A Afinacao Do Mundo - Murray Schafer

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© 1977 R. Murray Schafer

Titulo original em inglês: The Tuning of the Worfd.

© 1997 do tradução brasileira:

Fundação Editora do UNESP (FEU( Praça do Sé, 108 01001 -900 -Soo Poulo -SP TW.: (OwllJ 3242-7171 Fax: (Owll) 3242-7172 Home page: www.edifora.unesp.br E-mail: [email protected]

Dodos imerrvocionois de Cotalogoção no Publicação |CIP) (Cãmoro Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Schafer, R. Murray

A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual eslodo do mais negligenciado aspecto do ncso ambiente: a paisagem sonoro / R. Murray Schafer; tradução Marisa Tranch Fonterrodo - São Poulo: Ediiora UNESP 2001.

Titulo original: The Tynirvfl oi the World. Bibliografia ISBN 85-7139-353-2

1. Músico - Acústico e físico 2. Músko - Filosofia e ««tática 3. Som I, Titulo.

01-1732 CDD-781.1

índice para catálogo sistemático:

1. Música: Acústica e física 781.1

Editora afiliada.

Asm Minin «li- Ki1ltiin«li-* l.iinvrMl^MHt AntuAidcAii llrjctlMni <lr de Amínra Ullna y ei CíUIDC tsdllorai Lrtíwinliarlaj»

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R, Murrey Schafer

ParteJU Análise

H Notação 175 9 Classificado 189 10 Percepção 213 11 Morfologia 227 1> Sim holism» 235

13 Ruído 255

Parte_LY Ern direção oo projeto ocústico

14 Audição 287 15 A a imunidade acústica 222 16 Ritmo e tempo na paisagem sonora 315 17 O projetista acústico 329 18 O jardim sonoro 341 19 Silêncio 351

Epílogo - A musica de além 359

Glossário de termos relativos à paisagem sonora 363

Apêndices

1 Amostragem de sistemas de notação sonora 371 2 Pesquisa internacional de preferência sonora 375

Índice remissivo 211

&

Prefácio

Deride que comecei a estudar o ambiente acústico, tenho tido a esperan-ça de reunir meus textos a respeito desse tema em um livro que pudesse servir de guia para futuras pesquisas. Por esse motivo, neste livro utilizo extensamente muitas de minhas publicações anteriores, em es|x?cial os livretos Tbe Xeu- Soitndscape \A nova paisaaem sonora]' e lhe Book of Noise \ O livro do ruído] e vários documentos do Projeto Paisagem Sonora Mundial, particu-larmente o ensaio "The Music of the Environment" ["A música do ambiente"! e o nosso primeiro estudo de campo. The Vancouver Soundscape [A paisa-gem sonora de Vancouver\. Mas tento dar a esse material fugidio uma orga-nização mais cuidadosa.

Como certos dados vieram tie remotas fontes, e como lenho refletido muito ou recebido estímulos de meus companheiros de pesquisa, várias das minhas primeiras suposições foram revistas ou abandonadas. O presente livro é lao definitivo quanto |X>ssível, mas, como somente Deus sabe as coisas com certeza, ainda se deve tomá-lo como experimental.

Grande parte do material deste livro foi revelada peJo estudo internacional denominado Projeto Paisagem Sonora Mundial, que muitas agências finan-ciadoras ajudaram a manter. Tenho um grande debito de gratidão para com meus colaboradores imediatos do Projeto, por nossos incontáveis e estimulan-tes encontros e discussões. Este livro é tanto deles quanto meu, pois eles o

1 EíSC Ijvrrto transformou-se mais Laide cm um dos ejpúulixs du 7?.v 'thinktn# Lar, publtuidi • mi BrjhÜ xoluMiiuUi O ottvUkt pettsanteiSàu PuuUi- Kdiinr.i INtlSP JW2) (N T>

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leram, criticaram e forneceram-me dados c palavras de incentivo. Agradeço particularmente a ílildegard VTesierkamp, Howard Broomficld, Bnice Davis, t'eter Huse e Barry Truax. Jean Reed, hoje minha mulher, foi uma colalx>rado-m muito especial, que confrontou fontes de informação, leu numerosos eslx> ços e tolerou as mudanças de humor do autor.

Diversos pesquisadores, em diferentes disciplinas, têm encorajado a reali-zação de estudos a rcs|x*i(o da paisagem sonora. Muitos deles leram partes deste livro c colulxiniraiti com valiosos comentários. Outros sugeriram novos ângulos de investigação ou enviaram malcnais de países que, de outro modo, não poderiam ter sido < tinidos. Quero agradecer oarticulaniienlc aos seguin-tes pesquisadores: Professor Kun Blaukopf e Dr. Desmond Mark, do Instituto de Música. Dança e Teatro de Viena: G. S. Mêtraux e Anny Main nix, tia l .'nesoo, Paris; Dr. Philip Dickinson, do Departamento de Bio-engenharia da Universi-dade de Utah; Professor John Large, tio Instituto de Pesquisa do Som e Vibra-ção tia Universidade de Southampton; Dr. David Lowenthal. do Departamento de Geografia do University College, Londres; Dr. Peter Oshvald, do InsLituto Neuropsiquiátrico langley Pofler cü Universidade da Califórnia: Marshall McLuhan, do Centro de Cultura e Tecnologia da Universidade de Toronto; Michel P. Philippot, do Instituto Nacional do Audiovisual, Paris; Dra. Catherine Ellis, da Universidade de Adelaide: Professor John Paynter. da Universidade de York; Pnlessor Jean-Jacques Nattiez. da Universidade de Montreal; e Profes-sor Pat Shand, da Universidade de Toronto.

Tenhcj uma divida especial para com Yehudi Menuhin, |Xir sen consian-te encorajamento ã pesquisa da paisagem sonora, e para com o Di. Oito Laske, pelos valiosos comentários que teceu a respeito de meu texto.

O Projeto Paisagem Sonora Mundial não poderia ostentar esse título sem os numerosos relatos e verificações realizados em diversos países. Por forne-cerem informaçíjes especiais ou haverem auxiliado em sua tradução, agra-deço a: David Ahem, Carlos Araújo, Renata Braun, Junko Carothers, Mieko lkegame: Roger Lenzi. Beverley Maisu, Judith Maxie, Albert Mayr, Marc Mctraux, Walter Otoya, John Rimmer. Thorkcll Sigurbjõrnsson, Turgur. Var e Yngve Wirkander. Nick Heed merece agradecimentos especiais, pela valiosa pesquisa em bibliotecas.

Agradeço a Pat Tait, Janei Kmulson e Linda Clark, pela datilografia de numerosos rascunhos de manuscrito. Quando um autor fica mudando de idéia a todo momento, o serviço dos datilografo* ê o mais árduo de todos.

tí. Murray Schafer Vancouver, ajínslo de* lO rS

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Prefácio à edição brasileira

O aparecimento de A afinação do mundo em português me da a opor-tunidade para tecer alguns comentários breves a respeito da evolução da paisagem sonora, desde sua publicação original, em 1977. Acredito que este livro foi a primeira tentativa de estudar o ambiente acústico de manei-ra sistemática. Meu objetivo era mtxstrar de que modo a paisagem sonora havia evoluído no decorrer da história e de que modo as mudanças por que passou podem ter afetado nosso comportamento. Queria também que as pessoas percebessem que a paisagem sonora é dinâmica, transformável e, assim, possível de ser aperfeiçoada. Naturalmente, a expressão suundscape* não existia quando comecei e, desse motto, a noção de que o ambiente acústico poderia tornar-se uni campo de pesquisa não era ainda Ixím avaliada. Tive de inventar meu próprio vocabulário,, á medida que o conceito evoluía: ecologia acústica, esquizofonia, marca sonora. Mim fundamental etc. Alguns desses termos passaram a integrar o vocabu-lário de várias línguas. Outros foram mal compreendidos ou remodelados para servir a interesses comerciais. Por exemplo, um anúncio em uma revista americana de comércio convida você a "fazer a paisagem sonora de seu escritório", no sentido de acrescentar divisões acústicas paia espaç<*s externos; e, emlxjni determinada companhia aérea tenha um certo t ipo de

l S<mminilf\' è uni n«»Jr*j(i>nn> t r i id i * pdo üiuor e q w leni >-iito tnaMwia lmrmc u-j>dunclu, nos piiiws I J : H I U \ |XJI 'piiihiLjccin MH>OCJ~. IN. T.)

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música "A-íCü1 Age" em seu programa intitulado "Sautidscapef, a palavra ainda conserva seu significado autêntico para um número crescente de pesquisadores e educadores em todo o mundo. Fxiste agora The World Forum for Acoustic Rcology | Fórum Mundial de Ecologia Acústical, que publica um noticiário chamado Soundscape SeiesIettvr\Sotícias da fxiisti-Xem sonora] e um Anuárío com pesquisas a respeito desse tema. Há tam-bém organizações que traiam da paisagem sonora em muitos países, e muitas conferências nacionais e internacionais foram realizadas nos anos mais recentes. Naturalmente, o impacto dessas atividades na evolução da paisagem sonora mundial tern sitio pequeno, Sempre* achei que a educa-ção pública é o mais importante aspecto dei nosso trabalho. Em primeiro lugar, precisamos ensinar ás pessoas como ouvir mais cuidadosa e critica-mente a paisagem sonora: depois, precisamos solicitar sua ajuda para replanejã-la. Em uma sociedade verdadeiramente democrática, a paisagem sonora será planejada por aqueles que nela vivem, e não por forças impe-rialisms vindas de lora.

A maior parte dos sons que ouvimos nas cidades, hoje em dia, perten-ce a alguém e é utilizada retoricamentc para atrair nossa atenção ou para nos vender alguina coisa. .\ medida que a guerra ]X'la posse de nossos ouvidos aumenta, o mundo fica cada vez mais superpovoado de sons, mas, ao mesmo tempo, a variedade de alguns deles decresce. Sons manu-faturados sào uniformes e. quanto mais eles dominam a paisagem sonora, mais homogênea ela se torna. Ilã muitas 'espécies em extinção" u,* paisa-gem sonora atual. Fias precisam ser protegidas, elo mesmo modo que a natureza. De fato, muitos dos .sons em extinção são sons da natureza, dos quais as pessoas cada vez mais se alienam.

Será que o mundo é hoje mais barulhento do que vinte anos atrás? Naturalmente, o número de sons aumenta na medida em que a popula-ção cresce, mas ele também se expande com o desenvolvimenicj das novas tecnologias. Como único exemplo, tomemos o telefone celular, um sucesso quase instantâneo, agora presente em Ioda parte, em trens, nas ruas, nos restaurantes ou nas salas de aula. O equivalente a isso. em i960, foi o rádio tran.sLstorizado. Perturbador para muitos, o rádio transisto-rizado conferiu identidade acústica a urna classe ele pessoas que até aquele tempo permanecia completamente invisível, especialmente negreis e ado-lescenles. (Do mesmo modo, os trabalhadores tornaram-se visíveis quan-do trocaram vassouras e pás por máquinas de terra pie na gem, J No 1 no-

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mento, o telefone celular recuperou a superioridade das classes abasta-das, que podem anunciar sua importância a qualquer pessoa que esteja ao alcance de sua voz.

Entre os "sons sagrados" do mundo, a perpétua necessielade da polícia e de outras sirenes permanece; nem a imlúsiria da aviação renunciou ao seu clamor como o negócio mais ruidoso do mundo. Enquanto cada nova geração de jatos é alguns deeihéis mais silenciosa do que as precedentes, o enorme aumento no número de vôos deixou em farrapos algumas das batalhas duramente cone-uLstadas nos une» 60 e 70, tais comi) a interrup-ção dos vôos noturnos nos maiores aemportos. Somente os jate» de carga aumentaram mais ele i.OOOM* em trinta anéis nos EL'A. Feliz ou infelizmente, a previsão de que as mais recentes tecnologias ela comunicaçãe> mundial reduziriam a necessidade de viagens aéreas, do mesmo modo que tantas outras previsões, mostrou estar errada.

