Gramado RS

De 30 de setembro a 2 de outubro de 2014

A CERMICA POPULAR BAIANA: suas origens e principais influncias

The Bahias Popular Ceramics: its origins and main influences

Celso Almeida; Mestrando em Artes Visuais na Linha de Pesquisa Arte & Design: Teoria, Crtica e Histria; PPGAV/EBA Universidade Federal da Bahia - UFBA. Professor da Escola de Engenharia da Universidade Catlica do Salvador UCSAL. n4hellz@gmail.com | celsoalmeida@me.com

Resumo

Este trabalho busca evidenciar o desenvolvimento da Cermica Popular Baiana durante os sculos at chegar ao seu estgio atual. Dos primeiros habitantes de nossa terra, os indgenas, e suas bonecas, urnas e utenslios de barro queimados em fogueiras; chegada do colonizador europeu com sua influncia na tcnica, nos equipamentos, na forma e na decorao; culminando no povo negro, com seu amor pelas suas entidades expressado num amor de mesma medida pelo barro, pela terra. Da efervescncia deste caldeiro cultural, formador de nossa identidade, vm a nossa cermica atual, arte digna e profundamente representativa de nosso povo baiano e brasileiro.

Palavras-chave: Cermica, Artesanato, Herana, Tradio, Cultura.

Abstract

This paper seeks to show the development of the Bahias Popular Ceramics during the centuries, until reaching its current stage. The first inhabitants of our land, indigenous, and their dolls, urns and clay utensil, burned at the stake; the arrival of European settlers with their influence on technique, equipment, form and decoration; culminating in the black people, with their love expressed in equal measure by the clay and the earth. The effervescence of this cultural melting pot, forming our identity, came to our current ceramics, art worthy and deeply representative of our people of Bahia and Brazil.

Keywords: Ceramics, Handicraft, Heritage, Tradition, Culture.

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Uma introduo temtica

Deem a um pedreiro escreve H. Spencer tijolos bem cozidos, duros, de arestas vivas, e ele poder construir sem argamassa uma parede bastante slida, de grande altura. Se, pelo contrrio, os tijolos so feitos de m argila, se a sua cozedura foi irregular, se so toscos, fendidos, quebrados, ser-lhe- impossvel sem argamassa construir uma parede igual primeira em altura e estabilidade. (SPENCER, s/d)

O lido com a cermica um dos mais antigos ofcios da histria humana , surgiu a partir da transformao das propriedades fsicas e qumicas da massa argilosa, de modo a suprir algumas das nossas mais bsicas necessidades: transportar e armazenar gua, preparar alimentos, honrar os mortos e os deuses, ou simplesmente para libertar nossas fantasias e o nosso imaginrio, saindo assim do ramo utilitrio e entrando no ldico, com brinquedos e miniaturas de coisas que nos cercavam e talvez ainda nos cerquem. A cermica universal. Est presente nas origens de praticamente todas as culturas. Vasos Canopos egpcios1, urnas funerrias indgenas, estatuetas pr-colombianas, o Exrcito de Terracota do Imperador Qin2 na China, todos estes so exemplos do quanto a cermica faz parte da histria da humanidade.

Sobre o barro na arte popular brasileira, Clotilde de Carvalho Machado disse:

sua maior representao so as pequenas figuras, os tipos populares, pequenos incidentes, ou fatos do nosso dia-a-dia. So frgeis na sua estrutura, mas de uma enorme fora artstica que admiramos pela sua ingenuidade e, sobretudo, pela maneira com que so elaboradas: por pessoas sem nenhuma escola de arte e que, no entanto, sabem dosar suas figuras com tal encantamento, chegando quase a lhes dar vida, doura, timidez e audcia (1977, p. 17).

Este testemunho, apesar de abordar somente a produo de cermica figurativa e/ou ldica no artesanato popular brasileiro, expressa a maneira como esta arte enraizada em nossa cultura.

