A aparição misteriosa de sua santidade -...

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SERRA, OJT. O Encantamento de sua santidade: cancão de fogo [online]. Salvador: EDUFBA, 2006. 114 p. ISBN 85-232-0424-5. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. A aparição misteriosa de sua santidade Cancão de fogo em Cachoeira Ordep José Trindade Serra

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SERRA, OJT. O Encantamento de sua santidade: cancão de fogo [online]. Salvador: EDUFBA, 2006.

114 p. ISBN 85-232-0424-5. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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A aparição misteriosa de sua santidade Cancão de fogo em Cachoeira

Ordep José Trindade Serra

A aparição misteriosa de sua santidade

Cancão de fogoCancão de fogoCancão de fogoCancão de fogoCancão de fogoem Cachoeira

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Tenho na boca a verdadeQue torna a mentira muda.Vá raspar-se quem acharEssa história cabeludaQue em Cachoeira me veioDurante a Festa da Ajuda.

Louvando Nossa SenhoraNa data miraculosaMascara-se muita genteDe uma forma pavorosaCom figura de demôniosPondo a rua em polvorosa.

Outros festejam a SantaCom diversas fantasiasA percorrer a cidadeCom batuques e foliaNa certeza de que a MãeD’Ajuda preza a alegria.

Certa vez na multidãoEu fui de devoto braboSapecava pela praçaCom uma tropa de diabos— O bom é que a mulheradaTambém sacudia o rabo.

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A amável bebida louraPor todo canto corria.Um riacho de cachaçaPor santas goelas desciaEnquanto as bandas tocavamAlimentando a folia.

Um grupo de mascaradosE uma renca de MandusCom os Cabeçorras na frenteFazia bate-baúSamba de roda e pagodeJunto do Paraguaçu.

Deus sabe como acabouAquele divertimento!É um mistério pra mimQue turva meu pensamentoO modo como chegueiÀ Pousada do Convento.

Na certa, fui ajudadoNas trevas da noite puraPor gente amiga da festa– Filhos de Nossa Senhora.Milagre da Mãe DivinaAbriu meus olhos na aurora.

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Me sinto na obrigaçãoDe o revelar a meu povo:Bem na janela do quartoVi um espetáculo novo— Um pássaro como o solQue voa no próprio ovo.

A luz que rompeu a cascaDourada desse animalTraçou-lhe com vivas chamasA imagem fenomenal:Forma de anjo pintadoCom tintas de carnaval.

Lembrava um pouco uma onçaA um curió misturadaNa pele de uma raposaDe asa fogueteadaOlhos de vaca paridaNuma expressão delicada

Jeito de cobra coralMas com rabo de pavãoAres de baleia mansaTraços de camaleão.— Ave de sol e de luaEscura feito um cancão.

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Com voz discreta de orquestraO bicho falou comigoMuito cortês e decenteSe declarou meu amigo.— O que me veio contarAgora mesmo lhes digo.

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A minha revelaçãoGrave na sua memória!Só para isso desciDe lá do Reino da Glória.Contigo, de hoje em diante,Vou repartir minha história!

Eu já vivi neste mundo!Há tempos, mudei de estado.Não sou nem vivo, nem morto— Passei pro terceiro lado.Diverso de antigamenteAgora sou Encantado.

Enquanto vivi na terraUsei de batota e logroFiz arrelia de tudoAmava demais o jogoO povo do meu rincãoChamou-me...Cancão de Fogo.Cancão de Fogo.Cancão de Fogo.Cancão de Fogo.Cancão de Fogo.

Eu enganei muita genteMas posso lhe dar certeza:Dos pobres, nunca tirei.Não fiz essa malvadeza!Só dei prejuízo a ricoUsando minha esperteza.

II [Fala Cancão]

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Também fui pobre na terraSofri a necessidadeA fome, a pinimba duraA falta de caridadeO orgulho dos poderososPisando na humanidade.

O fraco pode ser forte...Convém que não esmoreça.Pois quando eu era pequenoDiziam: “Talvez não cresça!”Mas a pomba do DivinoCagou na minha cabeça.

Embora miúdo e magroNo meu projeto de genteNascido de lavradoresNa seca da terra quenteA natureza tornou-meDanado de inteligente.

Não tinha nada por mimA não ser a malandragemE me apliquei com caprichoNas artes da vadiagemEstudei necessidadeTirei do medo coragem.

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Astucioso me fizBuscando a sobrevivência.Em escapar da desgraçaGanhei muita competênciaDe um modo sempre matreiroQue bolinava a decência.

A lei que persegue os fracosNos pés lhes coloca a travaBeneficia o graúdoMantém a negrada escrava— Essa justiça dos homensAlegremente eu burlava.

Fiz pouco da puta féQue aos ricos dá proteçãoE ensina ao povo miúdoFrouxa resignaçãoFazendo os pobres de bestasNo curral da devoção.

Jamais amaldiçoeiA carne que Deus me deuGozei o tanto que pudeE a sorte me ofereceu.Bendigo o corpo que tiveE o gosto que conheceu.

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A boca da hipocrisiaCom as ameaças do abismoVivia me condenandoEm nome do moralismo.Porém eu sigo dizendo:Mais limpo era meu cinismo!

Agora vivo no céuE disso também me espanto...Mas vou lhe mostrar, poeta,Que (antes do meu encanto)Na terra eu tive a primeiraExperiência de santo.

