A escrita da História no cinema de Leon Hirszman.pdf

download A escrita da História no cinema de Leon Hirszman.pdf

of 13

Transcript of A escrita da História no cinema de Leon Hirszman.pdf

  • 7/25/2019 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman.pdf

    1/13

    2/7/2016 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunista diante das contradies do movimento operrio (1979-1981)

    https://cinelatino.revues.org/203 1/13

    Cinmas dAmrique latine21 | 2013:Cinma et politique

    A escrita da Histria no cinemade Leon Hirszman. Um comunistadiante das contradies domovimento operrio (1979-1981)

    REINALDOCARDENUTO

    p. 56-67

    Traduction(s) :

    Lcriture de lhistoire dans le cinma de Leon Hirszman. Un communiste faceaux contradictions du mouvement ouvrier (1979-1981)

    Rsums

    PortugusFranaisDe1979 a 1981, face emergncia de um movimento operrio capaz de ampliar a resistncia ditadura brasileira, Leon Hirszman realizou dois filmes de anlise poltica do tempo presente:

    ABC da greve, sobre as paralisaes metalrgicas de 1979 e Eles no usam black-tie (1981),adaptao da pea de teatro homnima de Gianfrancesco Guarnieri. A partir de uma sntese dascontradies existentes no cenrio brasileiro poca, a finalidade do artigo analisar asconstrues estticas e as representaes polticas presentes nesses filmes.

    De 1979 1981, face lmergence dun mouvement ouvrier capable damplifier la rsistance ladictature brsilienne, Leon Hirszman a ralis deux films danalyse politique du temps prsent :

    ABC da greve, consacr aux grves des mtallurgistes de 1979 et Eles no usam black-tie(1981), adapt de la pice de thtre ponyme de Gianfrancesco Guarnieri. Lobjectif de cetarticle est danalyser les constructions esthtiques et les reprsentations politiques prsentes dansces films, en partant des contradictions de la scne politique brsilienne de lpoque.

    Entres dindex

    Mots-cls : cinma brsilien, Cinema Novo, Hirszman (Leon),ABC da greve, Eles no usamblack-tie, dictature mi litaire au BrsilPalavras chaves : cinema brasileiro, Cinema Novo, Hirszman (Leon),ABC da greve, Eles nousam black-tie, ditadura militar brasileira

    https://cinelatino.revues.org/217https://cinelatino.revues.org/71http://cinelatino.revues.org/http://cinelatino.revues.org/http://cinelatino.revues.org/http://cinelatino.revues.org/http://cinelatino.revues.org/https://cinelatino.revues.org/215https://cinelatino.revues.org/214https://cinelatino.revues.org/213https://cinelatino.revues.org/212https://cinelatino.revues.org/211https://cinelatino.revues.org/210https://cinelatino.revues.org/209https://cinelatino.revues.org/208https://cinelatino.revues.org/207https://cinelatino.revues.org/206https://cinelatino.revues.org/205https://cinelatino.revues.org/204https://cinelatino.revues.org/217https://cinelatino.revues.org/71http://cinelatino.revues.org/
  • 7/25/2019 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman.pdf

    2/13

    2/7/2016 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunista diante das contradies do movimento operrio (1979-1981)

    https://cinelatino.revues.org/203 2/13

    Notes de la rdaction

    Esse artigo foi escrito para a jornada de estudo Histoire(s) du cinma brsilien, ocorrida em 19de junho de 2012, em Paris, e organizada pela Association pour la recherche sur le Brsil enEurope (Arbre).

    Texte intgral

    Meu r isco sempre foi esse. Joguei no campo das minhas convices. Eu jogo nocampo da liberdade, pela liberdade. Eu no jogo no campo da hesitao e danoite. No, no jogo nesse campo, porque eu acho que o intelectual que jogue nodia e que jogue em contato e que jogue na interao com o povo, numa

    perspectiva comu que seja de um processo de justia social, de paz mundial e dedemocracia efetiva, de ampliao constante da democracia no pas, eu acho queesse intelectual tem um caminho real.

