A diferença ontológica em Kant, Hegel, Heidegger e Tomás de Aquino. J. B. Lotz2

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Revista Portuguesa de Filosofia A diferença ontológica em Kant, Hegel, Heidegger e Tomás de Aquino Author(s): J. B. Lotz Reviewed work(s): Source: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 33, Fasc. 4, Heidegger (1889-1976) (Oct. - Dec., 1977), pp. 270-284 Published by: Revista Portuguesa de Filosofia Stable URL: http://www.jstor.org/stable/40335494 . Accessed: 12/12/2012 11:30 Your use of the JSTOR archive indicates your acceptance of the Terms & Conditions of Use, available at . http://www.jstor.org/page/info/about/policies/terms.jsp . JSTOR is a not-for-profit service that helps scholars, researchers, and students discover, use, and build upon a wide range of content in a trusted digital archive. We use information technology and tools to increase productivity and facilitate new forms of scholarship. For more information about JSTOR, please contact [email protected]. . Revista Portuguesa de Filosofia is collaborating with JSTOR to digitize, preserve and extend access to Revista Portuguesa de Filosofia. http://www.jstor.org This content downloaded on Wed, 12 Dec 2012 11:30:06 AM All use subject to JSTOR Terms and Conditions

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Revista Portuguesa de Filosofia

A diferença ontológica em Kant, Hegel, Heidegger e Tomás de AquinoAuthor(s): J. B. LotzReviewed work(s):Source: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 33, Fasc. 4, Heidegger (1889-1976) (Oct. - Dec., 1977),pp. 270-284Published by: Revista Portuguesa de FilosofiaStable URL: http://www.jstor.org/stable/40335494 .

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A diferenga ontologica em Kant, Hegel, Heidegger

e Tomas de Aquino*

m. Heidegger: interpretagao temporal da diferenga onto- logica.

Nos dois pensadores de que ate agora falamos, encontramos a diferenga ontologica tocada ou incluida noutra problematica. Em Heidegger, porem, a diferenga ontologica e realizada ou t ema- tisada expressamente enquanto tal. Heidegger nao se limita a pensar a partir da diferenga ontologica, pensa-a a ela mesma, investigando ao mesmo tempo as condigoes da sua possibilidade. Contrariamente a Kant e Hegel, conserva tanto o ente e o ser como tam'bem a propria diferenga dos dois. Esta evidencia-se pelo facto de o homem e, mais proximamente o seu pensamento, acompanhar o ser ou estar em identidade com ele. Ora, o intermediario entre o homem e o ser e o tempo; temporalizando-se, o homem esta junto do ser; e temporalizando-se o ser, este esta junto do homem. Mas, dado que a comunicagao do ser se opera ipor meio da temporaliza- gao, tam'bem o ente se abre enquanto ente, quer dizer, o homem esta em condigoes de deixar o ente ser ente enquanto tal. O tempo possibilita, portanto, que o ser seja verdadeiramente ser, que o ente seja verdadeiramente ente, bem como que a diferenga de am- bos seja verdadeiramente diferenga - diferenga que tanto os separa como os une.

O caminho que, pela tempordHzagdo, leva o homem ao ser e trilhado em «Ser e Temipo» e tambem no curso dado por Heidegger em 1927 «Grundprobleme der Phanomenologie». «iA constituigao ontologica da existencia (Dasein) fundamenta-se na temporali- dade» (Phan 323). Esta, porem, «assume a possibilitagao da com-

* TradugSo de Manuel Losa. (Continuagao da pag. 36)

tl]

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LOTZ - (DdFERENQA ONT0L0GICA EM HEIDEGGER 271

preensao do ser e, desse modo, a possibilitagao da interpretagao tematica do ser» (Phan 323). Temporalidade (Temporalitat) «quer dizer o caracter temporal (Zeitlichkeit) , enquanto este e tornado como tema e considerado condigao de possibilidade da compreensao do ser e da ontologia»; «deve indicar que a tempo- ralidade na analitica existencial apresenta o horizonte a partir do qua! compreendemos o ser» (Phan 324) .

Primeiramente e em geral, o Ihomem encontra-se na impro- priedade (Uneigentliohkeit) ou perdido (Verioreriheit) no ser-com e no existente (das Vorhandene) . No entanto, na medida em que se sente preocwpagdo (Sarge), eleva-se ao seu mais proprio poder- -ser e, portanto, a totalidade da sua existencia. Nesse processo, projecta-se para o futuro, determinado pelo seu passado e move-se no presente do momento cada vez dado. As dimensoes da sua temporalidade assim realizada tern o seu proprio «para onde», se- gundo o qual o nada se revela de modo adequado as dimensoes particulares. Este (nada) signif ica o nada de todo o ente e, assim, o dif erente em relagao a todo o ente, ou seja, o ser. Deste modo, o ser 'briliha no horizonte do tempo como fundamento que possibilita esse tempo. A temporalidade (Zeitlichkeit) totalmente experimen- tada possibilita a compreensao do ser e manif esta-se, assim, em conformidade com a terminologia acima usada, como temporali- dade (Temporalitat). E de notar que a temporalidade (Zeitlich- keit) possibilita a compreensao do ser, nao porem o ser mesmo. Dai que o ser nao e produzido pela existencia, ou seja, nao e de modo nenhum cum produto do homem» (Sdbre o Humanismo [Hum] Frankfurt 1947, 24). Correspondentemente, bem enten- dida. a frase: «so ha ser enquanto houver existencia» (SuZ 212) signif ica: «so enquanto se verifica a iluminaQao (Lichtung) do ser, se da ao homem, ser» (Hum 24). O acontecer da iluminagao e a existencia; porem a iluminagao e destino (Schickung) do ser.

