A Arte e o Poder Do Novo Cinema

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Uma margem no centro: a arte e o poder do “novo cinema” Paulo Filipe Monteiro * Índice 1 Esquerda, direita, margem, centro 1 2 A morte do velho cinema e o assassi- nato do cineclubismo 2 3 Novas condições para um novo ci- nema 4 4 Contra-tendências e contrariedades 7 5 O Centro Português de Cinema e o cerco 11 6 A primavera marcelista 17 7 Algumas características do novo ci- nema 19 8 A difícil relação com o público 22 9 Mais reviravoltas e desfasamentos 25 10 Bibliografia 27 1 Esquerda, direita, margem, centro Casos como o de Balzac, Ezra Pound, Céline ou mesmo Eliot e Pessoa, têm sido usados para mostrar que, por paradoxal que pareça, há por vezes ligações entre práticas artísticas das mais revolucionárias e posições políticas das mais conservadoras. O estudo do cinema português das últimas décadas pode ajudar a * Publicado in Luís Reis Torgal (coord.), O Cinema sob o Olhar de Salazar, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 306-338 lançar alguma luz sobre esse paradoxo, mos- trando como se pode criar e desenvolver esse tipo de combinações. Sublinhe-se que o cinema português dos anos sessenta não foi politicamente conser- vador: o paradoxo foi muito menos dos ci- neastas do que do regime, que desde muito cedo, com António Ferro, incorporou um programa estético vanguardista. Dizemos apenas que, ao contrário do movimento cine- clubista, que o Estado Novo, mesmo na sua face marcelista, não hesitou em extinguir, o chamado “novo cinema” pôde, ainda antes do 25 de Abril, controlar todos ou quase to- dos os lugares da instituição-cinema, tendo assim nas mãos o poder de produzir, ensi- nar e criticar, apesar do seu alinhamento po- lítico à esquerda. Uma situação contraditória a que aliás se vieram juntar, mais tarde, ou- tras duas: durante o período revolucionário do Verão de 1975, o grupo do novo cinema foi afastado a favor dos cineastas do velho ci- nema; e, nos anos noventa, foram duas pes- soas há pouco saídas da área comunista as chamadas a defender e gerir um modelo libe- ral e populista que procurou durante algum tempo acabar com a hegemonia que o grupo do novo cinema tinha conseguido recuperar com o 25 de Novembro. Esse poder dos autores do novo cinema,

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Ensaio de Paulo Filipe Monteiro.

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  • Uma margem no centro: a arte e o poder do novocinema

    Paulo Filipe Monteiro

    ndice1 Esquerda, direita, margem, centro 12 A morte do velho cinema e o assassi-

    nato do cineclubismo 23 Novas condies para um novo ci-

    nema 44 Contra-tendncias e contrariedades 75 O Centro Portugus de Cinema e o

    cerco 116 A primavera marcelista 177 Algumas caractersticas do novo ci-

    nema 198 A difcil relao com o pblico 229 Mais reviravoltas e desfasamentos 2510 Bibliografia 27

    1 Esquerda, direita, margem,centro

    Casos como o de Balzac, Ezra Pound, Clineou mesmo Eliot e Pessoa, tm sido usadospara mostrar que, por paradoxal que parea,h por vezes ligaes entre prticas artsticasdas mais revolucionrias e posies polticasdas mais conservadoras. O estudo do cinemaportugus das ltimas dcadas pode ajudar a

    Publicado in Lus Reis Torgal (coord.), O Cinemasob o Olhar de Salazar, Lisboa, Crculo de Leitores,2000, pp. 306-338

    lanar alguma luz sobre esse paradoxo, mos-trando como se pode criar e desenvolver essetipo de combinaes.

    Sublinhe-se que o cinema portugus dosanos sessenta no foi politicamente conser-vador: o paradoxo foi muito menos dos ci-neastas do que do regime, que desde muitocedo, com Antnio Ferro, incorporou umprograma esttico vanguardista. Dizemosapenas que, ao contrrio do movimento cine-clubista, que o Estado Novo, mesmo na suaface marcelista, no hesitou em extinguir, ochamado novo cinema pde, ainda antesdo 25 de Abril, controlar todos ou quase to-dos os lugares da instituio-cinema, tendoassim nas mos o poder de produzir, ensi-nar e criticar, apesar do seu alinhamento po-ltico esquerda. Uma situao contraditriaa que alis se vieram juntar, mais tarde, ou-tras duas: durante o perodo revolucionriodo Vero de 1975, o grupo do novo cinemafoi afastado a favor dos cineastas do velho ci-nema; e, nos anos noventa, foram duas pes-soas h pouco sadas da rea comunista aschamadas a defender e gerir um modelo libe-ral e populista que procurou durante algumtempo acabar com a hegemonia que o grupodo novo cinema tinha conseguido recuperarcom o 25 de Novembro.

    Esse poder dos autores do novo cinema,

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    que manifestaram uma extraordinria capa-cidade simultaneamente artstica e organiza-tiva, parece que no impediu, antes poten-ciou, o tipo de posies esteticamente van-guardistas de que procurarei enunciar algunstraos, e nelas que temos de procurar asexplicaes para as contradies enunciadas.Que essa nossa vanguarda esttica possa terocupado os lugares centrais, ao contrrio doque usualmente acontece e do que foi a ten-dncia do cinema mundial na segunda me-tade do sculo, eis outro paradoxo maior emuitas vezes mais frtil.

    2 A morte do velho cinema e oassassinato do cineclubismo

    O novo cinema nasceu, em Portugal, quase apartir do nada. O cinema anterior, que tinhavivido o seu apogeu nos anos quarenta, assis-tira durante a dcada de cinquenta a uma irre-versvel decadncia, em termos de ideias, derenovao esttica, de pblico, e at, pura esimplesmente, de produo. Basta dizer queem 1955, geralmente referido como o anozero do cinema portugus, no se produziunenhuma longa-metragem portuguesa.

    O problema no estava na falta de procura:nos anos quarenta, o nmero de salas quaseduplicara, o mesmo acontecendo ao nmerode espectadores de cinema: sintoma, de-certo, de alguma expanso econmica (comaumento da taxa de industrializao), de umareduo da taxa de analfabetizao para 40por cento, bem como da popularidade atin-gida pelo cinema em geral, e pelo cinemaportugus em particular, nos anos trinta equarenta. Esse aumento da procura tornavamais gritante a decadncia da produo na-cional, iniciada ainda nos anos quarenta, a

    ponto de, em 1948, o Estado Novo se ter de-cidido pela primeira vez a promulgar umalei de proteco que instituiu um Fundodo Cinema Nacional onde os produtorespassaram a poder ir pedir subsdios e em-prstimos para as suas produes: ao mesmotempo, estabeleciam-se quotas para a exibi-o de filmes portugueses.

    Isso no chegou, no entanto, para travar adecadncia de um cinema que os cineastasmaiores abandonavam, de que o pblico de-sertava e que, salvo raras excepes, levavaas empresas falncia, mesmo com os di-nheiros pblicos e com produes cada vezmais modestas. Nem o recurso a nomes fa-mosos da revista, da cano, do toureio, dociclismo ou do hquei em patins, ensaiandovariaes das frmulas cmicas, folclricase sentimentais, nem to-pouco o recurso a al-gumas co-produes com o estrangeiro, tra-vou a degradao, quantitativa e qualitativa,do cinema portugus, bem patente nesse n-mero zero de longas-metragens registado em1955.

    Muitos dos cineastas tiveram, ento, de re-correr s curtas-metragens, sempre ou quasesempre documentais, cuja quantidade (em-bora raramente a qualidade) no cessou deaumentar na dcada de 50, devido polticade subsdios do novo Fundo do Cinema (quequase sempre apoiou mais documentrios doque fices) e tambm s encomendas de ser-vios pblicos ou religiosos e de algumasempresas privadas. A prpria publicidade foirecorrendo ao cinema em ritmo crescente, talcomo os cineastas foram recorrendo publi-cidade como ganha-po. A partir do final dadcada, foi nos documentrios e na publici-dade que primeiro se revelaram muitos dosnomes daqueles que vieram mudar o nossocinema.

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    Para compreender bem o significado dotriunfo dessa nova gerao, h que frisar queele foi conseguido sobre as cinzas dos movi-mentos mais politicamente perigosos para oEstado Novo, como o cineclubismo e o neo-realismo. Comecemos pelo movimento ci-neclubista. Os mltiplos cineclubes, onde seexibiam filmes, se animavam publicaes eat, nalguns casos, se faziam filmes de for-mato reduzido, vinham protestando contra asituao do cinema portugus, a que a re-vista Imagem chamou, em 1952, cidadelade analfabetos e comerciantes. Em Agostode 1955, realizou-se em Coimbra o primeiroencontro nacional dos cineclubes portugue-ses; nas suas concluses, defendia-se a ne-cessidade de uma legislao adequada queregulasse o "Estatuto do Cinema No Co-mercial", uma maior facilidade na obtenode cpias de filmes, a edio de documen-tos e revistas especializadas, e lanava-se aideia da criao de uma Federao Portu-guesa dos Cineclubes, agrupando uma vin-tena de cineclubes, que na poca representa-vam uma enorme massa associativa. A res-posta estatal no foi nada favorvel. Em1957, foi proibida a exibio livre do filmede formato reduzido. Em 1958, realizou-se,em Santarm, o ltimo dos encontros naci-onais dos cineclubes; o de 1959 foi proi-bido. O ataque movido pelo Estado Novo,ataque que se estendeu das barreiras con-tratao de filmes censura e prpria inter-veno policial, veio cercear drasticamente omovimento dos cineclubes, cujo apogeu, re-gistado nos anos quarenta e cinquenta, nopde assim prolongar-se na dcada seguinte.No documento de 1967 O Ofcio do Cinemaem Portugal, de que adiante trataremos, l-se: A desconfiana oficial acerca do Movi-mento acabou por reduzir a sua vitalidade a

    partir sobretudo de 1959, ano em que chegoua ser proibido um 5o Encontro marcado paraTorres Vedras. Em dez anos, o Movimentoperdeu mais de 20.000 scios e actualmenteapenas funcionam 18 cineclubes, quando nanaquela poca havia cerca de 40. Perver-samente, o prprio Decreto-Lei n.o 40 572,de 16 de Abril de 1956, ao criar a FederaoPortuguesa dos Cineclubes, tornava-os sim-ples episdios do circuito comercial de artee ensaio e sobretudo punha debaixo de con-trolo o que antes era um movimento dispersoe subversivo; depois, j nos anos sessenta,vir o saque das instalaes e dos documen-tos dos cineclubes.

    Estes so assim destrudos antes de pode-rem dar frutos visveis a nvel da produode grande formato, com que no entanto so-nhavam: o nico filme que se pode conside-rar como filho do movimento cineclubista Dom Roberto, de Jos Ernesto de Sousa, di-rigente cineclubista que consegue financiar erodar o filme sem qualquer apoio estatal, gra-as ao entusiasmo do movimento. Essa se-ria a sua maior novidade, mas faria do filme,justamente, um caso parte no novo cinema,que no mais seguiria um esquema de produ-o deste tipo.

    Apesar da novidade do esquema de pro-duo, ainda hoje a generalidade dos crti-cos e historiadores do cinema portugus fazquesto em sublinhar que no foi com estefilme que se iniciou o novo cinema; o queevidencia uma convergncia (embora, evi-dentemente, por razes diferentes ou mesmoopostas) entre a destruio do movimento ci-neclubista e o tipo de estratgia, organiza-tiva e esttica, adoptada pelos homens donovo cinema. Estes viam em Dom Robertoum resqucio do neo-realismo que rejeitavam(mais ainda do que o poder poltico da poca,

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    que, mesmo a contra-gosto, sempre toleravao neo-realismo literrio predominante nosanos sessenta e at apoiar algumas adapta-es cinematogrficas dessa literatura.