    Entrevista concedida por Leon Hirszman rdio Jornal do Brasil, setembro de1981

    ABC da greve (1979)

    Integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Leon Hirszman foi um dosprincipais articuladores do movimento conhecido como Cinema Novo. Influenciado por

    teses marxistas que se tornaram centrais nos debates polticos da Amrica Latina entreos anos 1950 e 1960, em especial a aposta teleolgica na Revoluo de esquerda,Hirszman realizou uma obra cinematogrfica em compromisso com a representaopolitizada da classe popular. Em 1962, rendendo homenagem a Sergei Eisenstein, eleiniciou sua trajetria artstica ao dirigir uma das partes do longa-metragem Cinco vezes

    favela, o episdioPedreira de So Diogo, filme de narrativa exemplar no qual algunsoperrios, unindo-se aos habitantes de uma favela carioca, conseguem impedir adeciso gananciosa do gerente de uma pedreira de explodir dinamites que colocariamem risco a vida de moradores do morro. A unio simblica entre os dois grupos do povo,sem esquecer a presena imaterial do cineasta como instncia responsvel pelo jogopoltico idealizado, procurava gerar, ao nvel da representao, uma sensao de

    uniformidade e de vigor comumente atribudas classe proletria no confronto contraas foras capitalistas. Infelizmente, a realidade social se mostraria bem distante daleitura proposta emPedreira de So Diogo. Em 1964, no seria o popular a assumir opoder no Brasil, mas os militares e os tecnocratas alinhados extrema direita da poca.

    1

    https://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-1-small580.jpg
  • 7/25/2019 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman.pdf

    3/13

    2/7/2016 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunista diante das contradies do movimento operrio (1979-1981)

    https://cinelatino.revues.org/203 3/13

    Remise du Lion dor Venise en 1981 Leon Hirszman par Liv Ullmann, prsidente du jury,pour son film Eles no usam black-tie.

    Eles no usam black-tie(1981)

    O ps-1964 configurou-se para o Cinema Novo como um tempo de crise. A partir daimplantao da ditadura, tornada mais aguda em dezembro de 1968, a esquerda viveuum processo de intenso desmantelamento que atingiu diretamente o PCB. O recuo do

    idealismo revolucionrio que atravessara os filmes cinemanovistas anteriores a 1964 foisentido na realizao artstica de Leon Hirszman. De incio, o cineasta pareceucompartilhar de um sentimento agnico geracional que se encontra na essncia deobras como O desafio (1964), de Paulo Csar Saraceni, A grande cidade (1966), deCac Diegues, e principalmente Terra em transe(1967), de Glauber Rocha. Em 1967,Hirszman dirigiu Garota de Ipanema, filme no qual a imagem romntica da mulher

    brasileira, internacionalizada pela Bossa Nova, torna-se melanclica e colocadadiante do mal-estar de seu tempo histrico e, em 1972, realizou S. Bernardo,adaptao do livro homnimo de Graciliano Ramos sobre as amarguras de umlatifundirio embrutecido pelos mecanismos de reificao.

    2

    Em meados da dcada de 1970, no entanto, Hirszman reavaliou seu trabalho como

    artista e militante. Ainda que a sensao de mal-estar presente nos dois filmes citadosgerasse uma resistncia simblica ditadura, a partir do documentrio Que pas este?produzido pela RAI em 1977, o cineasta iniciou um processo de investigao com aexpectativa de encontrar o novo lugar a ser ocupado pela esquerda em um futuromovimento de redemocratizao do Brasil. Em tom mais afirmativo, porm distante do

    3

    https://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-3-small580.jpghttps://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-2-small580.jpg
  • 7/25/2019 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman.pdf

