonaram até o deixar são e salvo em sua casa. Depois foi a Yangzhou, a casa dum joalheiro, pra vender algumas jóias, das quais bastava uma pequena parte pra o converter em milionário. Em toda a margem direita do rio Huai não houve homem rico que pudesse comparar sua fortuna à de Liu.

Se casou cuma moça chamada Zhang, que faleceu pouco tempo depois da boda. Logo se casou com outra, chamada Han, quem morreu alguns meses depois. Então Liu abandonou sua terra natal e se instalou em Nanquim.

A miúdo o tédio da viuvez o fez pensar em se casar novamente. O visitou uma casamenteira que fez A proposta:

— Conheço uma dama chamada Lu, oriunda do distrito de Fanyang. Seu pai, Lu Hao, foi magistrado de Qingliu. Na velhice se apegou ao taoísmo e começou a errar solitário entre as nuvens e os mananciais e desapareceu não se sabe onde. Sua mãe se chama Zheng. No ano passado a jovem se casou e entrou na família Zhang, de Qinghe, mas desgraçadamente o marido morreu pouco tempo depois. Sua mãe, que tanto lamenta a juventude e beleza da jovem viúva, quis encontrar um bom marido pra ela. Será possível que te interesse?

Liu procurou um dia propício pra celebrar a boda. Como as duas famílias pertenciam à melhor sociedade, a magnificência das cerimônias, do enxoval e presentes deixaram de boca aberta a todos os nanquineses.

Um mês depois do casamento, ao entrar, certa noite, na alcova, Liu observou detidamente a esposa e a encontrou muito parecida com a filha do rei dragão, ainda que bem podia garantir que sua mulher a ultrapassava em beleza. Então lhe contou o sucedido. A esposa disse:

— Será possível algo assim? Um ano mais tarde tiveram um filho e Liu a amou ainda mais. Um mês depois do nascimento do filho, ataviada com um vestido suntuoso e

recoberta de jóia, sua mulher recebeu na casa todas as relações. No curso da recepção disse a Liu, cum sorrisinho:

— Será possível que não te lembres me haver visto faz muito tempo? — Uma vez fui mensageiro da filha do rei dragão. Nunca olvido isso. — Sou a filha do rei dragão. Graças a ti foi denunciada a injustiça no rio Jingue, de

modo que jurei dedicar minha vida pra testemunhar gratidão. Mas como rechaçaste a proposta de meu tio e vivíamos longe um do outro e em dois mundos diferentes, não pudemos trocar palavra. Meus pais desejaram me casar com o filho do deus do rio Zhoujin. Eu não podia faltar a meu juramento nem desobedecer a meus pais. O que fazer então? Ainda que me rechaçaste e me foi impossível te ver, jurei que de qualquer modo te reservaria meu coração até a morte. E confiei minha pena a meus pais, que se compadeceram e me deixaram em liberdade de partir pra te procurar. Mas então tomaste por esposas as senhoritas Zhang e Han. Quando morreram uma após a outra e te trasladaste até aqui, se apresentou a ocasião favorável, e meus pais ficaram felizes de que finalmente pudesse se realizar minha esperança. Agora que consegui te servir e amar ao resto da vida, já posso morrer com meu desejo realizado.

Se pôs a chorar com cálida lágrima e continuou: — Se de imediato eu não disse quem era, foi porque sei que minha beleza não

impressionou teu espírito. Se agora me confesso é porque me provaste teu amor. Uma mulher como eu é indigna de teu coração. Como sei que desejas ter um filho, ofereço um pra ganhar o direito de viver a teu lado. Concordas? Antes de saber se me amavas a

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angústia e a tristeza afligiam meu coração. No dia que foste meu mensageiro me disseste, sorridente: Espero que não te olvides de mim depois de voltar ao lago Dongtingue. Naquele momento pensaste no que somos? Mais tarde, quando meu tio te propôs este casamento, o rechaçaste categoricamente. Por quê? É que realmente não o desejavas, ou te negaste porque te ofenderia? Digas!

— Tudo está marcado pelo destino. Quando te vi em primeira vez, na margem do rio Jingue, te achei tão pálida e esgotada de dor que me dominou a idéia de te defender. Mas naquele momento o coração só captou tua dor, sem pensar noutra implicação. Se disse que esperava que desejava no futuro outro encontro, foi devido a que essas palavras escaparam por azar, nada mais. Quando o príncipe de Quiantangue quis me impor o casamento, sua insolência me enfureceu. Definitivamente, só quis fazer justiça. Como me casaria cuma mulher à qual acabei de causar a morte do marido? Eis a primeira razão de meu rechaço. Ademais, sendo a integridade a base de minha conduta, como me rebaixaria a violentar minha consciência? Essa é a segunda razão de meu rechaço. No festim raciocinei conforme meus princípios, só pensando na correção, sem temor. Apesar disso, no dia de minha partida, ao ver a ternura de teus olhos, me arrependi, de todo coração, pelo que disse. Depois, tomado pelo turbilhão das coisas humanas, fiquei impossibilitado de te testemunhar meu sentimento. Que alegria te encontrar agora como membro da família Lu! Em todo caso, o amor que guardei no coração não foi uma paixão efêmera. Doravante te amarei sempre, com coração sereno!

Profundamente emocionada, sua mulher só pôde derramar lágrima e acrescentou: — Ainda que sou doutra essência que os humanos, não me creias desprovida de

sentimento. Saberei responder a tua bondade! Sendo que todo dragão pode viver 10 mil anos, terás a meu lado a mesma longevidade. Viveremos livremente em qualquer lugar, na terra e sob o mar. Tenhas confiança em mim!

— Jamais imaginei que me oferecerias a imortalidade dos deuses! — Exclamou Liu, rindo, jubiloso.

Então ambos voltaram ao lago Dongtingue, onde a magnificência da recepção real superou toda descrição.

Mais tarde se instalaram em Nanhai (Guangzhou) durante 40 anos. Seus castelos, roupagem e festins foram de esplendor principesco. Liu se mostrava generoso com todas suas relações. Apesar de sua idade já avançada, a perenidade de seu aspecto juvenil era a admiração de todos. Durante o período de Caiuã (713–741), o imperador, querendo encontrar o segredo da longa vida, ordenou sua busca a todos os alquimistas do reino. Então Liu se sentiu vigiado e intranqüilo, e preferiu voltar ao lago com sua mulher. Ali se perderam durante mais de dez anos suas pegadas no mundo. No fim do período caiuã seu jovem primo Xue Gu, destituído de sua função de magistrado na capital, foi exilado no sudeste. Quando atravessava, em pleno dia, o lago Dongtingue e olhava ao longe, viu como de repente surgiu da água uma montanha toda verde. Os remadores se apressaram pra chegar à costa, exclamando:

— Não há montanha nesse lado. Deve ser um monstro lacustre! Num piscar de olhos a montanha se aproximou da barca. Uma embarcação pintada

de cores vivas desceu lentamente da montanha e se dirigiu diretamente à barca de Xue. Alguém gritou:

— O amo Liu te convida a entrar! Então Xue compreendeu. Logo que chegou ao pé da montanha, arremangou a túnica

e trepou rapidamente. No alto havia palácios como os terrestres e Liu estava ali, na frente os músicos e atrás as donzelas cobertas de pérola. A riqueza dos objetos de arte ultrapassava em muito à do mundo dos homens. Falando com maior eloqüência que antes, e se vendo ainda mais jovem, Liu o recebeu na escadaria. O tomando da mão,

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disse: — Faz pouco tempo que deixamos de nos ver e teu cabelo já está grisalho. — Estás destinado à imortalidade, enquanto que pobre de mim!, algum dia me

transformarei em ossos secos. — Replicou Xue, cum sorriso. Então Liu lhe deu 50 cápsulas, dizendo: — Cada uma destas pílulas te dará um ano a mais de existência. Quando se

aproximar o fim de tua vida, não deixes de voltar àqui. Não é necessário ficar muito tempo no mundo humano, onde se sofre tanto.

Festejaram alegremente o encontro. Depois Xue se retirou. Liu então pareceu se desvanecer sem deixar mais rastro de sua vida, mas Xue a miúdo contava essa história a suas relações. 48 anos depois Xue desapareceu.

Eu, Li Chaowei, da província de Gansu, me sinto cheio de admiração ao escrever esta história que demonstra que as principais das cinco categorias de seres viventes9 possuem forças sobrenaturais. Sem tais propriedades, como os répteis expressariam virtudes humanas? O rei dragão de Dongtingue se mostra realmente poderoso e magnânimo, enquanto o ímpeto e a franqueza caracterizam a conduta do príncipe de Quiantangue. Certamente são virtudes que se devem transmitir de muito longe. Xue Gu, primo de Liu, foi o único ser humano que se aproximou do reino aquático. Desgraçadamente contou esta história sem escrever. E como é interessante a transcrevi aqui.

9 Os antigos chineses dividiam o reino animal em cinco categorias: Emplumados, peludos, encouraçados, escamados e nus. Essas categorias tinham como principais espécies a fênix, o unicórnio, a tartaruga, o dragão e o homem. Do homem, o mais inteligente de todos, provinham as virtudes dos outros animais. Nota do tradutor

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A filha do príncipe Huo Jiang Fang

Jiang Fang viveu no começo do século 9. Além desta história se lhe conhece um volume de poesia que o fez famoso.

urante o reino de Dali (766–779), em Longxi, havia um jovem chamado Li Yi. Na idade de 20 anos prestou com sucesso o exame de serviço civil. No ano seguinte, na qualidade de laureado, apresentou candidatura às funções oficiais a

ser distribuídas no ministério de assunto civil. No verão, na sexta lua, chegou à capital e se alojou no bairro de Xinchang. Pertencente a uma boa família de letrado, apesar da extrema juventude já mostrava talento, e a beleza de suas obras fazia que os contemporâneos o considerassem um escritor incomparável. Inclusive chegou a merecer a admiração dos letrados de maior idade e maestria. Bastante orgulhoso de seus dons, tratou de encontrar uma bela mulher, mas durante muito tempo a procurou em vão entre as mais famosas cortesãs.

Na capital havia uma intermediária de assunto amoroso, chamada Bao a Undécima, velha serva da mulher do príncipe consorte, que conseguira pagar seu resgate pra se casar fazia dez anos. Possuía um caráter afável e uma língua sem descanso. Freqüentava todas as grandes famílias, onde era recebida como grande experta em assunto galante. Como Li a miúdo lhe fazia rico presente, quando lhe pediu serviço, se mostrou muito disposta a oferecer o melhor.

Alguns meses depois, no meio da tarde, enquanto Li descansava no pavilhão sul de sua casa, repentinamente escutou que chamavam à porta com batidas precipitadas. Se lhe anunciou a visita de Bao a Undécima. Levantando os baixos de sua túnica, correu a seu encontro:

— Senhora, que bons ventos te conduzem, assim de surpresa, a minha casa? — Jamais tiveste um bom sonho? — Disse, entre risos — Conheci uma fada exilada

na Terra. Sem se preocupar com a riqueza, não admira algo além da elegância e da cortesia. Uma beleza assim parece feita especialmente pra ti.

Ante essa novidade, arrebatado de alegria, se sentiu flutuar em pleno céu. Tomando a mão da intermediária, fez uma profunda reverência:

— Serei teu escravo até meu último suspiro! Perguntou onde vivia a bela e qual o nome. — É a filha menor do príncipe Huo e se chama Jade. Seu pai a adorava, e sua mãe

Jingchi era a serva favorita do príncipe. Quando o príncipe faleceu, seus irmãos não quiseram a conservar a seu lado porque sua mãe era de baixa condição. Lhes entregaram uma parte da herança e pediram se alojar noutra parte. Então ela tomou o nome de Zhang, de tal modo ninguém sabe que se trata da filha do príncipe. Jamais vi uma beleza tão perfeita! A elevação de seus sentimentos e a graça de sua pessoa impedem comparação. A música, a poesia e a caligrafia não lhe são segredo. Ontem me pediu procurar um jovem que fosse digno. Lhe falei sobre ti. Teu nome lhe era bem conhecido e se mostrou muito contente. Sua residência é numa viela do velho templo do bairro de Shengye, na porta que corresponde à entrada dos carros. Marquei um encontro pra amanhã no meio-dia. Chegando ao fundo da viela, basta procurar sua serva, que se chama Guizi, quem te conduzirá até a casa.

Quando a casamenteira partiu Li começou o preparativo. Enviou seu mucamo Qiuhong, pra pedir emprestado um cavalo negro com arneses dourados na casa de seu primo Shang, conselheiro militar na capital. Nessa noite fez limpar o melhor de seu

DD

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vestuário, tomou um banho e refez a maquiagem. A alegria o manteve desperto a noite inteira. Ao sair o Sol pôs um chapéu, se olhou detidamente no espelho, temendo em todo momento que falhasse algum detalhe da apresentação. Assim ocupou o tempo até meio-dia. Então montou no cavalo e se dirigiu diretamente ao bairro de Shengye. No lugar marcado uma serva o esperava:

— És senhor Li? Desmontou e amarrou o cavalo na saliência do teto do portal. Entrou, cerrando

precipitadamente a porta atrás. E ali estava Bao, quem saiu da casa, sorrindo de longe: — Quem é o intruso que acabou de forçar a porta? Sem deixar de brincar, entraram numa porta interior a um pátio onde havia quatro

cerejeiras e a jaula dum louro suspensa no costado noroeste. Ao ver Li, o louro começou a gritar: — Vem alguém. Baixar logo a cortina! De natureza reservada, e já com o coração pouco confiado, se deteve ao escutar o

grito do louro, vacilando em seguir a diante. Então Bao foi buscar a mãe da jovem, quem desceu na escadaria, pra desejar a boa-vinda, e o convidou a se sentar em sua frente. A mãe, quarentona, se via ainda muito encantadora e falava com muita graça. Disse ao jovem:

— Faz muito tempo que ouvimos falar de teu talento. Agora comprovo como tua pessoa é digna de tal fama. Tenho uma filha que apesar de pouca educação não é demasiado desprezível. Me atrevo a sugerir que pode te agradar e convir. A senhora Bao me falou sobre isso e ficarei feliz em oferecer sua mão.

— Sou apenas um rústico e fico confuso ao ser recebido com tanta boa-vontade. — Se me aceitares me concederás uma alta honra pra toda minha vida. Estavam preparando o ágape. Quando pronto, a mãe chamou Jade. Saiu do quarto do

leste e Li foi se inclinar diante dela. Ao a ver entrar teve a sensação de que toda a sala se transformava num imenso galho de roseira e quando seus olhares se encontraram ficou como ofuscado. Ela se sentou ao lado da mãe, quem disse:

— Te agrada repetir os dois versos:

Através dos bambus o vento passa agitando a cortina Meu bom amigo voltará?

— Muito bem! Eis o autor do poema. Tu, que passas o dia inteiro lendo suas obras, o que achas dele, agora que o tens aqui?

Jade sorriu levemente e, baixando a cabeça, disse com voz suave: — O ver vale menos que o ouvir: Toda a beleza cabe num poeta de gênio. Li se levantou e fez várias reverências: — A senhorita ama o talento e amo a beleza. Nossas qualidades serão variadas e se

complementarão. Jade e sua mãe trocaram um sorriso. Brindaram com vinho várias vezes. Logo Li se

recostou pra pedir que a jovem cantasse. No começo ela quis se abster, mas finalmente, cedendo à insistência da mãe, entoou com voz de ouro uma melodia maravilhosa. No fim do almoço já caía a noite. A casamenteira conduziu ao jovem a descansar num apartamento do oeste, onde o pátio era bem tranqüilo e as aposentos muito agradáveis, com magníficos cortinados, e ordenou às servas Guizi e Wansha lhe tirar os sapatos e o cinturão. Depois Jade o acompanhou. Nada mais terno e acariciante que suas palavras. E quanta graça ao se despir. E com as cortinas baixas, quantos gozos sobre a almofada! Lhe dominava a impressão de compartilhar o leito cuma divindade. Ao chegar a meia-noite, de repente Jade começou a chorar. O olhando fixo, disse:

— Sou uma cortesã e me considero indigna de estar em tua companhia. Agora me

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amas mas temo que mudes teu sentimento quando minha beleza definhar. Então serei como uma trepadeira sem apoio, como o abanico abandonado no outono. No momento da intensa alegria de agora pressinto a tristeza do futuro.

Muito emocionado, Li passou o braço sob a nuca da bela e disse suavemente: — Agora que realizei o sonho de minha vida, prefiro que me convertam em pó antes

de renunciar a ti. Me dês uma peça de seda branca, pra escrever minha promessa, sob palavra-de-honra, de nunca te abandonar.

Retendo lágrima, Jade ordenou à criada Yingtao levantar o cortinado e trazer um lampião. Depois deu a Li um pincel e tinta. Pra encher os momentos de ócio, ademais da música, Jade adorava a leitura de poesia. Recado de escrever, pincel e barra de tinta, tudo provinha da família real. Então ela pegou uma bolsa bordado, dali retirou uma peça de seda branca de 1m de comprimento, quadriculada, com finas listas negras, e a ofereceu ao amante, pra escrever a gosto.

Li tinha grande talento de improvisador. Quando pegava o pincel escrevia num lance. Jurou fidelidade eterna como montanhas e rios, o Sol e a Lua. As palavras tinham tal ardor e sinceridade que iam diretamente ao coração. Quando terminou de escrever, entregou a peça de seda a Jade, pedindo a guardar no cofre de jóia dela.