    Dom Roberto tem sido comparado, comalguma razo, aos filmes com que ManuelGuimares experimentou, em 1951 e 1952,fugir ao tom euforizante e patritico, procu-rando que o nosso cinema acompanhasse arenovao que noutros pases se iniciara logoa seguir Segunda Guerra Mundial. Apesarda recepo entusistica que os grupos maisoposicionistas dedicaram logo ao primeirofilme (Alves Redol, Cardoso Pires, PiteiraSantos, Fernando Namora, Lus FranciscoRebello escreveram a favor de Saltimban-cos, e a revista Imagem dedicou-lhe mesmoum nmero especial), Portugal mantinha-se, nessa como noutras matrias, orgulhosa-mente arcaico. E esse breve eco do cinemaneo-realista italiano nem sequer teve segui-mento na carreira deste realizador, que, de-pois de um terceira tentativa, entre 1953 e1956, com graves dificuldades de produo ecom drsticas amputaes pela censura, aca-bou por tentar, em 1958, o recurso comer-cial a uma canonetista da moda, alm deenveredar pelos documentrios. Quando bre-vemente voltar ao neo-realismo, em 1963 e1965, j o neo-realismo cinematogrfico es-tar a ser ultrapassado nos seus beros itali-ano e francs, e no tem condies para vin-gar em Portugal, onde, em termos de cinema,quase no chegou a existir. Adiante veremoso que o novo cinema tem a propor como al-ternativa. Antes, no deixemos de ver emque suportes institucionais assenta.

    3 Novas condies para um novocinema

    H vrias frentes com que o Estado, aomesmo tempo que desmembra os cineclubes,passa a gerar uma srie de transformaesdo cinema portugus. A primeira delas ateleviso. Em 1955, o tal ano zero da pro-duo de longas-metragens, como que emcoincidncia simblica e negativa (Lus dePina, 1987, p.123), criada a Radiotelevi-so Portuguesa, por decreto de Marcelo Ca-etano, ento Ministro da Presidncia. As pri-meiras emisses experimentais tm lugar em1956 e as regulares a partir de 1957. De al-gum modo, verdade que o incio da televi-so vem prolongar a crise do cinema, criseque o Estado no pode (ou no quer) resol-ver, agora que outro meio infinitamente maispersuasivo - a TV - lhe pertence por inteiro(Pina, 1987, p.139). O Estado v nela o me-lhor veculo para a sua ideologia, quando nomesmo para a pura propaganda, o que dimi-nuir o investimento no cinema. Mas, poroutro lado, repare-se que, uma vez que nestapoca o Estado no um tradicional finan-ciador dos nossos filmes, este menor inves-timento tem sobretudo conotaes positivas:significa que o cinema ficar mais liberto deencargos ideolgicos e gozar de uma liber-dade maior, ainda que, j se v, muito re-lativa; em breve, como j veremos, os di-nheiros do Fundo de Cinema iro por vezesabranger cineastas e mesmo filmes que ath pouco tempo no faziam parte do hori-zonte do cinema que em Portugal se desen-volvia e autorizava. A prpria televiso nofoi buscar os artistas e tcnicos do velho ci-nema: parecia querer afirmar-se diferentedo cinema, j que, nestes anos de crise, dei-xou uma srie de cineastas em ms condi-

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    es econmicas para ir buscar EmissoraNacional e a outras entidades os realizadorese tcnicos de que precisava... (Pina, 1987,p.123), e que sero um dos ncleos da novagerao do cinema portugus.

    Em relao mais directa com o cinema,o Estado promulga em 1959 e 1960 vrialegislao, no particularmente renovadora,e d, a j com efeitos decisivos, um novoflego a dois organismos recentes: a Cine-mateca e o Fundo do Cinema. A Cinema-teca Portuguesa tinha j sido criada em 1948,mas s abre ao pblico em 1958, comeandodesde logo a organizar ciclos estrangeiros degrande novidade e interesse. Desses cicloster especial impacte a Retrospectiva do Ci-nema Mudo Americano (1913-1929). B-nard da Costa (1983) comenta: Seixas San-tos e Antnio Pedro Vasconcelos escrevemem 1965, na Tempo e o Modo, que a Retros-pectiva do Cinema Americano "era, no nossoPas, o maior acontecimento cultural desdeo aparecimento do Orfeu". Exagero? "Ter-rorismo"cinfilo, bem prprio desses anos?Em parte. Mas o que todos queramos sa-lientar era o que pela primeira vez vamos:o glorioso passado duma arte, tantas vezeschamada a arte do nosso tempo, e que, pelaprimeira vez, era revelado a uma gerao.Ou seja, o que a Cinemateca provocava, oupelo menos apoiava, junto da nova geraode criadores e espectadores, era a redefiniodo cinema como arte - conceito que antes ra-ras vozes (como Manoel de Oliveira e JosRgio) tinham defendido, contra a produonacional.

    Mesmo fora da Cinemateca, houve poressa altura uma certa liberalizao nos filmesestrangeiros que tinham exibio autorizada(em relao aos portugueses, a censura eramais rgida). A abertura de horizontes foi

    completada por um indito movimento edi-torial relativo s novas perspectivas do ci-nema, em obras originais ou tradues. Em1967, o relatrio O ofcio de Cinema emPortugal sublinhar: de notar que esteesforo editorial no foi um acontecimentofortuito, mas sim o fruto de um clima geralde entusiasmo criado volta do cinema pe-los cineclubes, e que o seu aparecimento consequncia directa do declnio destes.

    Alm disso, renovou-se a crtica, no s,como at a, em revistas especializadas, masnos prprios jornais dirios, que passaram areconhecer o cinema ao lado das outras ar-tes. O prprio Fundo do Cinema subsidiou arevista Filme, dirigida por Lus de Pina, quese comeou a publicar em 1959. No seuno 20 Novembro de 1960 a revista de-dicava um dossier ao que j chamava "novoCinema portugus, afirmando, pela pena doseu director, "que este, vivendo nos ltimosanos de uma desconsoladora mediania, pre-cisa de sangue novo. Os que ficaram paratrs, alimentando-se das prprias limitaese criando o mito da impossibilidade de fa-zer cinema em Portugal, parece j nada te-rem para dizer. O futuro do Cinema portu-gus est pois nas mos das personalidadesque reunimos nestas pginas". Seis anos de-pois das apstrofes da Imagem (que cessoua sua publicao em 1961), era a certido debito, feita de dentro, do cinema dos anos50. E, entre as "personalidades reunidas nes-tas pginas", figuravam nomes que depoismuito dariam que falar, quase todos eles per-tencendo j aos quadros da R.T.P. (Bnardda Costa, 1991, p.115).

    Em 1958, entra para titular do Secreta-riado Nacional de Informao (SNI) CsarMoreira Baptista, homem que tinha pou-cas iluses quanto capacidade dos cine-

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    astas no activo e que, para poder prosse-guir uma obra no cinema, necessitava dedescobrir novos talentos (Bnard da Costa,1991, p.114). Deu-se ento, escreve JooMrio Grilo (1992, p.157), uma inflexoassinalvel na poltica do ento SNI, que,entre outras coisas, administrava os dinhei-ros do Fundo: efectivamente, a estagnaodo tantas vezes chamado "cinema nacional",a imperiosa necessidade de sustentar a m-quina tecnolgica da televiso e, j agora, asvozes quase consensuais que exigiam um ci-nema novo porque, como referiu Cunha Tel-les, "a degradao era tal que ningum a po-deria defender ou sustentar", fizeram comque o Fundo ensaiasse um esforo de reno-vao, implementando uma poltica de for-mao, nomeadamente com a atribuio deBolsas de estudo para o estrangeiro, e incen-tivando produtores. Repare-se que, se in-flexo houve, foi ao reencontro do vanguar-dismo esttico de Antnio Ferro, que consi-derava as comdias dos anos quarenta filmesgrosseiros, reles e vulgares, o cancro docinema portugus.

    Assim o Fundo, ao mesmo tempo quecorta cerce o movimento autnomo dos ci-neclubes, continua por sua prpria iniciativa,com mais meios e mais controlo, a renova-o por eles iniciada, acolhendo mesmo al-guns elementos no afectos ao regime, pro-curando formar os novos valores indispen-sveis renovao decerto numa tentativapara os no lanar numa oposio aberta, ousem contar at que ponto eles iriam subver-ter a ideologia e o cinema at a dominantes.O Fundo concede bolsas de estudo a algunsjovens candidatos, como Antnio da CunhaTelles e Manuel Costa e Silva (para Paris),Fernando Lopes e Faria de Almeida (paraLondres) para alm deles, mas sem apoio

    do Fundo, Jos de S Caetano cursa cinemaem Londres (1959), Paulo Rocha estuda emParis (1959-61), enquanto Jos Fonseca eCosta estagia em Roma (1961). Note-se queo ambiente que estes jovens estagirios en-contram l fora de grande renovao daspessoas e linguagens do cinema. Como re-conhece Paulo Rocha (in Silveirinha, 1994),eu tive muita sorte. Ao contrrio de algunscolegas meus tive muita sorte ao comear.No comeo do anos 60 a juventude europeiaestava na moda. Ser novo, ter ideias novasera de repente um valor. Mesmo no Portu-gal salazarista, como se poder ver pela r-pida ascenso dos novos valores.

    No regresso de Paris, diplomado em reali-zao, Cunha Telles dirige o jornal de actu-alidades Imagens de Portugal, colocado frente dos servios de cinema da Direco-Geral do Ensino Primrio a preocupaoestatal com o cinema abrangia, na altura, oensino mais elementar... e sobretudo no-meado director do I Curso de Cinema do Es-tdio Universitrio de Cinema da MocidadePortuguesa, presidido por Fernando Garcia.O curso, iniciado em 1961, tem o apoio doFundo do Cinema e do Ministrio da Educa-o; o prprio Moreira Baptista estar pre-sente na sesso de abertura. O seu sucesso desde logo avaliado pelos cerca de 200 alu-nos inscritos, por ele passando um extensogrupo de futuros realizadores e tcnicos do"Cinema Novo". Lus de Pina (1987, p.142)vir a consider-lo um embrio da nossa fu-tura Escola Superior de Cinema.

    Outra importante frente de renovao in-troduzida pelo Fundo do Cinema o apoioa um novo tipo de documentrios, em queo cinema surge como arte e no como merosuporte tcnico de propaganda turstica. Aabrir essa frente documental, estivera o nico

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    novo dos antigos cineastas: Manoel deOliveira. A sua posio destacada deve-se, porm, ao apoio dos cineclubes, quelhe tinham realizado homenagens (nomeada-mente o Cineclube do Porto, em 1954), etambm ao seu prprio esprito de iniciativae tenacidade. Em 1955, depois de ver re-cusado o apoio longa-metragem Anglica,Oliveira desloca-se Alemanha para estudaras questes tcnicas da pelcula e fotogra-fia a cor e, com aparelhagem que ele pr-prio adquire, escreve, produz, realiza, foto-grafa e monta O Pintor e a Cidade, de 26minutos, estreado no S. Luiz, em Lisboa,em 1956. O filme talvez a nica vez naobra de Oliveira foi entusiasticamente de-fendido pela unanimidade da crtica. Entu-siasmo que se repetiu em Paris e em Venezae lhe valeu em 1957 o primeiro prmio in-ternacional da sua carreira, em Cork, na Ir-landa. Face a este acontecimento, em 1958,o S.N.I. decidiu emendar a mo. E atribuir-lhe, pela primeira vez, dois subsdios que vi-riam a permitir j nos anos 60 O Actoda Primavera e A Caa (Bnard da Costa,1991, pp.110-111), alm de lhe dar o prmiopara a melhor fotografia. Entretanto, a Fe-derao Nacional dos Industriais de Moagemencomenda-lhe o documentrio O Po, quevem a conhecer duas verses e a estrear-seem 1959. Ao mesmo tempo, Oliveira vai fa-zendo um filme muito experimental sobre ouniverso pictrico do pintor Jlio, irmo deJos Rgio (As Pinturas do meu Irmo J-lio, rodado entre 1958 e 1965). Em 1963,a revista Plateia organiza uma homenagemnacional a Oliveira e dedica-lhe um nmeroespecial. No mesmo ano, Acto da Prima-vera, j uma longa-metragem mas ainda pro-fundamente documental, tem estreia comer-cial em Paris; recusado pela seleco ofi-

    cial de Veneza em 63, mas vem a ganhar, em1964, a Medalha de Ouro do Festival de Si-ena. S em 1964, em Locarno, A Caa eO Acto se impuseram ateno da crtica in-ternacional. Jacques Bontemps escreveu nosCahiers du Cinma (Outubro de 1964, n.o159) que A Caa era bande suffisamment part pour planer au dessus de tous les filmspresents. Pela mesma altura, Freddy Bu-ache homenageou, em Lausanne, Oliveira eTrnka. Em 1965, foi a vez de Langlois e daCinemateca Francesa. Voil plus de trenteans que Manoel de Oliveira illustre le ci-nma portugais, escrevia-se em Dezembrode 1965. S neste ano o prestgio interna-cional de Oliveira comeou, para alm dasreferncias mais antigas e altamente elogio-sas de Bazin ou Sadoul (Bnard da Costa,1991, p.122).