    4/13

    2/7/2016 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunista diante das contradies do movimento operrio (1979-1981)

    https://cinelatino.revues.org/203 4/13

    idealismo romntico que estava na origem de Pedreira de So Diogo, Hirszmanprocurava ultrapassar a agonia enfrentada por sua gerao na tentativa de reposicionarno jogo poltico a esquerda em crise. Produzido pela emissora televisiva RAI, hoje umfilme desaparecido, do qual resta apenas uma transcrio da banda sonora, Que pas este? colocava no centro do debate vozes intelectuais em resistncia aos militares -como Fernando Henrique Cardoso, Alfredo Bosi e Maria da Conceio Tavares - eprocurava formular e defender uma hiptese: face a um governo autoritrio que davamostras de enfraquecimento, a sociedade civil deveria se reorganizar como fora de

    presso em recusa aos instrumentos autoritrios de poder.Aps um agudo perodo de incertezas, agravado pelo episdio da censura ao filmeS.Bernardo- um dos motivos que provocou o fechamento da produtora de Hirszman, aSaga Filmes -, o cineasta retomou o seu compromisso com uma cinematografiamarxista de prxis poltica. Em maro de 1979, quando Hirszman iniciava com odramaturgo Gianfrancesco Guarnieri a adaptao para o cinema da pea Eles nousam black-tie, ele foi surpreendido por um movimento de massas que alteraria o rumohistrico da esquerda brasileira. No dia 13 de maro daquele ano, contrariando a leimilitar que desde 1964 impedia a livre realizao de greves no pas, os metalrgicos daregio do ABC, das cidades de industrializao multinacional no entorno de So Paulo,enfrentaram-se lei militar que proibia o direito de greve desde 1964, declararam umaparalisao de suas atividades com o objetivo de reivindicar reajustes salariais,melhorias nas condies do trabalho e estabilidade de emprego para aqueles queatuavam como dirigentes sindicais. Imbudo do desejo de participar, como artista, deum processo que considerava central para a oposio aos militares, Hirszmaninterrompeu a escrita do roteiro de Eles no usam black-tie e partiu em direo cidade de So Bernardo do Campo, onde registrou, entre maro e maio de 1979, comuma pequena equipe de filmagem, o desenrolar da greve operria.

    4

    Nos demais meses daquele ano, junto ao fotgrafo Adrian Cooper, Hirszman realizoua montagem do filme ABC da greve. Estimulado pelo surgimento de novosmovimentos populares de contestao ao final dos anos 1970, o cineasta esperava fazerde seu documentrio uma leitura dialtica do tempo presente e um instrumento para areflexo e a prxis da classe trabalhadora. Colocando no centro do filme o novomovimento sindical que, liderado pela figura carismtica de Lula, politizava de formaindita as bases operrias do pas, Hirszman pretendia transformar seu longa-metragem em uma resposta ao fechamento poltico imposto nao desde a dcada de1960.

    5

    ABC da greve um documentrio de engajamento que surgiu do impulso em agirsobre a Histria em movimento.Embora no exista ali um retorno ao projetorevolucionrio anterior a 1964, tornado impraticvel no plano poltico, o filme procuraconstruir a idia de que estaria em formao no Brasil uma ampla frente de ao daesquerda. Cinema de tese, cujos pressupostos provm de um artista formado na antigatradio do Partido Comunista Brasileiro, ABC da greve acompanha didaticamente acronologia da greve metalrgica ocorrida no primeiro semestre de 1979, enquanto algica de sua montagem busca conduzir a uma leitura idealizada na qual as diversasrepresentaes da esquerda aparecem como bloco unitrio, harmnico, emenfrentamento ao inimigo comum, a ditadura.

    6

    Diante da forte expectativa de Hirszman em ver realizar-se um projeto deredemocratizao, a observao da realidade social brasileira conduzida por umadialtica de simples oposies: de um lado, h o grupo formado por militares, grandesempresrios e pela imprensa televisiva de outro, aquele composto por operrios de

    vrias tendncias, universitrios, artistas engajados, representantes do PCB e departidos como o MDB (Movimento Democrtico Brasileiro), naquela poca a nica vozde oposio que o gonverno miltar considerava como legal. O tpico emABC da greve o confronto entre esses dois grandes grupos com a finalidade de denunciar o aparatoditatorial: como na seqncia das comemoraes do Primeiro de Maio, em que asimagens festivas com milhares de trabalhadores surgem para desmanchar o discursotelevisivo do Presidente Joo Figueiredo, que promete aes repressivas contra osoperrios em nome da tranquilidade e da ordem social.