Desde então viveram dia e noite sempre juntos durante dois anos, felizes como um casal de martim-pescador planando em pleno céu. Na primavera seguinte, na qualidade de laureado em exame oficial, Li foi nomeado secretário general do distrito de Zheng. Na quarta lua, antes de partir ao posto e visitar os pais em Luoyang, convidou os amigos e conhecidos da capital a uma festa de despedida. Estavam na mais bela temporada do ano, entre a primavera e o verão. Ao terminar a festa e quando os convidados já saíam, Jade, acabrunhada pela tristeza da separação, disse:

— Com teu talento e celebridade, certamente, contas com muitas admiradoras que tentarão se unir a ti. Teus pais vivem sós e lhes falta uma nora pra cuidar a casa. Antes de teu retorno, com certeza te obrigarão a te casar cum bom partido. O juramento que me fizeste será apenas palavras vãs. Por isso desejo te apresentar uma pequena petição. Queres escutar?

Li ficou surpreso: — Em que te ofendi?, pra que me digas tais coisas. Te escuto: Formules teu desejo,

que será ordem pra mim. — Tenho apenas 18 anos e ainda não cumpriste 22. Te faltam 8 anos pra chegar à

trintena, que prum homem é a idade de se casar. Acordemos então esse intervalo pra acumular no lapso de 8 anos a alegria e o amor de toda minha vida. Depois terás tempo pra escolher como esposa uma senhorita de família distinta. Então me retirarei do mundo com o cabelo cortado e o vestido de monja. É isso o que desejo e não peço mais.

Li não pôde reter lágrima, de vergonha e emoção: — Ao Céu jurei que te permanecerei fiel até a morte. Se ainda passando minha vida

inteira contigo não poderei realizar meu desejo, como posso ter outra idéia na cabeça? Suplico que tenhas confiança em mim. Basta me esperar aqui. Dentro de oito meses voltarei a Huazhou e enviarei alguém pra te buscar. Voltaremos a nos reunir dentro de muito pouco.

Poucos dias depois se despediu e partiu ao leste. Cumpriu dez dias no posto e pediu licença pra visitar os pais em Luoyang. Muito antes do regresso sua mãe lhe concertara um casamento cuma prima da família Lu. Já se puseram verbalmente de acordo. Como a mãe foi sempre severa e intransigente, Li ficou perplexo e não se atreveu a contestar. Então teve lugar a cerimônia do compromisso e pouco tempo depois se efetuaria a boda.

Como a família Lu era das mais poderosas solicitou prà cerimônia nupcial um dote de 1 milhão de prata em espécie, condição sem a qual não se realizaria o casamento.

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Mas a família do jovem era pobre e nosso herói precisou pedir dinheiro emprestado em toda parte. Aproveitando a licença visitou os amigos mais longínquos, viajando nos vales dos rios Changjiangue e Huai, no transcurso do outono ao verão. Se considerando perjuro atrasou a volta, deixando Jade sem notícia, pra que abandonasse toda esperança. Em todo lugar onde chegava recomendava aos conhecidos não deixar escapar notícia sobre o casamento.

Já passara com excesso a data marcada pra seu retorno. Jade ensaiou então, diversas vezes e por diferentes meios, obter notícia sobre o amado mas as respostas foram sempre vagas e cada dia diferentes. Durante mais dum ano procurou em todos os oráculos e consultou a todas as adivinhas. Depois caiu em angústia e desespero. Enferma, esgotada, sempre deitada em seu quarto solitário, ia de mal em pior. Apesar do silêncio do jovem, o amor de Jade permanecia inteiro. Presenteava aos amigos pra obter notícia sobre o amante. Persistindo assim na busca sua bolsa começou a se esgotar, e a miúdo enviou a criada secretamente, pra malvender seus vestidos e enxoval ao mercado do Oeste, por intermédio dum revendedor chamado Hou Jingxian. Certa vez confiou à serva Wansha um alfinete de cabelo, de ametista, pra liquidar na casa do revendedor. No caminho a serva se encontrou cum velho joalheiro que trabalhara no palácio e que ao ver o alfinete o examinou de perto e disse:

— Fiz este alfinete há muito tempo, quando a filha menor do príncipe Huo começou a levar coque, e o príncipe me encomendou o cinzelar. O pagou 10 mil sapecas e por isso nunca esqueci. Quem és e donde vem esta jóia?

— Minha patroa é justamente a filha do príncipe Huo. Fez um mau casamento e nossa casa está em plena decadência. O homem com quem se casou está em Luoyang e não dá sinal de vida. Já faz dois anos que adoeceu e ele não envia notícia. Agora minha dona mandou vender isto, pra contar cum dinheiro que permita continuar procurando notícia do ausente.

O joalheiro começou a verter lágrima e disse, com voz triste: — É possível que uma jovem de alta nobreza cair nesse estado? Me parte o coração

ser testemunha de tal desgraça nesta altura da vida! Então conduziu a criada à casa da princesa Yanxian, quem, muito emocionada com

essa história, suspirou longamente e entregou à mulher 1200 sapecas pelo alfinete. Nesse momento a noiva de Li estava na capital. Depois de recolher a soma necessária

pra seu casamento, Li voltou a seu posto do distrito de Zheng. Em dezembro, em pleno inverno, pediu uma prorrogação da licença, pra se casar na capital. Ali se alojou incógnito num bairro tranqüilo, cuidando não chamar atenção. A tudo isso havia um jovem bacharel, chamado Cui Yunming, que era primo de Li e homem de bom coração. Em companhia daquele acorrera noutros tempos às festas na casa de Jade, conversando e rindo com ela nos melhores termos de camaradagem. Cada vez que tinha notícia sobre Li, a transmitia a Jade com toda sinceridade. A jovem a miúdo o ajudava com dinheiro e roupa, por isso ele tinha muita gratidão.

Quando Li voltou à capital, Cui informou a Jade, quem, ofendida, exclamou: — Onde se viu tamanha infâmia? Então ela suplicou a todos os amigos que fizessem o possível pra Li voltar a seu lado.

Consciente de faltar ao juramento e sabendo que Jade, doente, languidescia nessa espera, Li se sentia muito envergonhado pra voltar à ver, e sua idéia fixa era evitar o encontro. Pra passar despercebido saía de casa muito cedo e voltava muito tarde. Jade chorava dia e noite, sem comer nem dormir, mas tudo em vão. Dominada pela dor e indignação, a doença se agravou rapidamente. Como a notícia se espalhou na cidade, todos os jovens bacharéis ficaram impressionados com o amor de Jade, e os homens de bom coração se mostraram indignados com a ingratidão de Li.

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Chegou a terceira lua, a estação dos passeios primaveris. Com cinco ou seis amigos, Li foi ao templo Chongjing, pra contemplar as peônias floridas. Enquanto passeavam na galeria do Oeste, recitava poemas aos companheiros. Entre eles um íntimo de Li, chamado Wei Xiaqing, quem disse:

— Que bela é a primavera em plena florada. E que triste deve ser pra a pobre Jade, que se alimenta apenas de seu pranto em seu quarto solitário. Pensar que a abandonaste com tanta crueldade! Não é a conduta dum homem honesto. Penses nisso!

Enquanto Wei, entre suspiros, reprochava a Li, apareceu um jovem galhardo, vestido com túnica de seda amarela, armado com arco e aljava. Luzia soberbo, magnificamente vestido, mas como séquito trazia apenas um pequeno tártaro com a cabeça raspada. Como caminhava atrás do grupo jovem, surpreendeu parte da conversa. Subitamente se adiantou a Li e o saudou:

— És senhorito Li? Minha família é de Xandongue e pertencemos à família real. Ainda que desprovido de talento literário, muito admiro essa qualidade nos outros. Sempre fui um de teus fervorosos admiradores e abriguei a esperança de que um dia te conheceria. Me sinto tão feliz em te encontrar hoje! Minha humilde morada não está longe daqui, e conto com alguns músicos pra me divertir. Ademais tenho oito ou dez jovens lindas e uma dezena de excelentes cavalos: Tudo ficará a tua disposição. Tenhas a bondade de me honrar com tua presença!

Essas palavras encantaram os companheiros de Li. Saltaram aos cavalos e seguiram o jovem galhardo, quem os conduziu a toda velocidade. Depois de voltas e mais voltas os levou até o bairro de Shengye. Ao comprovar que estava muito perto da casa de Jade, Li tratou de evitar passar ali, cum pretexto qualquer, e se preparava pra voltar sobre seus passos, quando o jovem galhardo disse:

— Por que te retiras? Minha humilde morada fica a apenas quatro passos. E tomando a brida do cavalo, obrigou Li a andar a seu lado. Num piscar de olhos chegaram frente à casa de Jade. Desesperado, Li começou a

açoitar o cavalo, tentando escapar. Mas imediatamente o jovem anfitrião fez os serviçais o deterem, e o obrigaram a entrar. Se fechou o portão atrás deles e alguém anunciou em voz alta:

— Eis o jovem senhor Li! As exclamações de surpresa partiram de toda parte, e um delírio de alegria parecia

tomar toda a casa. Na noite anterior Jade sonhara que Li fora trazido por um homem de túnica amarela e

que lhe disseram pra tirar os sapatos. Ao despertar contou seu sonho à mãe, a quem deu a explicação:

— Os sapatos simbolizam a união. Significa que voltarei a ver meu amado. Mas se descalçar significa separação. Nos uniremos e depois nos separaremos até sempre. Conforme o sonho o verei uma vez mais e então morrerei.

Na manhã ela pediu à mãe a pentear. A mãe, crendo que delirava, inicialmente não deu atenção, mas Jade insistiu tanto que cumpriu o desejo. Mal terminou de se pentear e Li chegou.

Jade estava doente havia tanto tempo que sem ajuda era impossível se virar no leito. Mas nessa vez, ao escutar o anúncio da chegada de Li, se levantou muito lentamente e trocou de vestido como se possessa por um espírito ultraterreno. Quando viu o amante infiel, cravou um olhar encolerizado e não disse palavra. Estava tão debilitada que mal conseguia se manter em pé. De vez em quando escondia o rosto atrás da manga, sem poder impedir de se voltar inconscientemente pra o olhar uma vez mais. Todos ficaram impressionados até derramar lágrima.

Instantes depois, trouxeram de fora vinho em abundância e uma dezena de pratos. E

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como todo mundo estranhava e perguntava quem trouxera Li, se soube que foi o jovem galhardo.

A mesa foi posta e todos se sentaram. Jade, sentada num costado, girou a cabeça pra olhar longamente o jovem Li. Depois elevou a taça e, brindando, atirou o vinho ao chão:

— Sou a mais desgraçada das mulheres e tu o mais ingrato dos homens. Por morrer de desespero tão jovem, já não estarei aqui pra cuidar minha velha mãe. Avante: Adeus música e vestidos de seda! Minha dor me perseguirá até o Inferno. Tudo isto, senhor, é tua obra! Adeus! Depois de morta me transformarei num espírito vingador e jamais deixarei em paz tua esposa e concubinas!

Imediatamente, tomando com a mão esquerda o braço de Li, atirou a taça de vinho ao chão, lançou longos gritos e expirou. A mãe, levantando o corpo de Jade, o entregou aos braços de Li, tentando a reanimar, mas sem sucesso.

Li ficou de luto, chorando dia e noite, acabrunhado de dor. Na véspera do funeral Jade se lhe apareceu entre o cortinado funerário, tão bela quanto em vida. Usava uma camiseta vermelho granada, túnica púrpura com capa escarlate e verde. Se apoiava contra uma cortina, acariciando com os dedos as abraçadeiras bordadas. Olhou Li e disse:

— Obrigada por me acompanhar até aqui. Acho que ainda te resta um pouco de afeto por mim, o que me faz arrancar, inclusive entre as sombras, suspiro de remorso.

E desapareceu. No dia seguinte foi sepultada no cemitério de Iusuiuã, fora da capital. Depois de derramar lágrima sobre a tumba voltou à capital. No mês seguinte se casou

com sua prima. Mas esse passado doloroso, sempre presente, lhe impôs uma vida sem alegria.

Na quinta lua desse verão, em companhia da esposa, voltou a seu posto no distrito de Zheng. Dez dias depois da chegada, deitado com sua mulher, ouviu um ruído insólito fora do mosquiteiro. Olhou, surpreso, e viu escondido atrás da cortina um jovem aposto que sem cessar gesticulava a sua mulher. Vivamente alarmado saltou do leito e correu em perseguição ao intruso. Deu várias voltas ao redor do mosquiteiro e a ninguém encontrou. Desde então se mostrou desconfiado e ciumento com tudo, e a vida matrimonial virou um inferno. Finalmente se acalmou um pouco pela intervenção conciliadora dos amigos. Mas dez dias depois, ao entrar na casa, viu sua mulher tocando o alaúde na cama. De repente, lançado desde a porta, caiu sobre o regaço de sua mulher uma caixinha de 2,5cm de diâmetro, de chifre de rinoceronte, fechada com os laços dos objetos galantes. Ao abrir a caixa encontrou dois grãos de amor, um besouro cantárida,10 outros afrodisíacos e sortilégios de amor. Repentinamente furioso, uivando como fera, pegou o alaúde e começou a bater nela, pra ela confessar a verdade. Mas ela não conseguiu se justificar. Então a castigou a miúdo e de modo brutal. Começou à tratar com toda crueldade, até que finalmente a citou no tribunal e a devolveu aos pais.

Depois do divórcio se encarniçou com as servas e concubinas, às quais, recém contratadas, convertia em suspeitas, e de puro ciúme matou várias pra escarmento das demais.

Um dia fez uma viagem a Yangzhou e ali comprou uma famosa cortesã chamada Ying a Undécima, cuja resplandecente beleza lhe agradou muito. Mas quando estavam juntos começou a falar sobre outra cortesã, a quem havia tempo amara mas castigou

10 A cantárida é provavelmente um dos afrodisíacos mais famosos. Um besouro que, quando ameaçado, expele uma substância ácida, a cantaridina, das articulações das pernas. Visto que seria mais difícil extrair apenas essa substância, o besouro é seco e esmagado pra produzir o pó. Quando se ingere o pó oriundo da cantárida, o organismo excreta a cantaridina na urina. Isso causa intensa irritação e ardor na região urogenital que resulta em prurido e edema dos genitais. Se supunha que esse edema e ardor eram excitação sexual e isso levou a crer que a cantárida tinha qualidades afrodisíacas. Contudo, a cantaridina é altamente tóxica. Pode causar inflamação nos rins, os danificando permanentemente. A cantárida pode causar graves perturbações gastrintestinais, convulsões e morte. http://saude.hsw.uol.com.br/afrodisiacos4.htm O grão-de-amor deve ser um afrodisíaco popular na época. Não achei referência. Nota do digitalizador tradutor

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com a morte por determinada culpa. Todos os dias contava a mesma história, pra que se atemorizasse e fosse fiel. Cada vez que abandonava a casa, a encerrava sob uma abóbada cuja porta era lacrada. Ao voltar examinava cuidadosamente as fechaduras antes de abrir a porta. Outras vezes levava um punhal bem afiado e o exibia às servas enquanto ameaçava:

— É de aço de Gexi, forjado expressamente pra cortar o pescoço duma culpada. Em suma: Toda mulher amada se transformava em suspeita. Se casou três vezes,

sendo sempre um marido sombrio.

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O governador do estado tributário do sul

Li Gongzuo

Li Gongzuo viveu entre os anos 770 e 850 e foi amigo do escritor Bai Xingjian (autor do conto seguinte, A história da bela Li Wa). Deixou também

outros três contos. hunyu Fen, nativo de Donquim, foi um homem galante bem conhecido em toda a região do rio Changjiangue. Grande bebedor e melhor encrenqueiro, não ligava pra aparência nem formalidade. Abonado por uma grande fortuna, se

rodeou de jovens licenciosos que viviam a sua custa. Sua capacidade militar lhe valeu o posto de conselheiro militar no exército de Huainã. Mas em estado de embriaguês ofendeu o chefe, quem o destituiu. Caído em desgraça, se dedicou inteiramente à bebida e à libertinagem.

Sua família vivia a 12km ao leste de Yangzhou. Ao sul da casa havia um freixo secular de galhos gigantes, cuja espessa folhagem sombreava 1 acre de terreno.

Todo dia Chunyu e seus companheiros de orgia se embriagavam sob essa árvore. No nono mês do ano 10 do período de Zhenyuan (até 794), adoeceu devido a um excesso de bebida. Dois amigos o levaram nos braços até sua casa, o deitaram num pequeno quarto do leste e recomendaram:

— Durmas bem. Daremos forragem aos cavalos e lavaremos nossos pés. Não partiremos daqui até que te restabeleças.

Tirando o capuz, apoiou a cabeça na almofada e caiu em estado de embriaguês semi-consciente. Então viu dois mensageiros vestidos de púrpura, que se ajoelharam como saudação e disseram:

— Sua majestade, o rei do Freixo, te convida a visitar seu reino. Sem saber como, Chunyu se recostou e desceu da cama. Se vestiu e seguiu os dois

mensageiros até a porta. Ali viu uma carroça pintada de verde, atrelada a quatro cavalos e escoltada com sete ou oito servidores, que o ajudaram a montar. Ao sair no portão foram diretamente ao buraco do velho freixo e ali entraram. Chunyu estranhou muito mas não se atreveu a perguntar. Logo chegou a um país onde tudo, as montanhas, os rios, as plantas, os caminhos e até o clima, era diferente do mundo humano. Depois de percorrer vários quilômetros viu as ameias e muralhas duma cidade. Veículos e pedestres passavam sem cessar nos caminhos. Os lacaios que escoltavam a carroça de Chunyu gritavam Cuidado! com grande rudeza, e os pedestres se apressavam a se apartar à direita e à esquerda. Entraram numa grande cidade, passando numa porta vermelha coroada por uma torre onde havia um cartaz com a inscrição em letras douradas: Grande reino do Freixo. Os guardiões que cuidavam a porta deixaram seus postos e correram pra o saudar. Depois apareceu um cavalheiro, que anunciou:

— Sendo que sua alteza, o genro real, vem de tão longe, sua majestade ordenou o conduzir ao hotel Oriental, pro devido repouso.