Atravs deste artigo, vamos identificar e comear a traar um paralelo entre os primrdios da cermica baiana, suas origens pr-coloniais, as influncias ibrica, indgena e negra, e a cermica popular baiana na atualidade. Ao fazer isto, espero poder lanar luz importncia da preservao da cermica popular e tradicional como uma forma pura de percepo artstica, como bem disse Marlice Almeida (1994), A necessidade de criar inerente ao homem. Ela germina naturalmente e no pode ser detida. O que o homem cria com as mos, expressando a sua vida, o seu imaginrio, a forma mais primordial da arte, a necessidade do agir/ser.

1 Vasos canpicos ou canopos eram recipientes utilizados no Antigo Egito para colocar rgos retirados do morto durante o processo de mumificao, visando assegurar uma vida no Alm.

2 Exrcito de terracota, Guerreiros de Xian ou ainda Exrcito do imperador Qin, uma coleo de mais de oito mil figuras de guerreiros e cavalos em terracota, em tamanho natural, encontradas prximas do mausolu do primeiro imperador da China

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A cermica baiana pr-colonial

A Bahia , dentre os estados Brasileiros, um dos que se tm mais claras noes sobre sua pr-histria3. Organizados como sociedades de horticultores e caadores-coletores, os ndios que habitavam o territrio baiano no perodo pr-colonial, j trabalhavam com diversos materiais, dentre eles a pedra e a cermica, que so os achados arqueolgicos que mais resistiram s intempries ao longo dos sculos.

Dentre as maneiras de catalogar e analisar as diferentes produes cermicas pr-coloniais, definindo a que cultura pertenceram, destacam-se a observao da matria-prima, das tcnicas de manufatura das peas, do estilo da queima e da forma como tratavam a superfcie.

O material, a argila, um composto inorgnico, formado principalmente por silicatos de alumnio onde, geralmente, tambm h a presena de ferro, magnsio, sdio, potssio e clcio. justamente a incidncia e a intensidade da presena destes materiais na composio da argila que tornam possvel a identificao da sua fonte de extrao. Outro elemento que tambm pode ser um fator diferencial na identificao de uma produo cermica especfica o uso de determinados antiplsticos4. No caso dos antiplsticos naturais da cermica pr-colonial baiana, podemos citar alguns de origem petrolgica, como o quartzo, a mica, areias e feldspatos. Em algumas tradies cermicas indgenas, como na fase Jurubeba da Tradio Tupiguarani5, na Chapada Diamantina, h principalmente o uso de cacos de cermica triturados o conhecido chamote como um antiplstico intencional.

Antes dos portugueses introduzirem o torno cermico, as populaes indgenas que habitavam o nosso territrio usavam-se de duas tcnicas principais para a construo do corpo da pea cermica: o acordelamento e a modelagem. O uso de uma ou de outra variava de acordo com o a serventia da pea depois de pronta. No caso do acordelamento, ou roletado, ele consistia basicamente na superposio de cilindros feitos de argila, formando anis espiralados. Geralmente utilizada na produo de peas que precisam ser levantadas, a tcnica do roletado ainda hoje usada em diversas comunidades cermicas tradicionais, principalmente para a construo de potes e moringas (Figura 1). J a modelagem, por sua vez, consiste na confeco de uma pea a partir de um bloco inteiro de argila, manipulado at tomar a forma de estatuetas, cachimbos, dentre outros.

3 OTT, Carlos. Pr-Histria da Bahia. Salvador, Progresso, 1958, p. 37.

4 Antiplstico: tambm conhecido como desengordurante ou tempero, o elemento que equilibra a plasticidade da argila, podendo ser intencional ou natural.

5 Tradies e fases: termos utilizados para designar unidades culturais baseadas fundamentalmente em registros cermicos e lticos, considerando-se certos traos diacrticos que se repetem por um tempo num determinado espao. (ETCHEVARNE, Carlos. Cermica Popular, Salvador: 1994. p. 31: Acerca das primeiras manifestaes ceramistas da Bahia).