A afinação do mando e o relato histórico í\a paisagem sonora até 19^5. Os fatos contidos no livro permanecem válidos, e muitas teorias e métodos de pesquisa foram confirmados pelas numerosas traduções e reedi-ções do livm em minha própria língua. Sou grato à minha colega e amiga Professora Marisa Femternida, que já traduziu O ou lido pensante, por tra-duzir A afinação do mu fido para o [lortuguês. Espero que esta tradução possa inspirar jovens pesquisadores no Hrasil e em Portugal a investigar aspectos de suas próprias paisagens sonoras, que são únicas, fascinantes e, para os que não as conhecem, exóticas.

R. Murray Schafer $A<> Paulo, » de nuxemlwu de lVÍW

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Xikigravuni LU- TJK* Tuning of ten: World' de I'tntatfue Cosm\ Uistona. dc Hiit)crt Huiid (Nil~i.

Introdução

AVw I will do nothing hut listen...

I hear all sounds twining togettwr, combttieti. fused <trfollowing.

Soutuis itftho city ami xountb out <f the city, saunas tflhe duty and night ..

Vialt Whitman, Songs ofAfyxlf

A pais;!gem sononi do mundo está mudando. O homem moderno começa a habitar um mundo que tem um ambiente acústico radicalmente diverso de qualquer outro que tenha conhecido até aqui. Esses novos Sons, que diferem cm qualidade e intensidade daqueles do passado, Tem alertado mui-tos pesquisadores quanto aos perigos de uma difusão indiscriminada e impe' rialista de sons. em maior quantidade e volume, em cada reduto da vida humana. A poluição sonora é hope um problema mundial. Pode'Se dizer que em toelo o mune Io a paisagem sonora atingiu o ápice da vulgaridade em nosso tempo, e muitos especialistas têm predito a surdcz universal come» a última conseqüência desse fenômeno, a menos que e> problema venha a ser rapida-mente com rolado.

I Agora, ruda faço ak-m elo ouvir. . Ou^ti Icxlcis ixs MHH C[UL- <. irtTum junitxs ciMIlbuiadiJS,

quo st fundem (*u K Mioedcm, Sufü lia cidade C d*r firfa d;l dtLadc, ions

dti ili;i i- cLi IIIMIí'... (N. T.l

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Fm várias partes do mundo, importantes pesquisas estão senele> efetuadas cm muitas áreas independentes de estudos sônicos: acústica, psico-aeústiea, otologia, piãiícas e procedimentos internacionais ele controle cio ando. co-municações e engenharia de registros sonoros (música cletroacústica e ele-trônica», percepção de padrões auditivos c análise estrutural da linguagem e ela música. Essas fx.4sc|uisas são in ter-relacionadas, e cada uma delas refere-se a aspectos da paisagem sonora mundial. De um moi lo ou ele outro, os pesquisaelores que se dedicam a esses variadexs lemas estão lazenelo a mes-ma pergunta: Qual é a relação entre os homens e os sons de seu ambiente e o que acomete quando esses sons st1 modificam? Os estudos LI respeiiei ela paisagem sonora tentam unificar essas diferentes pesquisas.

A poluição sonc »ra <K,e.)n,e quando o homem náe> ouve cuidadosamente. Ruídos são tis sons que aprendemos a ignorar. A poluição sewiewa vem sendo combatida |x*Li diminuição do ruído. Essa é. uma abordagem negativa. Pre-cisamos procurar uma maneira de tornar a acústica ambiental um programa de estudos positive), Que sons queremos preservar, encorajar, multiplicar? Quando soubermos responder a essa pergunta, os sons desagradáveis ou destrutivos predominarão a tal ponlo e|eie salx-rvmos por que devemos eliminá-los. Semiente uma total apreciação do ambiente acústico pode nos dar recursos para aperfeiçoar a oix|Uestraçào da paisagem se mora mundial. Há muitos anos venho lutando em prol da limpeza de ouvidos nas escolas c da eliminação da audiometria nas fábricas. Clariaudiéncia, e não ouvidos amortecidos: eis uma idéia da qual não ilesejo ter a posse permanente.

O territórie) básico de)s estudos da paisagem sonora estará situado a meio caminho entre a ciência, a sociedade e as artes. Com a acústica e a psico-acústica a prende reinos a respeito das propriedades físicas do som e do modo pelo qual este ê interpretado pelo cérebro humano. Com a socie-dade aprenderemos como o homem se comporta com os sons e de que maneira estes afetam e modificam o seu comportamento. Com as artes, e particularmente com a música, aprenderemos tie que modo o homem cria paisagens sonoras ideais para aquela outra vida que c a da imaginação e da reflexão psíquica. Com base nesses estudos, começaremos a construir os fundamentos de uma nova inlerdisciplina - o projeto acústico

Do projeto Industrial ao projeto acústico

A mais importante revolução tia educação estética do século XX foi aquela realizada pela Hauhaus, :i m;iis célebre escola de arte alemã desse'

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A ofinoçõo do mundo

século. Sob a liderança do arquiteto Walter Gropius, a Hauhaus reuniu alguns dos maiores pintores e arquitetos do icnipo (Klee, Kandinsky. Moholy-Nagy, Mies van der Rohe) a artesãos de reconhecida competên-cia. Fm principiei, pareceu desapontador o fato de nenhum dos gradua-dos por essa escola alcançar a mesma notoriedade dos seus orientadores. Mas o propósito da escola era outro, A sinergia ínterdiseiplinar das habi-lidades dos membros permitiu estabelecer um novo campo de estudos graças ã criação da disciplina chamada projeto industrial. A Bauhaus levou a estética à maquinaria c ã produção de massa.

Cabe-nos agora criar uma interdiscíplina que poderíamos chamar projeto acústico, na qual músicos, engenheiros acústicos, psicólogos, sociôleige>s e eiutros estudariam em conjunto a paisagem sonora mun-dial , o que nos capacitaria a fazer recomendações inteligentes para a sua melhoria. Esse estudo teria por objetivo documentar aspectos im-portantes dos sons, observar suas diferenças, semelhanças e tendências, colecionar sons ameaçados de extinção, estudar eis efeitos dos novos sons antes que eles fossem colocados indiscriminadamente no ambien-te, estudar o rico sirnlnil ismo de)s sons e os padrões do ce>mportamento humano em diferentes ambientes sonoros, com o f im de aplicar conheci-mento ao planejamento de futuros ambientes. Dados interculturais de lodo o mundo precisam ser cuidadosamente reunidos e interpretados. Novos métodos de educar e] públ ico para a importância do ambiente sonoro precisam ser criados. A questão final será; A paisagem sonora mundial ê uma composição indeterminada, sobre a qual não temos controle, t>u seremos nós, os seus compositores e executantes, encarre-gados de dar-lhe forma e beleza?

Orquestração é assunto para músicos

No transcurso deste l ivro, tratarei do mundo como uma composição musical macroeósmica. F.ssa é uma idéia insólita, mas vou levá-la inexo-ravelmente adiante. A definição de música tem sofrielo uma mudança radical nos últimos anos. Numa das mais recentes, John Cage declarou: "Música é sons, sons â nossa volta, quer estejamos dentro ou fora das salas de concerto - vejam Thorcau". Cage eslã aludindo a Walden. de

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'1'horeau, onde o autor descobre uma inesgotável fonte de entretenimen-to nos sons e visões da natureza.-1

Definir a música meramente et mio sons leria sieio impensável alguns anos atras, embora hoje as definições mais restritas sejam as que se tem revelado mais inaceitáveis. Mouco a pouco, no decorrer do século XX, todas as definições tradicionais ele música foram caindo [K>r terra em razão da abundante atividade dos próprios músicos. Fm primeiro lugar, i**la enorme expansão dos instrumentos de percussão nas nossas orquestras, muitos elos quais produzem sons sem altura definida ou arrílmicos: depois, pela intro-dução de procedimentos aleaióritjs, nos quais todas as lentaiivas para orga-nizar os sons de uma composição racional foram suplantadas pelas leis "mais alias" da entropia; em seguida, pela aliertura eleis recipientes espaço-tempomis que chamamos ele "composições" ou "salas ele concerto" pira permitir a introdução de todo um mundo novo de sons situados fora delas (em 4' XV Silence de Cage, ouvimos apenas CJS sons externos á própria composição, que não passa de uma cesura prolongada); depois, pelas pr.iei casda muskfue concrete Imúsica concretaI, tjuc insere qualquer som ambiental na composição por via da fila; e, finalmente, pela música eletrônica, que em lodo o mundo tios tem revelado lt*.la uma nova gama ele sores musicais, muitos deles relacionados com a tecnologia industrial e elétrica.

Hoje, todos os sons fazem parte de urn campo continuo de possibilida-des, que pertence ao dotnfnio contprevnsiui da música Fis a nova orques-tra; o universo sonoro!1

E os músicos: qualquer um e qualquer coisa que soe!

Conceito dionisíaco versus o conceito apolíneo de música

É mais fácil percel>er as responsabilidades da engenharia acústica ou da audiologia para com a paisagem sonora mundial de> que entender a exata maneira pela qual e* músico contemporâneo pretende ligar-se a esse vasto tema. Dai eu Irater na mesma tecla mais algum tempo.

Hã duas idéias básicas a respeito do que a música é ou deveria ser. Elas podem ser vistas mais claramente em dois mitos gregos que explicam a

1 Apuit R. M. Scriaicr. Ttv \ru .V-atuhcitfK'. IxjndiK:, VicciiU, V)~\. p. l . (\t"r li. M Sillaícr. O funidn fvrutínti' São Paul'»: IMiMro CST.SP. )9<>l. I 1 * * I

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origem da música. Nas Doze odes püicas, Pindaro nos conta como a arte de locar o auhjss foi inventada por Palas-Atena quando, após a decapitação ela Medusa, ela se comoveu com o choro das irmãs e criou um notnos* em sua honra, Num hino hoiriérico em louvor a Hermes, uma origem alterna-tiva é mencionada. Diz-se que a lira foi inventada por Hermes quando ele pereelxru que a carapuça de uma tartaruga, se fosse utilizada como caixa de ressonância, poderia produzir som.

No primeiro desses mitos, a música surge como emoção subjetiva; no segundo, e o resultado da descolaria das propriedades sonoras dos mate-riais do universo. Tais são os fundamentos sobre os quais Iodas as teorias da música subseqüentes estão fundadas. Caraclcrisiicamcnic, a lira é o inslruiiK'nlo de Homero, da epopéia, da serena contemplação do univer-se!, enquanto o atdosio oboe com palheta f é o instrumento da exaltação e da tragédia, o instrumento do ditiramho'' e do drama. A lira é o instrumen-to de Apoio, o aulosúns festivais de Dioniso. No mito dionisíaco, a música c concebida como um som interno, que irrompe do peito de» homem: no mito apolíneo, cia é compreendida como som externo, enviado por Deus para ne>s lembrar a harmonia do universo. Na visão apolínea, a música é exala, serena, matemática, associada ás visões transcendentais da Utopia e da Harmonia das Esferas. É lambem a anábata dos teóricos hindus. É a base da especulação de 1'itágoras e dos teóricos medievais (época em que a música era ensinada como uma disciplina de> tftiadrifiutth ao lado da aritmética, da geometria e da astronomia), l iem a i rao da técnica de com-posição sobre doze notas de Schoenberg." Seus métodos de exposição são as teorias dos números. Ela busca harmonizar £> mundo pelo projete» acús-tico. Na visão dionisiaea, a música é irracional e subjetiva. Ela emprega recursejs expressivos: flutuações temporais, ohsçureeimenio da dinâmica. coloração tonai. É a música de palco operístico, do hei canto, e sua voz

h Attffv irwrunn-ntn tW p;ilh«;i dupl j . amcoewor cio nvxleino ol»oé, Ki>t;intc cunliceidij na l i rácu uj'iitfa. CS. T. i

•i Ar»™* rei Cnvóa ;iniijd. iwlorii;**- inalterável* às q u j i * se ^Irilmú iníloc-ncia mágica IHJ ritual. Provindo^ (Li ccjiiuinicaçau d-viiu, «.nm-niL- um grand*.- ar tnu eiiihj i> [MHJL-T de n/i«l>6-tiKi. Oh Hemo.i. LTim tli-si)pijdri\ |jcl<i deu.*, cjiif |<uiv:iv;i.n> Cr>n>ti.iJUir Mário de Andnde, Ptoiucrja htstóna da tntisiai, y.cd. Hek> Horizonrc: Uatiab, 199". p.y). (N . T J

*• IJtíinJMtxt. iinlliXvij^-Ji:' di- CV.tiliMaS *.' VL'PHIS iirfjçutarv*. C|IJL: i-xiirjini'ni t'nti|.*jj.-4(ici e delin*i \ ; i Ciréri:" urriwi. era o uvnUi em Jcsuvof ü UíVCü (DionisoJ. <N. T. i

6 O iiuuir ref L-ctu-M.- ,iu nic-tiidi» de cumpe IM^íCJ A idocufôniLa. i N.. I'.)

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aguda e penelranle pcKle também ser ouvida nas Paixõesde Üaeh. É so-bretudo a expressaej musical do artista romântico, tendo prevalecido du-rante lod<í (3 século XIX e no expressionismo elo século XX. Ainela hoje é ela que preside à formação dos músicos.