Depois voltou a montar à frente do cortejo, pra mostrar o caminho. Não tardaram a chegar diante duma grande porta aberta. Chunyu desceu da carroça e

entrou. Lá havia balaustradas multicores e pilastras esculpidas, e no pátio filas de árvores floridas ou cobertas de frutas extraordinariamente estranhas. No salão nada faltava: Mesa, criado-mudo, almofada, rico tapete e biombo. E já estava servido um festim. Chunyu se encantou com tudo o que viu. Depois anunciaram a chegada do

CC

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primeiro-ministro. Chunyu desceu a escadaria pra o receber com todo respeito. Um homem vestido de púrpura, cum cetro de marfim na mão, se aproximou e fizeram as recíprocas saudações entre hóspede e anfitrião. O chanceler disse:

e caiu num estado de embriagues semi-consciente

— Apesar de nosso país estar muito longe do teu, nosso rei te convidou a vir, com a esperança de se aliar contigo mediante um matrimônio.

— Como um humilde servidor como eu pode se atrever a aspirar tão alta honra?

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O ministro pediu o acompanhar ao palácio. A cem passos entraram numa porta vermelha. Lanças, alabardas e machados se eriçavam em todos lados, e centenas de oficiais se apartaram pra deixar livre o caminho. Nas fileiras estava um conhecido bêbado chamado Zhou Bian, amigo do hóspede. Chunyu se alegrou interiormente com esse encontro, mas não se atreveu a lhe dirigir a palavra. Depois o ministro o fez subir a escadaria que levava ao grande salão solenemente rodeado de guarda como a praça de arma imperial. Ali viu a um homem robusto, majestosamente sentado no trono, vestido de seda branca e coroado cum diadema escarlate. Chunyu, intimidado e trêmulo, não se atrevia a o olhar de frente. Pela advertência dos cortesãos alinhados a seu lado, se ajoelhou. O rei disse:

— A pedido de teu pai, que concedeu esta honra a nosso pequeno reino, te damos como esposa nossa segunda filha, Yaofang.

E como Chunyu permaneceu com a cabeça inclinada, sem se atrever a dizer algo, o rei concluiu:

— Tenhas a bondade de voltar ao hotel dos hóspedes reais e esperar a cerimônia da boda.

Enquanto o chanceler o acompanhava ao hotel, começou a refletir seriamente, e caiu na conta de que seu pai, como general de fronteira, desaparecera num encontro contra o inimigo, sem deixar sinal de vida. Informado de que seu pai tinha boa relação com o reino do norte, pensou que seria bom arranjar esse matrimônio. Mas de qualquer modo ficou perplexo e incapaz de entender tudo isso.

Com grande pompa, nessa noite lhe ofereceram, como presente nupcial, cordeiros e gansos selvagens, dinheiro e seda. Músicos com instrumento de corda e de bambu, mesas servidas iluminadas com candelabro e lanterna, afluência de carroça e cavaleiro, esplêndido presente de boda. Nada faltava na cerimônia. Entre as damas-de-honra ouviu citar as ninfas das montanhas floridas, do rio límpido e as fadas dos países altos e dos países baixos. O cortejo compreendia milhares de donzelas portadoras de chapéus de fênix verde, vestidas de gaze cor de nuvem dourada, com jóias de ouro e pedras preciosas ofuscantes. Se perseguindo através das portas e saltitando como diabrete, brincavam com o noivo sem cessar, com tanto encanto, graça e agudeza de espírito que ele não sabia replicar. Uma donzela disse:

— Na última primavera, na festa de Purificação,11 fui, com senhora Lingzhi, ao templo Chanzhi, pra ver Youyan executar a dança brâmane no pátio Hindu. Estava sentada com outras moças num banco de pedra sob a janela do Norte, quando tu e teus jovens amigos chegastes e saltastes dos cavalos pra ver o baile. Mas foste o suficientemente atrevido pra nos abordar sem embaraço, rindo e brincando conosco. Te lembras como minha irmã Qiongying e eu atamos um lençol na ponta dum bambu? E depois, no 16 do 7º mês, acompanhei Shang Zhenzi ao mosteiro de Xiaogan, pra escutar o bonzo Qixuan comentar o sutra Avaloquitesvara. Finalizado seu discurso lhe obsequiei dois alfinetes de ouro em forma de fênix, e Shang Zhenzi lhe entregou uma caixa de chifre de rinoceronte. Também estavas ali na ocasião, e com a permissão do bonzo pegaste os alfinetes e a caixa, pra os observar de perto. Depois de admirar longamente esses trabalhos, te voltaste até nós e nos disseste: Estas belíssimas coisas e seus proprietários não podem pertencer ao mundo humano. Depois me pediste meu nome e endereço, mas não quis responder. Que gesto galante tinhas enquanto me cravavas o olhar! Não te lembras?

Chunyu respondeu com alguns versos da canção:

11 Festa de Purificação: No curso dessa festa, 3º dia do 3º mês do calendário lunar, a tradição impunha se banhar nos rios, pra se purificar e se preservar dos males durante o ano. Nota do tradutor

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No fundo do coração te guardo Até sempre, jamais te olvidarei

As donzelas exclamaram: — Quem então pensaria que entrarias a nossa família? Nesse momento chegaram três homens suntuosamente vestidos, que se aproximaram.

Depois de o cumprimentar, anunciaram: — Por ordem de sua majestade somos os servidores-de-honra de sua alteza. Um parecia um velho amigo. Chunyu perguntou: — Serás Tião Zihua?, de Fengyi. Quando o outro respondeu que sim, Chunyu lhe apertou a mão e conversou um bom

momento com ele. — Como estás aqui? — Durante minha viagem monsenhor Duan, chanceler e marquês de Wucheng, me

recebeu muito bem. Por isso ainda estou sob seu teto. — Sabes que Zhou Bian está aqui? — Zhou é uma grande personagem. É o comandante da cidade e tem muito prestígio.

A miúdo me reitera sua proteção. Conversaram e riram pra valer, até que se anunciou: — O genro real pode entrar, prà cerimônia. Enquanto os três servidores-de-honra lhe apresentaram suas espadas e ajudaram a

ajeitar o penteado, seus brincos e seu traje, Tião disse: — Jamais pensei que te assistiria numa cerimônia tão importante. Oxalá nunca te

esqueças de teus amigos! Dezenas de fadas começaram a executar uma estranha música melodiosa e pura, com

notas plangentes jamais ouvidas no mundo humano. E dezenas de lacaios, portando candelabro, encabeçaram o cortejo. Dum extremo ao outro, em muitos li,12 o caminho estava decorado a ambos lados por letreiros de ouro e esmeralda, em tons resplandecentes e delicadas esculturas. Sentado em sua carroça, Chunyu não estava contente. Tinha maus pressentimentos. Seu amigo Tião brincava pra o distrair. As donzelas com quem terminava de conversar circulavam cada uma numa carroça de asas de fênix. Quando chegou diante da porta do palácio Xiuyi, as primorosas fadas o esperavam em grande número e o convidaram a descer. E a cerimônia transcorreu como no mundo humano. Quando correram o cortinado e levantaram o grande abano de pluma, pôde finalmente ver sua prometida, a princesa do Galho de Ouro. Bela como uma deusa, com cerca de 15 anos. E a cerimônia prosseguiu na melhor forma.

Depois da boda, Chunyu e a princesa se amaram mais e melhor a cada dia, e a glória e o prestígio do jovem cresceram com o tempo. A magnificência de seu estilo de vida, com festins e recepções, só podia se comparar à do rei, que um dia ele o convidou a tomar parte, com seus oficiais e guardas, na grande caçada no oeste do reino, na montanha da Tartaruga Divina. Lá se levantavam os picos sublimes entre imensos terrenos pantanosos e luxuriosos bosques onde pululavam pássaros e bestas selvagens. Quando caía o Sol os caçadores retornaram com o produto duma afortunada caçada. Noutro dia Chunyu disse ao rei:

— No dia de meu casamento me disseste que com isso cumpria o desejo de meu pai. Pois bem: Como general de fronteira, meu pai, depois duma derrota, desapareceu no estrangeiro e faz cerca de 18 anos que não dá notícia. Sendo que sabes onde o encontrar, o quero ver.

O rei replicou vivamente:

12 1 li equivale a 500m. Nota do tradutor

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— Teu pai serve sempre na fronteira do norte e me escreve a miúdo. O que deves fazer é enviar uma carta. Não é necessário ir pessoalmente.

Então o rei ordenou à princesa preparar presentes pro pai de Chunyu e enviar com a mensagem. Alguns dias depois chegou a resposta, na qual Chunyu comprovou estar escrita de punho com caligrafia do pai. Na carta expressava preocupação e aconselhava com a ternura de antes. Pedia notícia sobre os parentes e amigos, e pedia informar sobre o que acontecia em seu país natal. Estamos tão afastados um do outro, que toda comunicação parece impossível por causa dos obstáculos naturais. A carta estava escrita em plenos termos de tristeza e lamento. Dizia a Chunyu pra não o visitar, mas predizia que se veriam três anos depois. Chunyu chorou tristemente com a carta na mão, incapaz de conter a emoção.

Um dia a princesa perguntou: — Por que não assumes um posto oficial? — Sempre levei vida libertina e não sou versado em assunto de estado. — Podes tentar. Te ajudarei. Foi ela quem falou ao rei. Dias depois o rei decidiu: — Em meu estado tributário do sul tudo vai mal e o governador acabou de ser

destituído da função. Quero me servir de teu talento pra pôr ordem lá. Vás com minha filha.

Com o consentimento de Chunyu, o rei ordenou ao intendente preparar o equipagem: Ouro, jade, seda bordada, cofre, mala, serva e lacaio. Carroça e cavalo formavam uma longa fileira no dia da partida de Chunyu, que, como jovem ocioso e boa-vida, jamais sonhara merecer cargo tão alto. Nem precisa dizer que sentia o coração alegre.

Enviou uma nota ao rei, dizendo: — Filho duma família de militares, jamais aprendi o arte de governar. Agora, com a

responsabilidade dum posto tão importante, temo não só faltar a meu dever mas também desprestigiar o bom nome da corte. Por isso quero buscar na imensidão do país os homens de sabedoria e inteligência que possam me secundar. Observei que Zhou, de Ingchuã, comandante da cidade, é um oficial leal e honrado, que, respeitando sempre a integridade da lei, se converteria em meu braço direito pro bem de todos. Também se pode contar com Tião Zihua, de Fengyi, desprovido ainda de cargo oficial, quem, pleno de clarividência e de habilidade, é muito entendedor nos princípios de governar. Esses dois homens conheço há dez anos, e os considero dotados de talento e dignos de nossa confiança pros assuntos políticos. Por essas razões quero pedir que Zhou seja nomeado ministro de assunto militar e Tião ministro financeiro de meu estado. De tal modo minha gestão de governo se ilustraria com méritos notáveis na perfeita manutenção da lei.

O rei aceitou essas sugestões e ambos foram nomeados pra tais altos cargos, e disse: — O estado do sul é nossa grande província. Terra fértil, povoado próspero e

poderoso, só pode ser governado com política tolerante. Com Zhou e Tião como colaboradores serás digno da confiança do reino.

A rainha disse à princesa: — Teu marido é impetuoso, um grande bebedor e ainda em plena juventude. Uma

mulher deve se mostrar terna e obediente. O sirvas como é preciso e não terei preocupação. Ainda que o território do sul não esteja demasiado longe, não poderá nos visitar na manhã e na noite. Como evitar lágrima no momento da despedida?

Depois Chunyu e a princesa se despediram. Em carroça escoltada pela cavalaria foram ao sul, ambos sorridentes e conversando alegremente. Poucos dias depois chegaram ao destino.

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Os magistrados e funcionários da província, os bonzos e sacerdotes, anciãos da região, músicos, oficiais e guardiões, todos se juntaram pra dar a voa-vinda. A multidão imensa cobria o caminho. O soar dos tambores e sinos, e o rumor da multidão dominava num raio de muitos quilômetros. Subitamente Chunyu viu se elevarem as ameias, as torres e os pavilhões que anunciavam a uma cidade próspera. À entrada da grande cidade, sobre a porta, se lia em grandes caracteres dourados: Capital do estado tributário do sul.

Ao chegar a sua residência pôde ver as janelas pintadas de vermelho e as portas laqueadas ordenadas em majestosa perspectiva. Se instalou e se informou sobre os usos e costumes do país, e começou a se ocupar dos doentes e miseráveis, cedendo a Zhou e Tião as rédeas dos assuntos políticos, de tal modo o ordem reinou perfeitamente no país. No transcurso dos vinte anos de seu governo impôs os bons costumes, e a aldeia inteira cantava elogio, enviava tabuletas em memória aos méritos e edificava templos em reconhecimento das bondades de seu governador. O rei o tinha em alta estima, lhe concedendo altas honras e títulos, chegando ao nomear chanceler. Ao mesmo tempo Zhou e Tião se viram honrados por sua boa administração, e muitas vezes ascenderam aos mais altos cargos.

Chunyu teve cinco filhos e duas filhas. Enquanto os filhos foram dotados de cargos oficiais reservados à nobreza, as filhas se casaram dentro da família real. Sua glória e renome brilharam com resplendor sem par.

Nesse ano o reino de Sandalovinha atacou a província. O rei ordenou a Chunyu reunir um grande exército prà defender. Chunyu nomeou Zhou à frente duma tropa de 30 mil homens, pra resistir aos invasores frente à cidade da Torre de Jade. Mas Zhou, demasiado temerário, subestimou a força do inimigo. Todo seu exército foi derrotado, e fugiu solitário e desarmado e, favorecido pela noite, penetrou na capital da província. Os agressores recolheram o botim de arma e armadura e se voltaram a sua terra. Chunyu mandou prender Zhou e exigiu castigo mas o rei perdoou a ambos.

No mesmo mês Zhou morreu dum furúnculo nas costas. Dez dias depois a princesa faleceu também de doença. Chunyu pediu licença a fim de abandonar a província, pra acompanhar ao cortejo fúnebre até a capital. O rei consentiu, e pediu a Tião, ministro de finança, o substituir como governador. Acabrunhado de pena, Chunyu seguiu o cortejo de grande pompa. Ao longo do caminho, homens e mulheres vertiam lágrima, funcionários e altas personalidades ofereciam a última homenagem, e o caminho ficou repleto duma imensa multidão que mal deixava avançar a carroça fúnebre. Quando chegaram ao reino do Freixo, o rei e a rainha, em tristes vestidos de luto e chorando desesperadamente, o esperavam na periferia da capital. A princesa foi honrada com o título póstumo de princesa de Obediência Exemplar. Um cortejo composto de guardiões, músicos e portadores de dosséis a conduziram até a colina do Dragão Enroscado, a 10 li13 a leste da cidade, e ali a sepultaram. No mesmo mês Rongxin, filho do defunto ministro de assunto militar, Zhou, conduziu também o ataúde de seu pai à capital.

Se durante tanto tempo governou bem um estado exterior, Chunyu soube acrescentar sua relação com o interior do reino, e tinha boa relação com toda a nobreza e os grandes da corte. Depois de sua volta à capital não foi moderado, se rodeando de grande número de amigos e relações, e cada dia se via mais poderoso e se fazia mais suspeito aos olhos do rei, que então foi informado de que um misterioso presságio anunciou uma grande catástrofe ao reino, que provocaria a transferência da capital e a destruição do templo ancestral. A catástrofe seria provocada por uma família estrangeira muito próxima à família real. Então se formou a opinião na corte de que a desgraça seria provocada por 13 10 li = 5km. Nota do digitalizador-tradutor

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Chunyu por causa de seu excessivo luxo e presunção. Logo foi confinado em sua casa e proibido de contato com o exterior.

Estimando que no transcurso de tantos anos não governara mal sua província, e que agora era vítima de calúnia, Chunyu adoeceu de dor. Advertido disso, o rei disse:

— És meu genro há mais de 20 anos. Desgraçadamente minha filha morreu jovem e não pode te acompanhar até a velhice. É uma grande desgraça!

Depois a rainha tomou a seu cargo a educação dos filhos de Chunyu, e o rei disse: — Há muito tempo abandonaste teus parentes e é tempo de os visitares. Deixes teus

filhos aqui, sem temor. Três anos depois te receberemos com alegria. — Mas minha família está aqui. Que parentes queres que eu veja? — Vieste do mundo humano. — Disse o rei, cum sorriso — Tua família não está

aqui. Sob o golpe dessas palavras, Chunyu se perdeu longamente num estado de sonho.

Finalmente despertou com a lembrança de seu passado, e em lágrima implorou ao soberano a licença de retornar a seu mundo. O rei atirou um olhar aos homens de seu cortejo, significando o deixar partir, e Chunyu se despediu cuma profunda reverência. Voltou a se encontrar com os dois velhos mensageiros que o acompanharam até que passaram a grande porta. Ali viu um carro miserável, que o esperava sem escolta e se compungiu o coração de dor. Montou no carro e ao cabo de alguns quilômetros voltou a sair da cidade. Percorreu o mesmo caminho que na chegada, e passou nas mesmas montanhas e planícies. Mas os dois mensageiros que o acompanhavam tinham expressão tão ruim, que se sentiu angustiado. Quando perguntou quando chegariam a Yangzhou, os mensageiros continuaram cantarolando, e somente momentos depois se dignaram a responder:

— Chegaremos logo. De repente, saindo dum buraco, voltou a ver sua aldeia com as mesmas vielas e casas

de antes. Acabrunhado pela emoção deixou correr lágrima. Os dois mensageiros o ajudaram a descer do carro. Passou a porta, subiu a escada, e repentinamente se viu deitado na antecâmara do Leste. Apavorado, não se atreveu a se aproximar de sua própria imagem. Em voz alta os dois mensageiros o chamaram várias vezes e então despertou como de costume.