    7

    No documentrio, embora os personagens centrais sejam pertencentes ao novo8

  • 7/25/2019 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman.pdf

    5/13

    2/7/2016 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunista diante das contradies do movimento operrio (1979-1981)

    https://cinelatino.revues.org/203 5/13

    A Falecida(1965)

    sindicalismo liderado por Lula, o interesse de Hirszman no est em debater questesespecficas da contestao operria, como a melhoria nas condies de trabalho, masem sugerir que a questo operria deveria ser encarada como parte de um processomaior, estrutural, de contestao ao regime autoritrio. Se eu saliento essacaracterstica, que me parece fundamental demonstrar que o filme foi pensado, acimade tudo, como aposta estratgica na formao de uma frente ampla de resistncia ditadura. EmABC da greve, a autonomia poltica dos trabalhadores e as fissuras que jse anunciavam na esquerda brasileira so propositalmente deixadas de lado em nome

    do projeto considerado maior, mais fundamental, o de redemocratizao do pas. Oproblema, no entanto, que essa leitura idealista de Hirszman, um comunista distanteda prtica poltica especfica aos metalrgicos, parecia rapidamente envelhecer diantedas tenses que explodiam na realidade social.

    Grosso modo, o movimento operrio brasileiro dos anos 1970 e 1980 foi atravessadopor uma violenta disputa pela hegemonia da esquerda. De um lado, o PCB e setores do

    PC do B e do MR-81

    ,a formar um bloco historicamente conhecido como UnidadeSindical, defendiam uma postura clssica de militncia, identificada com ospressupostos de um revisionismo marxista: o PCB desejava sair da crise e se tornaruma espcie de partido do povo a liderar as diferentes alas da esquerda com o objetivode implantar no pas uma democracia de princpios socialistas. Para este grupo, a

    9

    https://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-4-small580.jpg
  • 7/25/2019 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman.pdf

    6/13

    2/7/2016 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunista diante das contradies do movimento operrio (1979-1981)

    https://cinelatino.revues.org/203 6/13

    Eles no usam black-tie(1981)

    mobilizao central do sindicalismo no se encontrava em reivindicaes trabalhistas,mas sim na questo poltica ampla, estrutural, de derrubada dos militares do poder.

    De outro lado, o chamado bloco combativo, os autnticos, era formadoprincipalmente pelo novo sindicalismo do ABC paulista, que defendia a completa

    reinveno das associaes de representao dos operrios. Este grupo, cuja lideranamaior foi Lula, concentrou o seu programa no na transformao poltica totalizante dasociedade, mas sim na luta mais direta por direitos econmicos e trabalhistas.Radicalmente contrrios estrutura sindical criada sob interveno dos militares, noreconheceram o PCB como um partido que os pudesse representar e desconfiavam daspropostas de origem marxista, que consideravam autoritrias e uma forma de controlesobre a autonomia poltica dos operrios.

    10

    Embora os dois blocos tenham mantido uma breve aproximao estratgica durantea greve de 1979, passariam toda a dcada de 1980 em acirrado confronto pelo domniodo campo poltico. Enquanto o PCB viveu, no perodo, um aprofundamento de suacrise, perdendo cada vez mais a representatividade junto s bases populares, o novo

    sindicalismo, tornando-se voz dos operrios em nvel nacional, colocou-se na lideranade um novo partido, o PT (Partido dos Trabalhadores), que a partir de 1980 iniciariaum processo gradual de consolidao da nova hegemonia da esquerda. O documentrio

    ABC da greve, ao assumir um vis ideolgico mais prximo ao PCB, militava em prolde uma harmonia impossvel diante das tenses histricas da esquerda, a pressupor a

    11

    https://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-6-small580.jpghttps://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-5-small580.jpg
  • 7/25/2019 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman.pdf