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Figura 1 Irar. Suspenso ou levantamento da pea. Tcnica do roletado

AUTOR: Arquivo Instituto de Artesanato Visconde de Mau SETRE/GOV. da Bahia

No que se refere ao processo de queima, h ai a necessidade de certo domnio da fonte calorfica, visto que, para o sucesso da empreitada, esto componentes como o tipo e a qualidade dos combustveis empregados, o tempo de exposio, o teto de temperatura e o tipo de atmosfera, influindo, assim, no formato do forno e do processo da queima. Como no havia ainda a existncia de fornos cermicos como conhecemos hoje at a chegada dos portugueses, os povos pr-coloniais (aqui referidos tambm como indgenas) utilizavam-se principalmente de poos que lhes davam a vantagem de aumentar o potencial calrico dos combustveis utilizados e fogueiras (Figuras 3, 4, 5 e 6).

No mbito do tratamento da superfcie, ou acabamento visvel, a cermica pode ser lisa alisada artifcio usado para eliminar o aspecto rugoso e spero, assim diminuindo a porosidade e tornando a superfcie mais impermevel; ou pode ser tambm decorada, imprimindo assim motivos que demonstrem traos culturais, estticos, religiosos ou de desenvolvimento tcnico (domnio da tcnica) do grupo.

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Fig. 3 Coqueiros. Empilhamento de peas para o processo de queima.

AUTOR: Arquivo Instituto de Artesanato Visconde de Mau SETRE/GOV. da Bahia

Fig. 4 Coqueiros. Montagem da fogueira para queima da produo.

AUTOR: Leandro. Arquivo Instituto de Artesanato Visconde de Mau SETRE/GOV. da Bahia

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Fig. 5 Coqueiros Incio da queima.

AUTOR: Leandro. Arquivo Instituto de Artesanato Visconde de Mau SETRE/GOV. da Bahia

Fig. 6 Coqueiros. Retirada das peas aps a queima.

AUTOR: Leandro. Arquivo Instituto de Artesanato Visconde de Mau SETRE/GOV. da Bahia

Existem diversos casos de ambos os tratamentos de superfcie ocorrer na mesma pea, como na cermica de Rio Real (Figuras 7 e 8). Por esta razo, a decorao tomada como elemento diagnstico de identidade cultural (ETCHEVARNE, 1994).

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Fig. 7 Rio Real. Alisamento da pea.

AUTOR: Leandro. Arquivo Instituto de Artesanato Visconde de Mau SETRE/GOV. da Bahia

Fig. 8 Rio Real. Conjunto de potes prontos e decorados.

AUTOR: Leandro. Arquivo Instituto de Artesanato Visconde de Mau SETRE/GOV. da Bahia

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Dentre as culturas ceramistas indgenas na Bahia, temos dois grupos principais, denominados Tradio Aratu e Tradio Tupiguarani.

Na cermica Aratu, as urnas funerrias so a pea chave de sua distino. Variava pouco suas formas de acordo com o ambiente, geralmente possuam superfcie lisa, porm podiam sim, eventualmente, receber tratamento decorativo prximo abertura. Com relao ao tamanho, a variao era de acordo com o tamanho do indivduo a ser enterrado. No ramo utilitrio, h a predominncia de panelas e tigelas, bem como as urnas funerrias. So geralmente sem decorao, exceto por uma caracterstica que distingue esta Tradio das outras culturas ceramistas da Bahia: a presena de ondulaes nas bordas de alguns vasilhames.

A tradio Tupiguarani, por sua vez, est dividida em subtradies de acordo com os elementos decorativos que as diferenciam, como a subtradio pintada, a corrugada e a escovada. Deixando de lado o aspecto decorativo, h tambm outro elemento de suma importncia na cermica da Tradio Tupiguarani, que o formato particular de determinados vasilhames que, segundo ETCHEVARNE:

apresentam figuras compostas, com ombros e pescoo acentuados e um setor carenado que serve de nexo entre duas formas, separando a parte superior da inferior. Este tipo de morfologia repete-se em diferentes tamanhos e propores, em concordncia com a sua funcionalidade. Assim, tanto urnas funerrias como panelas e potes podem refletir essa preferncia compositiva dos corpos cermicos (1994, p. 40).