Viu seus dois serviçais varrendo o pátio e os dois convidados lavando os pés perto do leito. O Sol poente ainda se demorava sobre a muralha do Oeste, e um resto de vinho ainda reverberava à luz sob a janela do Leste. Assim compreendeu que no sonho dum instante passara toda uma vida.

Profundamente emocionado, não cessava de suspirar, até que chamou seus dois amigos pra contar o sonho. Vivamente surpresos, o acompanharam pra procurar o buraco no tronco do freixo. Chunyu o apontou e disse:

— Este é o lugar onde entrei em meu sonho. Seus dois amigos pensaram que seria a obra de raposas encantadas ou espíritos das

árvores. Os domésticos foram chamados e, armados de machado, cortaram o tronco, quebrando os galhos e raízes pra atravessar o buraco. A 30m encontraram um grande fosso, ao ar livre, suficientemente espaçoso pra conter uma cama. Dentro se amontoavam montículos de terra cujas formas recordavam as muralhas duma cidade, palácios e pavilhões. Lá pululava um enxame de formiga. No meio estava uma pequena torre escarlate, habitada por duas formigas gigantes de cabeça vermelha e asas brancas, de largura de 8cm. Dezenas de grossas formigas montavam guarda ao redor delas e as outras formigas não se atreviam a se aproximar. Ali estavam o rei e a rainha na capital do reino do Freixo. E ainda descobriram outro buraco, subindo o galho do sul, a cerca de 13m de altura. No túnel do galho estava uma cidade feita de terra, com torreões,

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também habitada por formigas, e esse era o estado tributário do sul que Chunyu governara em pessoa. Outro buraco, a 6m até o oeste, que parecia duma profundidade fantástica, continha uma carapaça de tartaruga já podre, da espessura dum cano de chaminé. A umidade da chuva fazia crescer miúdas ervas bem compactas, que contrastavam em toda a carapaça: Era a montanha da Tartaruga Divina onde Chunyu caçara. Descobriram ademais um buraco a mais de 3m até o leste, numa velha raiz tão sinuosa quanto um dragão. Ali se levantava uma pequena colina, aproximadamente de 30cm de altura. Era a colina do Dragão Enroscado com o mausoléu da princesa que foi mulher de Chunyu.

Recordando o passado, Chunyu se entristecia mais a cada descoberta, pois tudo se revelava conforme o sonho. Proibiu os amigos destruir algo e ordenou tapar imediatamente esses buracos e os deixar como encontraram. Nessa noite houve uma forte tormenta. Na manhã, quando foi olhar o buraco, viu que todas as formigas desapareceram. Isso confirmava o augúrio: O reino será vítima duma catástrofe que provocará a transferência da capital. Se recordou da guerra contra o reino de Sandalovinha, e pediu aos dois amigos procurar suas pegadas. 500m a leste da casa, perto do leito dum rio seco, havia muito tempo se elevava um sândalo, tão bem coberto por uma videira selvagem que o sol não podia atravessar a folhagem. Ao costado da árvore estava um pequeno buraco, onde se escondia um grande formigueiro. Não era esse o reino de Sandalovinha?

Ai! Se o mistério das formigas nos é insondável, como poderemos compreender as metamorfose dos grandes animais que se escondem nas montanhas e nas selvas?

Nessa época Zhou e Tião, os companheiros de farra de Chunyu, moravam no distrito de Liuhe e não os via fazia dez dias. Ordenou ao servente correr a trazer notícia. Zhou morrera de doença repentina e Tião, presa de misterioso mal, não podia deixar o leito. Então Chunyu compreendeu o vazio do sonho e a vaidade da vida, se converteu ao taoísmo e renunciou até sempre ao vinho e à libertinagem. Três anos depois morreu em sua casa, com a idade de 47 anos, justamente no fim previsto em seu sonho.

No 8º mês do ano 18 do período de Zhenyuan (até 795), no transcurso duma viagem de Suzhou a Lunyang, parei na beira do rio Huai, onde por acaso me encontrei com Chunyu. Me informei de suas palavras e fui a ver os vestígios das formigas no lugar do evento. Depois de muita verificação, finalmente me convenci da autenticidade desta história que terminei de escrever a quem interessar. Se existe algo de sobrenatural e de anormal, os ambiciosos poderão tirar uma lição. Que a gente honesta que ler esta história de sonho não veja nela uma simples corrente de coincidência, mas que aprendam a não se deixar dominar pelo orgulho de sua fama nem de sua posição no mundo. E Li Zhao, velho conselheiro militar de Huazhou acrescentou o comentário:

Levado até as nuvens Todo-poderoso no império Mas o sábio ri dele Alvoroçadas formigas e nada mais

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A história da bela Li Wa Bai Xingjian

Bai Xingjian viveu nos anos 776–826 e foi irmão do grande poeta Bai Juyi. É autor doutro conto célebre: Os três sonhos.

o período Tianbao (742–756) o governador de Changzhou, senhor de Xingyang, do qual me permitirei omitir o nome, era um homem bem considerado e muito rico. Com a idade de 50 anos tinha um filho de 20 que se distinguia dos outros

jovens pelo belo talento literário, o que o fez merecedor da admiração dos contemporâneos. O pai o adorava e esperava muito. A miúdo dizia:

— É o potro mais fogoso e veloz que já apareceu na tropa da família! Ao se aproximar a data do exame provincial, o jovem se preparou pra partir. O pai

deu bela roupa e bom equipamento pra viagem, junto cuma grossa quantia de dinheiro pro gasto na capital.

— Com teu talento estou seguro que obterás a vitória a partir do primeiro torneio. Agora te entrego uma quantia suficiente pro gasto de dois anos, com bom suplemento pra gasto imprevisto. Isso te permitirá trabalhar sem preocupação.

Muito autoconfiante, o jovem tinha certeza de ser aprovado no concurso. Um mês depois de partir de Changzhou chegou à capital e se alojou no bairro de

Buzheng. Um dia, ao voltar dum passeio ao mercado do Leste, franqueou a porta leste do bairro de Pingkang, pra visitar um amigo que vivia no sudoeste desse bairro. Quando ia na viela Mingke notou uma casa de pequenas portas mas edificada com esmero e muito imponente. Perto da porta de dois batentes e semicerrada havia uma bela moça, acompanhada duma serva de dois coques. A jovem era duma beleza fina, encantadora como não se conhecia outra nesse século. A vendo, o jovem soltou involuntariamente a brida da montaria e ali permaneceu vacilante, incapaz de ir embora. Então deliberadamente deixou cair o chicote e, esperando que seu servente o levantasse, se dedicou a contemplar a beldade. A jovem lhe pôs olhos doces e promissores mas ele terminou indo sem se atrever a lhe dirigir a palavra.

Desde então o jovem começou a sonhar e secretamente quis se informar sobre ela. Interrogou um amigo que conhecia muito bem a capital.

— A casa pertence a uma cortesã que se chama Li. — E essa bela é abordável? — Tem o bolso repleto. Os que a freqüentaram são personagens importantes ou

pertencentes a riquíssimas famílias e lhe deram toda classe de bem. Se não tens 1 milhão pra gastar não creio que se interesse em falar contigo.

— Só me interessa a conquistar. Não me importa que me custe 1 milhão. Alguns dias depois vestiu seus melhores atavios e bateu a porta da formosa. Uma

serva abriu. — Quem vive nesta casa? Mas a serva não respondeu e voltou a entrar, gritando: — Chegou o senhor que noutro dia deixou cair o chicote! Com evidente prazer a jovem respondeu: — Digas pra me esperar enquanto troco de vestido e me arrumo pra o receber como é

devido. Ao escutar essas palavras o jovem se sentiu transportado ao céu. Introduzido na casa,

se encontrou cuma velha dama de cabelo gris e as costas um pouco encurvada. Era a mãe da bela. A saudou em voz baixa e perguntou:

NN

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A jovem lhe pôs olhos doces e promissores

— Ouvi dizer que tens uma série de aposento pra alugar. — Temo que minha casa seja sórdida e pequena demais pra ter a honra de alojar um

jovem senhor como tu. Em conseqüência não me atrevo a falar contigo sobre aluguel. O conduziu a uma sala de recepção realmente esplêndida e depois de pedir pra se

sentar, disse: — Tenho uma filha que, mesmo muito jovem e pouco versada em arte, gosta de

receber visita. Gostaria de te apresentar.

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A fez vir. Olhos radiantes e braços resplandecentes, a jovem se aproximou com tanta graça que o visitante se recostou como em pleno desvario e se manteve com a cabeça baixa, sem se atrever à olhar. Depois de se trocar cumprimento, sem deixar de falar da chuva e do bom tempo, percebeu em sua pessoa encanto incomparável.

Se sentou de novo. O chá foi preparado, o vinho vertido, e tudo servido numa vasilha de perfeita limpeza. O jovem se demorou muito tempo, até o anoitecer e já se escutava o tambor da ronda. A anciã dama perguntou onde vivia. O jovem respondeu cuma mentira: A quilômetros fora da porta Yanping, esperando que o retivesse por causa do longínquo de sua residência. A anciã se limitou a dizer:

— O tambor soa. Te apures em voltar, pra evitar uma contravenção. — Demasiado feliz de ficar convosco, não senti passar o tempo. O que posso fazer

agora, tão longe de casa e sem parente na cidade? — Já que não achas tão sórdida nossa casa, — sugeriu a jovem — o que tem de mau

passar a noite aqui? Ele dirigiu olhares à velha dama, quem finalmente aceitou. Então o jovem chamou

seu pajem e ordenou trazer dois rolos de seda, os oferecendo pro gasto do festim. Mas a bela o deteve, sorridente.

— Não. As regras de hospitalidade não permitem isso. Será nossa humilde casa quem se encarregará dos gastos desta noite, gasto que não estará à altura do hóspede. Quanto ao demais, falaremos sobre isso mais tarde.

Ele insistiu em vão. Foram ao salão do Oeste, onde o cortinado e o leito eram esplêndidos, e as almofadas e colchas de grande luxo. Trouxeram candelabros e uma copiosa ceia.

Levantada a mesa, a anciã se retirou, enquanto ao lado o jovem e a bela se animavam na conversa, rindo e brincando sem cessar. O jovem disse:

— Noutro dia, ao passar diante de tua porta, te vi entre as duas folhas da porta. Desde então meu coração é teu. Durante o descanso e refeição nunca deixo de pensar em ti.

— O mesmo acontece em meu coração. — Se vim hoje não foi só pelo alojamento. Quero realizar o ideal de minha vida. Mas

não sei o que me reserva o destino. Mal disse estas palavras e a anciã voltou a entrar, perguntando sobre o quê falavam.

Ao saber, riu e disse ao jovem: — Existe uma grande atração entre homem e mulher. Se amando, até a autoridade

dos pais é impotente pra separar os enamorados. Mas acontece que minha filha é de condição humilde demais pra compartilhar teu leito.

O jovem se recostou precipitadamente e, fazendo uma respeitosa reverência, disse: — Peço me aceitares como teu servidor. Então a anciã o considerou seu genro. Depois de esvaziar abundantes taças, se

despediram. No dia seguinte, bem cedo, ele levou toda sua equipagem à casa da bela e ali se instalou.

Doravante se encerrou ali adentro, sem dar sinal de vida aos familiares e amigos. Não se juntava com outra gente que não fosse comediante, dançarino e camarada, passando todo o tempo se divertindo e farreando. Quando se esgotou a bolsa vendeu seus lindos cavalos e criadinhos. Ano depois, dinheiro, recurso, servente, cavalo, tudo se esgotara. A partir de então a velha dama começou a ficar cada dia mais fria, enquanto que a jovem se mostrava mais amorosa que nunca. Um dia ela disse:

— Faz um ano que vivemos juntos e ainda não concebi. Se diz que a divindade do Bambuzal responde aos pedidos dos amantes com a mesma certeza que o eco ressoa. Te agradaria lhe oferecer uma libação?

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Sem suspeitar dum ardil, o jovem pôs grande prazer na excursão. Com o dinheiro de seu vestuário empenhado comprou vinho e carne pràs oferendas e se encaminhou com sua bela ao templo, pra orar e pedir. Duas noites depois voltaram à casa e o jovem, montado em seu asno, seguia atrás do carro. Ao chegar diante da porta Norte do bairro de Xuangyang, a jovem disse:

— Perto daqui, dando a volta na viela, fica a casa de minha tia. Será muito incômodo a visitar?

Ele aceitou com prazer. A menos de cem passos dali viu que uma porta se abria pra dar passagem ao carro. Seu servente deteve o cocheiro e anunciou:

— Chegamos. O jovem desceu e alguém apareceu no portal, perguntando quem eram. E voltou a

entrar pra anunciar à senhora Li. Instante depois apareceu novamente, acompanhado duma dama que representava uma quarentena de anos, quem perguntou.

— Chegou minha sobrinha? A jovem desceu do carro e a dama a recebeu com amável reproche: — Por que deixaste passar tanto tempo sem nos visitar? Se contemplaram com riso, e a jovem apresentou seu companheiro. Entraram juntos

num jardinzinho perto da porta Oeste. Lá havia um pavilhão no meio duma profusão de bambus e árvores na quietude de açudes e cabanas.

— Este palacete pertence a tua tia? Mas a bela, sorrindo, não respondeu e falou doutra coisa. Depois serviram o chá com frutas exóticas e deliciosas. Enquanto isso chegou um

homem inundado de suor, trazendo um cavalo de raça na brida, anunciando: — A patroa contraiu uma doença aguda e está cada vez pior. Já começou a delirar. É

preciso voltar a casa imediatamente. — Estou desorientada. — Disse a jovem à tia — Me deixes prosseguir a cavalo. O

devolverei imediatamente, pra que volte com meu marido. O jovem, dominado pela ansiedade, quis acompanhar sua mulher mas a tia cochichou

algo ao servente e cum gesto indicou reter o jovem na porta. Disse a tia: — Minha irmã morrerá logo. É necessário que falemos juntos das medidas a tomar

pro funeral. De quê pode servir correr atrás de minha sobrinha num caso como este? Então ele ficou e começou a conversar com a tia sobre os gastos do enterro e do rito

funerário. Ao anoitecer ainda não devolvera a cavalgadura. Disse a tia: — Que estranho que não venham nos buscar. Vás rápido, pra ver o que aconteceu e

te seguirei em seguida! O jovem correu até a casa da bela e encontrou a porta cerrada e lacrada. Vivamente

surpreso interrogou um vizinho, quem explicou: — Senhora Li alugou esta. Terminado o tempo do arrendamento, o proprietário

recuperou a posse. Há dois dias que senhora Li se mudou. Interrogado sobre o novo endereço, o vizinho disse nada saber. O jovem voltaria ao bairro de Xuangyang, pra interrogar a tia. Mas como já era noite

foi impossível ir. Então se desfez dalguma roupa pra a empenhar e ter com que comer e alugar uma espelunca onde dormir. No ápice da indignação, ficou a noite toda sem fechar os olhos. Bem cedo partiu no asno e chegou diante da porta da tia, mas passou o tempo e ninguém respondeu. Finalmente, depois de gritar se esgoelando repetidas vezes, um lacaio saiu lentamente da casa. Perguntou rudemente:

— Está aí a tia? — Jamais morou nesta casa. — Mas na noite que estava aqui! Por que queres me enganar? De quem é a casa?

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— É a residência de sua excelência o ministro Cui. Ontem alguém alugou este pavilhão pra receber um primo vindo de longe, mas foram embora antes da noite.

Desconcertado e meio enlouquecido, não sabendo o quê fazer, o jovem voltou finalmente a seu antigo hotel do bairro de Buzheng. O proprietário do hotel sentiu pena e lhe deu de comer. Mas o jovem, dominado por um grande desespero, não degustou alimento durante três dias e caiu gravemente enfermo. Dez dias depois continuava tão mal que o hoteleiro, temendo que sucumbisse em sua casa o transportou ao lugar onde se depositavam aos moribundos abandonados. Ali jazia em estado tão lamentável que todos os empresários de funerária se compadeceram e se ofereceram pra alimentar a turno o jovem moribundo. Tempo depois começou a se recuperar. Terminou se levantando e andando usando uma bengala.

O inscreveram nas pompas fúnebres e assim ganhou o suficiente pra subsistir. Alguns meses depois recuperou um pouco do vigor, mas cada vez que escutava os cantos lastimosos dos carpideiros se sentia mais desgraçado que os mortos e chorava com longos soluços, incapaz de reter a abundante lágrima. E ao voltar das cerimônias fúnebres nunca deixou de continuar os lamentos. Homem de grande inteligência, não necessitou muito tempo pra adquirir toda a maestria nessa arte, e em pouco tempo nenhum carpideiro profissional podia se comparar em toda a capital.