Deste modo, estamos ja no segundo caminho pelo qual o ser, airaves da temporcdizagao, vem ao homem. E que ele transmite-se ao homem por destinos sempre novos e possui, assim, caracter epocal (epobhalen) em conformidade com o significado duplo desta palavra. O ser abre constantemente uma epoca (Epoche) nova da sua comunicacao, na medida em que pratica a «Bpoche», isto e, se retrai, ou seja, nunca se comunica totalmente. Sendo assim, a historia ontica do ente esta subjacente a historia ontologica do ser. Como, no passado, o ser era entendido como supra-historico, [2]

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o que dizemos e uma radicalizagao, antes nunca ouvida, da his- toricidade, radicalizagao alias preparada por Hegel e Nietzsche. Ora, o ser que se comunica epocalmente nao se da sem o homem, esta dependente deste e precisa dele: comunicando-se epocalmente projecta e langa o homem. Par isso, o ser dado historicamente, «descansa no voltar-se» para o homem, «de tal forma que este voltar-se para o homem jamais pode ajbeirar-se do ser apenas como algo acrescentado» (Sobre a questao do ser: Sfr Frankfurt 1956, 28). lAssim como nao se consegue conceber o homem sem o ser, tambem nao se pode conceber o ser sem o homem ; ele e o aconte- cer deste voltar^se; o ser nao tern uma historia que decorre em si, mas acontece no homem e enquanto homem.

Por conseguinte, existe entre ambos uma identidade que ulti- mamente nao permite que se f ale deles no plural, porque no ser ja sempre esta co-afirmado o homem e vice-versa (Sfr 27 s.). Na identidade ou correlagao aqui descrita nao desaparece a dife- renga; pelo contrario, esta existe na identidade, pois o ser e o f un- damento do homem, ou seja, o ser e o que langa e o homem e o langado. Consequentemente, o liomem e o ante em que e como que se verif ica a dif erenga, ou seja, no qual, enquanto existencia (Da- -sein) gragas a sua existencia e insistencia, o ser se manif esta sempre como aquilo que o ultrapassa. Nesse processo, o ser, apesar do seu ultrapassar, e finito como o homem, dado que consiste nas comunicagoes epocais, cada uma das quais, por causa da «Epoche», e f inita. Se voltamos a por os olhos no tern/pa, vemo-lo como aquilo que simultaneamente mantem unidos e separa o homem e o ser. O tempo mantem unidos, porque o ser se destina (zuschickt) epo- calmente, ou seja, gragas a temporalizagao; separa, porque o ser mesmo persiste e, portanto, nenhuma comunicagao esgota o ser- mesmo, quer dizer, o ser-mesmo supera toda e qualquer comunica- gao epocal.

Aqui anuncia-se o dif icil profolema de saJber como e que o ser e ao mesmo tempo multiplo e uno. E multiplo nas suas comunica- goes epocais, mas e uno em si mesmo; por isso, Heidegger desi- gna-o como o mesmo, o continuo, o perseverante, que perpassa todos os destinos e do qual estes brotam repentinamente como rebentos, como o imperecivel nos destinos efemeros; face a mul- tiplicidade destes, ele e «unico» ou seja, «o singular absoluto na singularidade incondicionada» (Der Satz vom Grund. SvGr Pful- lingen 1957, 143; a este proposito e sobre os restantes textos:

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comparar J. Lotz, «Martin Heidegger und Thomas von Aqnin», Pfullingen 1975, sobretudo 65-73). Como se deve determinar inais exactamente, o ser-mesmo enquanto uno, fica em aberto, pois ele so com dificuldade e acessivel. De modo semelhante, e discutida a, mesma questao na conferencia «Tempo e Ser» (ZS do ano 1962) ; publicada em «Zur Sache des Denkens», Tubingen 1969, 1-25) : a questao nao e abordada tematicamente, mas e deixada por tocar apos o desenivolvimento ter atingido o seu limite. Nas afirmag5es: «ele ha tempos e «ele ha (es gibt) ®er», o ele (es) designa «provavelmente algo de excelente que nao pode ser aqui anali- sado» (ZS 19) . Desistimos «da tentativa de determinar a marcha singular do «ele» (es) isoladamente» (ZS 19). «Isto significa, contudo, reconhecer a incapacidade de pensar justamente aquilo que aqui se deve pensar» (ZS 21). TaJvez ate seja «mais aconse- lhavel nao renunciar so a resposta, mas ja a pergunta» (ZS 21). Todavia, a questao e levada um pouco mais por diante, enquanto o haver no «ele ha ser», e explicado a partir do acontecimento a palavra fulcral daquela conferencia. O ser pertence ao aconteci- mento e recebe dele a determinagao de presenga, ou seja, com-u- nicagao ao homem, e precisamente da pre-visao do ele (es). Simultaneamente, busca-se uma informagao sobre o ser do aconte- cimento mesmo, informagao que, evidentemente, requer um com- preeender ou determinar de ser e que precede o acontecimento. Aqui ameaga engolir-nos um circulo aparentemente inextricavel, uma vez que o ser deve ser pensado a partir do acontecimento e o acontecimento deve ser pensado a partir do ser. Por isso, ha que limitar-aios a considerar «como e que nao se deve pensar o acon- tecimento» (ZS 21).

Mais uma vez volta a urgir a interrogagao. O acontecimento da com o ser o tempo bem como a correspondent dos dois. No tempo, porem, temos que atender a quarta dimensao que, na ver- dade, e a primeira, quer dizer, atender a «unidade do atingir» (das Reichen) (ZS 14), que, relativamente as outras dimensoes, dcmina como «passadora de cada uma para as outras» (ZS 16) ; e «o atingir que tudo determina», que conforma as outras dimensoes no seu especifico em cada caso e, assim, as mantem tanto sepa- radas como unidas (ZS 16) . 0 atingir (Reichen) compreende si- mtdtaneamente todas as tres dimensoes; «simultaneamente» sig- nifica o seu «atingirem-se umas as outras» e nao que elas «existem ao mesmo tempo» (ZS 14). A simultaneidade do «triiplice atingir» [4] i

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(2S 17) e talvez o acesso mais proximo ao autentico e ultimo ele (es) , que e de acesso tao dif icil porque, na descoberta, se encobre, ou seja, se escapa na comunicagao. Contudo, «discutir isto ja nao e assunto desta conferencia» (ZS 23). «Deste modo, o ele (es) permanece indeterminado, enigmatico, e nos proprios ficamos perplexos» (2S 18). O unico ser-mesmo nao encontra explicagao.

Que signif icado tern para a nossa questao principal da dif e- renga ontologica em Heidegger, o que ate agora ficou dito? E evi- dente que se desenham dois passos da problematica. No primeiro passo, trata-se do ser comunicMo ao homem nos multiplos desti- nos; o segundo passo, pelo contrario, refere-se ao ser-mesmo que, enquanto uno, domina os multiplos destinos e, dessa forma, os ultrapassa a eles, ou seja, ao homem, de uma maneira dificil de determinar. Por outras palavras: ao ser que e determinado pelo acontecimento esta subjacente o ser pelo qual e determinado o acontecimento. Considerando o tempo, pode-seformular: na moda- lidade de duragao que e dada por meio do acontecimento, anuncia- -se uma outra duragao, atraves da qual e dado o acontecimento. Olhando a partir da diferenga ontologica, verificamos o seguinte: no primeiro passo, ela manifesta-se de modo incvpientey mas so no segundo passo e que se manifesta de modo total, e nesse pro- cesso, o primeiro passo e possibilitado pelo segundo e, sem este, esta condenado a desaparecer. Neste contexto, abre-se nova pers- pectiva de compreensao e de comunicaQao de ser; por meio do tempo, esclarece-se apenas o modus da possibttitagao, mas nao a sua origem. Alias, uma vez que o modus aponta para a arigem, Heidegger ao tratar o primeiro chega a questao do segundo; porem, supondo nela urn circulo inextricavel, deixa-a assim, sem lhe tocar.

As investigagoes realizadas por Heidegger nao passam para la do primeiro passo, tanto no que se ref ere ao caminho ascendente do homem para o ser, como tambem relativamente ao caminho descendente do ser para o homem. Neste primeiro passo trata-se do ser que haibita no ente, pelo qual cada ente e tun ente e o homem e aquele ente distinto que, enquanto ser-ai (Da-sein) realiza a revelabilidade do ser, ou seja, em quern o ser ressalta do ente e assim se descobre como ele proprio; isto identifica-se com o acon- tecer da diferenga ontologica descoberta. Por este meio, sem mais, esta descoberto o ser epoccd; dele vale que precisa do homem, depende dele ou esta a ele ligado, que, alem disso, e apenas urn

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destino f inito, ou seja, apenas uma participagao da plenitude do ser-mesmo que o ultrapassa ; este ultimo escapa-se na comunicagao ou esconde-se na descoberta. Ai reside aquela identidade entre o ser e homem que, contrariamente a Hegel, nao se apresenta como dialectica mas sim como historica; segundo isto, a ligagao do ser ao homem nao e uma ligagao aibsolutamente necessaria, mas uma ligagao que acontece de cada vez e que traz consigo, portanto, uma certa eontingencia. Esta expressa-se em Heidegger quando ele fala do «jogo» que e «um jogo elevado, mesmo o mais elevado e livre de toda a arbitrariedade» (SvGr 186).