    7/13

    2/7/2016 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunista diante das contradies do movimento operrio (1979-1981)

    https://cinelatino.revues.org/203 7/13

    Garta de Ipanema, 1967

    possibilidade de que os dois blocos pudessem se unir, sem tenses, em combate contraa ditadura. Teria sido essa escrita idealista da Histria em movimento, leitura querapidamente envelheceu diante das profundas fissuras e transformaes polticas, omotivo que levou Hirszman, aps a montagem deABC da greve, a no finalizar e exibiro seu documentrio? O filme, que permaneceria esquecido, acabou lanado apenas em1991, quatro anos aps a morte do cineasta, j completamente despido do desejo inicialde prxis, transformando-se de instrumento poltico em documento histrico. Aobstinao romntica de Hirszman em torno da redemocratizao, inscrita na narrativa

    deABC da greve, seria, no entanto, reavaliada por ele no projeto de Eles no usamblack-tie.

    https://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-7.jpg
  • 7/25/2019 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman.pdf

    8/13

    2/7/2016 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunista diante das contradies do movimento operrio (1979-1981)

    https://cinelatino.revues.org/203 8/13

    Logo aps o trmino das filmagens deABC da greve, Hirszman retomou a adaptaocinematogrfica deEles no usam black-tie. Pea escrita por Gianfrancesco Guarnieriem 1956, encenada pelo Teatro de Arena em 19582, Black-tie foi um dos marcosinaugurais da gerao de artistas comprometidos com uma dramaturgia de essnciamarxista. Na tradio do realismo crtico, o texto original de Guarnieri atravessadopor um sentimento de tempo no qual a esquerda brasileira, especialmente aquela defiliao comunista, idealizava a classe popular como protagonista de um futuroprocesso revolucionrio de ruptura poltica. Escrita sob influncia desse pressupostoideolgico, intenso no imaginrio esquerdista anterior a 1964, a pea concentra-se noconfronto dramtico vivido no interior de uma famlia operria: de um lado h o pai,Otvio, lder sindical de filiao comunista de outro encontra-se o filho, Tio, rapazindividualista que coloca seu projeto de ascenso social acima da luta coletiva do povo.Quando uma greve explode, a ciso simblica entre os dois torna-se irreversvel. Com a

    12

    https://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-9-small580.jpghttps://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-8.jpg
  • 7/25/2019 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman.pdf

    9/13

    2/7/2016 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunista diante das contradies do movimento operrio (1979-1981)

    https://cinelatino.revues.org/203 9/13

    A Falecida(1965)

    namorada grvida e com medo de perder o emprego, Tio boicota a paralisaooperria. Otvio, aps ser reprimido pela polcia e descobrir a traio do filho greve,resolve expuls-lo de casa, esperando que um dia o jovem se conscientizeideologicamente e reencontre os vnculos com a sua comunidade. Embora estejamosdiante de uma fissura familiar, o movimento operrio celebrado na pea como

    vitorioso: ao propor esse desfecho, Guarnieri moldou uma narrativa exemplar na qual osacrifcio particular, de ordem afetiva, tornava-se parte da representao romntica emtorno de uma classe que, acreditava-se, poderia tomar em suas mos a conduo da

    Histria. O ps-1964 gerou um abalo nessa crena da esquerda brasileira e curiosopensar que Hirszman, j no final da dcada de 1970, em um momento de crise para oscomunistas, escolheu justamente adaptar para o cinema o texto deBlack-tie.

    Lanado em 1981, o filme contm, no entanto, diferenas significativas se comparadoao texto original de Guarnieri. Mesmo que o longa-metragem no altere o confrontodramtico central da pea, aquele que se concentra na ciso ideolgica e afetiva entreum pai e seu filho, Hirszman se afastou do pressuposto romntico que estava naessncia da obra teatral para compor uma viso mais crtica e aguda sobre o Brasil doincio dos anos 1980. Fiel ao esprito contido na pea de Guarnieri, a adaptaocinematogrfica deBlack-tiemanteve a defesa da militncia comunista, mas ao mesmotempo procurou atualizar o texto de 1956. Apostando na presena de atores televisivospara ampliar o dilogo do filme com os espectadores brasileiros, Hirszman deu