Pelo fato de a produção de sons ser, em grande parte, uma questão sulíjetiva cio homem moderno, a paisagem semora contemporânea é notável por seu hedonismo dinâmico. A pesquisa eme pretendo descrever repre-senta uma reaíirmaçãe> ela música ce>rno busca elas influências harmonizado-ras dos .soas do mundo sobre nós. Em Itruvu.jue Costnt Historia, tie Rolxrrt Hudd, há uma ilustração entitulada "A afinação do mundo"," na qual a Temi forma o corpo de um instrumento sobre o qual cordas são esticadas e afina-das -xjr mão divina, t. preciso reencontrar o segreelo dessa afinação.

A música, a paisagem sanara e o bem-estar saciai

Em O ftgo das contas de fidnx Hermann Ilesse nos apresenta uma idéia interessante, Diz ele ter ene-onlradr> uma teoria a respeite* da relação entre a música c o listado numa antiga fonte chinesa; "Pe>r isso, a música de uma época harmoniosa ê calma e jovial, e ei governo equilibraelo. A música de uma época inquieta é excitada e colérica, c seu governo é mau. A música de unia nação em deeaelència é sentimental e Irisre. e -seu gover-no corre perigo"."

Essa teoria poderia sugerir que o igualitário c iluminista reinado de Maria Teresa tp<>r evemplo. como esTá expresso em seu código criminal unificado, de 17ú*Ó e a graça e o equilíbrio da música de Mozart não são acidentais. Ou que as exirdvagãncius seniimeniais de Ric liarei Strauss estão perfeitamente de acordo com o declínio do Império Austro-húngaro. Em Gustav Mahler encontramos, esbeiçaelas por ácida mão judaica, marchas e danças alemãs de tal sarcasmo que nelas lemos uma espécie de antevisão da dance macabre [dança macabra| política que logo se seguiria.

A tese é igualmente etinfirmada nas sociedades Tribais em cjue, sob o estrito controle da comunidade próspera, a música é firmemente esr.ru-

~! 77v 7r/rriryi r / j / v UfVjrf^. c m i-inlê*. <|uc ücu i j i uk i ai> j i r t^en ie J* .PJ u-ni >u.< *.crs.li» «j i i j - i r - i l (N . T i

íJ l-k-rcurui UCSM.-. 'lhe CíUISí Bemt (kitne. \«.-*- Y<irli. I W " , ]j._-VO. |«-U. Ijru.v. O wulti* LWJíO> iA-itctAt. Trad. l j iMi ih i Abram. IICü Vi i i t l i f l l j v i n Vi«;:ni «If SíILIJ-JI Siiu P:iiil(i Etni.silN'».*?. lc/?2 I

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A o f i n ü t ^ o do mundo

turada, enquanto nas áreas destribalixadas eis Indivíduos cantam horrí-veis canções sentimentais. Qualquer clnomusicólogei pode confirmar essa afirmação. Resta pouca dúvida, portanto, de que a música é um indica-dor da época, revelando, para os que sabem como ler suas mensagens sintomáticas, um modo de reordenar acontecimentos sociais e mesmo políticos.

Desde algum tempo, eu também acredito que o ambiente acústico geral de uma sociedade pode ser lide> como um indicador das condições sexiais ejue o produzem e nos contar muita coisa a respeite) das tendências e da evolução dessa sociedade. Ne> decorrer deste livro, vou sugerir muitas dessas relações e, embora minha natureza me leve provavelmente a fazê-lo de modo enfático, espero que o leitor possa continuar a considerar o método validei mesmo se algumas equações parecerem desagradáveis. Todas elas estão abertas a investigações posteriores.

A notação da paisagem sonora (sonografia)

A paisagem sonora c e|ualquer campo de estudo acústico. Podemos referir-nos a uma composição musical, a um programa de rádio ou mesmo a um ambiente acústico como jxiisagens sonoras. Podemos isolar um ambiente acústico como um campo de estudo, 6o mesmo modo que -xxlemos estu-dar as características de uma determinada paisagem. Texlavia, formular uma impressão exala de uma paisagem sonora é mais difícil do que a de uma pai-sagem visual. Não existe nada em sonografia que corresponda á impressão instantânea que a fotografia consegue criar. Com uma camera, é possível detectar os faleis relevantes de um panorama visual e eriar uma impressão imediatamente evidente. O microfone não opera dessa maneira. Ele faz uma amostragem de pormenores e ntis lórnere uma impressão semelhanle i\ ek* um close, mas nada que ce>rresponda a uma fotografia aérea.

Do mesmo modo, enquanto qualquer pessoa ten) alguma experiência na leitura de mapas e muiteis podem extrair info^mações significativa* de outros diagramas da paisagem visual, como plantas arquitetônicas ou ma-pas executados por geógrafos, poucos conseguem ler as elalx>raelíssimas cartas utilizadas pelos foneticisias. engenheiros acústicos ou iTiúsieos, Dar uma imagem totalmente convincente de uma paisagem sonuia requer habi-1 idade e paciência extraeirdinãrias: seria necessário fazer milhares de grava-

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çòcs e dezenas de milhares de medições, e um novo modo de descrição teria que ser inventado.

l"mn paisagem sonora eon.sisie em eventos nttfidttse. não em c^bjetos listas. Para além da percepção audiLiva estão a notação e a fotografia dos sons, que, por serem silentes, apresentam certos problemas que serão discutidos num capitulo especial, na seção "Analise" deste livro. Infeliz-mente, por apresentar os nossos dados em páginas silenciosas, antes dessa discussão seremos feltrados a utilizar alguns ripos de profeção visual e tam-bém de notação musical, e eles somente serão úteis se puderem abrir os ouvidos e estimular a clariaudiéncia,

Estamos numa posição igualmente desvantajosa quanek> se iraia de buscar uma perspectiva histórica para o objeto de nosso estudo. Fmbora di5ponhamos de muitas fotos tiradas em épocas diferentes e, antes delas, de desenhos e mapas que nos mostram como um determinade> cenário se modif icou com o passar dos anos, precisamos lazer inferéncias no tocante ás mudanças sobrevindas na paisagem sonora. Podemos saber exatamente quantos edifícios foram construídos numa determinada área ao longo de uma década ou qual foi o crescimento da população, mas não sabemos dizer em quantos decil^éis o nível de ruídei ambiental poele Ter aumenta elo em um período de tempo comparável. Mais que isso: eis sons | iodem ser alterados ou desaparecer e merecer apenas parcos comentários, mesmo por parte do mais sensível dos historiadores. Assim, embora possamos utilizar modernas técnicas de gravação e análise no estudo das paisagens sonoras contemporâneas, para fundamentar as perspectivas históricas le-remos que nos voltar para o relato de testemunhas auditivas da literatura e da mitologia, bem como aos registros antropológicos e históricos.

O testemunho auditivo

A primeira parte deste livro tem uma dívida especial para com tais relatos. Sempre procurei ir diretamente ãs fe>ntes Assim, um escritor só é considerado fidedigno quando escreve a respeite» de sons diretamente vivenciados e intimamente conhecidos. Escrever sobre outros lugaies e épocas costuma resultar em elescriçòes simulatlas. Para (e»mar um exemplei óbvio, quandei Jonalhan Swift descreve as cataratas do Niagara dizendo que elas fazem um "barulho terrível e cavo'", ficamos sabendo que ele

:'•;

A ofinoção do mvndü

nunca esteve lá, mas quando Chateaubriand relata que, em 1791, ouviu o rugido das cataratas de> Niagara a e>ito ou ú^7. milhas de distância, fornece-ra is uma útil informação a respeito do nível do som ambiental, com o qual se poderia comparar o nível soriore» de hoje. Quando um escritor escreve de mexlo verdadeiro a respeito de experiências diretamente apreendidas, ãs vezes os t>uvidos podem burlar o cérebro, como Erich Maria Remarque descobriu nas trincheiras, elurante a Primeira Guerra .Mundial, quando ou-viu granadas explodindo perto dele, seguidas pelo estrondo da artilharia distante que as disparava. Essa ilusão auditiva ê perfeita mente explicável porque, deslocando-se a velocidades supersônicas, as granadas chegavam antes dos sons da dcionaçãe> original, mas somente alguém com formação cm acústica teria previsto esse fenômeno. :\ada de novo no front é con-vincente pore|ue o aulor eslava lá, E acreditamos nele quando descreve outros eventos sonon>s não-usuais - por exemplo, os sons produzidos pelos cadáveres: "Os dias são quenies e os mortos jazem desenterrados. Não podemos ir buscar todtis, não salientamos o que fazer com eles. Não precisamos, porém, nos preexruparmos; são entcrradt>s pelas granadas. Alguns têm as barrigas inchadas como balões, assobiam, arrotam e me-xem-se. São os gases que se agitam neles".l" William Faulkner também ce)iihecia o barulho dos cadáveres, que ele descreve como "pequenas ex-plosòes golejantes de sccrclo e murmuranlc borbulhar*".11

Assim se estabelece a autenticidade da testemunha. Um talento espe-cial permitiu a romancistas ce>mo Tolstoi, Thomas Hardy c Thomas Mann capturar as paisagens sonoras de seus lugares e épocas, e tais descrições constituem o melhe>r guia disponível na reconstrução das paisagens sono-ras do passado.

Aspectos da paisagem sonora

O que e> analista da paisagem sonora precisa fazer, em primeiro lugar, é descol.írir os seus aspectos significativos, aqueles sons que são importan-tes por causa de sua individualidade, quanikiade em preponderância, Fi-

9 Rrich Miiria Remarque*. AN Owícr on tbc Wcftent f-"n»tt. OoMon. 192M, ver. eap. 4. led. Iwas.. Sutiã tk' nofj nofitrtit. Trad. Helen Kumjjncek. Sin TJUIO: Abri! tluJruol, l«>fil.|

10 IbiiUnn, p.líí). 11 Willum hiulJcncr. As f Lay Dprig. New York, i960, p 20i

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R Murrey Schofer

nalmcntc, algum sistema de classificação genérica terá que ser delineado, e esse será o lema da Parte III deste livre). Para as duas primeiras partes, será suficiente categorizar os principais lemas da paisagem sonora, elistin-guindu entre o que chamamos de sons fundamentais, sinais e marcas sonoras. A estes poderíamos acrescem ar os sons arquutipicos, aqueles misterio-sos sons antigos, não raro imbuídos de o|x>rtuno simbolismo, que herdamos da alta Antigüidade ou da Pré-história.

Som fundamentalc um termo musical. É a nota que identifica a escala ou tonalidade tie uma tleterminatla ee mi posição. E" a âncora ou som básico, e, embora o material possa modular á sua volta, ohseurccendo a sua im-portância, é em referencia a esse ponto que tudo o mais assume o seu significado e s t e i a I . Os sems funelamenlais náe> precisam ser ouvidos cons cientemente: eles são entreouvidos mas não podem ser exanirnaelevi. |ã que se tornam hábitos auditivos, a despeito deles mesmos.

O psicõle>gc.i da percepção visual fala de "figura" c "fundo". A figura é vista, enquanto <t fundo só existe par i tlar â figura seet contorno e sua massa. Mas a figura não pode existir sem o fundo; subtraia-se o funde.», e a figura se tornará sem forma, inexistente. Assim, ainda que cxs sons funelamenlais nem sempre possam ser ouvidos conscicnlemente, o fato de eles estarem ubiquamente ali sugere a possibilidade de uma influência profunela e pe-nei ranle em neisso comportamento e eslados de espírito. Os se ms funda-mentais de um determina dei espacei são im porta nles porque nos ajudam a delinear o caráter dos homens que vivem nt) meio elele.s.