    Vrios outros documentrios, significati-vamente sem apoio do Fundo, vo tornarcada vez mais presentes e j visveis os no-vos caminhos do cinema portugus. Fer-nando Lopes, bolseiro do Fundo, regressa deLondres, reocupa o seu posto na Televiso, elogo em 1961 roda um primeiro document-rio, intitulado As Pedras e o Tempo, tambmclaramente em ruptura com o habitual do-cumentrio turstico; no mesmo ano realizauma srie de televiso e, no ano seguinte,dois documentrios, O Voo da Amizade e AsPalavras e os Fios. Outros documentrios denovo tipo vo surgindo, como Vero Coin-cidente e Nicotiana, de Antnio de Macedo,Faa Segundo a Arte, de Faria de Almeida,e Era o Vento... e Era o Mar, de Fonseca eCosta.

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    4 Contra-tendncias econtrariedades

    A ascenso do novo cinema conseguemesmo ultrapassar algumas contrariedades,ligadas, sobretudo, guerra entretanto sur-gida em frica: novas dificuldades volevantar-se ao Cinema portugus, que, emobras de fundo, poucas relaes tivera como ultramar [...]. A prioridade nacional dadaao conflito e nessa prioridade est o do-mnio absoluto, a "mobilizao"da RTP atrasa naturalmente as solues de fundo.As eleies de 1958, a guerra, o caso doSanta Maria expuseram e geraram mais re-volta contra o regime e provocaram o apertoda censura, que levaria s prises de cine-astas e crticos como Fonseca e Costa, VascoGranja, Henrique Esprito Santo, e at Ma-noel de Oliveira, libertado por imediata in-terveno de gente do cinema junto da Pre-sidncia do Conselho, no momento em quedecorriam as homenagens sua obra (Pina,1987, p. 44). Mais tarde, foi preso o distri-buidor Jos Manuel Castello Lopes.

    Mas o apoio dado pelo regime aos no-vos cineastas foi maior do que esses inciden-tes puderam fazer crer. Por exemplo, comolembra Bnard da Costa (1991, pp.117-118),em Agosto de 1962, o S.N.I. desceu a ter-reiro para protestar contra a afirmao queconsiderava ser caluniosa de ter recusadofundos a Manoel de Oliveira. O qual, maisou menos por essa altura, foi preso pelaPIDE. De todas essas contradies se vivia.Por isso, as leituras maniquestas no aju-dam. Esta histria do "fascismo"portugusfoi bastante mais complicada do que depoisa pintmos. Na histria do cinema isso quase exemplar. Triunfaram cineastas emque o cineclubismo tinha sido mais percur-

    sor do que ventre gerador e que, se progressi-vamente se distanciaram do Poder, tentaramcom ele a coexistncia possvel.

    Alm disso, tambm em contra-tendncia renovao, prossegue a tentativa de fazerreviver, embora com menos meios, as ve-lhas comdias, tentando assim criar suces-sos comerciais, ainda que muitas vezes como apoio do Fundo estatal como se poderver no captulo seguinte, de Fausto Cruchi-nho. O cinema dos mais velhos, com ra-ras excepes, tenta apenas, perante o recuodo pblico, os condicionalismos censrios,a falta de financiamento, a fora da TV e aameaa crescente do automvel, do disco edo fim-de-semana, uma frmula comum desobrevivncia, no momento em que o SNI(depois de 1968 transformado em Secreta-ria de Estado da Informao e Turismo) de-cide reforar o seu apoio ao cinema sobre arealidade ultramarina. E essa frmula con-siste, muito simplesmente, no embarateci-mento acentuado dos custos de produo ena escolha de argumentos sentimentais, deagrado fcil, imediato, contados numa lin-guagem acessvel, dirigida a um pblico quese presume inculto e pouco exigente, quasesempre concentrado no Odeon, que se trans-forma numa espcie de bunker do nosso ci-nema mais elementar. A regra, agora, essa:no mais a produo desafogada dos anos30/40, mas um cinema de pobre, na econo-mia e nas ideias (Pina, 1987, p.155).

    Vindo da Lisboa Filme, onde trabalharana produo durante mais de dez anos, Ma-nuel Queiroz [...] fundara a Cinedex em1962, onde vai intentar (com apoios finan-ceiros do fundo do Cinema) um esquema deproduo contnua, de caractersticas comer-ciais, [...] que, durante trs anos, iria darorigem a um surto de produo quantitativa

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    importante (dez filmes) - incluindo dois fil-mes para a infncia (um gnero quase nuncaproduzido entre ns), em torno da amizadede um grupo de crianas por um co. 1964 o ano de Calvrio: Rei da Rdio, vence-dor do 1o Festival RTP da Cano, estreia nocinema com Uma Hora de Amor. A Cine-dex, que, no ano anterior, pensara ter desco-berto um filo de dinheiro com O Mido daBica, com Fernando Farinha, aposta agorano nacional-canconetismo. O resultado foiuma srie de fitas pirosas e degradantes(Ramos, 1989, p.199). E, quando faltaremos produtores, as prprias vedetas assumi-ro essas funes e esses riscos financeiros,como ser o caso de Calvrio, em O Diaboera Outro (1969) e Tony de Matos em Der-rapagem (1973).

    Continuam tambm a experimentar-se asco-produes, sempre com maus resultadosjunto do pblico. Apesar de tudo, em ter-mos comerciais, melhor xito iam tendo al-guns desses filmes ligeiros e y-y in-teiramente portugueses, sobretudo as com-dias, com destaque para Sarilho de Fraldas,de Constantino Esteves (Eden, 1967). Mas,como escreve Leito Ramos [1989:258], to-dos eles apenas estavam a deitar as ltimaspazadas de terra sobre o corpo velho de umcinema em declnio desde o princpio dosanos cinquenta.

    Como que em contraponto s produto-ras destes filmes herdeiros do velhos ci-nema, surgiu Cunha Telles (rodeado porum punhado de gente nova), que, confiadonas hipteses de romper as barreiras, dotadode algum capital pessoal, de certos contac-tos internacionais e no malquisto nos cor-redores do poder, avanou para outro pro-jecto de produo contnua que animou o ci-nema portugus desses anos, quase sempre

    sem dinheiros do Fundo do Cinema (J. Lei-to Ramos, 1995). Tommos j conscin-cia do facto, aparentemente paradoxal, mashistoricamente inegvel que o cinema novo(...) nasceu da herana do movimento cine-clubista como das bolsas do Fundo e dos cur-sos da Mocidade Portuguesa. [...] Foi esse opano de fundo da casa produtora que CunhaTelles fundou nesse mesmo ano de 1962, jo-gando nele a sua fortuna pessoal e trazendopara ela quer os seus alunos de curso, quergente de cineclubes e da televiso (Bnardda Costa, 1991, p.117).

    M. S. Fonseca (1993) sublinha como nos havia uma estratgia de produo quevisava a continuidade (um produtor, CunhaTelles, rene sua volta os cineastas dis-ponveis disponibilidade fsica e terica,entenda-se e so eles Paulo Rocha, Fer-nando Lopes, Fonseca e Costa e Antnio deMacedo), como igualmente essa produo sedotara previamente de quadros tcnicos for-mados pelo 1o Curso de Cinema do EstdioUniversitrio de Cinema Experimental, ondeCunha Telles era tambm elemento capital,e donde, no domnio da fotografia, do some da montagem sairiam as figuras dominan-tes em todo o cinema portugus que se se-gue aos Verdes Anos. Cunha Telles produzlogo um conjunto de filmes muito bem su-cedidos em termos de recepo crtica, no-meadamente internacional. O cinema por-tugus alcanava subitamente uma repercus-so indita. Se j Dom Roberto e Os Ps-saros de Asas Cortadas tinham estreado emParis, e o primeiro tinha ganho, margemdo Festival de Cannes, o Prmio dos Jo-vens Crticos, tambm o arranque das pro-dues Cunha Telles auspicioso. Os Ver-des Anos ganha a vela de prata no Festivalde Locarno (sobrepondo-se, por exemplo, a

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    Accatone, de Pasolini) e tambm premiadoem Acapulco (contrastando com a ausnciade prmios em Portugal: no ano de 1963, emque estreiam Os Verdes Anos, Acto da Pri-mavera e A Caa, o S.N.I., pela primeira vezdesde 1944, prefere no dar prmios...); Mu-dar de Vida, tambm de Paulo Rocha, repre-senta Portugal na seleco de Veneza, Do-mingo Tarde, de Antnio Macedo, est noFestival de Berlim e no de Veneza, Belar-mino no de Pesaro e no de Salso-Porretta(e, v l, ganhou o prmio de melhor foto-grafia do S.N.I.), e as crticas internacionaisso muito favorveis, como s o foram antescom os filmes de Oliveira. Compulsando osCahiers du Cinma desses anos, sucedem-se as referncias ao cinema portugus comManoel de Oliveira, Fernando Lopes, PauloRocha, Fonseca e Costa e Cunha Telles emlugares de relevo (Bnard da Costa, 1991,p.124).

    S que, em termos de recepo do pblico,nas salas, nenhum dos primeiros filmes donovo cinema consegue obter sucesso. E, ape-sar de terem sido extremamente baratos, to-dos fazem perder dinheiro. Num texto co-lectivo da poca (Jornal de Letras e Artes,n.o 275, Abril de 1970), assinado por vriosjornalistas de renome, diz-se: No jovem ci-nema portugus verifica-se uma actualizaode processos narrativos, um apuramento fi-nal a que no ser estranha a revelao dequadros tcnicos de nvel internacional, bemcomo a sincera adeso realidade portu-guesa. [...] Pena que o pblico, desiludido,anos a fio, com os filmes portugueses e umtanto alheio s preocupaes estticas van-guardistas que animaram grande parte dosjovens realizadores, no tivesse respondidosignificativamente, levando, a curto prazo, ocinema portugus a uma nova derrocada.

    Telles experimentou, em vo, variados ca-minhos, como a adaptao literria de pres-tgio (O Crime de Aldeia Velha, de 1964, so-bre a pea homnima de Santareno e apoi-ado pelo Fundo) e a co-produo, chamandorealizadores de fora: Le Grain de Sable eVacances Portugaises, de Pierre Kast, algu-mas sequncias de La Peau Douce, de Truf-faut, e sobretudo As Ilhas Encantadas, deCarlos Vilardeb, em 1964. No teve su-cesso. No interior das "Produes CunhaTelles", a atmosfera azeda bastante, pelosidos de 67 (um pouco pela grande falta de di-nheiro, um pouco tambm pela discordnciaentre produtor e realizadores sobre o destinoa dar ao que ia aparecendo); como resultadodisso, e talvez para se demarcar ("castigar")da "fauna de ingratos", Cunha Telles decideproduzir um filme que, como escreve JooBnard da Costa, "combinasse arte e pblico,talento e plateias populares" (Grilo, 1992,p.160). Telles resolveu apostar forte emAntnio de Macedo, apesar de tudo o cine-asta que no box-office lhe dera menos ra-zes de queixa, para um filme de espiona-gem [...]. Chamou-se Sete Balas para Selma(1967) e no s o no salvou, como levou osseus companheiros de aventura a chamarem-lhe piores nomes do que aqueles que o Di-abo chamou me (Bnard da Costa, 1991,p.126). O mais radical de todos ter sido C-sar Monteiro, em O Tempo e o Modo (no 67,Janeiro de 1969), considerando que o filmepe em causa a batalha comum por um Ci-nema Novo que o senhor Macedo desacre-dita com esta Selma escancarada a toda ainanidade: um filme como 7 Balas paraSelma s pode ser encarado como empresareaccionria, carregada de balas que se des-fecham traioeiramente nas costas dos pro-

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  • Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema 11

    motores de uma revoluo cinematogrficaem Portugal.