    sobrevida ao realismo crtico de sua gerao ao inserir em Black-tie um sentimento demal-estar diante do Brasil que vivia seu contraditrio processo de redemocratizao.Enquanto predominava na obra teatral um tom politicamente afirmativo, de projeootimista sobre a classe popular, o filme tornava-se a representao das profundas crisesde um pas que por anos foi submetido ditadura. Desestabili-zando a fragilidaderomntica anterior, o cineasta inseriu em sua adaptao a presena da violncia e damorte. No longa-metragem, em que a greve derrotada pela represso, a morte umdado sensvel para a leitura do Brasil. No tecido dramtico, Hirszman insereassassinatos inexistentes na pea: o de um jovem assaltante, menor de dezoito anos,morto brutalmente pela polcia o do pai de Maria, a noiva de Tio, que baleado porum bandido e o mais significativo, o do militante comunista Brulio, melhor amigo de

    Otvio, cuja morte praticamente o smbolo de uma velha esquerda em vias dedesaparecimento. Embora o cineasta no abandone certo vis idealista que atravessatoda a sua cinematografia, e que o faz terminarBlack-tie com uma passeata pblica naqual ouvem-se os gritos de a greve continua, fato que seu filme ficcional, nacontramo do documentrioABC da greve, instala um olhar mais apreensivo sobre o

    13

    https://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-10-small580.jpg
  • 7/25/2019 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman.pdf

    10/13

    2/7/2016 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunista diante das contradies do movimento operrio (1979-1981)

    https://cinelatino.revues.org/203 10/13

    Leon Hirszman (Cuba, 1981)

    pas.

    Possivelmente influenciado pelas profundas divises que a esquerda brasileiraenfrentava no perodo, fissuras que ficaram mais evidentes a partir de 1980, Hirszmanrenunciou crena na formao de uma frente ampla de atuao contra o governo. Em

    Black-tie, h um sentimento de desconfiana ante as aes do novo sindicalismo e amilitncia operria encontra-se cindida em duas posies antagnicas: a doscomunistas, assumida pelos personagens Otvio e Brulio, que defende uma prxistradicional, aquela na qual o proletrio precisaria estar organizado como classe antesdo incio de uma greve e a do grupo mais radical do novo sindicalismo, representadacaricaturalmente pelo personagem Sartini, para o qual preciso romper com as

    teorizaes marxistas e aproveitar o sentimento de revolta dos trabalhadores comopulso militante e espontnea em oposio classe patronal.

    14

    No filme, a defesa de Hirszman recai claramente sobre a primeira opo: no decorrerda trama, embora Otvio tente alertar os trabalhadores sobre o risco de assumir umagreve sem organizao, sem a presena do sindicato, os radicais ao lado de Sartiniconseguem impor uma paralisao fora aps a fbrica demitir alguns de seusfuncionrios. O resultado desse processo, visto pelo cineasta como apressado eirresponsvel, no apenas a derrota da greve, mas inclusive o assassinato de Bruliopor um policial paisana. Em Black-tie, como resqucio de um idealismo marxistatradicional, a culpa pelos possveis equvocos da esquerda incide sobre os queignoraram os avisos dados pelo personagem que contm a voz da experincia,

    justamente aquele identificado com a viso da militncia comunista. No filme,Hirszman tomava posio diante das divises enfrentadas pela esquerda brasileira.No toa, em um debate realizado no dia 9 de novembro de 1981, as lideranas do novosindicalismo evidenciaram a sua rejeio ao longa-metragem. Na ocasio, Lula noperderia a chance de declarar que o filme apresenta um papel negativo da greve. Ficarna afirmao de que tem que se organizar antes de fazer a greve esquecer que a prpriagreve pode ser um momento importante para a organizao dos trabalhadores [...]. Emmomento algum, [Black-tie] coloca o processo de amadurecimento poltico da massaoperria durante a [prpria] greve3.