Em conf ormidade com o que acima se disse sobre Hegel, nele, por causa da dialectica, a ligagao do ser ao ente e sobretudo ao homem e def initiva e, por isso, do primeiro passo nao se pode dis- tinguir um segundo passo e, consequentemente, nem o ser nem a diferenga chegam a atingir o seu efeito (pleno. Para Heidegger, ao contrario, o ser epocal multiplo esta sem duvida ligado ao ente e nomeadamente ao homem e, portanto, a sua comunicagao nao e um processo que decorre separado do homem. Contudo, neste ser, anuncia-se o ser-mesmo, que, enquanto uno, continuo, imperecivel, se distingue dos destinos multiplos, descontinuos, eifemeros, e, com isso, no primeiro passo que foi o unico a desenrolar-se, o segundo passo nao desenrolado anuncia-se como problema ou questao. Para la do primeiro passo e no sentido do segundo, impele-nos o conhecimento de que, por causa da Epoche, o ser nao consegue apresentar-se ou actuar plenamente em nenhuma das epocas ; jamais ele e ele proprio, ou seja, o ser-mesmo ; mantem-se sempre alheado a si mesmo, isto e, contrariado e quebrado pelo nao-ser, pelo que, por conseguinte, tambem o ente nao e ele pro- prio, e alheado a si mesmo e, por causa do seu caracter fragil, ameaga escorregar para o nao-ente. Deste modo, desenlha-se, como segundo passo, aquele no qual o ser se apresenta e actua plenamente, e e totalmente ele mesmo, ou seja, o ser-mesmo, ser puro na sua plenitude inquebrada, de modo algum contrariado pelo nao-ser.

Ora ibem : como a ligagao ao ente e nomeadamente ao homem, traz consigo o caracter fragil do ser, a maneira como a diferenga ontologica, no primeiro passo, existe envolvida pela ligagao, nao e ainda adequada a peculiaridade do ser-mesmo, isto e, nao atinge ainda o efeito pleno da mesma diferenga, efeito que corresponde totalmente a sua peculiaridade mais intima. Mais uma vez se deii- [6]

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neia o segundo passo como aquele no qual actna plenamente, isto e, totaimente como ela mesma, a diferenga ontologica e, com isso, o ser-mesmo mostra-se como o nao ligado ao ente e nomeadamente ao homem, mas antes como o des-ligado ou ab-soluto, e a dife- renga ontologica significa, no mais fundo, transcendencia. Por conseguinte, a diferenga ontologica do primeiro passo aponta para a do segundo passo como seu fundamento de possifoilidade; sem esta, aquela morre, o que vem a equivaler a que, sem a transcen- dencia do ser-mesmo, a diferenga do ser epocal volatiliza-se e, f inalmente, tamfoem o ente se desfaz.

Porque, alem disso, com o tempo sao dados apenas o ser epo- cal e a diferenga epocal, o ser-mesmo e a diferenga enquanto trans- cendencia abrem uma outra especie de duragao, que se situa ante- riormente a toda a divisao epocal e, assim, significa a totalidade indivisa, ou seja, simultaneidade ou ate mesmo eternidade. Por conseguinte, delineia-se o segundo passo como aquele em que, a partir do tempo, surge a eternidade como seu fundamento mais intimo, sem o qual, o tempo realizado como tal, ou seja, o tempo humano, primeiramente, e, depois, todo o tempo, desaparece. Cor- respoiidentemente, o caminho ascendente conduz o homem para o ser so pelo facto de que este avanga, no tempo ou temporalizagao, para a eternidade; do mesmo modo, o caminho descendente conduz do ser para o homem so pelo facto de que o ser injecta no tempo ou temporalizagao uma participagao na eternidade, como forga motriz e de coesao.

Voltemos daqui a langar os olhos para o circulo aparente- mente inextricdvel que Heidegger encontrou no facto de, por um lado, o ser ser determinado a partir do acontecimento e, por outro lado, o acontecimento ser determinado a partir do ser. O cir- culo permanece inextricavel e vai desembocar numa contradigao enquanto so uma especie de ser, nomeadamente, o ser epocal, e tido em vista; ao contrario, logo que se atinge o ser-mesmo trans- cendente de que provem o acontecimento, of erece-se a solugao do circulo, que nao e um circulo def eituoso, mas um circulo que reside necessariamente na questao aqui aberta. Deste modo, tambem a possibilitagao tanto do compreender como do comunicar do ser e levada para la do modo de um e de outro, a origem de ambos. £ que, sendo o modo penetrado ate ao seu fundamento mais intimo, mostra-se no tempo ou temporalizagao em vez da eternidade abs- tracta, a eternidade concreta, que coincide com o ser-mesmo trans-