    De modo que, em 1967, sem pblico, fa-lidas, nem a Cinedex nem as Produes Cu-nha Telles esto j activas. O primeiro f-lego da 3a Gerao morria entre desilusese recriminaes amargas, buscava-se ganha-po na publicidade, no documentarismo in-dustrial ou cultural. Cunha Telles troca aproduo pela distribuio, fundando comGisela da Conceio a empresa Animat-grafo, que seria responsvel por uma quaserevoluo no tipo de cinema visto em Portu-gal na primeira metade dos anos 70 (Berto-lucci, Oshima, Tanner, Eisenstein, Sanjines,Littin, Glauber Rocha, Vigo, Morrisey, Gil-les Carle, Karmitz, foram alguns dos realiza-dores que entraram em contacto com o p-blico portugus atravs dessa distribuidora(Ramos, 1989, p.382), a qual assim juntava,no terreno comercial, os seus esforos ao tra-balho da Cinemateca e dos ciclos que a Gul-benkian em breve iniciar.

    5 O Centro Portugus deCinema e o cerco

    Chegamos a um breve perodo em que, sea 3a Gerao quase no originou longas-metragens, atravessando um deserto de pro-duo, nem por isso esteve parada, escreveLeito Ramos [1995] (que considera que, nahistria do cinema portugus, o grupo donovo cinema constitui a terceira gerao). que o grupo que estava decidido a levar pordiante a renovao do cinema portugus deuprovas de excelente capacidade de organi-zao e de notvel auto-reflexo. Entra-sena fase que Roma Torres (1974) designoupor anos Gulbenkian. Segundo as palavras

    do prprio Bnard da Costa (1991, pp.128e 1985:33-34), o qual, desde 1969, dirige oseu Sector de Cinema, a Fundao CalousteGulbenkian, grande Fundao privada, umadas maiores do mundo, desde 1956 condu-zia uma aco que transformara a vida cultu-ral portuguesa, mas, durante os primeirosdez anos de existncia, pouco fizera pelo ci-nema. Por isso em vrias entrevistas con-cedidas pelos homens do "cinema novo"[...]a partir de 65, quando as coisas se puserammais feias, os seus ataques no visam ape-nas o Fundo ou o Palcio Foz. Comeamtambm a criticar a Fundao Gulbenkianpor nada ter feito pelo cinema em quase dezanos de existncia. Por exemplo, em 65, noPlano, Fernando Lopes diz: "em relao aocinema portugus, do ponto de vista cultural,h uma outra entidade que tem obrigaesextremamente grandes e s quais foge: aFundao Gulbenkian [...] obrigaes e res-ponsabilidades j que a cultura portuguesano se limita Literatura, ao Teatro, ao Bal-let e no sei que mais o Cinema entra atambm". Nessa mesma entrevista adianta,com algumas reticncias, a ideia de que aFundao "podia fazer aqui coisa semelhantea um Instituto Portugus de Cinema". Namesma ideia de responsabilizao da Gul-benkian comungou Paulo Rocha, que inclu-sive se referiu a ela em vrias entrevistas da-das no estrangeiro. Muitos crticos e jorna-listas reforaram esta tese, com recados maisdo que explcitos Fundao. Esta tinha jcomeado, h alguns anos, a conceder bol-sas no estrangeiro a cineastas ou candidatosa tal. Iniciara essa poltica em 61 e de bolsasda Gulbenkian tinham beneficiado (para meficar por nomes que depois seriam mais co-nhecidos ou j o eram) Antnio Pedro Vas-concelos (1961), Antnio Campos (1961),

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    Alberto Seixas Santos (1963), Manuel Gui-mares (1963), Joo Csar Monteiro (1963),S Caetano (1963), Alfredo Tropa (1963),Antnio Escudeiro (1963), Teixeira da Fon-seca (1964), Manuel Costa e Silva (1966),Elso Roque (1967), Joo Matos Silva (1968),Antnio da Cunha Telles (1968). Tinha apoi-ado os Festivais de Lisboa e outras manifes-taes espordicas. Mas at 67 apesar dealgumas solicitaes sobretudo para o docu-mentrio cultural [...] recusou envolver-senesse terreno e no havia, nos seus Serviosou Departamentos, qualquer sector de Ci-nema (s em Maio de 69, tal sector foi criadono mbito do Servio de Belas-Artes). Mas obarulho comeava a ser muito s suas portase em 67 o Dr. Azeredo Perdigo conside-rava que era tempo de pensar no problema.A ocasio surgiu, quando, nesse mesmo ano,o Cine-Clube do Porto solicitou um subsdiopara uma "Semana de Estudos sobre o NovoCinema Portugus"a realizar em Dezembro.Ao conced-lo, a Fundao adiantou uma su-gesto: que fosse "dedicada uma das sessesdo colquio, qual estaria presente consi-dervel representao de cineastas portugue-ses, ponderao de como seria desejvel,do ponto de vista do cinema e dos artistasque a ele se consagram, que a Fundao in-terviesse. Dessa sesso poderia sair um rela-trio que ajudaria a esclarecer o Conselho deAdministrao acerca dos problemas a quenos vimos referindo.

    A resposta no se fez esperar. Lus dePina (1987, pp.163-164) resume: no finalde 1967, todo o jovem cinema Portugus,com gente mais velha considerada jovem deideias, se desloca Cidade Invicta para to-mar parte na Semana do Novo Cinema Por-tugus, organizada pelo Cineclube do Porto.O fracasso das Produes Cunha Telles, a

    ausncia de possibilidades financeiras, o de-sinteresse do pblico pelo novo cinema, oevidente reforo da Censura [...], a frgilsituao do cinema portugus no mercado,o declnio do movimento cineclubista, tudoisso faz parte da agenda dos trabalhos, queinclui o visionamento dos filmes do novo ci-nema portugus. A tomada de conscinciacolectiva de todos esses problemas havia degerar um documento de fundamental impor-tncia, "O Ofcio do Cinema em Portugal",dirigido Fundao Calouste Gulbenkian,com data de 9 de Dezembro de 1967, emque os cineastas presentes na Semana (Al-berto Seixas Santos, Alfredo Tropa, Antniode Macedo, Antnio-Pedro Vasconcelos, Ar-tur Ramos, Fernando Lopes, Fernando Ma-tos Silva, Grard Castello Lopes, Ernesto deSousa, Jos Fonseca e Costa, Manuel Costae Silva, Faria de Almeida, Manoel de Oli-veira, Manuel Ruas e Paulo Rocha, notando-se a ausncia de Antnio da Cunha Telles)sugerem a criao de um centro de cinema,dependente da Fundao Gulbenkian.

    Esse documento era um estudo muitocompleto da situao do cinema portugus o mais vasto e profundo que se fazia em Por-tugal desde h dcadas, o que mostra quantoaos poderes pblicos estavam a ser ultrapas-sados, pela primeira vez desde que o EstadoNovo se impusera (Ramos, 1995). Nesseestudo apontam-se j algumas das princi-pais orientaes que iro caracterizar o mo-vimento do novo cinema, e que vale a penadestacar. Ali se pugna pela criao de um ci-nema de qualidade que garanta, no estran-geiro, um conhecimento mais exacto e vivoda nossa realidade. Desde esta segundafase, pois, o novo cinema orienta-se para umreconhecimento no estrangeiro: que o ci-nema que tm em vista no tem por enquanto

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  • Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema 13

    pblico em Portugal e, por essa mesma ra-zo, um cinema condenado, ainda du-rante muito tempo, ao insucesso financeiro:o cinema de qualidade. Logo se v, pois,que s uma instituio desinteressada dos lu-cros e com uma capacidade administrativo-econmica slida pode arcar com fardo topesado.

    Lus de Pina (1987, p.164) comenta: estedesejo de "centralizao", de depender deum financiamento garantido, aproxima-sedas intenes dos cineastas que estiveram nabase da redaco final da Lei n.o 2027 (cen-tralizadora, privilegiando a produo), quetambm desejava uma "melhoria de quali-dade"do cinema nacional, projecto to com-batido por um homem como Roberto Nobre,que via nessa dependncia de protectores acriao de um cinema de estufa, ligado aopoder por via do favoritismo, do trfego deinfluncias. Mas os cineastas do novo ci-nema no tinham iluses quanto possibi-lidade de sobrevivncia, no estreito e vigi-ado mercado portugus, do seu cinema ra-dical e, ao menos por isso, difcil; tinhamalis visto como os esforos de Cunha Tel-les haviam fracassado financeiramente nessemercado, apesar das vrias concesses emtermos de linha esttica e de relaes como poder poltico. Querendo evitar a depen-dncia do Estado Novo, os cineastas reuni-dos no Porto acharam que a melhor soluoseria convencerem a Fundao Gulbenkian aestender rea do cinema o decisivo apoiofinanceiro que j tinha dado renovao deoutros sectores da cultura portuguesa.

    Finalmente, mas afinal, talvez, primeira-mente, sublinha Grilo (1992, p.160), a ori-entao seguida revela o divrcio estabele-cido e substanciado entre produtores e rea-lizadores (consagrado na fundao do Cen-

    tro Portugus de Cinema, verdadeira coope-rativa de autores), que permanecero de cos-tas voltadas uma boa dezena de anos. O novo"Cinema Novo"passar assim, em boa me-dida, pelo apetrechamento institucional deum cinema de autores, e alis esse o es-prito do documento "O ofcio do cinema emPortugal"[...]: "A aco do Centro no cicloda produo, a verificar-se, dever confinar-se a um auxlio material, abstendo-se detudo o que possa representar limitao aocaminho livremente escolhido pelos autores-realizadores".

    A soluo pretendida pelo grupo reunidono Porto a criao de um servio novo naGulbenkian, com autonomia administrativamas dependente do seu financiamento, inti-tulado Centro Gulbenkian de Cinema. Estaproposta, porm, no aceite pela Fundao,que decide apoiar o movimento, sim, masnoutros termos: subsidiar, e apenas por umperodo experimental, uma entidade privadaque os prprios cineastas fundem e giram.Assim fundado, em 1969, o Centro Portu-gus de Cinema (CPC), sociedade coopera-tiva, perante a qual a Fundao se obrigavaa conceder um subsdio experimental peloperodo de trs anos, e que no primeiro deles(1971) orou os trs mil e duzentos contos(uma vez e meia o oramento de uma pro-duo mdia) (Grilo, 1992, p.161). Nessecompasso de espera at concretizao doacordo, a Fundao Gulbenkian criou o seuSector de Cinema, apoiou a Cultura Fil-mes, efmera empresa de Ricardo Malheiros,que nos seus 3 anos de actividade (1967-69)produziu um conjunto de curtas-metragensinserveis no novo cinema.