Os sejns fundamentais de uma paisagem são os sons criados por sua geografia e clima: água, venio, planícies, pássaros, insele>s e animais Mui-tos desses sons podem encerrar um significado arqueiipico, isto é. podem ter-se imprimido tão pre>fundamente nas pessoas que os ouvem que a vida sem eles seria senlida como um claro empobrecimento. Poelcm mesmo afetar o ceimporrameiUe) e ei csulr> de vida de uma sociedade, mas para uma discussão a esse respeito teremos que esperar até que o leitor esleja mais familiarizado com o assunto.

Os sinais são sons elestacados, e>uvidos conscientemente. Nos termos da psicologia, são mais figuras e-tie fundo. Qualquer som pode ser ouvido tons-cieniemenle e. desse modo, qualquer som pode tornar-se uma figura ou sinal, mas para os propositus de nosso estudo, orientado para a comunida-de, devemos limitar-nos a mencionar alguns desses sinais, <jue prei tsatn ser ouvide>s porque são recursos de avisos acústicos, sinos, apitos, buzinas

26

A í j f i rmçâo do mundo

e sirenes. Não rare» os sinais sonoros podem ser organizados dentro de códigos bastante elaborados, que permitem mensagens de considerável com-plexidade a serem tratismilidas àqueles que pí*dem interpretá-las. É e> caso, por exemplei, da cor de cbasse Itrompa da caçai, ou dos apilos de irem ou navio, como iremos descobrir.

O (ermo marca sonora deriva de marca1 e se refere a um som da comunidade que seja único ou que pewsua determinadas qualidatles que o tornem especialmente significative» ou nejtado pelo povo daquele lugar. Uma vez identificada a marca sonora, é necessário protegê-la porque as marcas sonoras tomam única a vida acústica da comunidade. Este é um tema a ser levantado na Parte IV, deste livrei, onde se discutem princípios do projeto acústico.

Tentarei explicar todas as e>ulras terminologias da paisagem sonora á medida que forem sendo introduzidas. No final do livro, liá um pequeno gle>ssârio ele lemios que ou são neologismos ou foram utilizados de maneira idiossincrática. Ele poderá dirimir as dúvidas que porventura surgirem ao longe> de> texto. Fiz o ]X>s.sivel para não utilizar muitos leniKjs acústicos complexos, embora um conhecimento dos princípios básicos da acústica e uma lámiltaridade ce>m a teoria e a história da música sejam desejáveis.

Ouvidos e clorioudiõncio

Não argumentaremos a favor da prioridade dei ouvido. No Ocidente, o ou vicio cedeu lugar ao olho, considerado unia das mais importantes f ornes de informação desde a Renascença, com o desenvolvimento da imprensa c da pintura em perspectiva. Um dos mais evidentes testemunhos dessa mu-dança é o modo pelo qual imaginamos Ueus. Não foi senão na Renascença que esse Deus tornou-se retra-ável. Anteriormente ele era concebido como som ou vibração. Na religião de 2oroastro, o sacerdote Srtish (que represen-ta o gênio da audição) se posta entre o homem e o panteão dos deuses e ouve as mensagens divinas que ele transmite ã humanidade. Samãè a pala-vra sufi para audição ou escuta. Os seguide>res de Jalal-ud-din Rumi entra-vam em transe mísiieo cantando e rexlopiande> em giros vagarosos. Sua dança é considerada |Xir alguns pesquisadores como baseada na represen-

t s Y,m infdt>v fonsLi cpar .wumtlmxtrk ê rivrivudi > tV' íriminwiri' \ ; i tn*dut;jr>. 3 estreita rctl içau L-ncti: «KI duis v-xMhulos se perde. (ÍS. T.)

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ft. Murray Schafer

tação do sistema solar e evc>ca também a e rença mística profundamente arraigada, em uma música extraterrestre, a Musica das Esferas, que algumas vezes a alma afinada é capaz de ouvir. Mas esses pexleres de audição excep-cionais, que denomine» clariaudiência, não foram obtidos sem esforço. O poeta Sadi diz em um de seus poemas líricos:

Eu nàe» elirvi. irmãos, u que e <> wmil Antes que siiilu queiii e o ouvinte

Anies da era ela escrita, na época dos profetas e épicos, o .sentido da audição era mais vital que o da visão. A palavra de IX'Us, a história das tribos e todas as outras informações importantes eram ouvidas, e não vistas. Km algumas partes do mundo, o sentido da audição ainda tende a predominar:

Os africano*, rurais vivem, em grande pane. no tinindo ilu .sum - mundo fuirrvfpuii"* ele* importância pessoal dirt-t;> para >.t ouvinte - , enquanto o europeu ocidental vive muito m:iis num mundei visual, o tjua], em sua leikilidadc. lhe e iiulilererile ... O*. MJH> perdem muito de sua imporia n o ;i ilü lúMup.i ucidemul, Ollde 1.1 homem muitas vç-ZJOílesemolve. c precisa desrnviilver, notável iap:utda-tU: para considera-lo*. FnejuanLn para os europeus em %crj\ "ver c aerctUlar', p.irj os african'**; rurais. ;i realklatle p;irexx' residir iimiio nu is nn que se- nm.*- •• •*• ili/ ... De t'aii.i. a ge*nk- sv vê o impei ido a acreditar que • •> olhos são eeinsidt-radofs, por muilfj-s aíricanejí,. mais come.» um instrumento ela vonlade que ctnne» <'*rçíán recep-lor. Sctldo o ouvido o principal rirflào ííe recepção.1 '

Marshall McLuhan afirmou e|ue desde o advento ela cultura elétrica podemos retroceder a esse e4siaele>, e acho que ele esta orno. A grande emergência da |x>luição sonora como um tópico de interesse público ares-ta o falo de que o homem moderno está ficando interessado pelo menos cm tirar as sujeiras de seu ouvido e em recuperar e> talento para a clariau-diência - a audição límpida.

Um sentido especial

O tato é o mais pessoal dos sentidos. A audição e o tato se encontram no prjnlo em que as mais baixas freqüências ele* sems audíveis passam a vibrações (áeteis [cerca ele 20 hertz). A audição é um modo de locar a

l> 1 C. CLimlhrnv Cullurv, ISVL lii_iCr>- Jiid lhe XlrUtirn W'lud. tiyihialrv. tuiv., l^SH, p>lK-IU.

7 ti

A oFinoçao do mundo

distância, e a intimidade do primeiro sem ide» funde-se ã sociabilidade cada vez que as pessoas se reúnem para eiuvir algo especial. A esse respeito, leia-se o que um etnomusicólogo escreveu: "Todos os grupos étnicos que conheço têm em comum sua grande aproximação física e um incrível senso de ritmo. Esses dois procedimentos parecem ceiexistir".

O sentido da audição não pe>de ser desligado ã vonlade. Não existem pálpehras auditivas. Quando dormimos, nossa percepção de sons é a última porta a se fechar, e é também a primeira a se abrir quando aceirda-me>s. Esses fatos levaram McLuhan a escrever: "O terror é ei estado nor-mal de qualquer sociedade oral. pois nelas, todas as coisas afeiam tudo, o tempo todo V'*

A única proteçãí> para os ouvidos é um elalxirado mecanismo psicológi-co que filira os sons indesejáveis, para se concentrar no que é desejável. Os olhos apontam para fora; os ou vicieis, para dentro. Kles absorvem infe>rma-ção. Wagnei disse: 'O heimem voltado para o exterior apela para o olho; o homem interieirizado, para o ouvido". O ouvido é também um orifício erõti-co. Ouvir linelos sons, por exemplo, os sons da música, é eeim<» sentir a língua de um amante em nossos ouvidos. Assim, por sua própria natureza, o ouvido requer que os sons dispersos e confusos sejam interrompidos para que ele pe.-s.sa concentrar-se naquilo <|ue realmente importa.

Finalmente, este livro rrata elos sons tjue realmente importam. Para revelá-los, pode ser necessário investir contra os que não são importantes. Nas Parles I e II. levarei o leiteir a uma lon^a excursão pelas paisagens sonoras da história, com íòtte concentração na paisagem de> inunde? eicidcntal, cmbeira procure incorporar, sempre que possível, materiais de outras partes do mun-dei. Na Parte 111, a paisagem sonora será submetida a uma análise crítica, como preparação para a Parte IV, onde se esboçarão os princípios do projeto acústico - ao menos na medida em que for possível detenninã-los.

Toda pesquisa sonora precisa concluir eom o silêncio — esse pensamen-to requer que se espere por seu desenvolvimento m>s capítulos finais. Mas e> leitor percelxrra claramente que essa idéia também liga a Parte I do livro ã última, unificandei assim uma empresa que é sobretudo de caráter lírico.

M MirMull M;nluh;m 7he (iatoxy (iumthcnt< Toronto. I<>62, p 32. led. tira> : A gafàxut Hubmtvrg Tfiitl U.-í'*I*ííJ;I* elontiju de Carvalho Sii» 1'JUIU: Cu lidiiom NaciixiiiJ. £düs|>. v. d. p.-íl-Z.I

W

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R. Myrrmy Schofer

Urn alerta f inal . Apesar de mui tas vezes eu estar t ratando de percepção audi t iva e de acústica c o m o se fossem discipl inas abstratas, não que ro esquecer-me de que e> o u v i d o e apenas u m sent ido receptor entre mui tos outros. Chegou a hora de tirar o som d o laboratór io e co locá- lo no c a m p o d o ambiente v ivo . Os estudos da paisagem sonora fazem isso. Ac ima de Kiele*. |X>rém, eles precisam ser integrados ae> estudo mais amp lo do ambiente lo ta i , neste que ainda nãe) é o me lhor dos mundos possíveis.

Vem agi mi. com iodos os leu*- poderes, discernir a maneira como cada coisa se manifesta, confiando nào mais tia visito do que na audição e nao mais no ouvido e uc ecoa do que na lingua cjue saboreia; sem rejeitai nenhuma, elas partes do tioipo que poderiam ser um meie» de conhecimento, mas atenlancJo em cada. manifestação partícula.-•'

1S fanpedoctcv in 1'hihp Wheelu-righr., 'fhc M w í « / t o , New Yiwk, I'V*), \* 0.

.10

Parte I

As primeiras paisagens sonoras \ . i i |u ik" , UI;í>. M ouvido*, dos homens ouviram vms

cuja pureza angelical não podia ser conjurada novamente, por qualquer quantidade de ciência ou magia."

I t l l t l l . l l i r l ' I . . - .M' . I > ,'I'L. .|'||-. L..U/UA :if .' / . i ' ' .

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PitLiur.i tiiur-.it cf.rUM.-a LU.- urn Tcxador dtr rLiuin (mi l pássaro, de Trit liniuiti. TJMJLIjrii:i. fl i l ia,

1 A paisagem sonora natural

Vozes do mar

Qual tbi o primeiro st>m que se fez ouvir!' Foi a carícia das águas. Prousi chamou o mar de "a queixosa ancestralidade da terra perseguindo, como nos dias em que nao existia nenhuma e-riatu ra viva. sua agitação lunática e imemeiriaT. Os miters gregos nos contam como o homem surgiu de> mar: "Alguns dizem que iodos os deuses e todas as criaturas vivas se originamm na corrente de Occanus que envolve o mundt>. e que Tcthis foi a mãe de texios os .seus filhos".1

O oceano dos nosseis aneestiais encontra-se reproduzielo no úieno aquo-so de nossa mãe e está quimicamente relacionado com ele. Oceano e Mãe. No líquido escuro do oceano, as incansáveis massas de água impeliam o primeiro ouvido sonar. À medida que o feto se move no líquido amniótico, .seu ouvido se atina Com o mamlho e o gorgeilejo elas atilas. Rn» principie», é a ressonância submarina cio mar, ainda nào é ti quebrar das ondas. Mas então

Lts águas |»ouco a pexjco começaram a se mover, e no movimenlo das águas o grande peixe e as criai unis encarnada:* tbr.un per turhadt» e a*. onda** Ltjciiey;inim a ro la i em duplos vajrathoe.s. e os .seres que hahi iam xs ajjuas foram (imiados eoni

I Robcn ( ínv fs IJtc trnrrlt Mytl** Uk- acordo ovm ,i .íítrrmv&o de H I T J . na lluuht. XIVI. I W . p.3ft

n

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$. Murray SchcnV

furor, e enemantti as ondas .se precipitavam mntas, aos pares, o bramido do oceano ficava mais furte e as horrilos eram ao «rados com mria, e guirianda.s de espuma se erguiam, e. o grande oceano ve abria para as profunde/js, e as águas rugiam de um tado para o eiutro. e as furiosas cristas das onelas iam encontrando este ou aquele caminhou

Ondas fustigadas na ressaca, arremessando as primeiras rochas, enquan-to o anfibio surge do mar. E embtira ele possa, ex-asionalmcnle, dar as costas ãs ondas, nunca escapará de seu encanto atávico. "O hejmcm sábie» deleita-se com a água", diz Lao-tsé. Texlos os caminhos do homem levam a água. Ela é o fundamento da paisagem sonora original e o som que, acima de todos e>s outros, nos dá o maior prazer, em suas incontáveis tninsformaçõcs.