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cendente e que e origem. Aqui, delineiam-se mais uma vez os dois passas; no primeiro passo, a temporalidade surge simplesmente como modo de possibilitagao, ao passo que o segundo passo chega a eternidade como o modo mais profundo contido na temporali- dade, e este modo manif esta-se ao mesmo tempo inseparavelmente como a origem. A possibilitagao que no primeiro passo ainda nao e totalmente ela mesma e fica no fdctico, so no segundo e ela mesma, isto e, plenamente desenrolada como ela mesma, o que e o mesmo que fazer remontar o factico a sua origem fundamen- tante. Aqui brilha, a partir do que e anterior segundo o tempo, o que e anterior segundo a origem (tempore prius e natura prius), mas aquele so por este e possibilitado e compreendido.

IV. A diferenga ontologica como participagao, em S. Tomas de Aquino.

A prablematica apenas insinuada por Heidegger e por nos explicada deve ser descoberta no pensamento de S. Tomas de Aquino e conduzida cuidadosamente, com auxilio dos elementos nele encontrados, a uma solugao. Nessa taref a, pomo-nos no pro- longamento de tres pontos de vista que Heidegger nos oferece, a saber: tempo, acontecimento e ele (es) ; aos tres esta subjacente o ser segundo a sua distingao do ente, portanto, a diferenga on- tologica.

1. iA nossa discussao sobre o tempo comega na aiirmagao de Heidegger de que o simples e, no entanto, triplice «Reichen» (atingir) que tudo determina, abrange as tres dimensoes do tempo simultaneamente (ZS 14) . A extensao esta inerente a simultanei- dade como seu fundamento possibilitante, que determina as tres dimensoes, de cada vez, na sua peculiaridade e, portanto, na sua diferenga e igualmente as mantem coesas na sua unidade. A simul- taneidade, porem, e ja desde Parmenides e com mais razao em S. Tomas, o momento fundamental da eternidade, do qual resulta a duragao sem comego e sem f im, para a qual habitualmente se volta o nosso olhar. Mais proximamente trata-se do «todo simulta- neo» (ftotum simul) , trata-se da duragao total acumulada sem qual- quer divisao em urn simples; fala-se tambem do unico infinita- mente rico, agora que esta, (mine stans) , que abrange e ultrapassa a divisao e pobreza dos agoras que se substituem mutuamente ou f luem (nunc f luens) . [8]

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O iiomem tem, certamente, segundo S. Tomas, o seu lugar no tempo, no entanto, de tal forma que vive ja sempre no horizonte (in horizonte) do ponto de contacto de tempo e eternidade (Summa contra gentiles: ScG II, 81), ou seja, nos confins (in confinio) de tempo e eternidade (ScG HE, 61). O seu mais intimo ultrapassa o tempo (supra tempus: S theol 1, n, q 53, a 3 ad 3). Nele comega a eternidade precisamente a demarcar-se do tempo e a distinguir-se dele. Dai que ele nao esteja directamente no eterno, como queria Platao, mas chega a ele apenas mediatamente ou me- diado pelo tempo. O eterno mostra-se-lhe na medida em que ele experimenta o tempo ate ao seu fundamento mais profundo. Nisso, o experimentar reflexo do tempo, do tempo enquanto tempo, e decisivo, o que pressupoe que o homem nao se aifunda ou sogobra no instante singular, mas antes tem presentes muitos de tais momentos, ou seja, os abrange com um unico olhar. Mas, estando assim por cima do instante singular, ele chegou ja sempre a simul- taneidctde que esta subjacente aos multiplos instantes e a todos abraga, e a partir do qual unicamente ele esta em condigoes de rea- lizar a sucessao enquanto tal, ou seja, o tempo no suceder-se que Ihe e proprio. Por conseguinte, o experimentar o tempo enquanto tal, ou seja, como sucessao, inclui necessariamente o experimentar o eterno ou o simultaneo ; aquele remete para este como seu fun- damento possibilitante. Ai ha um distinguir-se que se identifica com a abertura da diferenga ontologica, na qual o eterno se dis- tingue do temporal ou o simultaneo do sucessivo. Todavia, como, nesse processo, se trata do eterno ou simultaneo, que esta inerente ao temporal ou ao sucessivo, a diferenga ontologica aqui atingiu apenas o ©eu primeiro passo, ou seja, ainda mao chega ao seu efeito pleno.