Quando se fala na identificao dos grupos anteriores colonizao, a produo cermica toma um papel principal, pois permite identificar culturas e seus modos de vida cotidianos de acordo com os utenslios cermicos que fabricavam, quer seja para os ritos fnebres, quer para armazenagem e preparao dos seus alimentos. Esta anlise nos permite mapear no s a incidncia bem como a propagao destes povos e de suas culturas em todo o territrio nacional, expandindo-se alm das fronteiras do estado da Bahia. Com a chegada do portugus colonizador, a influncia Ibrica toma conta da nossa produo cermica, mas no sem ser tambm atingida diretamente pelas tcnicas que j existiam at ento, como o roletado no levantar da pea e a decorao com corantes argilosos como a tabatinga (tupi tawatinga: argila mole, com certo teor de matria orgnica, encontrada nas cores amarela e branca) e o tau (tupi tawa: argila que contm xido de ferro, queimada, adquire colorao vermelha).

A influncia Ibrica e a loua de santo negra

Apesar de mantidas diversas caractersticas do fazer cermico indgena e pr-colonial, aps a chegada dos portugueses, vindos da Pennsula Ibrica e, por sua vez, influenciados pelos mouros e civilizaes mediterrneas, a produo cermica baiana tomou novos rumos. Adquiriu caractersticas influenciadas por este branco colonizador, como o uso do torno, a vidragem, alm do uso de fornos cobertos, em formato de capela ou abbada, e no mais a buracos no cho e fogueiras, como era a queima pr-colonial.

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Foram as primeiras construes que criaram a demanda por artesos oleiros europeus. Estes Mestres Oleiros, por sua vez, repassaram populao no s a arte de fazer telhas e tijolos, mas tambm um modelo esttico que, seno copiado, era pelo menos uma estilizao dos modelos tradicionais do velho continente. Em alguns momentos, o prestgio que essas louas adquiriram permitiu douraes e a exportao para a metrpole6.

No mbito do tratamento decorativo, a pintura com arabescos, flores e espirais , da mesma maneira que os motivos geomtricos para a cermica indgena, o indicativo da influncia ibrica na pea. Em alguns raros exemplares, predominantemente na regio de Maragogipinho, h tambm a presena de pintura leo em algumas peas, sem um manuseio muito elaborado das cores, o arteso preocupa-se apenas em representar pictoricamente o ambiente ao seu redor, o rio, o cu, as rvores e as casas. Este tipo de decorao a leo um exemplar raro, hoje em dia presente apenas em colees particulares de arte popular.

O povo negro, talvez por estar - at finais do sculo XIX - preso ao trabalho escravo, teve uma influncia limitada na formao da nossa cermica. Sua contribuio principal se d na chamada Loua de Santo, ou Loua de Deus, que so elementos como talhas, porres, alguidares, ibs, quartinhas e quarties que so utilizados em oferendas aos orixs (Nao Ketu), voduns (Nao Gge) e inquices (Nao Angola). Estas louas servem tambm para armazenar os banhos de folha, nos assentamentos e confirmaes de santos, e na cerimnia do axex7

As louas de santo so influenciadas no s por elementos estticos e culturais, mas principalmente pelos religiosos, como as preferncias de determinadas divindades por uma ou outra loua, e at mesmo as suas quizilas8 e fundamentos. So basicamente peas utilitrias - que exercem um papel primordial durante as celebraes referentes aos Santos da Terra - mas h tambm a presena de peas de carter figurativo, representaes das divindades do candombl ou do sincretismo religioso, da mesma maneira como os santos catlicos tambm so representados em cermica.

6 PEREIRA, Carlos Jos da Costa, A cermica popular da Bahia apud Cermica Popular, Salvador, Instituto Mau, 1994, p. 19.

7 Axex ou Axex uma cerimnia realizada aps o ritual fnebre (enterro) de uma pessoa iniciada no candombl.

8 Quizila, nos terreiros de candombl, aquilo que tabu.

A produo da cermica popular baiana na atualidade

Dentre as comunidades produtoras da cermica tradicional e popular baiana, podemos destacar algumas, de acordo com a predominncia desta ou daquela influncia. So elas: Maragogipinho, Irar, Coqueiros, Rio Real e Barra. Cabe ressaltar que no so estas as maiores, as nicas ou as mais importantes comunidades produtoras da nossa cermica, pois ela tambm ricamente produzida em muitas outras

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comunidades em praticamente todo o nosso estado, como Jaguarari, Macabas, Nova Soure, Santo Antnio de Jesus, Ribeira do Amparo, Serrinha, Pilo Arcado e muito mais.