    15

    Black-tie um filme de linguagem sedutora, projeto maduro de Hirszman no qual amise-en-scne, de construo rigorosamente clssica, procura estabelecer um processo

    de identificao emocional e ideolgica entre o espectador e o jogo dramtico. Mesmoque o cineasta assuma uma posio mais prxima das teses do PCB, partido queacabaria perdendo representatividade no decorrer dos anos 1980, seria um equvocono salientar queBlack-tie transmite um mal-estar diante das contradies do perododitatorial: h um olhar incmodo que costura a obra inteira e acaba inclusive por

    16

    https://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-11-small580.jpg
  • 7/25/2019 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman.pdf

    11/13

    2/7/2016 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunista diante das contradies do movimento operrio (1979-1981)

    https://cinelatino.revues.org/203 11/13

    Bibliographie

    Bibliografia de referncia

    Notes

    1Tratam-se do Partido Comunista do Brasil (PC do B), que em 1962 nasceu de uma ciso com oPartido Comunista Brasileiro, e do Movimento Revolucionrio Oito de Outubro (MR-8), quesurgiu em 1964 e participou da luta armada contra a ditadura militar.

    2 O Teatro de Arena foi fundado em 1953 e se tornou um dos marcos brasileiros do teatro deengajamento poltico e social. Desse grupo participaram dramaturgos como GianfrancescoGuarnieri, Vianinha e Augusto Boal. Suas atividades duraram at 1972.

    3 Conforme citado em Lessa, Srgio. Em debate, Black-tie. Jornal Movimento, So Paulo,nmero 333, 16 a 22 nov. 1981.

    impedir uma abordagem redentora da prpria militncia tradicional. Vencedor doprmio especial do jri no Festival de Veneza de 1981, esse filme talvez seja, no cinema

    brasileiro, um ltimo respiro do realismo crtico praticado por artistas prximos aoPCB e que marque a expectativa tardia de reinserir no drama uma perspectivacomunista de mundo. n

    ALVES, Vnia M. B. Vanguarda operria: elite de classe? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

    ANTUNES, Ricardo.A rebeldia do trabalho (o confronto operrio no ABC Paulista: as grevesde 1978/80). Campinas: Ensaio/Editora da Unicamp, 1988.

    BAROT, Emmanuel. Camera politica: dialectique du ralisme dans le cinma politique etmilitant. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2009.

    BERNARDET, Jean-Claude. Cinema: repercusses em caixa de eco ideolgica . So Paulo:Brasiliense, 1984.

    CALIL, Carlos Augusto (org). bom falar. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1995.FREDERICO, Celso.A vanguarda operria. So Paulo: Smbolo, 1979.

    FREDERICO, Celso (org.).A esquerda e o movimento operrio - Vol. III. A reconstruo (1978-1984).Belo Horizonte: Oficina de livros, 1991.

    GAUTHIER, Guy (org.). Le cinma militant reprend le travail. CinmAction, n110.Corlet/Tlrama, 2004.

    HIRSZMAN, Leon. O espio de Deus. In. BRASILEIRA, Cinemateca (org.). Leon Hirszman:ABC da greve, documentrio indito. Catlogo de mostra. Cinemateca Brasileira: So Paulo,1991, p. 5-16.

    LACHAUD, Jean-Marc. Questions sur le ralisme: B. Brecht et Georg Lukcs . Paris: Economica,1898.

    LESSA, Srgio. Em debate,Black-tie. JournalMovimento, So Paulo, numro 333, 16 22 nov.1981.

    ORTIZ, Ramos. A moderna tradio brasileira: cultura brasileira e indstria cultural. SoPaulo: Editora Brasiliense, 2001.

    PCAULT, Daniel. Os intelectuais e a poltica no Brasil. So Paulo: tica, 1990.

    RIDENTI, Marcelo.Em busca do povo brasileiro: artista da revoluo, do CPC e da era da TV.So Paulo: Record, 2000.

    SADER, der. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

    SALEM, Helena.Leon Hirszman: o navegador de estrelas. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

    SCHWARZ, Roberto. Cultura e Poltica, 1964-1969. In. O Pai de famlia e outros estudos.Riode Janeiro: Paz e Terra, 1992.

    SILVA, Maria Carolina Granato da. O cinema na greve a greve no cinema: memrias dosmetalrgicos do ABC (1979-1991). UFF/Niteri: doutorado, 2008.VIANY, Alex. LeonHirszman. In. O processo do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999, p. 283-314.