No primeiro passo da diferenga ontologica esta pre-delineado o seu segundo passo que S. Tomas desenvolve expressamente; um vocabulo para isso e a eternidade partkipada (aeternitas parti- cipata: S theol I, q 10, a 2 ad 1). £ que a eternidade inerente ao tempo participa na eternidade que ultrapassa o tempo, isto e, a eternidade imanente pressupoe a eternidade transcendente como seu fundamento possibilitante. No tempo esta contido apenas aquele minimo de eternidade que pertence a constituigao do tempo ; do mesmo modo, na experiencia do tempo aparece primei- ramente apenas aquele minimo de eternidade, sem o qual tal ex- periencia nao e possivel. Neste primeiro passo, a eternidade ou o

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simultaneo ainda e quebrada pelo tempo ou sucessao e, desse modo, ainda e alheada a si mesma, ainda nao e totalmente ela mesma. O simultaneo apenas e dado na sucessao e como sucessao ; a simultaneidade enquanto simultaneidade, falando como Hegel, esta ainda na abstracta nao-verdade, ao passo que, segundo a sua verdade concreta, ele nunca se apresenta de outra forma que nao seja na forma da sucessao. A oposigao entre simultaneo e nao- -simultaneo torna-se contradigao destruidora, se ambos pertencem ao mesmo piano, ou seja, o simultaneo encontra no sucessivo a sua unica e ultima realizagao. A contradigao so e superada pelo facto de o simultaneo possuir a sua realidade primeira e original desde sempre como puro simultaneo^ que descansa em si mesmo des4igado de toda a sucessao, ou seja, aJb-soluto e, portanto, inde- pendente dela (aeternitas subsistens). Unicamente este eterno e, sem qualquer auto-al'heamento, totalmente ele mesmo ou total- mente e de modo inquebrado, aquele simultaneo que coincide com o ser puro ou subsistente e que nos, em linguagem religiosa, cha- mamos Deus. O eterno sujeito a divisao so e possivel atraves da mente e de modo inquebrado, aquele simultaneo que coincide com este por meio da analogia, portanto por meio da diferenga sem- pre maior na coincidencia. Com o simultaneo puro ou subsistente atinge-se o segundo passo, no qual e so no qual a dif erenga onto- iogica chega ao seu efeito pleno e se mostra como transcendencia; so como transcendencia a diferenga ontologica e totalmente ela mesma e o seu primeiro passo sem este segundo nao tern subsis- tencia.

2. O tempo provem do acontecer que, em Heidegger, se chama acontecimento e nos da o ser num conjunto inseparavel com o tempo. Para Heidegger, o acontecimento permanece obscuro; dele apenas se pode dizer que acontece ou, quando muito, o que ele nao e. A partir de S. Tomas, porem, oferece-se para o aconteci- mento aima possibilidade de interpret aqao, a saber, a da «creatio», da criagao que nao e uma «mutatio» (S theol I, q 45, a 2 ad 2) .

A f ilosofia grega conhece apenas a «mutatio» como *f abricar' que leva uma materia existente a uma forma e, assim, produz uma coisa da natureza ou da cultura. A este fenomeno que os G^regos denominam « Vo/?;a'(;'», Heidegger aproxima a criagao, enten- dendo-a como uma forma de « 'iroltio-is '» ou como urn fazer. Com isto« nao se tern suficientemente em conta o passo verdadeira- mente enorme que, sob a inf luencia do cristianismo, o pensamento BIO]

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deu em relacjao aos Qregos, a saber: a elajboragao da criagdo, que nao e uma fabricagao mas antes nm produzir ou um brotar de caracteristicas totalmente particulares. Na criagao surge alguma coisa nao atraves de formas de uma materia dada anteriormente, mas atraves dum ohamar para fora do nada; de mode que se poe a total existencia de um ente e nao apenas a forma que determina uma materia pre-existente. Este acontecer realiza-se como saber e querer de Deus e nao necessita de modo algum de um fazer suplementar (S fcheol I, q 14, a 8; q 19, a 4; q 25, a 1 ad 4) ; e um acontecer de verdade e de amor e assim um acto pessoal de liber- dade. Ai domina a causalidade ontologica, isto e, aquela que se estende do ser ao ente, e nao a causalidade ontica que vai do ontico ao ontico e que significa essencialmente «mutatio». Quando Heidegger quer manter toda a causalidade af astada do aconteci- mento, isso significa que tern claramente em vista a causalidade ontica da qual nao distingue a ontologica.

Assim como, segundo Heidegger, o acontecimento com o tempo da o ser, assim tambem fornece com o ser o tempo, na medida em que e certo que o acontecimento mesmo nao e tem- poral, mas e temporal o ser que dele provem, apresenta um cunho essencialmente temporal. De modo semelhante, para S. Tomas de Aquino, tambem a criagao e um acontecer supra-temporal como o eterno subsistente, ao passo que aquilo que dela provem nao pode ser sendo temporal (no sentido mais lato). El que, uma vez que a pura eternidade coincide com o ser subsistente e, por conseguinte, exclui todo e qualquer ser-criado, a criagao traz consigo necessa- riamente o temporalizar do ser, e, consequentemente, tudo o que e criado tern um caracter temporal. Correspondentemente, os passos do ente criado coincidem com os diversos passos da temporaliza- gdo; segundo S. Tomas, nesse processo, ao «aevum» enquanto modo de temporalizagao do espirito puro, contrapoe-se o «tempus» como modo de temporalizagao do mundo corporal. E de novo, dentro deste, o ser-temporalizado do dominio sub-^humano se de- marca do temporalizar-se do homem, que, enquanto realizagao reflexa do tempo, ultrapassa o acontecer nao-reflexo do tempo.