Então brotou rivalidade entre os empresários de pompa fúnebre. Os do mercado Oriental não tinham rival quanto ao luxo dos carros fúnebres mas, em compensação, tinham sensível inferioridade na arte dos cantos fúnebres. Seu chefe, sabendo que nosso herói se destacava nessa arte, o contratou ao preço de 20 mil sapecas. E seus velhos colegas, os chorões expertos, mostraram em segredo ao jovem todas as novas e velhas melodias, cantando em coro consigo. De tal modo se exercitou reservadamente no transcurso de várias semanas. Os chefes das duas empresas fúnebres fizeram um acordo nas seguintes disposições:

— Cada um fará uma exposição de implemento fúnebre em plena rua de Tianmén, pra mostrar seu mérito. A parte que perder pagará 50 mil sapecas pro gasto do festim.

Antes da competição foi firmado um contrato e se deu a necessária garantia. Uma multidão calculada em dezenas de milhares de espectadores afluiu, de toda a capital, pra assistir o concurso. O chefe do bairro alertou a polícia, quem informou ao magistrado da capital. Os cidadãos chegavam de toda parte, deixando suas casas desertas.

A competição se iniciou na manhã. A revista de carroça, ataúde e acessório de pompa fúnebre de todo tipo durou até o meio-dia. Como os empresários do mercado Ocidental não conseguiram estabelecer superioridade, seu chefe começou a empalidecer. Superpondo vários leitos, levantaram uma plataforma na esquina sul do cruzamento de rua. Ali apareceu um homem de longa barba, cuma campainha na mão, escoltado por vários ajudantes. Empinando a barba, as sobrancelhas levantadas, esfregando as mãos e baixando a cabeça, saudou ao subir ao estrado e começou a entoar a Elegia do cavalo branco. Orgulhoso e seguro de si por seus velhos êxitos, o cantor girava a vista na multidão como se ninguém existisse. A ovação unânime o elevou às nuvens, o proclamando invicto, o primeiro de sua época.

Instante depois o chefe do mercado oriental mandou elevar uma plataforma na esquina norte, e ali apareceu um jovem de chapéu negro, cum espanador fúnebre na mão, acompanhado de cinco ou seis ajudantes. Era nosso herói. Ajustou a túnica, levantou e desceu lentamente a cabeça e limpando a garganta, começou a preludiar cum gesto tímido. E começou a cantar a Elegia ao rocio na pereira. Sua voz era tão ressonante e pura que ao ecoar as árvores dos bosques vizinhos tremeram. Antes de terminar o primeiro versículo todos os assistentes esconderam os rostos atrás das mangas e soluçaram. O chefe do mercado Ocidental, vaiado pela multidão, com muita

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vergonha se apressou a depositar o dinheiro da aposta perdida e saiu discretamente. Então o imperador ordenou a convocação, na capital, de todos os governadores das

províncias exteriores uma vez por ano. Isso se chamava a Conta prestada à corte. Por esse motivo o pai de nosso herói estava na capital com alguns colegas, não sem previamente tirar as túnicas e insígnias de altos funcionários, e foram, incógnitos, ver o espetáculo. Seu velho doméstico, marido da nutriz do jovem, reconheceu o filho do amo por causa do gestos e do tom de voz. Não se atreveu ao abordar e se limitou a verter lágrima. Surpreso, o senhor de Xingyang interrogou o velho, quem respondeu:

— Senhor, o cantor é muito parecido com teu filho desaparecido. — Donde tiraste essa idéia? Impossível! Meu filho foi assassinado por ladrões

tentados por sua bolsa muito cheia. Ao o recordar, o pai também começou a chorar. O velho servente interrogou os

empresários: — Quem é esse cantor? Onde aprendeu a cantar tão bem? Todos lhe deram a mesma resposta: — É o filho de fulano. Mas desconhecia o nome citado. Estranhando muito, o velho doméstico se

aproximou discretamente do jovem e o olhou de perto. Mas quando o viu, o cantor se perturbou e tratou de escapar se misturando à multidão. O servente o segurou na manga:

— Tinha certeza de que eras tu mesmo! Se abraçaram chorando e voltaram juntos. Quando chegaram ao alojamento, o pai

explodiu: — Não tens vergonha de aparecer em minha frente? Tua conduta desonrou a família! Depois do reproche o expulsou e a pé o levou a um terreno situado entre o lago

Qujiang e o jardim dos Abricozeiros. Lá o despiu e o flagelou com cem açoitadas, até sucumbir à dor e cair desmaiado. O pai o deixou ali, o crendo já morto, e se foi.

Então o chefe do coro enviara alguns de seus íntimos pra cuidar do jovem artista. Voltaram pra anunciar aos camaradas o que acontecera. Todos deploraram e enviaram dois homens portando uma colcha pra o enterrar. Ao chegar o encontraram ainda morno e o coração palpitando. O recostaram um momento e recuperou um pouco de alento. Então o levaram à casa deles e lhe deram de beber água com a ajuda dum canudo. Na manhã seguinte recuperou o conhecimento mas ficou impossibilitado de mover os membros durante mais dum mês. As feridas da flagelação se ulceraram e empestavam tão forte que os companheiros não agüentaram mais. Numa noite o abandonaram na beira duma rua. Os pedestres, de lástima lhe atiravam a miúdo algum resto de comida com o qual se alimentava. No fim de cem dias começou a andar tropegamente com a ajuda duma bengala. Vestido cuma esfarrapada túnica de algodão armada com cem nós, lamentável como uma perdiz pendurada, andava cuma tigela quebrada na mão, errando e mendigando nas vielas de todos os bairros. Em todas as estações do ano só teve abrigo noturno nas cavernas e nos poços cheios de bosta, e vagabundeava o dia todo nas ruas e mercados.

Certo dia, enquanto culminava uma tempestade de neve, o frio e a fome o atiraram à rua. Mendigando ajuda, lançava gritos tão pungentes que todos os que o viam e ouviam se lhes apertava o coração de pena. Nevava tão forte, que nenhuma casa tinha porta entreaberta. Chegou à porta Leste do bairro Anyi, percorreu toda extensão da muralha do Norte, e depois de passar diante de seis ou oito casas, encontrou uma cuma porta entreaberta. Era justamente a casa da bela Li Wa. Sem saber, começou a gritar com insistência. Sob a tortura da fome e do frio sua voz era tão lamentosa que ninguém escutava sem sentir piedade. E essa voz chegou ao ouvido da jovem Li Wa, que estava em seu dormitório. Foi quem avisou a seu servente:

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— Reconheço sua voz. Só pode ser ele. Saiu precipitadamente e o viu tão descarnado e coberto de úlcera, que parecia ter

perdido a forma humana. Perguntou, muito emocionada: — És tu, de verdade? Mas o jovem, possesso de cólera que não lhe deixava pronunciar palavra, deveu se

contentar em fazer um sinal com a cabeça. Ela o tomou nos braços, o envolveu com sua capa bordada e o arrastou até a

antecâmara do Oeste. Lá, soluçando, disse: — Toda tua desgraça é por minha culpa! E caiu desmaiada. Vivamente alarmada, a mãe correu, gritando: — O que aconteceu? — É ele. — Disse a jovem, ao recobrar os sentidos. — Tem que o expulsar. Pra quê o fazer entrar aqui? Mas, sombria e grave, a jovem protestou: — Não! É um filho de boa família. Faz tempo chegou a casa em carroça e

suntuosamente vestido, mas em menos dum ano o deixamos com nada. Depois o descartamos por meio dum ardil. Tudo isso é desumano! Arruinamos sua carreira e o convertemos em algo ignóbil aos olhos de seus pais. O amor entre pai e filho é um sentimento nascido da natureza, mas por nossa culpa o coração de seu pai se endureceu a ponto de tentar o matar. E o vemos agora caído em tão espantosa miséria! Ninguém no mundo ignora que tudo isso aconteceu por nossa culpa. A corte está repleta de seus familiares e amigos. Pobre de nós se as autoridades fizerem uma investigação sobre este escândalo! Sem contar que ultrajando os homens e enganando o Céu não encontraremos, chegado o momento, graça frente aos espíritos e aos deuses. Faz já 20 anos que vivi como filha tua e o que ganhei ascende a cerca de 1000 peças de ouro. Agora, como tens mais de 60 anos, te darei, com todo gosto, uma quantia que garanta tua vida durante 20 anos mais, como resgate de minha liberdade. Depois viverei consigo noutro lugar. Nossa casa não estará situada longe daqui e assim teremos o prazer de vir pra te saudar na manhã e na noite. Esse é meu desejo.

A mãe, sentindo que a decisão da jovem era irrevogável, terminou consentindo. Pagado o resgate, ainda restaram à bela algumas centenas de peças de ouro. Ela alugou no norte da cidade algumas aposentos ao redor dum pequeno pátio, a cinco casas donde vivia antes. Deu um banho no jovem e o fez trocar de roupa. Primeiro preparou sopa de arroz, pra limpar os intestinos, mais tarde o alimentou com produtos lácteos, pra o purificar interiormente. Dez dias depois começou a presentear o paladar com todo tipo de delicado manjar terrestre e aquático. Escolheu o melhor que havia em chapéu, sapato, meias soquete e todo tipo de roupa. No fim dalguns meses tinha a pele mais suave, e no fim dum ano estava restabelecido. Um dia disse:

— Agora que recobraste a saúde e a energia espiritual, por que não tratas de avaliar o que ainda resta de tua velha riqueza literária?

Depois de refletir, respondeu: — Só pode me restar a quarta parte. Ela dispôs preparar o carro prum passeio e o jovem o seguiu a cavalo. Ao chegar à

livraria dos clássicos, perto da porta lateral ao sul da torre das Bandeiras, pediu que escolhesse todos os livros que quisesse e assim o fez pelo valor de 100 peças de ouro. Imediatamente mandou empacotar e carregar os livros, pra os levar a sua casa. Desde então ela pediu que deixasse toda outra preocupação pra se entregar em corpo e alma, dia e noite, ao estudo. A miúdo o acompanhava enquanto ele trabalhava e se deitavam depois da meia-noite. Quando se sentia fatigado ela aconselhava escrever poesia pra se

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distrair. Em apenas dois anos ele fez grande progresso depois de esgotar todos os livros do

império, e declarou: — Agora posso enfrentar um exame. — Ainda não. É preciso se aguerrir melhor, estar preparado pra travar cem batalhas. Depois doutro ano de preparação, ela disse: — Agora é o momento! No primeiro confronto obteve êxito tão sensacional no exame oficial, que sua

reputação teve repercussão até no ministério de rito. Inclusive os velhos letrados, ao ver seus escritos, lhe tomaram grande estima e buscaram sua amizade. Mas a jovem disse:

— Ainda esperes um pouco! Hoje todo bacharel mal passa num exame e imagina que os melhores cargos da corte já estão a seu alcance e que será famoso em todo o império. Quanto a ti, teu passado marcado pelo opróbrio te coloca em posição desvantajosa com relação aos outros bacharéis. Nesse caso é preciso afiar tuas armas pra obter vitória após vitória. Só depois de rivalizar com os melhores podes almejar superioridade definitiva.

Então o jovem redobrou o ardor no trabalho e a reputação não cessou de crescer. Nesse ano houve um concurso especial pro mais seleto de todo o império. O jovem, tratando o tema dos conselhos diretos oferecidos ao imperador, obteve a palma e imediatamente foi nomeado inspetor do exército de Chengdu. Todos os grandes magistrados da corte se converteram em seus amigos.

Quando estava pronto pra partir a seu posto, a jovem disse: — Já que recuperaste teu nível social devemos nos separar. Me deixes voltar ao lado

de minha velha mãe, pra cuidar de seus últimos dias. Terás de te casar cuma senhorita de grande família, que seja digna de oferecer sacrifício a teus ancestrais. Tenhas muito cuidado, pra não fazer um casamento imprudente. Te cuides bem! Agora irei até sempre.

Deixando correr lágrima, o jovem respondeu: — Se me abandonares cortarei meu pescoço. Mas ela insistiu sobre a necessidade da separação, enquanto ele suplicava em tom

cada vez mais comovente. Finalmente ela concedeu em parte: — Te acompanharei passando o rio até Jianmén. Lá me deixarás voltar a casa. Ele aceitou. Um mês depois chegaram a Jianmén. Antes de sua separação, um edital

anunciou que o pai de nosso herói, que fora governador de Changzhou, fora chamado à corte pra ser nomeado governador de Chengdu e inspetor-geral de Jianmén. Doze dias depois chegou o novo governador. O jovem lhe apresentou suas credenciais desde a porta do despacho. O governador não queria crer de que era mesmo seu filho, mas à vista das credenciais onde figuravam os nomes do pai e do avô com os respectivos títulos, ficou surpreso. Saiu pra encontrar o filho, que o recebeu com profunda reverência. O recostou e, lhe acariciando as costas, chorando, balbuciou:

— Somos pai e filho como antes! Depois perguntou sobre todo o evento, e assim o filho relatou. Maravilhado, o pai

perguntou onde está a bela Li. — Me acompanhou até aqui mas precisou voltar a sua casa. — Isso não pode ficar assim. Na manhã seguinte recolheu o filho em seu carro e partiram a Chengdu, deixando Li

Wa convenientemente instalada em Jianmén. No dia seguinte ordenou a uma casamenteira arranjar a boda e preparar as seis cerimônias, pra receber solenemente à prometida. Foi assim que os jovens foram devidamente casados. Nos anos seguintes a formosa Li se revelou uma esposa impecável e excelente dona de casa, e foi mimada pelos sogros.

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Anos mais tarde os pais do jovem morreram quase ao mesmo tempo. Ele mostrou tanta piedade filial no luto que cresceram plantas milagrosas sobre o túmulo fúnebre e brotou trigo com três espigas por talo nos campos vizinhos. As autoridades locais informaram sobre isso ao imperador, agregando que muitas mariposas brancas se aninhavam no telhado de nosso herói. Maravilhado, o imperador lhe outorgou muitos favores e o ascendeu de grau.

Transcorridos os três anos de luto, foi sucessivamente promovido a diversos postos importantes. Em menos duma década foi nomeado governador de diversas províncias e sua mulher recebeu o título de duquesa de Qianguo. Tiveram quatro filhos, que foram grandes magistrados. O menos importante é ainda governador de Taiuã. Os quatro filhos se aliaram a grandes famílias, de modo que todos adquiriram fama e prosperidade ímpar.

Não é coisa sublime que uma moça de vida leviana mostre tanta virtude, não perdendo em grandeza a alguma heroína antiga? Como não se mostrar admirado?

Meu tio-avô, antigo governador de Jinzhou, assumiu um alto posto no ministério de finança, cargo que abandonou pra ser inspetor general de transporte sobre terra e água. Três vezes sucedeu a nosso herói em seus cargos e por isso conhecia tão bem sua história. No período de Zhenyuan (785–805), enquanto comentávamos com Li Gongzuo, de Longxi, os méritos das heroínas célebres, contei a história da duquesa de Qianguo, que escutou com muito interesse e me recomendou a escrever. Então molhei meu pincel na tinta e anotei esta história, pra que seja recordada sempre. Foi escrita na oitava lua do ano Yihai (795).

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Wushuang, a incomparável Xue Diao

Xue Diao nasceu em Hezhong, atual província de Xanxi, em 830, e morreu em 872. Foi membro da academia Imperial.

iu Zhen, homem da corte durante o reinado Jianzhong (780–783), tinha um sobrinho, Wang Xianke. Depois da morte de seu pai, Wang foi viver com sua mãe na família de seu tio. Liu tinha uma filha chamada Wushuang (A

Incomparável), alguns anos menor que Wang. As duas crianças brincavam sempre juntas, e a mulher de Liu costumava chamar carinhosamente Wang pelo diminutivo. Assim se passaram vários anos, nos quais Liu tratou da melhor forma a irmã viúva e particularmente o pequeno sobrinho.

Um dia a mãe de Wang adoeceu. Se sentindo perdida, chamou Liu e expressou sua última vontade:

— Tenho só um filho e bem sabes o quanto o quero. Minha grande pena é morrer sem o ver casado. Wushuang é uma garota tão bela quanto inteligente e a quero tanto. Não há que a casar noutra família. Te confio meu filho. Se consentires em que se casem meus olhos se fecharão sem lamento.

— Fiques tranqüila, irmã. Te recuperarás. Quanto ao resto não tens de te preocupar. Mas morreu, e Wang conduziu seu ataúde pra o sepultar em sua terra natal de

Xiangyang. Depois de três anos de luto pensou: — Aqui estou só no mundo. É preciso que tome mulher pra ter descendente.

Wushuang está em idade de se casar, e o tio, ainda que é agora um grande magistrado, não faltará a sua palavra.

Fez a mala e foi à capital. Então Liu, nomeado ministro e comissário de imposto, tinha uma casa senhorial de

magníficos salões, sempre freqüentada por uma multidão de altas personagens. Quando Wang se apresentou na casa, Liu o alojou na escola da família, em companhia de gente jovem. Continuou o tratando como seu sobrinho mas manteve silêncio sobre o assunto do matrimônio.

Aconteceu que Wang percebeu, através duma janela, Wushuang convertida numa beleza tão radiante que parecia uma deusa. Caiu loucamente enamorado e temeu que seu tio não consentisse no matrimônio. Então vendeu toda sua equipagem, obtendo alguns milhões em prata tilintante, e com esse dinheiro se dedicou a dar substancial gorjeta ao intendente de seu tio, a escondida, e continuou subornando todos os domésticos. Os convidava a beber e comer, com o fim que lhe permitissem livre passagem em todo o palácio. Tratou de se mostrar muito respeitoso com os primos que viviam sob o mesmo teto. No aniversário de sua tia a surpreendeu com o obséquio de preciosos adornos em jade e chifre de rinoceronte, maravilhosamente esculpidos. A tia ficou encantada. Dez dias depois lhe enviou uma velha como intermediária, pra pedir a mão de Wushuang. A tia disse:

— É justamente o que desejo. Sobre isso falaremos dentro de pouco. Pouco tempo mais tarde uma serva disse a Wang: — A patroa falou ao senhor sobre o casamento. Mas de acordo com a resposta do

patrão, um pouco evasiva, parece que há algo que não anda. Ao escutar essas palavras o jovem ficou consternado e passou a noite toda sem

dormir, tremendo ante o temor de que seu tio dissesse não. Apesar disso não cedeu no esforço de o agradar.