    Os cineastas do novel Centro Portugusde Cinema formavam, no dizer de Bnardda Costa (1991, pp.131-132), um grupo he-

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    terclito, de tendncias estticas diversas,mas com um ncleo slido (Paulo Rocha,Fernando Lopes, Antnio de Macedo, Fon-seca e Costa, Seixas Santos, Antnio Pe-dro Vasconcelos) com apetncia e capaci-dade de poder. Na constituio do Centro,dos nomes mais falados dessa gerao, ape-nas trs se podiam considerar omissos: An-tnio da Cunha Telles, afastado do grupo ini-cial pelas sequelas das polmicas do fim dassuas produes, Joo Csar Monteiro, en-fant terrible da crtica mais provocatria epor isso julgado por muitos demasiado "ex-tremista"[...] e Antnio Campos, um ama-dor autodidacta que surpreendera ainda nosanos cinquenta com algumas curtas metra-gens adaptadas de Miguel Torga e que, em1961, realizara, na senda de Jean Rouch, umdos melhores exemplos de documentarismoetnogrfico portugus em A Almadraba Atu-neira, sobre a pesca do atum. Os trs aca-baram por ingressar no Centro mas apenasem 1972.

    em Setembro de 1970 que a Fundaocontrata os primeiros financiamentos, mas oprotocolo formal s ser assinado em Setem-bro de 1971, reafirmando que a Gulbenkianno assumia o encargo de gerncia e ma-nuteno do referido Centro. O Protocolodeterminava tambm, logo na sua abertura,que o CPC seria "uma sociedade cooperativaaberta, sem discriminaes de qualquer es-pcie, a todos os cineastas interessados naprossecuo dos seus fins". (...) Ou seja,impunha-se ao CPC uma poltica de unidadee no se lhe garantia um guarda-chuva per-ptuo, o que reforava a coeso, obrigandopor exemplo Antnio de Macedo a ser "co-operante"com quem j lhe chamara em p-blico e por escrito, "incompetente"e "pobreDiabo"(Csar Monteiro) [Ramos, 1995].

    Fica-se ento espera que venha da Gul-benkian, depois dos inevitveis procedimen-tos burocrticos, o dinheiro que permitir onovo arranque. A Fundao ainda no deua resposta, e se ela no vier... dir, comironia, uma personagem do filme O Cerco,rodado em 1969 e estreado em 1970, como qual Cunha Telles, subsidiado pelo Fundode Cinema, passava realizao, anunci-ando, ou mesmo ultrapassando, os seus co-legas no lanamento do segundo flego donovo cinema. Nufrago como produtor, ob-jecto da "quarentena"que lhe tinha sido im-posta pelo grupo do "Ofcio", com vrias fa-lncias e credores no encalo, Cunha Tellesno se deixou abater e voltou aos estdiosagora como realizador. E, com um filmede escassos meios, arrancou surpreendente-mente em 1970 o maior sucesso comercialque qualquer obra do "novo cinema"at en-to tinha obtido. O filme chamou-se O Cercoe com ele voltou Portugal aos certames in-ternacionais (Quinzena de Realizadores deCannes). Cunha Telles conseguiu fazer oprimeiro filme do novo cinema novo a pa-gar os custos da produo com as respecti-vas receitas de exibio, no mercado internoe estrangeiro, e mesmo a dar lucros de 50%.Mas, paradoxalmente, depois deste sucesso,e depois de Sever do Vouga... uma Experin-cia (mdia-metragem de Paulo Rocha paraa Shell Portuguesa, de 1970), Cunha Tel-les nada produz durante treze anos apenasentra na produo, em 1973, em conjuntocom o CPC e a Tobis, do seu prprio filmeMeus Amigos; s regressar como produtorem 1983.

    O sinal [dado por O Cerco] no passoudespercebido para o poder. Este, que at aignorava escandalosamente as obras do ci-nema novo, deu-lhe os grandes prmios da

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  • Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema 15

    S.E.I.T.: melhor filme, melhor actriz, me-lhor fotografia (Accio de Almeida). Tam-bm nas curtas metragens foram dois no-vos premiados: Antnio de Macedo e Fa-ria de Almeida. O triunfo de uma geraocomeava (Bnard da Costa, 1991, pp.132-133). Entretanto, financiado pelo Fundo epor amigos e inserido na Mdia Filmes(que fundara com Fernando Matos Silva, Al-berto Seixas Santos, Alfredo Tropa e ManuelCosta e Silva), tambm Fernando Lopes con-seguir fazer, margem do CPC (a que noentanto preside), a sua primeira obra intei-ramente de fico, Uma Abelha na Chuva,adaptada do romance homnimo de Carlosde Oliveira, cuja rodagem se estendeu entre1968 e 1971, vindo a estrear em 1972 e ga-nhando tambm o Grande Prmio de Cinemada S.E.I.T..

    1972 foi o ano em que finalmente se che-gou apresentao da primeira das longas-metragens sadas do protocolo Gulbenkian-CPC O Passado e o Presente, de Manoelde Oliveira , numa sesso que contou aindacom a projeco de A Pousada das Chagas,de Paulo Rocha, rodado, em condies eco-nmicas superiores s habituais, em 1971,com dinheiro que a Gulbenkian fornecera parte do subsdio ao CPC. A solenidade foimarcada pela presena do Presidente da Re-pblica. Abrindo a sesso, o Presidente daFundao, Dr. Azeredo Perdigo, discur-sou para deixar claro que: a interveno daFundao, na absoluta impossibilidade de re-solver todos os problemas que se levantamao desenvolvimento do cinema em Portugal,tem de ser, ao mesmo tempo, modesta, pru-dente e experimental. O Presidente do CPC,Fernando Lopes, discursou tambm, mas oseu texto dilatava, inesperadamente, as mar-gens da mudana, ao dizer: "Hoje que o ci-

    nema passou o seu meio sculo de existn-cia e quando nomes como os de Griffith, Ei-senstein, Murnau, Dreyer, Rossellini, Berg-man, Jean Renoir ou Godard, se contam en-tre os valores mais importantes da culturaocidental, ao lado de Joyce, Picasso e Stra-vinski, ns portugueses e cineastas comea-mos a ver, com mais claridade e confiana,o cinema, como facto cultural, reconhecidopblica e oficialmente". Lopes , simulta-neamente, sincero e hbil nesta declarao:sincero porque, de facto, esta nova geraoque o CPC configura procede de uma culturacinfila, de uma habituao do olhar s salasde Cinemateca europeias, e de um entendi-mento do cinema como uma experincia ar-tstica e esttica vivida em plenitude, e nocomo um simples empreendimento comer-cial; hbil porque, ao colocar, precisamentea, o corte, se contornava (sem iludir) a es-pinhosa questo poltica num pas censuradoe ainda sob o domnio de uma velha classepoltica amedrontada, que comeava tam-bm ela a sentir os efeitos da chegada denovas geraes (Grilo, 1992, p.161). Maisuma vez, a fronteira que se coloca pretendeacima de tudo defender o cinema como arte,ao lado das artes mais antigas; e, se reparar-mos, defende os seus valores mais vanguar-distas: evoca-se Joyce e no Thomas Mann,Picasso e no o pai Renoir, Stravinski e noRichard Strauss.

    Para alm de O Passado e o Presente, aproduo do CPC inaugurou-se com trs ou-tros projectos de fico, todos eles consti-tuindo estreias na longa-metragem: PedroS, de Alfredo Tropa, O Recado, de JosFonseca e Costa, estreados em 1972, e Per-dido por Cem..., de Antnio Pedro Vascon-celos, estreado em 1973. Com o auxlio di-recto da Fundao surgem ainda trs outros

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    filmes: o j referido A Pousada das Cha-gas, de Paulo Rocha, Quem Espera por Sa-patos de Defunto Morre Descalo, de JooCsar Monteiro, e Vilarinho das Furnas, deAntnio Campos. Todos estes novos ci-neastas no so propriamente gente desco-nhecida. Conjuntamente com Seixas San-tos (cujo Brandos Costumes integraria o IIPlano do CPC), Csar Monteiro e Vasconce-los, por exemplo, tinham j realizado curtas-metragens de carcter documental, para oprodutor Ricardo Malheiro, e tinham umlongo passado crtico e terico, substanciadonas pginas do Cinfilo e dos suplementosdo Dirio de Lisboa. Mas a chegada delesao campo da longa-metragem de fico (eainda de Fernando Matos Silva com O Mal-Amado) amplia mais o leque de projectos,tendncias, temas e formas, e permite, en-fim, que se comece a poder falar de uma ci-nematografia, consciente dos seus limites (omais importante dos quais ser a censura po-ltica e econmica), mas j madura, ou emvias disso, apta a responder ao espao de li-berdade que a democracia e o 25 de Abrillhe trar (Grilo, 1992, p.161). Para termosuma ideia do impacte que causou a nova ge-rao nesse anos de 1972, basta pensarmosque, entre Fevereiro e Junho estreiam qua-tro longas-metragens, de fico, do novo ci-nema (as de Oliveira, Fonseca e Costa, Lo-pes e Tropa).

    Como avaliar Fernando Lopes (vide JosManuel Costa, 1985, p. 69), a gerao ante-rior, do fim dos anos 50, aceitara-nos como ocinema portugus. Tinham-se remetido a umpapel secundrio, se no at demissionrio.(...) O que no quer dizer que as fitas do Hen-rique Campos e do Constantino Esteves notivessem continuado a aparecer. Mas quandoa Gulbenkian entre em cena, eles compreen-

    deram que tinham perdido a partida. Penso,alis, que sem a Gulbenkian, o esforo daprimeira fase do "Cinema Novo"se teria go-rado completamente, por pura falta de con-tinuidade. A verdade que no tnhamoscondies para continuar a fazer filmes ma-neira da Abelha na Chuva e do Cerco. A im-portncia do CPC est na produo contnuaque foi capaz de pr de p. Reparem quedesde os anos 30, 40, o cinema portugusno tinha um "corpus". E com o CPC e aGulbenkian, em trs, quatro anos, aparecemuns dez, doze filmes, se no mais, se pensar-mos, por exemplo, na Sagrada Famlia e nosSapatos de Defunto, do Csar Monteiro, queo CPC ajudou.

    De todos esses filmes, o pblico s noviu Quem espera por Sapatos de Defunto. Orealizador recusou-se a aceitar alguns cortesda censura e no consentiu na exibio doseu filme, mutilado. Por esses anos, a Cen-sura proibiu tambm Nojo aos Ces, de An-tnio de Macedo, muito reflector do espritode Maio de 1968. Autorizou, no entanto,a sua circulao no estrangeiro, tendo sidoprojectado e premiado no Festival deBrgamo de 1970 (Bnard da Costa, 1991,p.139). De novo, e desta feita pela prpriamo da censura, a recepo no estrangeiro muito mais importante do que em Portugal;como acontecer com quase todos os outrosfilmes do novo cinema. Alm das j refe-ridas retrospectivas de filmes de Manoel deOliveira (Locarno, em 1964, e CinematecaFrancesa, em 1965), houve mais duas retros-pectivas, tambm de Oliveira, em 1971, naFilmoteca Espanhola e, em 1974, em Bruxe-las, e a Semana de Nice dedicada, em Marode 1972, ao nosso novo cinema, onde passa-ram todos os novos filmes desses dez anos,de Dom Roberto a O Recado.

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  • Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema 17

    Entretanto, no princpio de 1974, Ant-nio de Macedo consegue fazer um sucesso(A Promessa), desta vez com uma barragem[crtica] de sinal contrrio (o Cinfilo, re-vista que Fernando Lopes era ento director,dedicou-lhe por exemplo, um demolidor dos-sier 9/2/74) (Ramos, 1995). Parece come-ar a desenhar-se um perfil em que, quando opblico gosta, a crtica desgosta, e vice-versa(sem que neste quando esteja implicadauma relao de causa a efeito). O facto de setratar da adaptao de uma pea de BernardoSantareno, de ntida mensagem social, se lhed uma cauo poltica oposicionista, no lhegarante entrada no novo cinema, tal como vi-mos acontecer com Pssaros de Asas Corta-das, tanto mais que alguns cineastas do ve-lho cinema tambm tinham ido adaptar omesmo gnero de literatura; e o prprio su-cesso entre o pblico portugus aproxima-omais da vertente comercial do seu 7 Balaspara Selma, ou dO Cerco do impuro Cu-nha Telles, do que da ruptura radical assu-mida pela nova gerao. Apesar dessa reac-o demolidora da nova crtica portuguesa,A Promessa o primeiro filme a figurar naseleco oficial de Cannes (que tinha recu-sado, por exemplo, O Passado e o Presente):a doxa portuguesa do novo cinema maisestrita no que elege do que os prprios festi-vais estrangeiros em que, no entanto, procuralegitimar-se.