A criagao e um fenomeno tao escondido, que tambem se pode dizer dele que se mantem na reserva, isto e, permanece escondido, ao ser descoberto. E isto vale sobretudo porque a cria- gao da ao ente nao so o surgir mas tambem cada momento do seu existir, portanto, na medida em que a coisa criada 4 nao so no

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comego mas constantemente, um produto. Neste sentido, podemos f ormular que o ser posto pela criagao e identico ao devir (S theol I, qlO4).

Como a «creatio» assim plenamente desenrolada so com difi- culdade e acessivel, ficou desconhecida para os Gregos e, mesmo mais tarde, o pensamento tornou a afastar-se dela mais que uma vez. Em conexao com isto, errou-se na diferenga ontologica, na medida em que ela se ref ere ao processo do ente. Nao se f oi nem vai para alem das formas onticas da processao, por isso, procura-se explicar o ente a partir do ente, o que, evidentemente, apenas adia a questao da processao, sem a resolver; isto vale para o materia- lismo dialectico e para a ciencia da natureza, na medida em que as suas afirmagoes (por exemplo sobre o eclodir original) significam algo de ultimo. De igual modo, a «creatio» e muito frequentemente entendida onticamente por aqueles que chegam a «creatio», enquanto Deus e tornado aipenas como o eaite mais elevado e se faz aproximar o seu criar do fazer de um artesao; e neste sentido que o proprio Heidegger ve a «creatio» quando a classifica entre a « 'TToirjcris » grega.

Ao mesmo tempo, porem, ele entra na diferenga ontologica, pois distingue da processao ontica a prooessao ontologica na f igura do acontecimento, processo em que este nao tern que ver apenas com o formar de uma materia, mas pura e simplesmente com o ser do ente. Neste ponto esta de acordo com S. Tomas, segundo o qual a «creatio» se refere ao ser total (totum esse) ou ao ser absolutamente (esse absolute) (S theol I, q 45, a 4 ad 1 e q 45, a 5). Portanto, se por um lado a processao ontologica e atingida como i undamento de todo o agir ontico, por outro lado a diferenga em Heidegger nao pode cuctuar plenamente ou apresentar-se total- mente como ela mesma e isto por duas razoes. Em primeiro lugar, ele nao avangou da causalidade ontica para a ontologica, e por isso e que nao quer interpretar o acontecimento como causalidade e o deixa indeterminado. Em segundo lugar, nao faz remontar o ser que provem do acontecimento ao ser de que provem o aconteci- mento, porque lhe parece que uma tal origem do acontecimento volta a cair no ente e, por isso, nao (ihe parece ser adequado ao acontecimento e lhe parece sem forga esclarecedora. A limitagao que isso implica a af irmagao que nao pode f azer-se remontar mais, de que o acontecimento acontece, mantem o pensamento num

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estado de oscilagao nada satisf atorio que impele para la de si e o acompanha ate ao ele («es) como terceiro passo.

3. Na formulagao «ele ha ser» (es gibt Sein), segundo Heidegger, o ser deve ser considerado como o dado, o aconteci- mento como o dar e o ele (es) como o que da. Nesta ordem de coisas, o ser esta de tal forma escondido no ente, que para Hei- degger, o pensamento ocidental no seu con junto, move-se no esque- cimento do ser. Ainda mais prof undamente escondido do que o ser, e, no ser, o acontecamento, mas mais escondido que nenhum outro, e, no acontecimento, o ele (es), que Heidegger apenas nomeia e toca, sem entrar em determinagao mais proxima. S. Tomas de Aquino, pelo contrario, f az remontar a Deus como Criador a «crea- tio» correspondente ao acontecimento. Esta resposta nao inte- ressa a Heidegger, pois ele conta Deus entre os entes (Hum 19 s.) e, consequentemente, fa-lo subordinar ao ser; dai que valha para ele que ele como «todo o ente nao e nem nunca e propria- mente», ao passo que o propriamente «£» permanece reservado ao ser (Hum 22). Apesar de tudo, Deus mostra-se como aquele ente privilegiado que so e acessivel a partir da verdade do ser (Hum 26 e 36 s.). O texto seguinte, numa expressao extrema- mente ousada toma Deus como ente: «Existencia e existir (Vor- handensein) sao mais diversos do que, por exemplo, as determi- nagoes do ser de Deus e do ser do homem na ontologia tradicio- nal. Porque estes dois entes continuam ainda a ser concebidos como existente (Vorhandenes)» (Plhan 250). A concepgao que aqui aparece esta certa em grande medida no que se ref ere a onto- logia pos-tomasica, que toma o homem e ate mesmo Deus em primeira IMia no sentido do existente e, desse modo, persiste numa oposigao a existencia caracterizada, segundo Heidegger, pela revelaibilidade do ser, em que, contudo, ha uma traigao a ontologia de S. Tomas de Aquino.