  • 7/25/2019 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman.pdf

    12/13

    2/7/2016 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunista diante das contradies do movimento operrio (1979-1981)

    https://cinelatino.revues.org/203 12/13

    Table des illustrations

    Titre ABC da greve(1979)

    URL https://reader009.{domain}/reader009/html5/0327/5ab97777534c7/5ab9777d2fd55.jpgFichierimage/jpeg, 232k

    Titre Remise du Lion dor Venise en 1981 Leon Hirszman par Liv

    Ullmann, prsidente du jury, pour son film Eles no usam black-tie.

    URL https://reader009.{domain}/reader009/html5/0327/5ab97777534c7/5ab9777dd5cf4.jpgFichierimage/jpeg, 148k

    Titre Eles no usam black-tie(1981)

    URL https://reader009.{domain}/reader009/html5/0327/5ab97777534c7/5ab9777e6fc35.jpgFichierimage/jpeg, 80k

    Titre A Falecida(1965)

    URL https://reader009.{domain}/reader009/html5/0327/5ab97777534c7/5ab9777fb452f.jpg

    Fichierimage/jpeg, 732k

    Titre Eles no usam black-tie(1981)

    URL https://reader009.{domain}/reader009/html5/0327/5ab97777534c7/5ab9778068391.jpg

    Fichierimage/jpeg, 176k

    URL https://reader009.{domain}/reader009/html5/0327/5ab97777534c7/5ab977811b71b.jpg

    Fichierimage/jpeg, 100k

    Titre Garta de Ipanema, 1967

    URL https://reader009.{domain}/reader009/html5/0327/5ab97777534c7/5ab97781aa3fe.jpg

    Fichierimage/jpeg, 88k

    URL https://reader009.{domain}/reader009/html5/0327/5ab97777534c7/5ab977824528a.jpg

    Fichierimage/jpeg, 96k

    URL https://reader009.{domain}/reader009/html5/0327/5ab97777534c7/5ab97782d5033.jpg

    Fichierimage/jpeg, 80k

    Titre A Falecida(1965)

    URL https://reader009.{domain}/reader009/html5/0327/5ab97777534c7/5ab97783864bc.jpgFichierimage/jpeg, 164k

    Titre Leon Hirszman (Cuba, 1981)

    URL http://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-11.jpg

    Fichierimage/jpeg, 283k

    Pour citer cet article

    Rfrence papierReinaldo Cardenuto, A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunistadiante das contradies do movimento operrio (1979-1981) , Cinmas dAmrique latine,21 | 2013, 56-67.

    Rfrence lectroniqueReinaldo Cardenuto, A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunistadiante das contradies do movimento operrio (1979-1981) , Cinmas dAmrique latine[Enligne], 21 | 2013, mis en ligne le 14 avril 2014, consult le 02 juillet 2016. URL :http://cinelatino.revues.org/203

    Auteur

    Reinaldo Car denuto

    Reinaldo Cardenuto professor de Histria do Cinema na Faculdade Armando lvares

    https://cinelatino.revues.org/216https://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-11.jpghttps://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-10.jpghttps://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-9.jpghttps://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-8.jpghttps://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-7.jpghttps://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-6.jpghttps://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-5.jpghttps://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-4.jpghttps://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-3.jpghttps://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-2.jpghttps://cinelatino.revues.org/docannexe/image/203/img-1.jpg
  • 7/25/2019 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman.pdf

    13/13

    2/7/2016 A escrita da Histria no cinema de Leon Hirszman. Um comunista diante das contradies do movimento operrio (1979-1981)

    Penteado (FAAP) e doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na Escola deComunicao da Universidade de So Paulo (USP). Seu doutorado supervisionado peloprofessor Eduardo Victorio Morettin.

    Droits dauteur

    Cinmas dAmrique latine est mis disposition selon les termes de la licence CreativeCommons Attribution - Pas d'Utilisation Commerciale - Pas de Modification 4.0 International.

    En poursuivant votre navigation sur ce site, vous acceptez l'utilisation de cookies. En savoir plus

    http://www.openedition.org/6540http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/