    No mesmo ano de 1974, a 20 de Abril,no Cinfilo, Joo Csar Monteiro refere-seao filme Jaime, a primeira longa-metragemdo poeta Antnio Reis, sobre as pinturas deum internado no Hospital Miguel Bombarda(e todos estes elementos so bem caracte-rsticos das novas fronteiras poesia, pin-tura, marginalidade) como uma etapa de-cisiva e original do cinema moderno, obri-

    gatrio ponto de passagem para quem, nesteou noutro pas, quiser continuar a prtica deum certo cinema, o cinema que s tolera ereconhece a sua prpria austera e radical in-transigncia. Intransigncia que pode ler-se na nova srie do Cinfilo, em 1973, di-rigida por Fernando Lopes e feita por umdos ncleos do novo cinema, prosseguindonas suas pginas a polmica que o divide,at cessar a publicao dois meses depoisdo 25 de Abril (Pina, 1987, p.173). Ouseja, datam deste tempo as primeiras frac-turas entre os novos cineastas. Enquantoum Paulo Rocha, um Antnio-Pedro Vas-concelos, um Seixas Santos ou um Joo C-sar Monteiro seguem a linha de um cinema"personalista", de incidncias bazinianas, in-fluenciados pelos Cahiers du Cinma, ou-tros cineastas, como Fonseca e Costa, Ar-tur Ramos, Henrique Esprito Santo, Ma-nuel Ruas, seguem, com naturais variantes,um cinema "realista", em que a componentesocial ou poltica, determina os temas e asformas, com alguma influncia da revistaCinema Nuovo (Pina, 1987, pp.168-169).Acrescente-se que Artur Semedo, logo a par-tir de Malteses, Burgueses e s Vezes..., ini-cia um percurso prprio, uma espcie deterceira via, em que atravs do humor quelhe natural pode chegar ao grande pblico,sem contudo abandonar a vertente de crtica,mordaz, como esse ttulo alis indica.

    Foi a primeira destas faces que domi-nou o processo de tomada da cidadela docinema portugus. Por exemplo, foi ela achamada a dirigir a primeira Escola Supe-rior de Cinema criada em Portugal, em 1973,que passou a funcionar, ainda como Escola-Piloto, no Conservatrio Nacional, no m-bito de uma vasta reforma do ensino arts-tico, incentivada pelo mais reformista dos

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    ministros de Marcelo Veiga Simo, Minis-tro da Educao e dirigida por MadalenaAzeredo Perdigo (1924-1989), directora doServio de Msica da Gulbenkian e mulherdo presidente da Fundao. Alberto SeixasSantos foi escolhido para primeiro directorda Escola, onde passaram a leccionar Fer-nando Lopes, Paulo Rocha, Cunha Telles eoutros nomes associveis ao movimento (cfr.Bnard da Costa, 1991, p.135).

    6 A primavera marcelistaEssa entrega do ensino do cinema novagerao, e ao seu grupo esteticamente maisradical (mas menos directamente poltico),vem no seguimento da linha de viragem quevimos ser introduzida no SNI por MoreiraBaptista, mas alm disso favorecida pelaprimavera marcelista, que dura entre 1968e 1972, e se vem juntar, na expresso de B-nard da Costa, primavera Gulbenkian nofavorecimento da implantao do novo ci-nema. Com a abertura desses anos, a cen-sura abranda em relao aos filmes estran-geiros: os espectadores portugueses pode-ro ver num cran, pela primeira vez, os seisnus de uma mulher os de Romy Schnei-der, em A Piscina de Deray -, assim comovrios filmes at ento proibidos por exem-plo, Alexandre Nevsky e Ivan o Terrvel deEisenstein, em sesses que esgotaram a lo-tao. Por sua vez, o Sector de Cinema daFundao Gulbenkian, devidamente inseridono Servio de Belas-Artes, em 1973 d in-cio a uma srie de ciclos que procuram fa-zer ver o cinema como a Stima Arte. Apro-veitando essa abertura, a nova ala liberalda Assembleia Nacional procura alterar a leido cinema. No incio dos anos setenta nomeada uma comisso revisora, cujos tra-

    balhos ho-de dar frutos na Lei 7/71, nosem pblica polmica a anteced-la, bem ex-pressa numa interveno de sentido antitota-litrio feita por Pinto Balsemo na Assem-bleia (1970), que um abaixo-assinado subs-crito por 62 nomes do cinema portugus vi-ria a apoiar. Perplexos com o teor dos deba-tes na Assembleia, 62 realizadores e tcnicosenviaram ao presidente da Assembleia Naci-onal um telegrama no qual manifestavam "asua profunda inquietao pelo tom das inter-venes de alguns deputados, reveladores dantida carncia de informao relativamenteao exerccio da profisso em Portugal, bemcomo as concepes arcaicas acerca do ci-nema como fenmeno de criao artstica eveculo de cultura", apelando para um ci-nema portugus livre, "independente dos in-teresses econmicos na quase totalidade li-gados produo e distribuio estrangeiras,que tambm tm sufocado a produo cine-matogrfica nacional". A resposta dos distri-buidores, em carta subscrita por 20 empre-sas, publicada na imprensa, no se fez espe-rar. Congratulando-se e apoiando patriotica-mente os deputados, cujas "intervenes tmsabido no esquecer todas as actividades na-cionais, global e harmonicamente considera-das, e no exclusivamente a construo in-sustentvel de uma produo flmica unica-mente baseada em subsdios e proteces",no deixando de salientar que so os filmesestrangeiros "a garantia de viabilidade co-mercial indispensvel actividade dos cine-mas e dos estabelecimentos tcnicos nacio-nais", sublinhando que essa base econmicado cinema devia construir "a finalidade prin-cipal de uma lei de proteco e fomento docinema, que no outras porventura importan-tes, mas secundrias, mas no vitais", con-cluam gloriosamente que "os distribuidores

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  • Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema 19

    portugueses no servem interesses estrangei-ros, mas to-somente os seus interesses leg-timos, que sempre tm sabido escrupulosa-mente integrar no superior interesse nacio-nal" (cfr. Geada, 1977, p.99).

    A 7 de Dezembro de 1971 publicada aLei 7/71, chamada Lei do Cinema Nacional,e a 5 de Junho de 1973 o Decreto n.o 286/73,chamado Regulamento da Actividade Cine-matogrfica. Nesta legislao, a novidadeprincipal a criao de um Instituto Portu-gus de Cinema (cujo regulamento, no en-tanto, s vir a ser publicado em 1982), pre-sidido pelo Secretrio de Estado da Informa-o e Turismo: um Instituto que, nas suaslinhas gerais, se parece com o Centro de Ci-nema Gulbenkian sugerido pelos novos cine-astas - e o certo que, com o surgimento doInstituto estatal, o Centro Portugus de Ci-nema vem a deixar de ser subsidiado pelaGulbenkian (que s prometera, recorde-se,um apoio experimental de trs anos) e acessar praticamente a sua actividade (Pina,1987, p.165). Fazem parte das atribuies doInstituto Portugus de Cinema (IPC): incen-tivar e disciplinar as actividades cinemato-grficas nas suas modalidades comerciais deproduo, distribuio e exibio de filmes;representar o cinema portugus nas organi-zaes internacionais; promover as relaesinternacionais do cinema portugus no dom-nio cultural, econmico e financeiro; estimu-lar o desenvolvimento do cinema de arte eensaio e do cinema de amadores; fomentar acultura cinematogrfica; atribuir prmios dequalidade, prmios de explorao e prmiosde exportao (cfr. Geada, 1977, pp.159-161).

    E de onde vem o financiamento desse Ins-tituto Portugus de Cinema? Segundo B-nard da Costa (1991, p.130), era evidente,

    sobretudo a partir de 1969, que mais dia me-nos dia, o cinema portugus passaria a con-tar com 10 vezes mais dinheiro do que em1968 tinha (3800 contos foi a verba do fundonesse ano e foi um record). O sensvelaumento da frequncia das salas de cinemae dos rendimentos colhidos pelas distribui-doras deu base ideia de novas estruturas.Atravs da criao de um imposto de 15 porcento sobre os lucros das bilheteiras dos ci-nemas (o que nessa altura se calculou em 50mil contos), depois chamado "imposto adici-onal", era possvel criar e financiar um orga-nismo o Instituto Portugus de Cinema que subsidiaria a produo portuguesa. A lei(Lei 7/71) s foi promulgada em 1971 (aindahoje nos rege) e o Instituto s comeou a fun-cionar em 1973.

    Quando nomeado o secretrio-geral doInstituto Portugus de Cinema e se comeama preparar os seus primeiros apoios financei-ros, em fins de 1973, o Conselho de Cinema,presidido pelo novo secretrio de Estado daInformao e Turismo, [...] e integrado j pornovos cineastas, resolve abrir um pouco ascritrios de julgamento dos projectos, querno plano legal quer no plano poltico. Umms antes do 25 de Abril, os primeiros sub-sdios concedidos no s no contemplamnenhum cineasta antigo com excepo deManoel de Oliveira (Benilde ou a Virgem-Me) e de Manuel Guimares (Cntico Fi-nal) como aceitam cineastas nitidamentede esquerda, defensores de um novo cinema,quase todos scios do CPC (Pina, 1987,p.170), como Antnio de Macedo, CunhaTelles, Fonseca e Costa, Paulo Rocha, ArturRamos e S Caetano. Era a consagrao ofi-cial da gerao que fizera o "cinema novo",era a continuao da poltica da Gulbenkiancom outros meios, como em cima da hora

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    triunfantemente proclamava a revista Cin-filo. De novo toda a gente embandeirava emarco (Bnard da Costa, 1991, p143). Comoescrever Fernando Lopes (1985, p.68), nocinema, ns ramos, de facto, o verdadeiropoder. A gerao anterior estava morta. Noadmira que chegado o 25 de Abril, nos dsse-mos conta de que o nosso problema j tinhasido resolvido antes.

    7 Algumas caractersticas donovo cinema

    Este paradoxo de um regime que pe no po-der elementos que no lhe so afectos, e oparadoxo, talvez menor, desses elementosque, embora no afectos ao regime, pelassuas mos acedem ao poder, s se explicaporque, ao contrrio dos movimentos cine-clubista e neo-realista, o novo cinema por-tugus desenvolvia preocupaes mais es-tticas do que polticas. Bnard da Costa(1991, p. 114) considera que desde o inciohouve uma diferenciao no discurso dospaladinos desse novo cinema. Aos defenso-res de "um cinema moral", "um cinema derazes democrticas, enquadrado na mais ge-nuna ortodoxia neo-realista"[como diz Bap-tista Bastos na revista Imagem, Setembro de1958], comearam a opor-se vozes que pro-clamavam um cinema afim da nouvelle va-gue francesa e que se reclamam das teoriasdos Cahiers du Cinma e da viso auteuristado cinema. Veremos como esta clivagem semantm, mas com ntida vantagem do grupodo cinema de autor, a que Pina chama for-malista.

    Como mais emblemtico do arranque donovo cinema portugus, tem sido apontado ofilme Os Verdes Anos, de Paulo Rocha. Ve-

    jamos o que o distingue e faz dele a fron-teira inicial do novo conceito de novo ci-nema: um cinema artesanal, por contra-ponto a um cinema industrial, e uma visopessoal, de autor, por oposio a um cinemade produtor. Numa entrevista da poca (Jor-nal de Letras e Artes, 6.5.1964), Paulo Ro-cha esclarece: normalmente estamos habi-tuados a sobrevalorizar a histria em relao mise-en-scne. NOs Verdes Anos tentou-se ir contra isso. O que mais interessava era arelao entre o dcor e a personagem, o tra-tamento da matria cinematogrfica. Eramas linhas de fora, num plano, que lhe davamo seu peso e a sua importncia. Percebe-se agora melhor por que razo tem parecidoimportante deslocar a fronteira do novo ci-nema do padro de Pssaros de Asas Cor-tadas, e mesmo de Dom Roberto, filmes emque a histria, o guio, os dilogos e os ac-tores tm maior importncia. A orientaode Paulo Rocha define, de facto, melhor adoxa que dominar o novo movimento, umcinema que trabalha os espaos, os dcors,as cores, as matrias, e pede para ser lido poresse lado, e no pelo da intriga e dos actores.