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III

Foi numa cidade grandeCom vasta populaçãoDe povo desmioladoQue se passou a funçãoEstando eu de passagemNo bico da ocasião.

De noite, eu ia na ruaNo rastro de uma sereia;Bateu uma tempestadeO rio teve uma cheiaNo mar uma tromba d’águaPintou uma cena feia.

Correndo mais que depressaPara escapar da agoniaEntrei numa igreja velhaNum morro que ali haviaPorque achei encostadaA porta da sacristia.

Lá dentro, acendi a luzE até descansei um pouco;Mas de repente, no alto,Ouvi um grande pipocoA terra deu um gemidoTremeu-se de um modo louco.

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Depois, quando acomodou-seA caroara do chãoChamei por minha coragemNas garras da precisãoAlumiei uma velaNos olhos da escuridão.

A pé do altar principalEu vi um quadro engraçadoO santo tinha caídoEstava em péssimo estado Na dura laje da igrejaFizera-se descarado.

Quem busca sua melhoriaA inteligência não poupaQue bem pensar é preciso— E a cada prego, uma estopa —:Joguei o santo no lixoPeguei pra mim sua roupa.

Era um vestido de sedaCom um manto de bom veludo(No carnaval, deixariaQualquer viado posudo);Estava enxuto, e aquecia...Na hora, pra mim, foi tudo.

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Faz muitas artes o homemQue a necessidade atiça... E eu, para defender-me,Não tive jamais preguiça:Tratei de aquecer os ossosBebendo o vinho da missa.

Depois, como estava mesmoCarente de descansarAproveitando o silêncioDaquele santo lugarTirei divina sonecaDeitado em cima do altar.

Não dormi muito, porém,Naquela oportunidade:Foi só acalmar-se o tempoNo gozo da claridadeQue vi correr para a igrejaO povo e as autoridades.

O templo estava esquecidoCom ares de pardieiroA vinda do cataclismoFoi um remédio certeiro:O povo desesperadoLembrou-se do padroeiro.

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Notando este movimentoEu me senti inspiradoDepressa, ao nicho subiQue eu tinha já despojadoAtrás de jarros de floresPlantei-me, bem camuflado.

O pobre do meu ouvidoNão descansou um segundoCom gritos, choros e precesDe um desespero profundo;A maioria clamavaTemores do fim do mundo.

Sentindo pena da raçaFalei com voz de trovão:“Acalme-se, povo meu!Não é fim de mundo, não!A gente boa se salva— Só há de morrer ladrão!”

Ouvi no fundo da igrejaSuspiros aliviadosDefronte de mim, porém,Cresceram tristonhos bradosE pavorosos gemidosDe homens alucinados.

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Governador soluçavaSe maldizia o PrefeitoJuizes descabeladosBerravam de horrível jeitoUm Senador se queixavaDando murraças no peito

Na irmandade dos ricosFoi a maior agoniaDesmaio, chilique e enfarteÀs dúzias aconteciaUm bando de deputadosChorava de encher a pia.

Um gordo de três papadasFalou-me num triste arranco:“Ó santo nosso querido!Perdoe, mas vou ser franco:O que será do mercadoCom o fim de todos os bancos?”

Um velho disse: “Estou frito!A situação é crítica!A nossa administraçãoPode ficar paralítica!Receio que ninguém sobrePara tratar de política!”

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Um homem muito alinhadoQueixou-se com desespero:“É grande a calamidadeDeste decreto agoureiro!O céu quer exterminarA raça dos empreiteiros!”

Mostrando misericórdiaBradei-lhes: “Pelo direitoNão escapava ninguémDa tropa que esmurra o peito;Mas para salvar algunsTalvez eu encontre um jeito.

“Aquele que depuserAqui, de bom coração,A praga do mau dinheiroQue causa sua perdiçãoNa certa será poupadoDa grande devastação.

“Mas vejam que corre o tempo!O prazo é de dez minutos.Depois, eu já não detenhoA mão do destino bruto.Quem não usar dessa chanceCobre a família de luto.”

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Com pouco, a meus pés ergueu-seFormosa pilha de granaTanta que não juntariaCassino em uma semanaE eu percebi que os pavoresGovernam a raça humana.

Mas prometi nova graça:“Venha, meu povo fiel!Os anjos estão cobrindoO nosso templo com um véuQuem permanecer aquiEu levo agora pro céu!”

Foi só eu falar assimA igreja se esvaziouHomem, menino e mulherNinguém no templo ficouO padre foi o primeiroQue para longe escapou.

Em minha filosofiaGanhei uma idéia claraNotei que o amor de DeusÉ de uma espécie bem rara:Se todos chamam por EleNinguém Lhe quer ver a cara.

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Vestindo minha roupa velhaEu rápido dei no péDe doações carregadoDa mais generosa féCom que dei muita alegriaÀs damas de cabaré.

Na vida tive riqueza... Jamais por um ano inteiro...Posso dizer que não fuiMuito apegado a dinheiroPois todo o que eu conseguiaDeixava escapar ligeiro.

Vivi como apreciava:Um pouco ao sabor do ventoFui leve de coraçãoLigeiro de pensamentoSó duas coisas juntei:Amor e contentamento.

Na terra fiquei banzandoAté que chegou a hora.Passei-me quando buscavaConsolo pra uma senhoraEsquivada do maridoPorém bela e sedutora.

Por seu amor eu viviMeu derradeiro papelLutei em dura pelejaCom o Inimigo cruelMas esta grande passagemDeixe pra outro cordel...

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