Quando S. Tomas denomina Deus urn ente> isso nao sucede nunca no sentido de Heidegger, mas sim a maneira do «ens» trans- cendental que, em S. Tomas, se distingue cuidadosamente do ente finito e contingente (De Ver ql, aleq21, al). Porem, a versao ultima e apropriada que S. Tomas da ao misterio de todos os mis- terios, situa-se completamente na linha do ser. Ele distingue o ser que compete a cada um dos entes (esse suum ou esse rei) ; o ser-mesmo (esse ipsum ou actus essendi) como plenitude absoluta que ainda permanece na indeterminagao; o ser comum (esse

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commune), nomeadamente o ser-mesmo enquanto tudo nele con- vem; finalmente, o ser divino subsistente (esse subsistens on esse divinum) (S theol I, q 3, a 4; q 4, a 2). Aquilo que em Heidegger, se chama o ele (es) que da, S. Tomas determina-o como o ser subsistente, de quern provem a «creatio», para cuja proximidade conduz o acontecimento de Heidegger e da qual forota o ser do ente. O ser subsistente, porem, visto a partir de Heidegger, acom- panha nao o existente mas a existencia, enquanto e a revelabilidade do ser mesmo, ou seja, o ser na sua realizagao mais alta. Do mesmo modo, nao e como o ente finito uma subsistencia que precede a realizagao, mas sim a realizagao pura mesma (actus purus), e por isso e que, mais uma vez, ele acompanha a existencia. Final- mente, o ser subsistente e o mais escondido de todos, porque, na sua comunicagao, persiste em si e, assim, permanence o abnsoluto ou des^ligado de todo o ente. Isto exprime-se em S. Tomas numa passagem muitas vezes mal enteindida mas essential, a saber: tudo o que e criado esta numa relagao real necessaria ao ser subsis- tente, ao passo que este nao admite, para si, nenhuma relagao real de3se tipo; so se diz que o que cria esta relacionado com o que e criado, porque este esta referido, em relagao real, aquele. Dai se segue que o ser subsistente domina fora da ordem total da criatura (extra totum ordinem creaturae) como o simplesmente ab-soluto, nao incluido na rede de relagoes das criaturas entre si (S theol, I, q 13, a 7) e, portanto, como o de mais dificil acesso e, por conse- guinte, muitas vezes nao atingido, tambem por Heidegger.

Aqui mostra-se a diferenga ontologica totalmente como ela mesma, ou seja, segundo o seu «mesmo» mais intimo, na medida em que o ser subsistente surge como a transcendencia ab-soluta. Mas esta e identica a igualmente absoluta imanencia; a diferenga ontologica afirma o maximo ultrapassar juntamente com a mais profunda penetragao. Com isto esta dada necessariamente a per- sonalidade absoluta; porque o ser divino e, por causa da sua subsistencia, nao apenas a revelabi'lidade absoluta, mas tambem a posse absoluta de si mesmo, o que e equivalente a auto-consciencia absoluta e a auto-disposigao e, portanto, aos actos fundamentals da vida pessoal. A autonomia pessoal corresponde apenas total- mente a diferenga ontologica plenamente expressa, ao passo que o ele (es) nao traz consigo, sem mais, tal autonomia. Ao mesmo tempo consuma-se a mesma diferenga ontologica relativamente ao acontecimento, na medida em que, a luz da personalidade abso- 0143

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luta, a causalidade ontologica se demarca claramente segundo a sua distingao da ontica. Ela apresenta-se como a comunicagao do ser a partir da lit^erdade ajbsoluta ou como aibsoluto acontecer de verdade e de amor, cuja origem e atingida a uma com o modo. Com estes tragos essenciais, descrevemos a «creatio» na qual aquilo que no acontecimento se insinuava as apalpadelas, se en- contra realizado e a dif erenga ontologica encontra finalmente a sua expressao completa, sem que nem o acontecimento degenere num fazer, nem o ele (es) num ente.

So na visao de S. Tomas de Aquino £ que a dif erenga e def ini- tiva e verdadeiramente dif erenga e, por conseguinte, o ser ver- dadeiramente ser e, portanto, o ente verdadeiramente ente e, final- mente, o homem verdadeiramente iiomem e Deus verdadeiramente Deus. Isto nao e aquele Deus rebaixado a urn ente, de quern Hei- degger diz: «a este Deus, o homem nao pode rezar nem sacrificar». Diante dele, «nao pode cair de joelhos por temor, nem, em honra deste Deus, cantar e dangar» (ID 70). Aproximamo-nos, antes, daquele «Deus Divino» (BD 71) que, como ser ajbsoluto dispoe o homem, na sua grandeza e nos seus limites, e que, como o tu absoluto, o abala e o atrai, bem como o desperta para a adoragao amorosa e para o amor adorante.

J. B. LOTZ

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