LL

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Um dia, bem cedo, Liu se dirigiu à corte e voltou bruscamente a galope, ofegando e suado. Somente atinou dizer:

— Cerrai bem o portão! Ninguém sabia o que acontecia e reinou a desordem em toda a casa. Momentos

depois pôde explicar: — As tropas de Jiniuã se sublevaram. Yao Lingiã entrou no salão Haniuã da corte

imperial com suas forças armadas! O imperador abandonou o palácio na porta do norte, e todos os ministros escaparam consigo. Foi o pensamento posto em minha mulher e minha filha que me trouxe, somente um momento, pra pôr em ordem minhas coisas. Trazei logo meu sobrinho, a quem lhe confio minha família e lhe concederei a mão de minha filha Wushuang!

Ao saber disso, surpreso e tonto de alegria, mostrou gratidão ao tio. E depois de ordenar atrelar 20 bestas e as carregar com ouro, prata e seda, Liu disse:

— Troques de roupa e leves estas coisas, saindo na porta Caiuã. Depois te instales num albergue bem retirado. Tua tia, Wushuang e eu sairemos na porta Quixia e, rodeando a muralha, nos reuniremos contigo.

Wang executou a ordem. Escondido num albergue fora da cidade, esperou anoitecer, mas ninguém chegou. Finalmente saiu pra buscar a família do tio e voltou a cavalo, cuma lanterna na mão, dando volta à cidade até a porta Quixia, que encontrou cerrada. Lá montavam guarda alguns soldados armados de lança. Wang desmontou e com discrição lhes dirigiu a palavra:

— O que está acontecendo na cidade? Depois acrescentou: — Saiu alguém hoje nesta porta? — O marechal Zhu se proclamou imperador. — Respondeu um guardião — Nesta

tarde um homem ricamente vestido, acompanhado de quatro ou cinco mulheres, tratou de passar nesta porta. As pessoas da rua o reconheceram e disseram que era o ministro Liu, comissário fiscal. Então o sargento não se atreveu a o deixar passar. Mais tarde, no anoitecer, chegou a cavalaria mandada em sua perseguição. Imediatamente o intimaram a voltar com sua família a entrar de volta no norte da cidade.

Wang desatou a chorar e voltou ao albergue. Na meia-noite as portas da cidade se abriram inesperadamente. Apareceram tantas tochas que tudo se iluminou como se fosse dia. Soldados armados de lança e espada anunciaram a saída do comissário da lei marcial, enviado atrás dos mandarins que fugiram da cidade, pra os executar sumariamente e onde os encontrasse. Wang ficou em pânico e escapou, abandonando toda a equipagem.

De volta a sua terra natal de Xiangyang, ficou três anos no campo. Finalmente, ao se anunciar que a capital fora recuperada e que a paz reinava novamente em todo o império, Wang voltou à capital, pra se informar sobre o que acontecera ao tio. Chegou ao sul do bairro de Xinchang e, ao deter seu cavalo, sem saber onde ir, viu alguém que o abordava sem deixar de reverenciar. Olhou esse homem com atenção e reconheceu o doméstico Saiongue, quem fazia muito tempo, depois de servir com seu pai, foi tomado por seu tio em prêmio a seus méritos. Então apertaram a mão com lágrima de alegria.

— Como estão meu tio e minha tia? — Vivem no bairro de Xinghua. Wang se sentiu imensamente feliz: — Imediatamente irei os ver. — Agora sou um liberto. Vivo em casa dum conhecido, que pôs um quarto a minha

disposição. E ganho a vida vendendo seda. Já é muito tarde. É preferível passar a noite em minha casa e amanhã poderemos ir juntos ver teus tios.

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O velho o conduziu a seu alojamento e lhe serviu uma excelente comida. Já na noite chegou a notícia que o ministro Liu fora condenado à pena capital junto com sua mulher, por colaborar com o inimigo, enquanto Wushuang terminava de entrar no palácio como serva.

Acabrunhado de dor, Wang lançou tal lamento que todos os vizinhos se compadeceram.

— Em toda a vastidão da Terra não me resta familiar. Já não sei aonde ir! Depois inquiriu: — Restam alguns velhos domésticos da casa? — Só uma velha serva chamada Caipingue, quem esteve a serviço de Wushuang.

Mas agora trabalha na casa de general Wang Suizhong, chefe da guarda imperial. — Ai! Já não tenho esperança de rever Wushuang! — Suspirou Wang — Se me

permitissem ver Caipingue, morreria sem lamentar. Como o general fora amigo de seu tio, se apresentou em seu palácio, se anunciando

como sobrinho. Depois de contar toda sua história pediu autorização pra resgatar Caipingue, mesmo a um preço alto. O general sentiu grande simpatia pelo jovem e emocionado ante tanta desventura, consentiu. Wang alugou uma casa e se instalou com Saiongue e Caipingue.

Um dia Saiongue disse: — Meu jovem amo, já és um homem feito. É preciso que consigas um posto oficial

em vez de permanecer confinado em tristeza. Wang se deixou persuadir e se dirigiu ao general, quem o recomendou a Li Qiyun,

governador da capital, que o fez nomear subgovernador do distrito de Fuping e intendente da posta de Changle.

Alguns meses depois se anunciou que um comissário do palácio imperial, conduzindo uma trintena de donzelas destinadas ao serviço do mausoléu, passaria a noite na posta de Changle com dez carroças de cortinas baixas. Disse Wang a Saiongue:

— Ouvi dizer que as donzelas do palácio são escolhidas entre as jovens de boas famílias. Me pergunto se Wushuang estará entre elas. Poderias verificar pra mim?

— Há milhares de donzelas no palácio. Por que Wushuang estaria entre elas? — Vás ver. Nunca se sabe! Então fez passar Saiongue num posto-avançado e com o pretexto de servir o chá o

introduziu no vigiado dormitório das donzelas. Lhe deu 3000 sapecas, com a seguinte instrução:

— Permaneças perto do aquecedor, sem deixar esse lugar. Assim que a descobrires venhas me avisar.

Se puseram de acordo e Saiongue se retirou. Sucedeu que as donzelas, mantidas sempre atrás dos cortinados, continuaram

invisíveis. Somente se lhes escutava a algaravia noturna. Quando, já bem avançada a noite, se apagaram todos os ruídos, Saiongue ficou ali, lavando as tigelas e atiçando o fogo, sem se atrever a ir se deitar. De repente escutou uma voz atrás do cortinado:

— Saiongue! Como sabes que estou aqui? E logo essa voz se diluiu num soluço afogado. Saiongue disse: — O jovem amo é agora diretor da posta. Hoje achou que estavas aqui e me

encarregou de te saudar. — Agora não me atrevo a dizer mais. Amanhã, depois de minha partida, encontrará

uma carta que deixarei sob um colchão púrpura no pavilhão do noroeste. O entregues a meu prometido.

Dito isso, ela saiu. De imediato se produziu um grande alvoroço atrás do cortinado. Alguém gritou:

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— Uma donzela está passando mal! O comissário de turno mandou trazerem rapidamente um fortificante. A doente era

Wushuang. Saiongue correu pra contar tudo a Wang, quem, perturbado, perguntou: — O que fazer prà ver? — Nesse momento a ponte de Wei está em reforma. —Saiongue teve uma idéia —

Te faças passar pelo comissário dos trabalhos da ponte. Ao passar a carroça poderás ficar bem perto dela. Se Wushuang te reconhecer abrirei a cortina e a verás.

Wang seguiu o conselho. Quando chegou a terceira carroça a cortina se entreabriu em sua frente. Deu uma olhada dentro e ali estava Wushuang. Cheio de dó, Wang sentiu se partir o coração. Ao mesmo tempo Saiongue lhe entregou a carta encontrada sob o colchão do pavilhão. Eram cinco folhas de papel estampado, cobertas de caracteres que só podiam ser de Wushuang. Com termos queixosos descrevia todas suas misérias. Terminada essa leitura, Wang chorou amargamente, pensando que não veria mais a amada. Mas ao terminar a carta ela dizia no pós-escrito:

— Ouvi dizer que em Fuping certo velho fiscal chamado Gu Ya é um homem de grande coração. Podes pedir ajuda?

Wang apresentou uma solicitação a seu superior, pedindo licença pra abandonar seu cargo na posta e retornar a sua função de subgovernador de Fuping. Antes teve o cuidado de se informar sobre o endereço do velho fiscal Gu, quem vivia numa aldeia. Depois foi o visitar em sua casa. Lhe dedicou freqüentes visitas e fez todo o possível pra ajudar, o enchendo de ricos presentes: Seda bordada, jade e pedra preciosa. No transcurso dum ano inteiro nada disse de sua intenção. Ao finalizar sua função pediu o retiro e permaneceu nessa região.

Um dia Gu foi o ver em sua casa e disse: — Sou apenas um rude soldado e, além disso, velho. Em que te posso servir? Como

me prodigaste benefício, penso que certamente pode ter algo pra pedir a mim. Tenho bom coração e pra testemunhar minha gratidão por tua grande bondade, aqui me tens disposto a servir no que queiras pedir. Mesmo que isso me custe a vida!

Deixando correr lágrima, Wang fez uma profunda saudação e contou toda a verdade. Depois de escutar, Gu levantou várias vezes os braços ao céu e exclamou:

— Isso é muito difícil! De qualquer maneira tratarei de te ajudar, mas não se pode esperar que tenhamos êxito dum dia a outro.

Wang fez outra reverência: — O que importa o tempo a esperar se a posso ver antes de lançar meu último

suspiro? Se passaram seis meses sem novidade: Um dia alguém bateu a porta e entregou a

nosso herói uma mensagem de Gu: — O mensageiro que enviei à montanha Mao está de volta. Em conseqüência te

espero em casa. Wang foi até lá a toda brida. Ao o ver Gu nada disse. Quando Wang quis falar sobre

seu mensageiro, respondeu: — O matei. Tomes chá se queres. Muito avançada a noite, perguntou a Wang: — Em tua casa tem uma serva que conhece Wushuang? Wang respondeu que Caipingue a conhecia. Então Gu a fez vir imediatamente. A

olhou um instante e disse, sorridente e satisfeito: — A retenho em empréstimo durante quatro ou cinco dias. Agora deves apenas

voltar a tua casa. Poucos dias depois correu o rumor que um alto magistrado se apresentara no distrito

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pra presidir a execução duma donzela do palácio. Vivamente surpreso, Wang enviou Saiongue pra saber quem seria executada. Era Wushuang. Ao saber dessa notícia, Wang gritou entre soluços:

— Contei com a ajuda de Gu. E agora tudo terminou! Verteu lágrima e lançou suspiro sem fim. Nessa noite alguém chamou à porta com golpes precipitados. Era Gu, quem entrou

trazendo uma maca: — Eis Wushuang! Parece morta, mas seu coração ainda bate. Amanhã recuperará os

sentidos e poderás lhe dar algum fortificante. É necessário manter silêncio. Wang a levou a dentro da casa e passou toda a noite a cuidando sozinho. Na manhã o

calor voltou a se aninhar no corpo dela e abriu os olhos. À vista de Wang lançou um grito e novamente caiu desmaiada. Gu disse a Wang:

— Agora creio que te devolvi todos os favores. Me contaram que um sacerdote taoísta da montanha Mao tem uma estranha droga: Quem a toma parece morrer de imediato, mas três dias depois volta à vida. Então enviei um mensageiro pra pedir essa droga e recebi uma dose. Ontem, conforme meu plano, dei esta poção a Wushuang com a ordem de suicidar, como aliada do partido rebelde. Ao chegar ao mausoléu me apresentei como parente e resgatei seu cadáver com o pagamento de 100 peças de seda. Ao longo do caminho azeitei a mão dos funcionários e guardiões pra não abrirem a boca. Não há perigo de ser descoberto. Pra tua maior tranqüilidade, também suicidarei. Quanto a vós é preferível não ficar aqui. Diante da porta há dez carregadores de equipagem e cinco cavalos com 200 peças de seda. Partas com Wushuang antes do amanhecer. Trocando de nome vos refugiai longe daqui, pra escapar a toda perseguição.

Ao terminar de falar desembainhou e levantou sua faca. Wang saltou pra deter seu braço, mas em vão: Cum golpe se separou a cabeça do tronco. Amortalharam corpo e cabeça, e antes de romper a alvorada os amantes iniciaram a marcha. Atravessaram Sichuã, baixaram as gargantas do rio Changjiangue, pra finalmente parar em Jianglin. Quando comprovaram que nenhuma notícia alarmante chegava da capital, Wang voltou com sua mulher a sua casa de campo de Xiangyang. Ali ambos viveram juntos até a velhice, rodeados de numerosos filhos.

Ai! A vida humana está cheia de vicissitude, encontro e separação. Mas nada é comparável a esta história, que, conforme minha opinião, ficará como única no mundo. Enquanto Wushuang caía na escravidão numa época turbulenta, Wang se manteve fiel, até desafiando a morte, e finalmente conseguiu a liberar, graças às estranhas medidas tomadas pelo valoroso Gu. Depois de superar tanta dificuldade e errar em toda parte como fugitivo, finalmente o jovem casal voltou ao país natal, vivendo 50 anos de feliz vida conjugal.

Não é uma bela história?

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O esbanjador e o alquimista Li Fuião

Li Fuião viveu no início do século 9 e deixou cinco volumes de contos e anedotas

u Zichun viveu no final da dinastia Zhou do Norte (557–581) e no começo da dinastia Sui (581–617). Na juventude esbanjou sem medida e nunca quis se preocupar com seu interesse. Essencialmente extravagante, bebedor e libertino,

em pouco tempo dissipou toda sua fortuna. Então se dirigiu aos familiares e conhecidos, mas todos o rechaçaram por sua notória vagabundagem. Num dia de inverno, esfarrapado e de barriga vazia, vagabundeava na capital, sem ter onde cravar o dente, e o crepúsculo o surpreendeu, o deixando sem saber o que fazer. Parou na porta Ocidental do mercado do Leste, tremendo de frio e fome. Elevou a vista ao céu e começou suspirar, lamentando.

Se aproximou um velho apoiado numa bengala. — Por que lamentas? Então Du contou tudo, praguejando contra a indiferença dos familiares e amigos. O

rosto expressando grande cólera. — Quanto dinheiro necessitas pra solucionar a situação? — Posso me arranjar com 30 mil ou 50 mil sapecas. — Isso é nada. Peças outra quantidade. — 100 mil. — Acho insuficiente. — 1 milhão. — Pouco. — 3 milhões. — Assim está melhor. Da manga retirou um pouco de dinheiro e disse: — Aqui tens presta noite. Amanhã no meio-dia te esperarei no hotel dos Persas.

Sejas pontual. No dia seguinte chegou ao encontro com pontualidade. O velho entregou os 3

milhões e partiu sem dizer o nome. Diante dessa súbita riqueza, o gosto ao desperdício voltou a se acender no coração, e

se achou garantido até sempre contra a miséria. Começou a comprar cavalo soberbo e traje suntuoso, dedicando todo o tempo a beber em companhia de alegres malandros, oferecer concerto, cantar e dançar no bairro das cortesãs. Nunca pensou que devia administrar a fortuna. Dois anos depois a bolsa começou a se esgotar pouco a pouco. Carroça, cavalo, traje: Todo esse luxo foi trocado por bem cada vez mais modesto. Passou do cavalo ao asno e do asno à andarilho. Nosso esbanjador fez isso tão bem que pouco tempo depois estava outra vez na rua.

De novo sem saber o que fazer, começou a gemer diante da porta do mercado. Imediatamente apareceu o velho, quem o tomou na mão e disse:

— O quê aconteceu? Outra vez reduzido à última miséria! Mas te ajudarei. Quanto precisas?

Se sentia envergonhado demais pra se atrever a responder, mas o velho o apressou tanto que, muito confuso, aceitou a oferta de ajuda. Então o velho disse:

— Amanhã, no meio-dia, vás ao mesmo lugar que na outra vez. Foi até lá, envergonhado, e recebeu 10 milhões. Antes de tomar essa quantia adotou a

firme resolução de se atirar de cabeça no mundo mercantil e deixar atrás em riqueza

DD

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todos os cresos14 do mundo. Mas com o dinheiro na mão, o coração falou doutro modo e voltou a cair na vida de prazer. No fim de três ou quatro anos, em suma, voltou a ficar mais pobre que nunca. Reencontrou o velho no mesmo lugar. Acabrunhado de vergonha, se voltou sobre seus passos, cobrindo o rosto com as mãos. O velho o deteve, lhe tomando o braço:

— Ó! És desafortunado pro negócio! Nessa vez entregou a soma de 30 milhões e disse: — Se isto não te salvar da má-sorte, então és realmente incurável. Pensou: — Levei uma vida de libertino e esbanjei toda minha riqueza. Ninguém entre meus

ricos familiares me estendeu a mão. Só esse velho me ofereceu dinheiro três vezes. Como demonstrarei gratidão?

Então propôs: — Com esta soma poderei fazer muito bem no mundo. Cuidarei que não falte abrigo

e comida à viúva e ao órfão e assim espero ser moralmente perdoado. — Era isso que esperava de ti. Quando estiver arranjado teu negócio venhas me ver

no ano que vem, no dia 15 da sétima lua, à sombra dos juníperos gêmeos, diante do templo taoísta.