Em Üostcnelc,* a praia é larga, com urna inclinação quase imperceptí-vel do lado oposto aos hotéis, de modo que. se alguém se detém nesse ponto, tem a impressão ele que o mar. a distância, é mais alto de» que a praia e que, mais cedo ou mais tarde, tudo será levado para o esquecimen-to por uma enejrrne e flexível maré. Totalmente diverso é o Adriático em Trieste, ontle as montanhas saltam para elentro elo e»ceanei com urna ener-gia angular e e>s punhos ferozes das ondas balem ruidt>samente nas ro-chas, como beilas de borracha, Ern Üe>slende, o nexo da lerra é suave tanto em relação à vasta quaniei em relacàe> ao som.

Não há rochas cm Oostende em que. se possa sentar, e assim caminha-mos milhas em direção ao Sul com o som das ondas no ouvido direito e, em direção ao Norte, no esquerdti, preenchendo a consciência atávica com o pulsar da água, pleno de freqüências. Todos os caminhos levam á água. Sc tivessem essa opeirtunidade, provavelmente todos os homens viveriam na orla do elemento, ao alcance do som de seus humores, noite e dia. Nós nos afastamos dela. nus a partida é temporária.

Dia após dia. andamos ao longo ela praia ouvindo o indeilenre rumor das pequenas ondas, medindo o gradual descendo em direção aos passos mais pesados e. daí. para o conflito organizudo da arrelvntação. A mente precisa tornar-se mais lenta para captar e>s milhões de transformações da água na areia, na argila, contra os |*tedaços de madeira flutuante, contra os

1 -TVJ* QAH-?Jtiíin.v til King MLILntU". in T. W. Rhy*. Davids 71'c 'vit.n-ii 11íK\ICí nfltrt' Hint. Qxtnnl .

U#JO. i XXXV. p . P s i

3 OCISICIHIC- fxirto flariiL-iifni cLi Bclgu-j. IKI icuir d o N'itflL\ iN T.i

3d

A ofinoçoo do mundo

diques. Cada gota rilinta numa altura diferente; cada onda estabelece um filtro diverso, num inexaurtvel suprimento de ruído branco. Alguns sons são separados, oulros contínuos. No mar, os dois se fundem em unidade primordial. Os ritmos do mar são muitos; inlrabiológicos - pois a água muda a altura e e> timbre mais rapidamente do que a capacidade do ou vide? para captar essas mudanças; biológicos - as cindas se identificam mm o pulmão e as batidas do coração, e as mares, com o dia e a noite; e suprabiológicos - a presença elerna e incxlinguivel da água. "Observe as medidas", diz Hesiodo em Os trabalhos e os dias. "Mostrarei a vex:és as dimensões cia ribombante mar"

pam tbinapolypktoisfxtio thdavôs

diz Homero (lliada, I:34), captando por onomatopéia os esplêndidos exer-citeis de ondas na orla do mar, e seu recuo, Cantares 11 de Ezra Pound começa assim:

F pobre* elo velho Homero, cego, cego morcego, Ouvido, ouviek) para o marulho../

O amor pelo oceano tem fontes profundas, e estas eslão registradas cm uma vasta literatura marítima do Oriente e do Ocidente, Quando a água presencia a história da tribo, os dedos do txeano agarram o épico. A matéria-prima da tkiisséia é o oceano. <) agrário Hesiodo, vivendo na Dcócia, "longe do mar e suas inquietas águas", não pode evitar a atração do oceano;

for cinqüenta dias. ape!» o solstKio de verão,

quando a fastidiosa estação do cator esta por lemiinar,

então é o momento oportuno para os homens viajarem h

Os nôrdicos conheciam a ferocidade do oceano, Quando navegavam. "as ondas rugiam contra os costados do navio e ressoavam qual penedos

4 Ezra Pound, lhe Cantos ofErza Pvuiut. London. 19*»-1. p. 1U. ted. Iwas.: Cattlarcs. Trad. Augusto ele Campeis, O&iu B'lfliiauri c llanildo de eiampos. Sac> TauJi»: Minntéra» df Edin-j^-an i-Cultura. ServKo ele DocuTtw*nTaç3o, s. d , p 21 I

5 Hcsltjdkj. toottetinctlMiys. Trad. R. Larümme. Ami Arix-r, Mn-hi^n., 196H, VCTMKI <jíi.V .

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<?. Murray Schtrfer

se cntrebatcndo"". O verso alilerativo dos Edas' é pex-sia de remadores, As ceniseiantes repetidas em cada metade de verso fa/em que os acentos correspondam a cada batida c retorno do remei:

SplíiXbing 'Htr< weed imtt ratlktl sh ieíd rang r,n shield as lhe Vikings mu vd. cuttirifi the iivuvs at the King s command, further a ml farther the fleet Sped <m. U"hen tl>e ctvshxt n fl / re ufK<'As\a s sister crushed on the keels the sound that <. ami' was the bourn <>$'surf tlnxt breaks on rocks"

Do outreJ lade» de> mundo, no norte tropical da Austrália, as ondas cram mais brandas.

Ondas suhindo; altas ondas subindo contra as rochas, <|iiehrandi*. chi" chi! emando a lua vai alta, luzindo sobre as águas: solx: a maré; maré fluindo através da grama, cpiehrKldc'-se; chi! Chi!1

I'm suas águas umlo t i s hai-iham-se as jovens. O r n e o som e|ue íazem com as mãos, enquanto l>nticam!"

Quale píer visitante ela tida marítima achará inesquecível o recital elas ondas, mas somente o poeta do mar, com ei ostinalo ele» mar em seus ouvidos, p<xJe medir precisamente a siste>le e a diastole das ondas e das marés. Ezra Pe»unel passem boa parte ela vida muelanelo-se ele unia eeisla à outra da península italiana - ele Kapallo a Veneza. Seus Canianv principiam no mar, têm muite» de sua dialética nos seus limites, afastam-se para longe c depois retornam. Onde Scott Fitzgerald, um visitante do Mediterrâneo, tinha ciuvido apenas "o pequeno e exausto uá-uá das onda.s", Pound, com instintiva autoridade, nos oferece as próprias fluiuaçòe.s d l água:

6 The Sofia of \hktingz. «. C. Finch lOrg.l Laxlon. ]%s, p l i 7 fiitas. nome ele dun?. ct>lecõe< escandinavas (W* poemas miiolõgicus. liL-róicus c gnõmiciis elo

século VIU. IN. T.) íí 1'ini /j-rj- <>f fft'1/í, evnos lf|-» W fRi'nuih Imrriíiini.íci pr« i]iit:i\:im-v. o term relink*,.-' escudo* se

•.•nin.-í.lKM.-JVam, ox.|u:inIi> os s ikjilj -. reinavam, c«irkujdi> :is (MILÍI* l;t ^imaniki ikj Rei,/ J esquadra singrava cada cez mais japieki.' Ouandoas cnttasdas ondas LLíS irmãs KOIR-.L hauam nas cn-ilh.ii. i> -om que x.* «xis ia.-' era o L-situndo d-a ress.ic.i que»>rjixU>-v.- offlii as toctus.l

-> Tnl>.i Lingi:i. AiiMr.ilu T<Y>Hii(taií< nf the íarniv/J. tiriihi-nN-.ru I.OíJI > Ne»' Yiifk, |0W. p.JH.

36

A ofinfjÇéC" do mvndc

Flexível rodopio de água, nervos de Posidt>n.

Negro azul e Ju.ilino, onda de vidro solm* o Tiro,

Densa tentb, inquietude, brillianle relxjlico de cordeV-s de espuma,

Então, água quieta, qnicia rui areia acanturcaeia

Aves espalmam as juntas das asas, pal in] LI rido em ]X)cas e tendas,

X beira-mar. entre pequenas dunas: RriJho vidro ele onda contra o sol,

palor de í [espero, CriMa gns da onda.

onda. cor <Lc polpa ele- uva

Cinza oliva perto, longe, cinza-futno dos penhaicos,

Asas reisa-ialiiiao, dei martim-peseadoí. sombras cinzentas sobre a água;

A lorre, como um s^inde cansei tie um sõ olho, alonga o poscuçu acima elo olival.

H ouvimos faunos censurar Prolcu (e*dor de Fent> wib as eiliveiras»

B rás cantando contra faunos. ã moa-luz.

F....'"

O mar é e> som funda mental de iodas as civilizações marílimas. É lam-bem um fértil arquétipo sônico. Todas as estradas receinduzem â água. Retornaremos ao mar.

As transformações da água

A água nunca morre. Vive para sempre, reencarnada como chuva, como riachos murmuninies, como quedas dágua e fontes, rios rodopiantes e profundos rios taciturnos.

Um riacho de montanha ú um aceirde de muitas notas sejanclo estereei-fonicamente pelo caminho do ouvinte atento. O som continuo da água

10 Hzra lJirtjntl, <>p. oi.. p.2*í-b.

J /

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R. Murrery Schofor

de*s riachos nas mem tan has suíças JKKIC ser ouviele> a milhas de distância cruzando o vale silente. Quando um riacho salta numa cascata de cem metros nas mt»ntanhas rochosas, há uma quietude lensa, quase apreensi-va, seguida de um excilamento ruidoso quando ele bale nas rochas, lá embaixo. As águas elas chamecas inglesais nãe> têm ess;» virtuosidade; seus caminhos sao mais sutis:

t i viii'unrc que passasse nessa direção e Jã st* tletivesse. ainda ejue por uns poucos momentos, numa noite plácida, poderia eiuvir sinlonia> singulares dessas águas, como de uma orquestra não iluminada, tudos tocanelo em diversos lon.s. <las pane*; mais próximas as mais longínquas da charneca. Fm um e*ribcio, num acueli* podre, eles executavam um reciiativo; («ide um riacho afluente caía sobre um anteparo de pedras, eles Irinavam vivamente; sob um arco, produziam um sorri metálico de cimbak-s; e, na caverna IXmnover, assohiavanv*1

Os rios do mundo falam suas próprias linguagens. O calmo murmúrio do Rio Merrimack, "roelopiando. sorvendo e desligando para naixe»K beijati-ck i a areia ã sua passagem", era um sonífero para Thoreau.1* Para James Fenimore Cooper, os rie>s do norte do Kstado de Nova York sempre se moviam preguiçosamente para dentre) ele cavernas nas rochas, "produzin-do um som cave», que lembrava a explosão de um canhão distante".l!>

Como são diferentes as furiosas cataratas do Nilo em Atoara11 e Berber.1*

Pois o som tie baialha não pixh* deixar de se manifestar tmando o rio, entre milhares de ilhas e rochas, forja seu caminho, ao longo de milhas, em Corredeiras. L"m e**cntor romano dtóse que" os hahitanii-s emigraram poítjue haviam peiditlo a capai ielade tie escutar, mas as vozes potentes dos ijerlx-res nos pren-am lioje que a necessidade fortalece qualquer órg;k'. pois seus gntus transpõem u rio impetuo-so, de ribanceira em ribanceira, enquanto os homens brancos dificilmente podem ouvir-se uns ao> outros, a tkv passos de distancia lh

II Thim-us Manly. 7he Major of Ctistetitritige. London, l*íjU, p.>41-11 Henry DJVMJ 'IIUJILHU. A W-íM-Jí titi ihc Cuncurd and Mi-rruiuck Eüvers. Jn: WaiOen and Oiber