Distrito de Aratupe, a Vila de Maragogipinho fica s margens do Rio Jaguaripe, e considerado um dos maiores, seno o maior, polo produtor de cermica popular do pas. A influncia Ibrica est representada no s na variedade da decorao, cheia de arabescos e florais, mas tambm nos tornos com que so produzidas as peas nas formas de bilhas, cntaros, porres, moringas, talhas e resfriadeiras. Na Vila de Maragogipinho so os homens que fazem a parte mais dura do trabalho (caracterstica no s desta comunidade, mas de muitas outras no estado), eles so responsveis pela colheita da matria-prima, pelo preparo da massa (processo de amassagem da argila) e pelo levantamento das peas. s mulheres, cabe a tarefa de brunir (brunimento: processo de esfregar a pea semi-seca com sementes, sabugo de milho, cacos ou seixos, conferindo brilho e polimento superfcie do objeto) e a decorao com pintura usando pinceis de pelo de gato.

Excetuando-se Rosalvo e Joo, irmos santeiros cujas peas sofrem forte influncia barroca e de um rebuscado rococ, so raros os exemplos de cermica figurativa em Maragogipinho. A nfase nas figuras zoomorfas (boi de bilha), antropomrficas (moringas com formato de baianas) e nas louas utilitrias, que, por sua vez, tambm estendem-se aos caxixis, que so as miniaturas destas louas, geralmente feitos por aprendizes, que no assumem pintura alguma (exceto o vidrado) e, alm do uso decorativo, ajudam no processo de queima, como enchimento de forno.

Irar, vila rural s margens do Rio Paraguass, possui uma cermica de forte influncia indgena, incluindo ai algumas formas que se assemelham s antigas urnas funerrias usadas pelos ndios, e negra, com grandes porres utilizados para armazenar gua.

Uma curiosidade da produo cermica so as cruzes que os homens, aps coletar o barro nas serras e triturar com pilo, marcam nas bolas, ou moleques, com as quais retiraro os pedaos na hora de suspender as peas. Este sinal de cruz, produto de f, feito porque tudo com Dus ajuda.

A produo de Irar consiste em potes, tachos, panelas, cabors, porres, caqueiros, fogareiros e etc, sempre bojudos (pela influncia indgena) e de cor vermelho escura, vibrante. Esta cor vem da colorao com o tau e do brunimento com seixos rolados e sabugo de milho. As peas so queimadas em fornos redondos, feitos de tijolos macios e abertos no topo.

Em Coqueiros, tambm s margens do Rio Paraguau, localidade do municpio de Maragogipe, o ofcio com a cermica uma atividade feminina, j que os homens, exceto por alguns poucos que fabricam alguidares para torrar farinha, ocupam-se da pesca e do pequeno comrcio.

Com uma produo constituda basicamente de panelas, travessas, alguidares, tachos, fogareiros e frigideiras diversos, e sua suspenso segue a tcnica indgena do roletado, com pintura em tau e brunimento com seixos rolados. Outra caracterstica nica de Coqueiros que as ceramistas possuem outro lugar, separado da residncia,

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para a confeco das peas; a chamada casa do barro, geralmente de taipa (hoje em dia sendo substitudas pela alvenaria) e sem maiores confortos. J o processo de queima, sim, uma atividade comunitria, mais uma vez ai incide a influncia indgena, com as peas sendo acomodadas numa fogueira ao ar livre, em forma de cone, com a observncia e o domnio da fonte calorfica, como a direo do vento, altura das chamas e, especialmente, o momento exato de se mexer na fogueira e retirar as peas (quando se atinge a temperatura desejada).

So estas, as Cermicas de Coqueiros, as muito conhecidas (e preferidas pelos donos de restaurantes) louas que acompanham os pratos tpicos da cozinha baiana.