Como a maioria das viúvas e os órfãos de suas dívidas estavam ao sul da região Huai, fundou sua obra em Yangzhou. Ali comprou 100ha de bons arrozais, edificou uma grande casa na aldeia e construiu mais de cem asilos nas estradas principais, onde foram acolhidos as viúvas e os órfãos. Gestou matrimônio pra seus sobrinhos e sobrinhas, e reuniu no cemitério ancestral a cinza dos membros de sua família enterrados noutros lugares. Se mostrou reconhecido a seus benfeitores quanto implacável aos velhos inimigos. Liquidado o negócio, no dia marcado foi ao templo.

Encontrou o velho cantando à sombra dos dois juníperos e juntos subiram ao pico Yuntai, da montanha Hua. Após percorrer 15km chegaram diante dum edifício imponente, que tinha algo de sobrenatural. Encima planavam nuvens cor de arco-íris e revoluteavam as fênix e as cegonhas. No alto da sala central havia um forno de alquimista com mais de 3m de altura, exalando chamas violetas, cujo resplendor atravessava as janelas. Nove virgens de jade rodeavam o forno, ostentando um dragão na frente e um tigre branco atrás.

Era a hora do crepúsculo. O velho despiu o traje de civil e apareceu com os atributos de sacerdote taoísta, capa vermelha e chapéu amarelo. Ofereceu ao noviço três pílulas de seixos brancos e um torrão de vinho, mandando engolir rapidamente. Depois o fez se sentar sobre uma pele de tigre, estendida no costado oeste e frente ao oriente. Então fez uma recomendação especial:

— Nenhuma palavra. Ainda que sejam deuses, demônios, vampiros, bestas ferozes, horrores do Inferno, familiares acorrentados e torturados com mil dores. Tudo é ilusão. É preciso não se mover nem falar e permanecer tranqüilo e firme. Te lembres, em toda circunstância, o que acabei de dizer.

E se retirou. Quando Du olhou o pátio só conseguiu ver um grande cântaro cheio de água.

Mal desapareceu o sacerdote, surgiram milhares de cavaleiros e carros de guerra, eriçados de lanças e bandeiras, enchendo vales e montanhas cum clamor que tremia o céu e a terra. Seu generalíssimo, de mais de 3m de altura, estava, como sua cavalgadura, encouraçado com resplandecente armadura dourada. À cabeça de centenas de guardas com arcos tensos e espadas nuas, o gigante avançou na sala, vociferando:

14 Creso foi o último rei da Lídia (-560–-546), famoso pela riqueza, atribuída à exploração da areia aurífera do Rio Pactolo. http://www.portalturquia.com/personagens/rei-creso/ Nota do digitalizador-tradutor

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— Quem és? Como te atreves a me enfrentar? E os guerreiros o rodearam, brandindo arma, o pressionando a dizer seu nome e a

razão de sua presença. Mas não deixou escapar sílaba. Enfurecidos por seu silêncio, começaram a grunhir como uma tormenta:

— O que estamos esperando? Arranquemos os olhos e cortemos a cabeça! Como Du não respondeu, o chefe se enfureceu até a loucura mas foi embora. Repentinamente apareceram milhares de tigres, dragões, grifos, leões, víboras,

rugindo, assobiando, se curvando sobre ele, tentando o esmagar e devorar. Mas Du permaneceu imperturbável e tudo isso se desvaneceu.

De repente começou a cair uma chuva torrencial. Os raios rasgavam a treva, turbilhões de chamas se elevavam a todo lado enquanto os relâmpagos açoitavam o céu de tal modo que era impossível abrir os olhos. O pátio não tardou em ficar submerso a mais de 3m. Esse volume, com a rapidez do relâmpago e o bramido do trovão, se derramou irresistivelmente como uma montanha em erupção, como um rio transbordando num piscar de olhos, e ruiu a seus pés. Mas Du permaneceu sentado, impassível, e o dilúvio logo desapareceu.

Depois voltou o gigante cum carcereiro com cabeça de touro e outros horríveis demônios do Inferno. Puseram um grande caldeirão diante de Du, enquanto o rodeavam ameaçadoras lanças, facas e tridentes. Exigiu o chefe:

— Se disseres teu nome te perdoaremos a vida. Do contrário te atravessaremos o coração e te atiraremos ao caldeirão.

Como sempre, não respondeu. Então trouxeram sua mulher, a lançando ao pé da escadaria. A apontando com o

dedo, disseram: — Se disseres teu nome a deixaremos livre. Tampouco houve resposta. Imediatamente flagelaram a mulher até a deixar coberta de sangue, a flecharam,

arrancando pedaços de carne, a queimaram com carvão ardente. Sem agüentar tanto sofrimento, a mulher suplicou, chorando e gritando:

— Sou uma mulher muito simples e indigna de teu amor mas te servi mais de dez anos. Aqui estou presa pelos demônios e condenada a sofrer estes suplícios insuportáveis. Não me atreveria a pedir que por mim te ajoelhes a solicitar meu perdão. Mas uma só palavra que pronuncies é suficiente pra que me concedam a vida. Todo ser tem um coração. Será possível que me negues a graça de dizer uma palavra?

No pátio, inundada de lágrima, continuou o insultando e maldiçoando. Mas Du não prestou atenção. Disse o chefe:

— Então crês que não me atreverei à martirizar? Ordenou a seus demônios trazer uma faca bem afiada. A despedaçaram centímetro a

centímetro, começando nos pés. A mulher começou a se lamentar mais forte que antes. Du permaneceu impassível. Disse o chefe:

— Este bandido é um bruxo experiente. Não podemos o deixar sair com vida! E ordenou o decapitarem. Com a cabeça separada do tronco, a alma de Du foi conduzida imediatamente ao rei

dos infernos, que perguntou: — És o bruxo do pico Yuntai? O atirai ao Inferno! Então lhe fizeram sofrer toda classe de suplício: Despejaram bronze fundido na

garganta, foi golpeado com barra de ferro, socado num pilão, triturado num moinho, atirado a um fosso em chama, fervido num caldeirão, obrigado a trepar numa montanha de faca, a atravessar um bosque de espada. Mas, recordando sempre as palavras do sacerdote, teve a coragem de suportar todos esses sofrimentos sem deixar escapar

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suspiro. Quando os carcereiros anunciaram que as provas de torturas terminaram, o rei disse:

— Este homem é um canalha afeminado. Em vez do reencarnar em forma de homem será melhor o converter em mulher, na família do subgovernador Wang Qin do distrito de Shanfu em Songzhou.

Assim Du renasceu num corpo de mulher, que na infância foi muito doentia. Desde pequena teve de suportar as picadas de acupuntura e se encher com amargos elixires. Muitas vezes caiu da cama ou no aquecedor. Apesar de todos os sofrimentos, a menina nunca deixou escapar suspiro. Ao crescer se converteu numa moça bela e encantadora mas jamais pronunciou palavra. Sua família a considerou muda de nascimento. A miúdo insultada e humilhada por alguns de seus familiares, nunca replicou ante ofensa.

Lu Gui, um jovem laureado, comovido por sua beleza, a pediu em matrimônio por intermédio dum casamenteiro. A princípio a família declinou a oferta por causa do mutismo da donzela. Lu disse:

— Não há necessidade de falar, sempre que seja uma boa esposa. Assim dará uma excelente lição às que têm a língua longa demais.

Então a família aceitou seu pedido e Lu a desposou com grande pompa. Durante muitos anos se amaram ardentemente. Tiveram um filho e esse menino já tinha 2 anos e estava dotado de extraordinária inteligência.

Lu tomou o menino nos braços e falou a sua mulher. Mas ela se manteve em silêncio. Ele tentou todos os meios prà fazer falar mas, como sempre, não obteve resposta. De repente, louco de cólera, exclamou:

— Faz muito tempo, o ministro Jia foi desprezado por sua mulher, quem jamais se dignou sorrir ao marido. Mas na caça ao faisão se revelou um excelente arqueiro e ela então se arrependeu por o menosprezar. Quanto a mim, não sou tão feio quanto Jia e meu talento literário vale mais que a arte de caçar faisão. No entanto desdenhas responder quando falo a ti. Pra quê conservar o menino, sendo que o marido é tão desprezado por sua mulher?

Dito isso, pegou o menino nos pés, e bateu a cabeça como se fosse uma pedra. Cum golpe a cabeça se estraçalhou e o sangue salpicou todo o aposento. Du, com o coração dominado pelo amor maternal, olvidou subitamente sua promessa e lançou um grito de pavor:

— Ai! Ainda com o grito nos lábios, Du se encontrou de novo sentado no mesmo lugar,

diante do sacerdote. Era antes do amanhecer. Do forno do alquimista surgiram chamas purpúreas, que lamberam o teto e se elevaram ao céu. Toda a casa foi pasto do fogo e reduzida a cinza. O sacerdote gritou:

— És um estúpido. Eis toda minha obra destruída! Enquanto dizia isso pegou Du no cabelo e o mergulhou no cântaro cheio de água.

Então o fogo se apagou. O sacerdote disse: — Enquanto se tratou de alegria, dor, cólera, pavor, ódio, desejo, teu coração soube

ser dono de si. Somente o amor foi a prova que foste incapaz de superar. Se não gritasses o elixir seria um sucesso e já serias um imortal. Como é difícil encontrar um homem que possa alcançar a divindade! Posso refazer meu elixir, mas quanto a ti, já caíste novamente no mundo terreno. Adeus e boa sorte!

Assim apontou o caminho de retorno. Du quis subir mais uma vez à plataforma da sala central pra dar uma última olhada.

O forno fora demolido. Dentro se via uma barra de ferro, da espessura dum braço e alguns metros de largura. O sacerdote despiu a túnica e começou a talhar essa barra cuma faca.

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Voltando ao mundo, envergonhado por decepcionar o velho, jurou que faria tudo o possível pra reparar a falta. Mas quando retornou, no pico Yuntai encontrou ninguém. Então voltou até casa com o coração cheio de remorso.

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O escravo cunlum15 Pei Xing

Pei Xing viveu na segunda metade do século 9. Escreveu três volumes de conto, onde os fantasmas e as fadas desempenham o papel mais importante.

o reinado de Dali (766–779) havia um jovem chamado Cui, oficial da guarda imperial da ordem de Mil Bois. Seu pai, famoso magistrado, estava em boa relação cum ministro, personagem ilustre de seu século. Um dia o pai o enviou

a visitar o ministro, pra se informar sobre o estado de saúde. Cui era um belo rapaz, de rosto puro como o jade. Sua modéstia de caráter se unia a um jeito cavalheiresco e fineza nas palavras. O ministro ordenou aos serviçais levantar o cortinado e introduzir o jovem em seu dormitório. Cui, caído de joelho, apresentou a mensagem paterna. O ministro se interessou muito pelo jovem e o fez se sentar pra conversar amistosamente.

Ali estavam três jovens favoritas, todas de beleza resplandecente, que cortaram em fatia os pêssegos corados, encheram com eles as tigelas de ouro, cobriram a fruta com creme açucarado e a serviram. O ministro disse a uma das servidoras, vestida de musselina vermelha, pra oferecesse uma tigela ao jovem. Mas ele, intimidado pela presença das bonitas moças, não se atrevia a comer. Então o ministro ordenou à formosa de vestido vermelho lhe servir cuma colher, o que obrigou o jovem a comer um pêssego, e a moça lhe sorriu com gesto pleno de picardia.

Quando Cui se despediu, o ministro disse: — Quando tiveres tempo venhas me ver. Entre nós não deve haver cerimônia. Depois ordenou à moça de vestido vermelho o acompanhar até a porta. Quando Cui,

antes de sair da casa, se voltou pra a ver em última vez, ela fez um sinal lhe mostrando três dedos levantados, e girando três vezes a palma da mão indicou um espelhinho que levava no seio:

— Te lembres disso. E não disse mais. Ao voltar a sua casa, Cui informou ao pai o que disse o ministro. Depois de retornar

a seu gabinete de estudo caiu em estado de êxtase e dormência. Sempre taciturno e silencioso, submerso em seus sonhos, permaneceu dia e noite sem pensar em se alimentar, não fazendo mais que cantar o poema:

No monte dos Imortais vi uma deidade resplandecente seu olhar como uma estrela fugaz A lua deslizava numa porta vermelha Sobre sua beleza de neve espalhou sua tristeza

Ao redor ninguém compreendia o que lhe acontecia. Sucedeu que em sua casa havia um escravo cunlum, chamado Mole, quem após o observar detidamente, perguntou:

— O que acontece em tua alma, que te atormenta sem cessar? Por que não confias em teu velho escravo?

— Gente como tu pode compreender e se imiscuir em coisas de amor? — Confies a mim tua pena e trarei uma solução. Tenho certeza de triunfar mais cedo

ou mais tarde. Surpreso por esse tom de autoconfiança, Cui lhe confiou seu segredo.

15 Cunlum: Sob a dinastia Tangue os escravos trazidos dos mares do sul eram comumente chamados cunlum. Nota do tradutor

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Só se ouviam os suspiros da jovem, quem permanecia sentada como esperando alguém

— Se trata dalgo bem simples. Por que não contaste antes, em vez de te desconsolar por nada?

Quando Cui contou os sinais enigmáticos que lhe dirigiu a jovem, Mole explicou: — Nada é mais fácil de adivinhar! Três dedos levantados quer dizer que na casa do

ministro há 10 departamentos pra alojar as cantoras e que ela habita o terceiro

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apartamento. Girando três vezes a palma da mão ela sinalizou 15 dedos, pra indicar o 15 do mês. E o espelho sobre seu seio é a plena lua na noite do 15, data do encontro.

Transportado de alegria, Cui perguntou: — E há um meio de cumprir meu desejo? — Amanhã é 15. —Mole, cum sorriso — Me dês duas peças de seda azul escuro pra

fazer uma malha. Na casa do ministro há um pitibul terrível,16 que guarda as portas da residência das cantoras, de tal modo que nenhum forasteiro pode entrar ali, pois o cão não tardaria a o devorar. Se trata dum cão da famosa raça de Haizhou, vigilante como Argos e feroz como um tigre. No mundo inteiro não há algo que possa consigo, a não ser teu velho escravo. Nesta noite o deixarei fora de combate, pra que vás ao encontro.

Pra o encorajar, Cui ofereceu vinho e carne. Até ameia-noite o escravo saiu cum martelo, portando uma corrente. Em menos tempo que o necessário prum jantar, voltou e anunciou:

— O cão morreu. Já não há obstáculo diante de nós. Na noite seguinte, justo antes de meia-noite, fez Cui vestir uma malha azul escuro. O

escravo o carregou nas costas, franqueou dez muralhas, penetrou na residência das cantoras, pra finalmente parar diante da terceira porta. Através dos entreabertos batentes decorados uma luminária cintilava foscamente. Só se ouviam os suspiros da jovem, quem permanecia sentada como esperando alguém. Terminava de tirar os brincos de esmeralda e o ruge do rosto. Com o coração transbordando de tristeza, cantarolava um poema:

Penando seu amor, ó, oropêndula17 em pranto! Furtivamente se despoja de suas jóias sob as flores O azur18 sempre deserto, a espera sempre vã Em sua flauta de jade suspira sua pena

Os guardiães dormiam como pedra e não se ouvia ruído. Cui levantou o cortinado e entrou. Durante um instante a moça permaneceu como paralisada. Depois saltou do leito e lhe tomou a mão:

— Sabia que um jovem inteligente como tu compreenderia os sinais de minha mão. Mas por meio de que magia pudeste chegar até aqui?

Cui contou o plano de seu escravo Mole e como foi transportado nas costas dele. — Onde está teu Mole? — Ali, atrás da porta. Então ela pediu que o velho entrasse, e numa tigela de ouro lhe ofereceu vinho pra

beber. Contou a Cui: — Pertenço a uma rica família que vive perto da fronteira norte. Meu atual amo, que

então comandava lá o exército de fronteira, me obrigou a virar sua concubina. Tenho vergonha de mim por não saber me matar e aceitar viver nesta desgraça. Com o rosto pintado de branco e vermelho, conservo sempre um coração triste. A comida servida com palito de jade, o perfume que sempre flui dos incensórios de ouro, os vestidos de seda que se alinhavavam atrás dos biombos de nácar e as pérolas e esmeraldas das favoritas que dormem sob as colchas bordadas me repugnam, pois me sinto acorrentada. Sendo que teu bom servidor tem força sobrenatural, por que não me livras de minha prisão? Se conquistar minha liberdade poderei morrer sem pena e seria feliz de servir a

16 No original castelhano dogo (perro dogo), que é o pitibul. Nota do digitalizador-tradutor 17 Oropêndula: Nome comum dum pássaro europeu (Oriolus oriolus), do tamanho dum sabiá e vivamente colorido, em Portugal chamado papa-figo. http://www.dicio.com.br/uropendula/ Nota do digitalizador-tradutor 18 Azur: A única definição para azur, que não seja arcaísmo de azul, em http://lema.rae.es/drae/?val=azur, é (adjetivo, heráldica) Dito duma cor heráldica: Que em pintura se representa com o azul escuro, e na gravura, com linhas horizontais muito espessas. O termo pode se referir à casa senhorial ou pode ser um erro de tradução. Nota do digitalizador-tradutor

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ti como escrava. O que dizes?, senhor. Cui se manteve calado e sumamente pálido. Foi Mole quem respondeu: — Senhora, assim será se assim queres, pois nada é mais fácil. A jovem se mostrou encantada. Mole pediu que pra começar lhe deixasse transportar

sua equipagem. Depois de três idas e voltas, disse: — Tenho medo que logo amanheça. Então pôs os dois nas costas e franqueou uma dezena de altas muralhas, sem que

fosse alertado algum guardião da casa do ministro. Chegando à casa esconderam a jovem no gabinete de estudo.