Writings- NL'W Y i a k . W 7 . P-it-1-13 J. FeninxireOxípcr. Hie Pathfinder. New Yirfk, líü'3. p.ll*>. I-) Alhuni; «idade di» Suilio. IN. T.l I S HrrtxT: porlr» da Smnili;i, no giilhi de AJL'H. I N. T.> K» O p.scriiHir roniümi. reft-ridm f I'linm l fllttórüi natural, V.x.<-0, que afunia apenas que as

luianitas LTjm muno tumllientn BII í JIííI dji que causavam surdez. A fomic original pode stT PtiiLnMniiu-.. que CMTL-W em seu Vida tieAfx4õnv> (Penguin. lU^J, p.l%-?8t: "O "íarulho ilo riaihi» tnquanu» ca- da montanha c <c e*uelifa lá embaixo, dentro do Nilo, e hiirpnrenclen-ic L- ilimitado pHí-í na ouvidos: munas pessoas chegaram bem peno e retoma rum sem o

3fi

A ofinoçao do mundo

Jã nos silenciosos rios do Sião. o escritor Somerset Maugham encontrou "uma maravilhosa sensação de paz\ sõ ocasionalmente quebrada "pelo suave rumor de um reme», quando alguém passava silenciosamente em seu caminho para casa. Quando acordava à noite, percebia um débil movi-mento; enquanto a casa fluluanle oscilava um pouco, ouvia o pequeno gorgolejar da água. como se ei fantasma de alguma música oriental viajasse ne> tempo, e não no espaço".1" Fm Morte em Veneza de Thomas Mann, as desejadas e lúgubres ãguas dos canais formam um trágico leitmotif: "A água batia, com um chape, contra a madeira e a pedra- O grilo do gemdeileirei, mei<» advertência meio saudação, era respondido, do silêncio de» labirinto, como que num estranhei acordo".111

A água nunca morre, e o homem sábio rejubila-íve com ela. Nem mes-mo duas gotas de chuva soam do mesmo nnxlo, como o ouvido atento poderá comprovar. Será enlão o semi da chuva pensa igual à dos Açores? Em Fiji, uma tempestade de verão, que fustiga e se transforma num enor-me turbilhão, dura menos de sessenta segundos, enquanio em Londres ela tamlxjrila monotonamenle, tão aborrecida quantei a história de um homem de negtxios. Fm algumas partes ela Austrália não chove durante dois anexs ou mais. Quando chove, as crianças pequenas se amedrontam com o som, Na costa do Pacífico, na América do Norte, chove calma e continuamente cerca de Híí dias por ano. A pinion» canadense Fmily Carr descreve essa chuva muito bem:

As gotas d e chuva balem ilo telhado conl pequeno.*. eMalidos desiguais e perfuranieí», Através da janela aberta o som da chuva nas folhas não .soa assim. Ê mais como um suspiro continuo, um se»pro c*ue j:imais se e.sgeila, sem nenhuma entrada de ar fresco. A chuva dei lelliado tamtiorila sobre a ceincavielade da sala, golpeia e cessa.1'1

ü timpano trant]üilo da chuva na ceista ocidental não é ambicioso, ao ce>ntrJrie> das violenta* tempestades vias planícies ela Rússia e do centro da

sentido iid audição". 1'ma ILTULI, íixLuia, parree ler in-vidit ilcsse efeito, pois enconlni-tiu>% nni i^n a ulc *-n* DHitiií?, of IfúrAic-j* ck- Henunlino Jkunazzmi * flcMrfp Artijic\um\. dti IT13, (itjm noiivcl jxir ^cr <i jirinwini i.'Mu([n tíinhccklo a mencionar a surdez inelusirial IN. .VM.lãiiil l.udwinK- lhe Xth: \ew Yiwk. IS.V7. p JSo-J

17 S<imerst1 Miiughum Tb*1 Gwrttewatt at the fttríonr. Lmduíi, l^U. 18 ITioJius Ntmn lV-jth ui VCIIíLL-. tn: Siorto c-fllirix.- IVtiuIrs. Ni-w Yr rk. lc>.íh, p 121. [t*d

Iwas.: Alone em Veneia. Tratl. M;iria IVling. Sàn I'jiulri. Alml Cultural, s e l . v 1". p t-i-J.I ]£> Fmily C,irr ttundncds and Jhot4saneh. Tufoneo, Vancutivtt. ]'X»ii, p..-«J*i.

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R. Murray Schnfrr

America do None. Na Africa do Sul, a chuva é torrencial: "o trovão rilx>m-bava lã fora seibre suas e"alx*ças e eles podiam ouvir a chuva preeipitando-se nos campos. Num átimo ela estava ge»lpiranilo o telhaelo cie ferro ce>m um barulho ensurdecedor".'1

A geogralla e o clima conferem sons fundamentais nativos ã paisagem sonora. Nas vastas área> elo Norte da Terra, o som do inverno é e> da água congelada - gelo e neve. Durante o inverno, 3(1% a *>Q% tia superfície da terra cobrem-se de neve por algum tempt» e 20% a Wo ficam cobertos de neve por mais ele sei*; meses Iodos os anos. Ciclo e neve sáo os sons fundamentais das regií*es nórdieas, ele» mesmo me»do que o mar é o som fundamental ela vida maririma.

O gelo c a neve são afinados pela temperatura. Virginia Woe ill", em Blackfriars, ouvia a neve "deslizar e cair nei chão". Mas na Lscandinávia, cjuantio e» gigante liymir tie 7hr F.fder Fdda relrjrnou da caçada.

Pingenles de gelo reliniarri caindo ele su:is barbas congelattos.

Fm seu peieina Orfano. Giovanni Pasceili descreve a lenta queda do floco de neve da Itália:

lenta Ia nciit ftoeca, fioeca, fiocca*-

O som da neve na pouco gelada Itália é muito diferente do som produ-zido .sob 30 graus negativos em Manitoba ou na Silxria. Â medida que adentramos os grandes continentes nõrdice>s. as leves passadas amorteci-das começam a ranger e depois a gu inchar - até dolorosamenle. Boris Pasternak, em DoutorJitwgo, conta-nos come», nei inverno russo, sentia as bolas fazerem "a neve guinchar raivosamente a cada passo".

Do mesmo modo que a paisagem marítima enriqueceu a lingua elos povos do mar. as rivili/açcies de clima friet inventaram diferentes expres-sões, das quais as numerosas palavras esquimós para neve são as mais famosas, cmliora nài > sejam ele modo algum o único exemplo. 'UM-:Hlastritied Glossary of Snow and fee" {Glossário ilustrado da net* e do gelt) contém

2H1 Alan P:i[on. Cry. the lichn\-d t'vurtlrl Ni-w Yndt. I9p(», p.22i JI Fi*i iealUim» no orifiiiiil "A neve lentamente cai t*m ilex'm. " i vm tUxns ' <N T i 22 T. AnTWNjnj:. R. Ki)t>L-iTs, e" sw-ithmlxink. The tllustratetl oloivity nf snoie and tee. C^mhuldge,

1'Wfi.

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A aínoçáo do mundo

1*14 lermos para neve e gelo em inglês e os compara com lermos em dinamarquês, finlandês, alemão, islandés, neiruegués. russo, trances do ("binada e espanhol da Argentina. Muitas das expressões - por exemplo, fíermafrosi, icebound, pack ice*1 - não existem nas outras línguas,

A neve absorve o som, e a literatura nórdica está cheia de descrições do silencio do inverno.

Durante o inverno, a ausência de vida ou som é sinistra e opressiva. Quantlo a neve e>tá no cháo, podeiii->e penee-lier nela a> pe&adas de animais, pássaros, ele uni oervo e, ocasionalmenir. ele um urso. mas não se ouve som algum, nem um grilo, nem um sussurro, netn mesmo um farfalhar de folhas. Se alguém serliar-se sobre- uma arvore caída, o silencio se tomará opressivo, e-uase eJolornso. É um alivio ouvir ao menos o murmúrio da neve caindo nos ramos dew rtprerstcs, tios pinheiros ou dta leixos que se estendem lá em cima como negreis penachos Je cavalos, acima das cabeças..14

Quando a neve é recente e leve, mesmo o tradicional estalo dos trenós é mudo: "deslizamos sobre a neve recente, que tinha sido levemente pisa-da durante a noile, num movimento tão suave e silencioso que sugeria um vckj sem asas...".-'s Até as cidades eslàe> quietas.

Nada ê mais quiete) do que o silencio de urna cidade nórdica no inverno ao amanhecer. Ocasionalmente havia uni silvo sussurrado e um rasj>ar contra as jane-las: então, eu sabia que eslava nevando. ims geralmente não havia naela além <le uma calma palpitanle até os bondes começarem a sulur para a Cêne eles NVigcs, e ell o* ouvia Como r*e fexsse o vento Soprando através dos velhos bueiro*. *

A destruição elo silente inverno nôrdico pela obstrução dos carros lim-padores de neve e snowmobilesr è uma das maiores metamorfoses da paisagem sonora do século XX, pois esses instrumentos estão deslruindo a "idéia do Norte" que moldou o temperamento de todo*- os povos nórdicos e gerou para o mundo uma mitologia substancial. A idéia do Norte, que era austera, espaçosa e solitária, podia facilmente encher de medo o cora-

23 Permafrost chio peniunenteiiienie gelado, em gL-ral de graitde profundidade-. iu|a supt-ifí-lie ulj[um;Ls V<r/ps MJ ilfrrrhr ria verUo foiibimnd. nc.itle;uIo de fP'lit. iiíislmieln «m bli.K|Lie;itlf* pelo peki Pack tee pelo endurecido. <N. T »

2'i George elret-n. Itisivty ttf Harnatty artd Vicinity. Vancouver, I<?i~, p_V 2Í> l\ Philip drove. (^ ' rPrair i i ' 7'ruih: Trmirtto, P1Í2. p.91 2b HUJíII MacLennan VMT Valü* tbut finds the Xtgbt. Toronu», I9*il. p.S 27 SUoWniobiU.'. veicilo ituntiruuJci, piOprco para aruLir na iw\e (N. T.)

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R. Murray ScKoW

cão (não refrigerou Dante o centro do seu Inferno?.), mas podia também evocar intensa admiração, pois era pura, isenta de tentações e silenciosa. Os iccnocrutas de> progresso não percelíein que, ao fenderem o None com sua maquinaria, estão retalhando a integridade de suas próprias mentes, denegrine1e> os mistérios inspirade>res de admiração com postos de gasoli-na e reduzindei suas lendas a bonecos de plãsiico. X medida que o silêncio vai sendo expulso do mundo, tis grandes mitos também se vão. Isso signi-fica que se torna mais difícil apreciar os edas e as sagas e grande pane do que constitui o centre» da literatura e da arte russa, escandinava e esquimó.