Em Rio Real, cujo maior expoente so os diversos tipos de potes em alto relevo (infelizmente hoje em dia quase em extino), produzem-se peas de forte influncia ibrica (no s na forma, mas tambm na decorao, com motivos rendados na pintura) que vo de moringas de diversos tipos, as simples, as moringas galinha, as moringas cabaas com dois ou mais bojos at panelas e alguidares. Como na maioria das comunidades ceramistas, os homens so os responsveis pela coleta da matria-prima, e as mulheres as responsveis por preparar a massa e suspender as peas, usando mais uma vez a tcnica do roletado, o tau e o brunimento com sementes de mucun ou olho de boi. uma cermica de decorao delicada, feita com o prprio barro dissolvido em gua e aplicado com insope9. A queima feita em fornos redondos, usando como combustvel lenha e gravetos de candeia, camaari e catinga de jacar, demonstrando outra vez o domnio da combusto dos materiais.

A cermica produzida em Rio Real demanda uma particular ateno, pois vem sofrendo com a reduo do nmero de artess e, cada vez mais, a dificuldade de ainda se conseguir barro de boa qualidade nos barreiros da regio.

Finalizando este trabalho, a cermica de Barra mais um exemplo da influncia indgena e ibrica na nossa cultura popular. L se fazem potes, diversos tipos de moringas (moringas-moa, galinha, pato), santos, miniaturas e castiais. O processo comea com a coleta da argila s margens do Rio So Francisco, depois a pilagem e amassagem do barro (trabalho realizado por rapazes) e, depois, o levantamento das peas ai sim, j pelas mulheres usando roletado e brunindo mais uma vez com seixos e sementes de mucun.

A decorao varia. A pea pode ser pintada com tau e decorada com tabatinga branca, ou o contrrio, usando-se sempre chumaos de algodo amarrados numa talisca como pincel, com a queima feita mais uma vez comunitariamente, em fornos lenha.

10 Insope um pincel feito com fiapos de tecido amarrados a um talinho de palmeira pindoba.

Concluso

Todo o processo evolutivo da cermica popular baiana foi baseado numa sequncia cumulativa de influncias. Primeiro os indgenas, pr-coloniais, desenvolveram suas tcnicas e aprimoraram o processo da queima e uso de diversos tipos de materiais, depois vieram os portugueses e sua influncia ibrica, que nos trouxe um

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enriquecimento nas formas, na variedade, na construo e na decorao das peas; e, por ltimo, mas no menos importante, os negros, que acrescentaram um tempero ldico coisa, estabelecendo uma relao barro + vida, to bem sacramentada quanto nos tempos de Ado e Eva.

Esta cermica popular, hoje em dia alvo de intensas influncias de design e decorao prprias do mundo industrializado que nem sempre so positivas, pois geralmente interferem no mtodo de produo e na forma estilstica tradicional no podem perder a sua essncia, tcnicas e caractersticas principais, sob pena de assim perdermos um pouco da nossa prpria essncia, do nosso prprio ser, enquanto tambm o resultado de um caldo de miscigenao e adaptao. Cabe no s aos governos e s pessoas, mas tambm populao acadmica, o estudo e a preservao deste nosso bem maior, a nossa histria.

Referncias

SPENCER. Introduction la science social Chap III apud SIGHELE, Scipio. A multido criminosa ensaio de psicologia coletiva . Rio de Janeiro, eBooksBrasil, 2006, p. 11.

MACHADO, Clotilde de Carvalho. O Barro na Arte Popular Brasileira. Rio de Janeiro: 1977, p. 17

OTT, Carlos. Pr-Histria da Bahia. Salvador, Progresso, 1958, p. 37

Cermica Popular, Salvador, Instituto Mau, 1994, p. 19

ETCHEVARNE, Carlos. Cermica Popular, Salvador: 1994. p. 31: Acerca das primeiras manifestaes ceramistas da Bahia

ALMEIDA, Marlice. Cermica Popular, Salvador: 1994. p. 53: A obra realiza-se no momento da criao

_______________. Ensaio sobre a Feira dos Caxixis. Salvador: 2007

_______________. Cermica Popular Baiana: Coqueiros, Irar e Rio Real. Apresentao para o Congresso Nacional de Tcnicas para as Artes do Fogo, So Bernardo do Campo, 2008

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