No dia seguinte, na casa do ministro, se comprovou a desaparição da jovem e se encontrou o cão morto. Alarmado, o ministro exclamou:

— As portas e muralhas de minha casa estão sempre muito bem trancadas e melhor vigiadas. Quem os franqueara sem deixar rastro, como se voasse, deve ser um herói enviado pra reparar injustiça.19 Melhor não deixar vazar a notícia, pra evitar maior mal.

A jovem permanecia escondida em casa de Cui havia já dois anos, quando na estação das flores saiu, num bom dia, pra passear em carro no parque de Qujiang. Um homem da casa do ministro a viu, por acaso, e a denunciou a seu amo. Ao escutar essa novidade, surpreso, o ministro mandou chamar Cui e o interrogou. Dominado pelo medo, não se atrevendo a guardar o segredo, Cui contou toda a história, confessando que foi seu escravo Mole quem levou a ambos em suas costas. O ministro opinou:

— A culpa é da moça. Sendo que está a teu serviço há tanto tempo, já não corresponde fazer justiça. Mas é preciso me desembaraçar de teu escravo, por constituir um perigo público.

Então enviou 50 de seus guardas, armados até os dentes, pra cercar a casa de Cui, com a ordem de capturar o escravo cunlum. A tudo isso, com punhal em punho, Mole franqueou as altas muralhas como se tivesse as velozes asas dum gavião. Recebeu uma chuva de flecha mas não foi atingido. Num piscar de olhos se perdeu de vista.

Grande pânico se produziu na casa de Cui. Dominado pelo pavor, o ministro se arrependeu de sua ordem contra o escravo. No transcurso dum ano se rodeava todas as noites cum grande número de domésticos armados de espada e balestra.

Mais de dez anos depois alguém da casa de Cui contou que vira Mole vendendo remédio no mercado de Luoyang. Tinha o aspecto mais jovem e galhardo que nunca.

19 No original castelhano Enderezar entuerto é uma frase utilizada pra se referir à possibilidade de consertar uma insensatez ou reparar um erro. Um entuerto se considera uma injustiça, dano ou agravo que se causa a alguém. http://digital.nuestrodiario.com/ Nota do digitalizador-tradutor

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O homem de barba crespa Du Guangting

Du Guangting nasceu em Chuzhou, atual província de Zhejiang, em 850, e morreu com 82 anos. Estudou o taoísmo na montanha Wutai, província de

Xanxi, e passou grande parte da vida numa ermida da montanha Qingcheng, província de Sichuã. Suposto autor de numerosos livros, mas somente

chegaram a nós alguns de seus contos.

nquanto o imperador Yang da dinastia Sui (605–618) viajava a Yangzhou, o chanceler Yang Su recebeu ordem de vigiar a capital do oeste. Soberbo e arrogante, Yang Su, que nessa época turbulenta se considerava incomparável, o

homem mais venerável e o mais poderoso do império, levava vida fastuosa e não se mantinha dentro do limite conveniente prum vassalo. Cada vez que recebia um grande magistrado ou visita prestigiosa, se mantinha insolentemente deitado no leito, sendo levantado por suas belas favoritas e sempre rodeado por uma multidão de servente. Nesse aspecto já usurpara as prerrogativas do imperador. No fim da vida ficou pior, sem se preocupar em cumprir o respeito devido ao soberano nem velar prà salvação do império diante dum perigo iminente.

Certo dia, Li Jingue, que mais tarde seria duque de Wei, mas que então era um simples cidadão, pediu uma audiência a fim de apresentar um hábil plano estratégico político. Yang Su, como sempre, o recebeu deitado em seu leito. Li se aproximou, saudou e disse:

— O império está transtornado. Em toda parte os rebeldes se sublevam pra tomar o poder. Como chanceler da casa imperial precisas te rodear dos homens mais valorosos. Por isso é inconveniente receber as visitas deitado.

Yang Su reagiu, e compondo um gesto de seriedade, se recostou e pediu desculpa. Conversou com o visitante, se mostrou encantado e aceitou a proposta antes de levantar a audiência.

Enquanto Li falava com tanto ardor, uma das favoritas, beleza deslumbrante que se mantinha em primeira fila cuma escova vermelha na mão, o observava detidamente. Quando ele se retirou, a jovem saiu à galeria exterior e disse a um oficial:

— Perguntes, a quem se retira, nome e endereço. Li respondeu ao pedido do oficial. Ela agradeceu cum gesto e entrou ao palácio. Li voltou ao hotel nessa noite. Pouco antes do amanhecer, de repente escutou que

batiam discretamente na porta. Abriu e encontrou uma pessoa encapuçada, vestida de púrpura, portando uma bengala e uma bolsa e se apresentando assim:

— Sou a senhorita da escova vermelha, do palácio do chanceler Yang. Logo pediu pra entrar. Quando ela tirou o abrigo e o capuz, ele ficou diante duma

beleza de cerca de 19 anos, de traços puríssimos e suntuosamente vestida, que fez uma profunda reverência. Li, surpreso, devolveu a saudação.

— Há muito tempo estou a serviço do chanceler. Vi muita gente chegar de todo o império, mas nunca alguém como tu. A vinha não pode desabrochar sem tratador e sempre tenta se agarrar a uma grande árvore. É por isso que vim.

— Chanceler Yang é o homem mais poderoso na capital. Como explicar o que terminaste de dizer?

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O esplendor do aspecto e a serenidade do olhar resplandeciam ao redor como o sopro duma brisa

acariciante

— É apenas um moribundo no último estertor. Muitas jovens já fugiram de sua casa, sabendo que já nada se pode esperar dele, que nada fez pra resgatar as servidoras e favoritas que o abandonaram. Te tranqüilizes, pois pensei bem antes de dar este passo.

Interrogada sobre seu nome e nível, respondeu que se chamava Chang e que era a maior de sua família. Sua cútis, atavios, palavras e gestos, eram verdadeiramente duma deusa. Diante dessa conquista inesperada, Li, transbordante de alegria e dominado pelo

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temor, se sentia presa de mil inquietudes. Olhos indiscretos tentavam, sem cessar, espiar atrás da porta, e alguns dias depois a polícia recebeu ordem de procurar a jovem, se bem se pediu isso com pouco ardor. Então, com a jovem disfarçada de homem, Li montou em seu cavalo e, abandonando a casa, foram a galope em direção a Taiuã.

Na metade do caminho pararam num albergue de Lingshi. O leito já preparado e a carne chiando no fogo, Chang, o longo cabelo caído até o chão, se penteava perto da cama, enquanto Li limpava o cavalo diante da porta. De repente apareceu um homem de talhe mediano, com barba ruiva e crespa, montado sobre um chocho burrico. Atirando a bolsa de couro a perto do fogão, se meteu na cama e, se apoiando na almofada, viu como Chang se penteava. Vivamente indignado, Li, indeciso, continuou limpando seu cavalo. Chang examinou atentamente o rosto do intruso. Cuma mão ela recolheu sua cabeleira e com a outra, atrás das costas, fez sinal pra Li conter a cólera. Com rapidez ela terminou de se pentear. Depois avançou amavelmente até o intruso e perguntou seu nome. Sempre recostado sobre o leito, ele respondeu se chamar Chang. Ela disse:

— Também me chamo Chang. Então pode ser que eu seja tua irmãzinha. Logo fez uma profunda reverência e perguntou seu nível de família. O outro

respondeu que era o terceiro e perguntou o mesmo. — A maior. Então, muito alegremente, ele exclamou: — Me sinto muito feliz de encontrar aqui a maior de minhas irmãzinhas. De longe ela chamou Li: — Venhas conhecer meu irmão maior, o terceiro. Li foi o saudar e pediu se sentar perto do fogo. O recém chegado perguntou: — O que há na panela? — Cordeiro. Já deve estar cozido. — Estou com fome. — Disse o homem de barba crespa. E enquanto Li foi comprar pão o recém chegado retirou um punhal da cintura e

destrinchou a carne. Comeram juntos. Terminada a ceia, o homem de barba crespa cortou em pedacinhos o resto do cordeiro e deu de comer ao burrico. Tudo foi feito num instante. Disse a Li:

— Conforme tua vestimenta tens aspecto pobre. Como, com tal situação, conquistaste uma mulher tão maravilhosa?

— Aparento ser pobre mas meu espírito é muito elevado. A ninguém contaria, mas a ti não guardarei segredo.

E contou toda a história. — E agora aonde ireis? — Nos refugiaremos em Taiuã. — Então não me procuram! Tende vinho? Li disse que a oeste do albergue há uma taberna e ali foi a comprar uma jarra de

vinho. Enquanto bebiam, o outro disse: — Em teu aspecto e gesto vejo bem que és realmente um homem de honra. Conheces

um homem valente em Taiuã? — Conheço ali um homem que considero sublime, diante de quem os outros só

podem aspirar ser ajudantes ou capitães. — Como se chama? — Igual a mim! — Que idade tem? — Apenas 20 anos. — O que faz agora? — É o filho do general da província.

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— É possível que seja ele. Mas é preciso que eu o veja pra ter certeza. Podes me o apresentar?

— Tenho um amigo que se chama Liu Wenjing, que está em muito boa relação com ele. Por seu intermédio concertarei um encontro. Mas por que desejas o conhecer?

— Um astrólogo me disse que houve um estranho presságio em Taiuã. E me encarregou de averiguar. Partirás amanhã. Quando chegarás a Taiuã?

Li calculou a data eventual de sua chegada e o outro disse: — No dia seguinte de tua chegada me esperes na ponte de Feniangue. Em seguida montou no burrico e partiu do mesmo modo que um pássaro toma vôo e

desapareceu num tessapirim. Li e a jovem se sentiram tão surpresos quanto encantados e temerosos. Momento

depois terminaram se tranqüilizando: — Um cavalheiro tão galhardo a ninguém enganaria. Nada temos a temer. Depois prosseguiram a todo galope. Chegaram a Taiuã no dia marcado e voltaram a se encontrar, com grande alegria.

Juntos foram visitar Liu e disseram pra sondar o terreno: — Há um excelente adivinho que deseja ver Li Shemin.20 Poderias o convidar a vir? Liu, que havia tempo tinha Li Shemin em alta estima, enviou imediatamente um

mensageiro pra o buscar. Li Shemin não tardou a chegar, sem túnica nem calçado, vestido apenas cuma capa de pele, mas o gesto majestoso e o rosto de incomparável distinção. Ao o ver, o homem de barba crespa, sentado silenciosamente num canto, sentiu a revelação. Depois de brindar algumas taças disse a Li:

— Eis, sem dúvida, um futuro filho do Céu! Li felicitou Liu, quem se sentiu orgulhoso de sua clarividência. Depois da partida de

Li Shemin, Barba Crespa disse a Li: — Há 80% de probabilidade de que seja ele mas é necessário que meu amigo, o

sacerdote taoísta, também o veja. Tu e minha irmãzinha devem voltar juntos à capital. Marquemos uma data e ao redor de meio-dia vinde me ver na taberna do Leste de Mahang. Ali, quando sob a janela do andar alto virem meu burrico em companhia dum asno muito magro, significará que encima estaremos o sacerdote e eu. Basta subir.

Com a promessa de ser pontuais no encontro, o homem de barba crespa se retirou. Li e sua mulher foram à taberna no dia e hora marcados. Efetivamente as duas montarias estavam ali. Levantando as túnicas, chegaram ao

andar alto e encontraram, bebendo juntos, o sacerdote e seu amigo. A chegada foi alegremente recebida.

Pediram pra se sentar e esvaziaram uma dezena de taças. O homem de barba crespa disse:

— No andar inferior encontrarás um cofre com 100 mil sapecas. Escolhas um lugar bem tranqüilo pra alojar tua mulher. E uma vez mais marques o dia pra vir me ver na ponte de Feniangue.

No dia do encontro Li encontrou na ponte o sacerdote taoísta e o outro. Juntos foram ver Liu, a quem encontraram jogando xadrez. Depois dalguns cumprimentos começaram a conversar. Liu enviou urgentemente uma nota a Li Shemin, o convidando a assistir um jogo de xadrez. O sacerdote começou a jogar contra Liu, enquanto Barba Crespa e Li os observavam.

Um instante depois chegou Li Shemin. Sua surpreendente distinção impunha respeito. Saudou e se sentou. O esplendor do aspecto e a serenidade do olhar resplandeciam ao redor como o sopro duma brisa acariciante. Ao o ver, o sacerdote empalideceu de pavor, pôs uma peça sobre o tabuleiro e disse: 20 Li Shemin: O fundador da dinastia Tangue, que reinou de 627 a 649. Nota do tradutor

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— Pra mim a partida está perdida. Esta jogada me derrotou. Me fechou toda possibilidade. Nada me resta a fazer!

Abandonou o jogo e pediu licença pra se retirar. Ao sair disse a Barba Crespa: — Este mundo não é o teu. Melhor que tentes fortuna noutra parte. Coragem! E que

não tenhas do que te arrepender! Todos decidiram voltar à capital. Barba Crespa disse a Li: — Conforme teu itinerário calcularei a data de tua chegada. No dia seguinte venhas,

com tua mulher, me ver em meu humilde alojamento. Bem sei que tu e minha irmãzinha não tende fortuna. Vos apresentarei a minha mulher e poderemos conversar sobre muitas coisas. Vinde sem falta.

Se retirou, suspirando. Li, apurando sua montaria, voltou a sua casa. Tão logo chegou à capital, em companhia de sua mulher visitou Barba Crespa. Pararam diante duma portinhola de madeira. Bateu, abriram e como saudação disseram:

— Faz tempo que o amo me encarregou de esperar tua chegada. Os fizeram entrar e passaram em várias portas interiores que se viam mais e mais

imponentes. 40 escravas estavam alinhadas no pátio e 20 escravos os guiaram até o salão do Leste, mobiliado com uma suntuosidade inaudita, com cofres repletos de jóias exóticas, adornos e espelhos como nunca se viram no mundo humano. Quando se livraram da poeira da estrada, os vestiram com roupa nova de grande magnificência. Então se anunciou a chegada do amo. O homem de barba crespa avançou, levando um chapéu de gaze e um abrigo de pele, enquanto toda sua aparência exalava real majestade. Os recebeu com toda cordialidade, e chamou sua mulher, que também tinha uma beleza divina, pra os saudar.

Se lhes convidou a passar ao salão central, onde já estava servido um banquete que superava todos os festins reais. Quando se sentaram à mesa 20 músicos alinhados diante dos convidados ofereceram um concerto, cujas melodias, desconhecidas na Terra, pareciam chegar do paraíso.

Terminada a ceia se serviu vinho. No salão do Leste os serviçais instalaram 20 leitos, todos cobertos de seda bordada. Ao retirar as colchas encontraram molhos de chave e livros de conta. Barba Crespa disse a Li:

— Eis tudo o que possuo como riqueza e tesouro. E tudo isto entrego a ti. Sabes por quê? Bem sei que pra tentar algo neste mundo terei de guerrear como um dragão durante 20 ou 30 anos, pra levantar um reino. Se já existe um dono do mundo, pra quê continuar aqui? Teu amigo Li Shemin, de Taiuã, será realmente um grande soberano, que durante três ou quatro anos reinará em paz. Com teu talento incomparável, se secundares com a melhor vontade esse monarca da paz, certamente chegarás ao nível de chanceler. Quanto a minha irmãzinha, com sua beleza verdadeiramente divina e seu espírito sem igual, fará honra a seu ilustre marido. Foi a única a o valorizar e só um homem como tu a pode cobrir de honra. De tal modo um grande ministro encontrará um chefe genial, como se chegassem a um encontro. O vento se levanta com rugido de tigre e a nuvem se infla com o grunhido do dragão. Isso não é por acaso. Com o que entrego a ti podes ajudar o chefe predestinado a fundar um império. Vás consigo! Daqui a 10 anos se produzirão eventos assombrosos a milhares de quilômetros a sudeste da China e então será a hora de meu triunfo. Então me acompanhai a brindar com este vinho em minha honra e nessa direção!

Depois ordenou a todos seus domésticos lhes apresentar saudação e respeito, dizendo:

— Doravante senhor Li e minha irmã serão vossos donos! Em seguida se vestiu com roupa de guerreiro. Com sua mulher e seguido dum

escravo, partiu a cavalo e logo desapareceu ao longe.

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Com a posse dessa casa, Li se converteu num homem rico e poderoso. Pôs seus recursos a disposição de Li Shemin, pra o ajudar a conquistar todo o império.

No reinado de Zhenguan (627–649), enquanto Li, na qualidade de ministro à esquerda do imperador, tomava o cargo de chanceler, chegou um relatório das tribos do sul, anunciando que um milhar de galeras com 100 mil homens armados invadiram o reino de Fuio. O rei fora massacrado, seu trono ocupado e fundado um novo estado. Li compreendeu que finalmente o homem de barba crespa triunfara. Disse isso a sua mulher. Os dois, em traje de cerimônia, se prosternaram ante o sudeste e derramaram vinho ao chão como libação pra felicitar de longe seu velho amigo que acabara de triunfar.

Por isso se vê que a ascensão ao poder supremo não está a alcance dos simples heróis, sem falar dos que erroneamente se crêem tais. Todo indivíduo que se subleva se parece ao cãozinho que ladra à carroça que passa. Pois nem precisa dizer que nosso império será próspero durante miríades de gerações.

Também se diz que Li deve grande parte de sua arte estratégica ao homem de barba crespa.

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