O tradicional inverno nórdieo é notãvcl j> >r sua tranejuilidade, mas sua primavera c violenta. De início há uma certa pulverização do gelo e, de-pois, subitamente, teido o rie» in-ompe ern direção ao centro, como um tiro de canhãt), e as correntes impetuosas precipitam o gele) rio abaixo. Quan-do perguntaram a Stravinsky o que mais amava na Rússia, ele re.s-x>ndeu: "A violenta primavera russa, que parece começar de repente e é como se a terra toda se fendes***".2*1

Vozes do vento

Entre os antigos. e> vento, como o mar, foi divjnizado. Na Teogonia. Hesiodo ne>s conta como Tifeu, o deus dos ventos, lutou com Zeus, foi derrotado e banido, exilado no Tártaro, nas entranhas da tenra. Tifeu, um deus dissidente, tinha cem ca becas ele scrpcnlc-

F. em Todas essa_s calx*cas In -rrivcis. elevavyju-se vo/es. lazc-nílo ouvir mil atvnkxs de indescritível honor Às veies, eram >ems que somenle os deuses podiam entender, mas i miras vives, era a voz de um louro munindo. arrogante e luíicist>. além de imlomãvel, ou de um leão, ek'spejt1í*ratk> e cruel: ou era ainda c o m o knidos d e cães,

2S [«ixr SlniviníJsY. \fonfrru-j. and tlumiTwnitirxfx. Ix-iruum. |l>í>i>. p .-SJJ

•12

A Qhnçufia do mvnck*

um ussomhro de se ouvir; oulncs vezes era um assobio que as alias montanhas t.iziam ecí-ar.*"'

A história é memorável porque evoca uma das mais interessantes ilu-sões auditivas. O vento, como o mar, apresenta um infinito número de variações vocálicas. Amtkjs têm se>ns de amplo espectro, e em sua faixa de freqüência outros sons parecem ser ouvidos. A qualidade ilusória do vento é iaml>ém o tema de uma descrição em Victor Hugo. F. precisei lê-h» nei ejriginal para sentir-lhe ti apuro da linguagem:

IA? taste trxmlile dt>s solitudes a une%amme; crescendo redtntlahte-. Je gratn, Ia rafale. Li boutrasque, Ionize. Ia tounncnte. Ia témfjete. Ia tramlx'. les sefsl cordestie ia tyre des ivrtts. les sefft notes de i ahimv ... Les vents counitt. liotenl. sahfxiflertt, finliserit, rvcumencetu,pftttuttf. sifflent. niu^isscnt. ríettl.fritniUjues. feiscífi, effrènès. pivnant leurs atses sttr Ia ttigue tntscihle. (Jes huríeurs ont une harmonie ffcjbni Umi ie ciclsonore. itssottfflentdans la nttéecomme datis tot ctttvre. Us embouchent /'espace, et ifs chantent tlcins linfini, cttvc toutes les MJLVamalgamèes tics cíairvns. des hindus, des itliphants. des bugies et des irumpiites. une sorte de fanfare promethêene Qui les cntetid êcaute Pan "'

O vento é um elemento que se apodera dos ouvidos vigorosamente. A sensação é táctil, além de auditiva. Que curioso e quase su]*.*matural é ouvir o vento a distância, sem senii-lo, COTIKJ em um dia calmo nos Al-ícs suíços,. onde o débil, suave assobie> dei venio \x>r sobre ^a geleiras, a milhas ele distância, pode ser ouvido cruzando a quietude interv eniente dos vales.

Nas secas pradarias de Saskatchewan o vento è penetrante e constante.

Agora e> vento podia ser ouv ido c o m o uma canção mais persistente e . a o l o n g o da estrada t'lic separa a citla<k*zinha da praeiaria, soprava brandamente através d o s fios q u e correm estrada abaixo ... O vento da noite linha duas vozes;

£) Hesiodo. fii.if'uHtii. Trad. R Lutlillorc. Ann Ailiua. Mulii^m. 1^<IH. VITM» tiJV-^ y) IJn I rami's IVY <inj(itt.il: 'Há uitoa t-M-jta. tu YJSIJ luTvjcãr» ela*- MJíIUX-S ti'iiiivH crwrntlíi; j

brisa, a lutada, a txinasea, o temporal, a lormenla. .1 tempestade, a tromba: as sete condas ela lira di> VL-nti>. as sete ciotas di> abtuiio ... t is YLTKUS lum-m, vi um, jluicm-:-*.', L'tpdmni, revivem, pairam, asviviam, mgem. riem: frenéticas, lascivov (ie*v;iiradov tomam conta da vajca irascivel. Têm harmonia esses lx*rradores. Tomam sonoro nxJo o ecu. Sopram eus nuvens mmn num meul, Kmliíx-.ini o espaço e eanfam no inlinun, (mm huLis a». vtiKS amalíomattos cios clanns, buzinai c iromheras, uma espécie <lc tangeres promeic-anoi. Ç*ocirt os ouee, ouve Pi". (N. T >Victor Hugo. !<&. tmeattíettn dela mer. 1'aris, IHfVí, p. V}l-2 | « 1 hni.s.: O trultalha-dure* d\) mar. I.rcl. Tnd. Mochailo dt- \>sis. Sjo Pjuir> Alinl Cultliral. 107a, l>< liTtortaf. (Ia bieratur-a, v.lS, p.2W-3W.I

4:t

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R. Murray Schof*r

uma. que *c lamentava ao longo dos fios pulsatile*, a oulra, das pratiaria.s, tjue Rorgolejava longa e. prorimdanii-rVi-.'1

Alienas e com arvores, as pradanas constituem uma enorme harpa eólia, (]ue vibra incessantemente com "u zumbido fervilhante dos tios tele-fônicos". No lado inglês, mais pnrtegido, o vento faz que as folhas bruxu-leiem em diversas tonalidades.

Fará <xs lubitanles da íloresU, t|uase todas as espécies de árvores têm uma vuz própria, alem de um ;U*.pectt» peculiar. Ao perpassar da brisa, os pinheiros soluçam e gemem não menos distintamente do eme se Ijalancam; o azevinho assobia enquanto luta Consigo mesmo; o freixo sibila em meio a seus «remoces; a faia farfalha cnquun-lo seu ramos lLsi is snlicm e desceill K <> inverno. qUe modifica o x>in de was arvoro ao mesmo lempo que demilxa as suas tolhas, não lhes dcslnw u inelividualkLicJe '

Às vezes peço aos meus alunos que identifiquem os sons cia paisagem. "Ü vento", dizem uns. "Arvores", dizem outros. Mas, sem ohjetos que se interponham no seu caminho, o vento não faz nenhum movimento apa-renie. Ele adeja nos ouvidos, com energia, mas sem direção. De falo. quando Lao-tsé viajou com o vento, desce>briu r|ue este e.vA absolutamente silencio-se), porque ele pre>prio havia se tornado vento. De todos os objetos, são as árvores que dão as melhores indicações, sacudindo as folhas, de lã para cã. enquanto o vento a.s alaga.

Cada tipo de floresta produz sua própria nota tônica. A floresta tie sem-pre-vivas, em sua fase de maturação, produz aléias sombriamente abobadadas, em meie> ãs quais o som reverbera com insólita clareza - circunstância que. de acordo com Oswald Spengler, levava os europeus do none a tentar re-produzir essa reverberação na coiistnjçáe> das catedrais góticas. Quando o vento sopra nas florestas da Columbia Britânica, não se nota o familiar cho-ca lhar-farfalhardas florestas decíduas: há, sim, um asseibio grave e ininterrupto. Em meio a um ventci forte, a fie »resia de sempre-vivas se agita e zune, pois os espinhos giram e volteiam em movimentos rotativos. Com freqüência, a falta de arbustos ou de clareiras mantém as íle>restas chi Columbia Britânica extra-ordinariamente livres da presença de animais, pássarose iri-setos, circunstân-cia que produzia uma impressão pavorosa, quase sinistra, nos primeiros colonizadores brancos. Voltemos a Emily Carr:

M W O Miictwrll Wliv ftitoSivrt the V'trtd''Toronto. lW.p.VA e 2ü *i Thnma;. Hardy, t "ruier tbe flreentt*»*/ 'tree. [jtindixn, IWJ, p.5

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A ofmi-ieõQ do mundo

O silêncio das nossas florestas ocidentais era t io profundo que notssew t*uvi-dos so a custo podiam abarei-Io. (guando altnaém falava, sua voz retornava, do mesmo nine Io que o rosto de :ilgur"*m lhe c- rlevolvkln pelo espelho. Hra como st: a floresta fexsse tio cheia de silêncio que náo houvesse lugaT para os sons. Os pássa-ro* que viviam eram predadores - águias, lakoes, corujas. Se a canção de um pássaro saísse de sua garganta, os oulros o agarrariam. Multicores e silentes, os passarinhos foram u* priillein» a Seguir tis Colonos rumo ao Oeste Gaivolas, sempre as houvera; elas começaram com o mar c sempre gritaram sobre ele; r>s vastos espaços do céu. faminto* ele niielns, engoliam calmamente os seus gritos. A floresta era diferente - ela meditava mórbida mente em silencio e segredei."

A dificuldade dos primeiros colonos em lidar com a floresta e seus anseios por espaço e luz solar logo produziu outra nota tônica: a de corte de madeira. Em princípio, foi ei machado do lenhador que se ouviu ressoar para além da espaçtisa clareira. Mais tarele, te>i a truncation*,** e hoje, é o emaranhado ela serra elétrica que ecoa pelas comunidades florestais cada vez menores da América do Norte.

Houve uma época em que muitas partes do mundo eram cobertas por florestas. A grande fleiresta é estranha, assustadora, hostil à vida intrusa. As poue^as referências ã natureza nos primeiros épiceis, nas sagas e poesias anglo-saxônicas atestam esse fato: elas ou são sumárias ou se detém na descrição dos seus horrores. Mesmo mais tarde, como em Carl Maria von \fccbcr < 1786-1826), a floresta era um lugar de escuridão e maldade, e sua ó]>era Der Freischíttz é uma celebração da vitória ela virtude sobre as for-ças do mal que povoam a floresia. A ironi|>a de caça, que Weber useju ião brilhantemente cm sua partitura, tornou-se o símbolo acústico por meio do qual a melancolia da fleiresia era reproduzida.

Quando o homem estava com medo dos perigos ele um ambiente inex-plorado, todo o seu corpo se convertia em um ouvido. Nas florestas virgens da América do N'orte, onde a visão ficava restrita a uns poucos metros, a audição era o mais importante dos sentidos. Lealbtrstockinf> Tales de henimore Ctx>per estão cheios de belas e aterradoras surpresas:

pois, embora a profunda quietude reinasse naquela floresta vasta e qu;cse* sem limi-tes, a natureza falava com suas mil línguas, na eloqüente linguagem eLi natureza ela

33 Kimty Carr. 'ibe Houk of Small, 'ti «orno. \<Hl. pllíl. 3-1 Tninç-jLLira, ou serra inirn-adira.: no intern if do fistadi* de São Faiali>. assim se denomina um

tipo oV serra grande, corn dois pcgadnrc*. utilizada pura corur toras de arvore, t.i mesmo que "MTTJu' « n Portugal írej<iãrj LICI MjnÍM»>. I N . T l

-15

Page 21: A Afinacao Do Mundo - Murray Schafer

R. Murray Schafor

floresta erma O ar suspipva em meio a de1?, mil arvore.*;, a ãgna murmurava e, a espaços, cliagava a rufur através das pratas: tie lontie em longe se t»uvia i:> romper de um galho oci etc um tronco, couno .se? raspasse algum objetu semelhante a tie, sob a vibração ele um corpo harmoniosamente eqiiilil'ratio ... Quando, todavia, ele deseja-va que seus companheiros ce.ssas.sem de falar, de» mode» que acalx:i tk: mencionar, sen ouvido vigilante podia apreender <1$< mi peculiar provocado pelo partir ch* -filhei seco tie uma árvore, o qual, se seus senlidos náo o enganavam, parecia vir da praia ocidental, g t m n qiK'r que esicja acostumaele* com t*ssc sejm |>anicular s ilx- como ti ouvido o recebe corretamente e quão fácil c distinguir o passo que quebra um galho t6c outros luielos da floresta .. "Scni que o male lato i roques já tinha cmnidu o riu sem um hole, usando seus propriixs braços?"."

A terra miraculoso

"O q u e é o som d e uma árvore ca indo na mala, se n inguém estiver lá para ouvi-lo?", pergunta u m a luno q u e es tuda filosofia Seria p o u c o imagi-nativo responder q u e ela soa meramente c o m o qua lquer árvore q u e cai na floresta, ou m e s m o , q u e nüo produz n e n h u m som. Na verdaeie. q u a n d o uma árvore cai na floresta e sabe q u e esta sozinha, ela soa c o m o qua lquer coisa q u e queira - u m furacão, um cuco. um lobo. a voz de lmmanue l Kant o u Charles Kingsley, a abertura d e I)on Giovani ou o de l icado sopre» d e uma flauta maori . Qualquer ceiisa q u e queira , elo passado ou tio fuiurc» distante. Ela c livre para produzir m e s m o aqueles sons secretos q u e os h o m e n s nunca escutarão, por per tencerem a out ros mundos . . .