    Diga-se, em abono da verdade, que existeno guio dOs Verdes Anos uma preocupaosocial, mais audvel nos dilogos do que vi-svel no trabalho que Rocha sobre eles faz, eque os prximos dois filmes de Paulo Rocha,Mudar de Vida (1966) e Sever do Vouga uma experincia (1970) se aproximam muitomais de uma temtica social e realista, quaseneo-realista, do que em Os Verdes Anos. Masser este a ser tomado como bandeira, e,conjuntamente com Pousada das Chagas, de1971, que vimos ser projectado na inaugu-rao dos anos Gulbenkian, colocou athoje a obra de Rocha sob o signo do seu pri-meiro filme. Pousada das Chagas pode ser-

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    vir de exemplo extremo, segundo Leito Ra-mos (1989, p.310), para uma esttica de ex-cerbamento dos materiais flmicos, para umterritrio de pesquisa formal, para um secre-tismo ficcional que se joga entre a conscin-cia do cinema como representao e a (dese-jada?) ruptura de comunicao com um (ig-noto?, improvvel?, negligenciado?) espec-tador. Creio que o solipsismo do cinema por-tugus encontra aqui o seu ponto paroxstico[...], como quem fecha a porta do sacrrio edeita a chave ao rio.

    Ainda em 1993, e atacando uma crticano inteiramente favorvel feita por EduardoPrado Coelho, M. S. Fonseca sai em defesade Os Verdes Anos, dizendo que a crtica"socialmente empenhada"no compreendeu,nem poderia, por desajustamento dos par-metros de avaliao, compreender. Da quese falasse num filme "mecnico no retratodas relaes sociais", ou de um filme comevidente "insuficincia de notao psicol-gica"dos personagens. Tinham razo, em-bora no fosse a razo que julgavam ter. Ouseja, o facto de Paulo Rocha reclamar parao seu filme uma leitura visual, pela mise-en-scne e pelo plano, com irriso dos temas, visto, no como uma sua limitao, mascomo sua virtude. H aqui uma simplifica-o facilitadora, que arruma tudo quanto pre-tenda encontrar no filme uma relao com omundo na categoria de urgncia social detipo neo-realista; uma posio que, se podeentender-se no contexto de guerra, na poca,entre a corrente neo-realista e a que, para seopr a ela, se acantonava num formalismo,no pode hoje deixar de ser ultrapassada.

    At porque, no sendo o cinema pura-mente abstracto, no vamos deixar de en-contrar nos nossos filmes personagens e pro-blemticas no meramente formais. O que

    muito do novo cinema portugus vai traba-lhar (vide P. Filipe Monteiro, 1995) so fi-guras muito genricas, herdeiras de um de-cadentismo romntico ou oitocentista e deum fundo ideolgico de consideraes so-bre Portugal, em que predominam perso-nagens encurraladas ou sem objectivos ou,quando os tm, com muito pouca possibi-lidade ou at vontade de os alcanar. Nofundo, procura-se ultrapassar a militncia detipo neo-realista com uma resistncia de ou-tro tipo, e que, essa, foi possvel desenvol-ver no prprio regime salazarista-marcelista,e ser acarinhada por ele: uma resistncia, sequisermos, prpria ideia de resistncia, nosentido poltico que o neo-realismo tinha, ous definies concretas em que esta era de-finida. Como na cano popularizada porAmlia (com letra de Alexandre ONeill),tambm cantada pela protagonista de O Re-cado, assim devera eu ser, assim devera euser, se no fora no querer.

    Uma das maiores marcas do novo cinemaportugus esta ideia de uma resistncia glo-bal, que em vrias figuras e objectos de ne-gao foi atravessando os nossos filmes noperodo que estamos a considerar: a tal aus-tera e radical intransigncia, nas j cita-das palavras de Csar Monteiro. A Hist-ria ajuda a compreender que assim seja. Onovo cinema surgiu, como vimos, na oposi-o: em relao ao velho cinema, que estavamoribundo e que, apesar de tentar renovar-senos filmes com vedetas quase sempre cantan-tes, no era propriamente adversrio que me-tesse medo, mas era inimigo que pedia ex-termnio; e oposio em relao ao sistemapoltico e sociedade salazarista/marcelistaem geral, que, ao mesmo tempo, permitiaesta oposio e censurava outro tipo de re-sistncia, mais objectivada. Mas esse mesmo

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    ethos oposicionista encontrava-se sobretudodans lair du temps, que os nossos cineastasiam, por vezes a expensas do prprio EstadoNovo, respirar em Frana e Inglaterra, e deque o cinema era justamente, na poca, umadas manifestaes mais avanadas e agudas.

    No podendo nem porventura querendonegar coisas concretas, os nossos cineastasassentam baterias num combate contra umcerto tipo de cinema e concentram-se numadefesa da autonomia do seu trabalho en-quanto arte, com todas as virtualidades e li-mitaes que este acantonamento vanguar-dista contm, como Theodor Adorno (1970)to bem mostrou. De facto, h um princ-pio genrico, a partir do qual se articulamos outros: a recusa do cinema enquanto in-dstria alienante, ao qual se contrape o ci-nema enquanto stima arte. Paulo Rocha ca-racteriza a Nouvelle vague, justamente, poruma incompatibilidade com um cinema queinstitucionalmente funcionava de uma formamuito fechada e no problemtica e pela s-bita descoberta de que era possvel, graas acertas inovaes tcnicas, ultrapassar os con-dicionalismos impostos por essa institucio-nalizao, e repensar todas as formas do ci-nema de um modo que correspondesse aosentir e pensar da nova gerao. O novoequipamento dava as condies tcnicas, oEstado e a Gulbenkian davam as condiesfinanceiras, era possvel, em Portugal, entro-nizar o cinema enquanto arte. Mas, repare-se, isto passava-se justamente em contra-mar evoluo, geral e de longa durao,do fenmeno-cinema; se a novas vagas e ofree cinema puderam por momentos dar aimpresso contrria, depressa se veria que,na segunda metade do sculo, o cinema es-tava claramente cindido em duas vertentes, eera a industrial que claramente dominava. O

    nosso cinema era, assim, um ncleo de re-sistncia tendncia dominante: ncleo que,curiosamente, ao contrrio dos outros pases,com a sua combatividade conseguiu ter nasmos quase todas as rdeas do poder de pro-duzir, ensinar e criticar.

    Uma margem no centro, como podedefinir-se este movimento; na margem com-bativa contra o cinema industrial, mas nocentro em termos dos lugares de produzir,ensinar e criticar cinema em Portugal. E nempor, em Portugal, estar nos lugares centrais,ele deixou de viver como resistncia, e tal-vez nem pudesse deixar de o fazer sem per-der grande parte da sua identidade, afirmadanessa negao. Um cinema, pois, contra ainstituio cinema, tal como maioritria ecrescentemente ela se definiu, ainda que de-fendendo o que considerou ser a essncia doverdadeiro cinema enquanto arte essn-cia porventura em crise, mas glosando pre-cisamente o tema dessa crise e de uma toanunciada morte do cinema.

    8 A difcil relao com o pblicoUm dos principais objectivos do novo ci-nema, e da sua preocupao de se distinguir,como arte, da produo industrial maiorit-ria, desestruturar o realismo, criar situaesde estranheza em relao s expectativas queo realismo banaliza (em termos de percep-o do tempo e do espao, de narrativa, derepresentao, etc.). A recusa dos modelosde cinema dominantes, a que os espectado-res esto habituados, contraria os hbitos derecepo mais imediata, ou, para usarmos ostermos de Karlheim Stierle (cf. E. Prado Co-elho, 1987, pp. 488-9), barra o caminho re-cepo pragmtica, iluso de uma continui-dade plena com o mundo que a fico, com

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    a sua verosimilhana, poderia criar. Pede,pelo contrrio, uma recepo competente,que o prprio Stierle reconhece ser mais ca-racterstica das segundas leituras, em que co-meamos a distinguir as vrias estruturas so-brepostas. A cinefilia e os seus filmes deculto permitem essa leitura competente e re-petida, de um modo que os nossos cinfiloscineastas bem conhecem; mas nada garanteque o mesmo venha a acontecer com os seusfilmes. Pelo contrrio: desta esttica daoposio resulta, como Lotman advertia (cf.Monteiro, 1996, p. 60), uma descoincidnciaentre o cdigo dos emissores e o dos recepto-res; descoincidncia que, para surpresa e de-sapontamento dos autores do novo cinema,afasta deles o pblico e nunca veio a ser se-no episodicamente ultrapassada.

    Vrias razes poderosas, explica B-nard da Costa (1991, p.125-126), contri-buram para este insucesso. Por um lado,o descrdito crtico e pblico a que chegarao cinema portugus no permitiu gene-ralidade dos espectadores distingui-los dasoutras produes. Por outro, o vanguar-dismo das propostas estticas destes filmesencontrou difcil eco num panorama cinema-togrfico cada vez mais excntrico em re-lao Europa, devido crescente viruln-cia da Censura, nesses anos finais do sala-zarismo. [...] Ou seja, por um lado, estavaem vias de desapario o fenmeno de anal-fabetismo que permitia "comer de tudo", poroutro ainda no tinham aparecido novos al-fabetos capazes de acederem a um tipo decinema to flagrantemente oposto a padrescomuns (e, ainda por cima, com iniludveisdeficincias tcnicas). [...] Se a batalha con-tra da dcada anterior fora ganha, no foi abatalha pr dos anos 60. At porque essa ba-talha contra tivera motivaes polticas cla-

    ras (atacar um cinema que j nada reflectiada realidade do Pas) e a batalha pr as notinha, pois nenhum dos cineastas ou obrascitados denunciava ou podia denunciar,por bvias razes censoriais essa mesmarealidade. Julgara-se que o movimento deoposio cultural era suficientemente pode-roso para "obrigar"cada portugus que votaraDelgado em 1958 a ir ver esses filmes. O en-gano foi trgico. At porque qualquer dessasobras - aparentemente "idealistas- no era demolde a despertar fervores ideolgicos e aesquerda tradicional desconfiou tanto delascomo a direita. O vanguardismo esttico notinha qualquer contrapartida em vanguardis-mos ideolgicos. Repare-se que, no perodoque neste captulo mais directamente nos in-teressa, os filmes com maior referncia pol-tica actualidade de ento, como O Cerco eO Recado, foram os que tiveram, apesar detudo, mais pblico.

    Ao mesmo tempo, esse desencontro tam-bm devido ao facto de as expectativas comque o espectador, mesmo o espectador maisescolarizado, entra na sala de cinema, terema ver com o realismo narrativo-dramticoa que foi habituado, no s pelo anteriorcinema portugus, mas sobretudo pela es-magadora maioria dos filmes a que assistenas salas de cinema e nos ecrs da televi-so. Com a agravante, muito lamentada pe-los nossos cineastas, de nunca terem sido im-plementadas redes de distribuio alternati-vas que permitissem exibir filmes diferen-tes do mainstream americano, ou mesmo quepermitissem exibir os prprios filmes portu-gueses, que muitas vezes ficaram por estrear e nem o Estado Novo nem os seus oposici-onistas, nem mais tarde, sequer, o PREC, quenacionalizou a produo mas no a distri-buio, tiveram interesse ou condies para

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    criar esse circuito alternativo, gerando a con-tradio de se investir num produto que nose distribui.

    Sublinhemos que no fazia parte do pro-jecto do novo cinema estar de costas vira-das para o pblico, e que, pelo contrrio,os seus mentores ficaram admirados quandoeste no reagiu como se esperava. Em 1970,j Fernando Lopes reconhece (em entrevistaao Jornal de Letras e Artes, n.o 274): emtermos prticos, se fizermos um balano re-alista, evidentemente que falhmos em rela-o ao nosso contacto com vastas camadasde pblico. [...] Tenho a impresso que co-metemos alguns erros de avaliao. Assimem primeiro lugar, parece-me que todos nscontvamos um pouco excessivamente coma existncia de um pblico esclarecido, parautilizar um chavo da poca, pblico que te-ria sido formado pelos cineclubes, pblicouniversitrio, e outro, que de facto no apa-receu para os nossos filmes. E, em 1989,Seixas Santos (in Frdric Strauss, 1989, p.28) insistir: o pblico portugus no querde todo saber do cinema portugus, e pode-mos perguntar-nos se no porque os reali-zadores esto a passar ao lado dos assuntosque interessam esse pblico. Faz-se um ci-nema muito abstracto e muito pouco anco-rado na realidade portuguesa. [...] aliso conjunto do cinema europeu que est ematraso relativamente sociedade europeia.Ou seja, a ausncia de pblico, se foi con-sequncia do tipo de cinema que se fazia, nofoi consequncia desejada. Pretendia-se queas obras existissem como acontecimentos, eno ficassem apenas como monumentos.

    Essa difcil relao com o pblicoconstitui-se (at hoje) no principal calcanharde Aquiles do modo como est estruturadoo universo do cinema portugus: no tanto

    pela no entrada de dinheiro (as receitas debilheteira, num mercado reduzido com o por-tugus, nunca mais voltaro a poder cobrir oscustos de um filme, com custos crescentes apartir dos anos setenta) mas pelo dfice delegitimao, que se ir acentuando.

    A partir daqui, possvel sublinhar rapi-damente alguns aspectos (desenvolverei es-tes e outros em publicao mais alargada).Um deles como essa resistncia, que pro-cura a desfamiliarizao e a desconstruo, acima de tudo, e muitas vezes exclusiva-mente, intelectualizada: trata-se, justamente,de evitar a manipulao com que os recursostcnicos do cinema permitem reforar o ilu-sionismo habitual da fico, e de instalar dis-positivos que obriguem a uma distanciao.Ou seja, fazendo justia modernidade, onovo cinema portugus situa-se, claramente,na tradio reflexiva, que coloca em evi-dncia as construes ficcionais atravs dorecurso a fracturas e descontinuidades. Ou,para usarmos os termos de Susanne Lan-ger (1953) e de Christian Metz (1977), nadiscursividade, em que o filme nos olha,contra o modo histrico, em que o filmetenta apagar as marcas autorais da enuncia-o numa narrao mais modesta, mais es-condida, quase invisvel, aparentemente con-duzida pelas personagens.

    Muitas vezes, essa distncia que pedidapelo novo cinema portugus , ao avesso doque desde o incio caracteriza o medium ci-nema, oposta fruio, entrando muitas ve-zes naquela confuso, contra a qual tanto opobre Bertold Brecht reclamou, entre distan-ciao e ausncia de prazer, partilhando afi-nal de todo o fundo de desconfiana relati-vamente ao gozo que atravessa a esttica, deKant a Adorno e Lyotard. Para Kant, h doissentidos possveis da relao do prazer com

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    o juzo: ou o juzo a verificao do prazer(este objecto agrada-me) ou o prazer umsentimento particular que segue o juzo, masento o prazer nada nos pode fazer conhe-cer, apenas o prazer de conhecer, ou de terconhecido. esse segundo tipo de relaoque muito do nosso novo cinema concebe,o de um prazer para quem sabe ver e apre-ciar distanciadamente, enquanto o que carac-teriza o cinema em geral, e tambm o cinemaportugus anterior a que o pblico mais ade-rira, justamente o gozo precedendo o juzo.Que se trata, aqui, de uma desnecessria con-fuso, provam-no o facto de os casos maisbem resolvidos da aventura do novo cinemaportugus, como Oliveira e Csar Monteiro,no rejeitarem os gozos elementares que ocinema pode gerar, incluindo o humor cons-tante.

    Outra questo levantada por este recurso distanciao conceptual a de saber se,ao desconfiar da empatia, do gozo, das emo-es, o novo cinema no se afastar das di-menses da experincia, para as quais, naconcepo de Walter Benjamin (1936), o ci-nema permite at abrir com particular faci-lidade, abalando a tradio aurtica a favorda actualidade da recepo repetida em qual-quer circunstncia. A resposta, em nosso en-tender, que, directamente, isto no acon-tece: a via intelectualizante no afasta neces-sariamente da experincia, do conhecimento,da autenticidade da vida. Em todas as for-mas e pocas da arte, no esse um critrioque sirva, no por ele que passam as divi-ses. Para um autor como Maurice Blanchot,tornar sensvel a distncia mesmo o melhormodo de abrir em continuidade sobre a expe-rincia, porque a nica forma de fazer so-breviver o desejo, sem nunca o saciar numa

    qualquer unidade (cfr. Prado Coelho, 1987,pp. 472, 496, 498).

    Claro que essa pode ser uma via possvelsem ser a via mais comum ou sequer a maisadequada ao medium em causa e, mais doque isso, aos autores que a escolhem e aopblico que os acolhe. E a, indirectamente,creio que este caminho gerou de facto todoum conjunto de dificuldades. Antes do 25de Abril, o cinema portugus tinha receiode abordar temas actuais que interessariam,com certeza, os espectadores, mas que cai-riam sob a alada da censura, como subli-nhava o citado documento O ofcio do ci-nema em Portugal. Ou seja, a impossibi-lidade de muitos filmes serem exibidos veioreforar a tentao auto-reflexiva dos cine-astas e aumentar crescentemente o risco dedivrcio em relao ao dilogo com a expe-rincia. Curiosamente, comenta EduardoPrado Coelho (1994, p.174) a propsito dasvozes que gritam no deserto, esta foi umpouco a problemtica inicial de Jorge SilvaMelo, a partir do caso de Bchner [no filmePassagem ou a Meio Caminho, rodado em1980]: a mensagem de um escritor, o seumanifesto de revoluo, nunca atinge o seudestino. Para o Jorge, de certo modo, issoera uma dor que a tornava ainda mais bela.

    Mesmo depois do 25 de Abril, acabada acensura poltica, ser o mercado de distribui-o e exibio continuar a funcionar, nestemedium, como uma barreira total ao contactodo pblico com os filmes, por muito actu-ais que sejam os seus temas. Silva Melolembrava, em 1988 (p.8), que o facto demuitos filmes no chegarem a estrear pro-voca uma ausncia de real muito grande.Porque no so confrontados com o pblicoou a falta dele, e com a concorrncia. Talcomo os dcors e os actores so o real da fil-

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    magem, o pblico tambm a realidade docinema.

    9 Mais reviravoltas edesfasamentos

    Outros factos marcantes viro mostrar a co-erncia, para o bem e para o mal, deste per-curso do cinema portugus e das suas apo-rias. Destacamos apenas dois. Quando sed a revoluo do 25 de Abril, o novo po-der poltico chegou a preferir chamar, em1975, alm de alguns militantes comunistas,os cineastas do velho cinema dos anos qua-renta e cinquenta, acusando os que poucoantes tinham sido consagrados no poder deintelectuais pseudo-revolucionrios, desli-gados dos verdadeiros interesses do povo.Contradio gritante? Sim e no. A ques-to que, se o cinema muito auto-reflexivoe abstracto que os novos cineastas vinhamfazendo, com boa repercusso internacionalmas grande alheamento do pblico nacional,podia servir ao marcelismo, no se enqua-drava na dinmica de dinamizao culturalpopular que o novo regime queria lanar.

    Depois do 25 de Novembro, os cineastasdo novo cinema recuperam os lugares de po-der que tinham conquistado antes do 25 deAbril, e a ficam, embora muito divididos,at aos governos da Aliana Democrtica.Na viragem dos anos oitenta para os noventa, um outro tipo de massificao, em nome daeconomia de mercado, dos custos de produ-o e da necessidade de alianas com a te-leviso e com o estrangeiro que vai afast-los, primeiro com uma poltica de entroni-zao do audiovisual, presidida, alis, porum dos seus membros mais antigos e an-teriormente mais formalista, Antnio Pedro

    Vasconcelos, e, depois, com um novo Insti-tuto chefiado por duas pessoas (Zita Seabra eSalvato Teles de Menezes) que poucos anosantes tinham pertencido rea comunista amesma que, em 1974, procurara afastar a in-fluncia j alcanada pelos cineastas do novocinema e fora buscar nomes do antigo re-gime. Talvez agora se comece a percebermelhor que eram estas as pessoas que me-lhor podiam defender uma poltica populistacontrria ao experimentalismo que o novo ci-nema desenvolvera.

    H mais coerncia do que pode parecer primeira vista nesta escolha feita por umgoverno do Partido Social Democrata: comuma opo que para alguns podia aparecercomo progressista, ia-se afinal buscar quemmais enrazada tivesse a averso ao cinemade autor e defendesse um cinema populistade recuperao das velhas comdias dos anostrinta e quarenta mais uma vez, o progres-sismo social, quando existe, no est neces-sariamente associado ao progressismo est-tico. Repare-se no que Teles de Menezes(1985, pp. 160-195) escrevera, num balanocrtico feito em 1985: os nossos cineastastm a desagradvel tendncia a no aceitarcertas exigncias que uma arte to democr-tica como o cinema faz: procurar o esote-rismo temtico e privilegiar processos de sig-nificao ultravanguardistas so graves equ-vocos num tipo de produo extremamenteprecrio, pouco desenvolvido, e perante umpblico que precisa de ser ganho, que estfuriosamente viciado no modelo ficcional docinema norte-americano. Segue-se a afir-mao de princpio: se se quer, mais tarde,eventualmente, abrir caminho possibili-dade de obras mais "difceis", o reencon-tro do pblico com o cinema falado em por-tugus (o nosso, no o transatlntico) uma

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  • Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema 27

    coisa que tambm ser conseguida custa deum acervo razovel de filmes que, como Ki-las, o Mau da Fita, tentem fazer a recupera-o (crtica, bem entendido) do espao est-tico (formas e processos de significao) davelha comdia populista, ramo da mesma r-vore genealgica a que tambm pertence acomdia de costumes italiana e com a qual,nos seus pontos mais altos, no teme com-paraes justamente aquela comdia queAntnio Ferro considerava vulgar, grosseira,o cancro do nosso cinema!

    Ou seja, assim como antes do 25 de Abrilo poder poltico cedera o poder a esses ci-neastas, sabendo que, ao contrrio dos ci-neclubistas ou dos neo-realistas, eles poucomobilizariam o grande pblico, e, mesmoque o fizessem, essa mobilizao no gira-ria em torno de temas polticos, assim maistarde, quando se defende um modelo popu-lista, de reencontro com o grande pblicoem torno do entretenimento, esses cineas-tas foram afastados. No por muito tempo,alis, j que os anos noventa se caracteri-zaram pela coexistncia (por vezes pericli-tante) do apoio, por parte quer do poder pol-tico quer dos prprios pblicos, s diferentesopes que se tornaram cada vez mais clarasno cinema portugus, sem que possamos di-zer que a margem foi afastada do centro, nemque plenamente o reocupou. Alis, a pr-pria ideia de um centro nico que vai sendocada vez mais ultrapassada numa sociedadee numa cultura policntricas, que, aos pou-cos, se afasta do olhar salazarista.

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    Esquerda, direita, margem, centroA morte do velho cinema e o assassinato do cineclubismoNovas condies para um novo cinemaContra-tendncias e contrariedadesO Centro Portugus de Cinema e o cercoA primavera marcelistaAlgumas caractersticas do novo cinemaA difcil relao com o pblicoMais reviravoltas e desfasamentos Bibliografia