A desmisiifieação dos elemente>s. para a qual muitas ciências m o d e r n a s lêm ceinlribuído, l em transformado rnuila poesia em prosa. Antes d o nasci-m e n t o das ciências da Terra, o h o m e m vivia e m u m m u n d o encan tado . No Tratado sobre rim e montanhas, d o séculei III, atribuído a Pluiarco, apren-d e m o s a respei to d e um a pedra da Lídia, chamada argrof)bylaxt q u e se pa rece c o m prata:

K muito difícil reconhecê-la. porque esta iilliiliailienle misturada com pequenos salpicos de* oun> encontrai is nas areias dos rie*s. F.la lem uma pmpririclaiU- muito estranha. Us rictis habitantes da ladia a colocam na entrada de suas casas de tesourei e :cssim protegem .seus t*stot"iH's de ouro. Pois .sempre que um ladrito se acerca desse lugar a pedra emile um sc»m como tie Iromlx'ta e os ladrões, acreditando eslarern sendo perseguido*», fogem, caem nos precipícios e têm utila morte violenta.*

3í J. Kenimort- Cooper, op. ai . p.KJ4-S. .Vi P.utMlo-PliiEarm. Treatixe t»t ftiir-w and Mountains Ciudo de V. I> Adaim The flirth and

/Kivkpiwni efthe <Jifiiagiait Sciences New Voik. l*í^4. p *l

•1*

A ofinoçòo do mundo

Em é p o c a s remei-tas, iodeis os eventos naturais eram expl icados c o m o milagres. Um ter remoto ou um a tempes tade era u m drama entre os deu-ses. Q u a n d o Sigurd matou o dragão Father, "os terremotos foram lao vio-lentos q u e ioda a Terra e s t r e m e c e u V Quanelo os Gigantes roubaram o lon i imante m a n e i o d e Dt>nner.

Seu cabelo arrepiou-se. sua barba sacudiu-se Com fúria, sch-agemcwe por sua arma. o deus pmeutou em volta*

Uma fone t empes tade parecia aproximar-se . Q u a n d o Zeus envient o s deuses gregos contra o s Tilás.

...o infinito grande mar rugiu terrivelmente

a term se partiu ruidosamente, e o amplo teu reb<x>u ...

o prciprii» Zeus já nao conteve a sua força» seu coração se enfureceu,

e a#orj ele mostrava toda a sua violência.

indiscriminadamente. Fora tio céu e alem do Olimpo

ele iliovia-se, flaniejando incevsamentente r-eus niiixs

e tmvòes que, acompanliados

ek1 nimor c luz intensos, partiam juntos, voando um apôs

o outro, tie suas mãos poderosas, em redemoinhos de

chama inumana; e. com ele?*, a temi. doadora de vida. gritava

enquanto ardia, e as vastas florestas, gritavam em mciu á chama... *:

É possível c o m p r e e n d e r l \>nner e Zeus ainda hoje- O t rovão e os raios es tào ent re as mais temíveis forças da natureza. O som q u e p roduzem é de g r a n d e intensidade e cobre uma ex tensão extrema tie freqüências. muiie>

y? lire Sapa of the VOISUURS. up. en., p.30-1. .SB Tbc ixty ufThrym, dr 7ÍH' tíder lidclti Trai*, inn". Palricia Tt'rTY r\"ew York. I9W. p 88 y) Hesiodo. Tcngonta, op. cit., versos r-TÔ- l.

A ;

Page 22: A Afinacao Do Mundo - Murray Schafer

R. Murrgy Schgfor

além ela escala humana tie produção de sons. O abismo entre homens e deuses é grande, e muitas vezes parecia que um forte ruído era necessárie» para estabelecer uma ponte entre eles. Esse ruído era como o da erupção do Vesúvio no ano 7\> d. (",.. quando, segundo o relaio de Díon Cássio, "o povo aitiedronlado pensava que os Gigantes estavam guerreando Cernira os céus e imaginava ver as formas e imagens dos Gigantes na neblina e ouvir os sons de suas troinl>eTas". O acontecimento foi um dos marcos sonoros da história romana.

Knrâuh, a Cerra CLHllevou ;i tremer e a rachar, e as feridas eram tao irran-tles que o chão parecia erguer-se e ferver c-m alguns lugares, enquanto em outros o topo das tnontanlias afundava ou vinha abaixo. \^^ nn*smo lempo que grandes ruídos e sons eram ouviiLxs. alguns subterrâneos, Como trovões dentro da terra, oulnks eccKivam acima tio chão, como geniitlos ou *.<•ciferaçot.-s. O mar hr.inua. os céus sacudiam-Se com Útil barulho apavorante, e eis t|ue sobreveio uma súbita e imensa fcneU, como st* a estrutura da naluréia se inesse rompido ou Iodas as montanhas tia lerra tivessem caído de uma só ve?. ..*'

Sons únicos

Cada paisagem sonora natural lem seu próprio som peculiar, e com freqüência esses sons são l io originais que constituem marce>s sonoros. O mais impressiemante marco sonorti geográfico que já escutei cictirreu na Nova Zelândia. Em Tikitere, Rt»te>nia, grandes campos ele enxofre fervenic, espalha deis -AO longo de muitos acres de terra, sào acompanhados por estranheis rilx»ml*is e ge»rgolejos subterrâneos. Ü lugar é uma chaga pusiu-lenta na pele da terra, com infernais efeitos sonoros em ebulição espalhan-do-se com os ventos.

Os vu[ce"kjs da Islândia produzem algo do mesme> efeite;», n u s quando se afasta deles a pesstia é surprecnelida pela mudança dos efeitos sonoros.

Na própria cratera há sons trovejantes e exploSiv<xs e illesttui perto dela se pode sentir ia chão Uemer. As fatídicas paredes de lava (de tloLS a trás tneinv. ele aJlural asansam a pouco e pouco matando tudo ti que encontram em seu cami-nho, Mo quase silenciosas, mas não totalmente. pe>is, esculandu com cuidaelo, podem-se nu vir delicados e instáveis estalei na crosla - pequenos mitlos secos

KJ [lion Cãssio, citado por TbimiaA Bunien. Ilk' Sat red "theory tf thv fiurth Livro ||]. capimlo Vil IUi9l>. e irixindal--. Illinois. l%*i. p.22S.

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A ofinaçõD do meiridú

cortlo >ielo partido, que St' espalham pe r muitas milbas. Quando encontra lerr.l iiiolhatla, a lava sihib <lc um modo sufocante. Afora Lsso, tudo é silencioso.*'

Mesmo onde não há vida pc*de haver som. Os camj>oS de gelo do Norte, por exemplei, longe de silenciosos, ecoam sons espetaculares;

A uma distância de ires ou quatr<» millias das geleiras, ouve-se o c|uebrar de maciços hli.KMS ele gelo. Klcs soam ctimo trmões distantes e repetem-se a cada cinco ou seis minutos. Quando se tlie>ça mais perto, pode-se distinguir entre o liarullu* inicial, senielliante a uma imensa vitlraca que se quebra, scguielo pelo lre*mor do gelo que cai, c enláo 1udo ecoa nas monta nlias distantes.

Rios de água congelada formam lünels embaixo do gelo. O gelo que eu dentro desses nineis, a água corrente e os niuv inientos da lama o das rochas criam tini barulhe» que c" muitas vews amplificado fx-la estrutura oca e atinge o ohserva-dor da superfície, com grande força"

Tamlx^m nãt> hã silêncio abaixo da sujierfície da Terra, como Heinrich Heine descobriu quando visitou as minas das Montanhas Harz, em 182-i.

N':u;i alcancei a pane mais profunda ... o pernio que aiingi pau via profundo o suficiente - um constanle murmurar e ni^ir, um sinistro gemido de maquinas, Ijorbullios de caclioeir.is subterrâneas, a água espalhando por Ioda parte fortes exalaçòes e a lâmpada <lo mineiro hruxulcundb cada vez mais debilmente rui noite solharia."

Sons apocalípticos

Talvez o universo lenha sido criado silenciosamente. Não ei sabemos. Nào havia ouvidos humanos para escutar a dinâmica do milagre que fez nascer nosso planeta. Mas ejs proíéias usaram a imaginação ao falarem desse acontecimento. "No principio, era o Verbo', diz João; a presença de Deus foi anunciada ]>ela primeira vez ce»mo uma imensa vibração de som cósmi-co. Os profetas acreditavam que o fim também produziria um grande som. Essas referencias silo especialmente abundantes nas profecias judaicas e muçulmanas.

•11 Thorttcll Sijnjrt.iK*Tavwin. tomunicaçào pessoal. 42 C*avkl Simmons, coeminicaçIo peiv-vl. •U ]leinrich Fteine Oie Harzreiv- Sdrnffiche Ui-rfe- (Munch t. \ 2. p 19-20. 1%*).

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R, Murray Schcrfw

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Quando o Kralutra explodiu na noite de 26 de agosto de 1883. o som se fez ouvir em ioda a área sombreada deste mapa.

Gemei, pois o dia do Senhor esta próximo ... Farei estremecer OJS céus, e a lerr.i tremerá em sua base sob a ira tio Senhor dos exércitos no dia de iuror de sua Ira.''

Com o ribombar dos tambores da ressurreição eles encheram seus dois ouvidos de temor. *

e.nnios iii-iliisi.ipar.ini os ouvidas jx*r causa dos troveVs. temeu »va da mone.4*

Na imaginação dos profetas, o fim do mundo seria assinalado por um fone estrondo, um estrondo mais violento do que o som mais forte que se pussa imaginar, mus terrível que e|ualquei tempestade conhecida, mais feroz que qualquer trovão.

I I ts.ll.l-- I V (i ,.- 1 '•

45 Jalal-ud-din-Rumi. Pitam i Sham i Tabriz 46 Corào 2. 19.

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A crfinoçòo do mundo

O som mais forte ouvido na Terra de que se tem memória foi a explo-são da caldeira de Krakatoa, na Indonésia, entre 26 e 27 de agosto de 1883-Os sons foram ouvidos na ilha de Rtidriguez, que esta a uma distância de aproximadamente 4.500 quilômetros e onde o chefe de polícia local rela-tou: "Várias vezes, durante a noite ... ouviam-se explosões vindas do Leste, distantes rugidos ele pesados canhões. Essas explosões continuaram a in-tervalos de cerca de três a quatro horas, ate ãs IS horas do dia 27".r Fm nenhuma outra ocasião os sons puderam ser percebidos a uma distância como essa. e a área na qual os sons foram ouvidos em 27 de agosto tota-lizou pouco menos do que 1 .'13 de ioda a superfície do globo,

Ê difícil pant um ser humano imaginar um som apocalíptico, do mesmo modo como ê difícil imaginar uin silêncio definitivo. Ambas as experiências existem apenas teoricamente para o ser vive}, uma vez que elas im]x"iem limites à própria vida, embora possam não ter consciência das metas pelas quais se modelam as aspirações de diferentes sociedades. O homem sempre tentou destmir seus mimigeis com ruídos terríveis. Encontramos tentativas deliberadas para reprexluzir o ruído apocalíptico na história tl;is guerras* desde o entrecluxrar-se dos escudos e c» rufar cios tamlxne.s dos tempos primevos até a Iximba atômica de Hiroshima e Nagasaki, na Segunda Guerra Mundial. A partir de entàei, a ampla destruição do mundo talvez tenha sido reduzida, mas a destruição sônica não, e ê desconcerta nte pcrcetx'rmos que o inóspito ambiente acústico produzido |X*la mcxiema vitla civil deriva do mesmo anseio escaiológieo.

•i? Ibt' Eruption of Krakatoa. RL-UIU iU.- "11KT Knlmtiu Cununititt- <il chie Rri-,-31 SeieiViy London. 18B8, p.^>-ao.

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2 Os sons da vida

Canção de pássaros

Um dos mais belos milagres observados em tt*da literatura e na mitolo-gia exTorre no meio das brutal idades da Saga dos Voisungs quando Sigurd, após matar o dragão Father e provar tio seu sangue, subitamente passa a entender a linguagem tios pássaros - um momento que Wagner utilizou ele mt*do soberbo em sua ópera Siegfried.

A linguagem e o canto dos pássaros têm sido tema de muilos estudos. embora nào se saiba ao certo se. tie fato. e>s pássaros "cantam" ou "conver-sam", nei sentido eosiumeiro desses ierme>v Seja como for, nenhum som da natureza tem estado ligad<»tão afetivamente à imaginação humana quanto as vtxralizaeoes deis pássaros. Km lestes feitos em vários países, lemos pedi-do aos ouvintes que identifiquem os seins mais agradáveis de seu ambien-te: o canto tlejs pássaros aparece repetidamente no topo da lista, ou próxi-mo dele. K a hisiória das Imitações de pássaros na música estende-se de Clémeni Janequin (me>rte» pe>r volta de 1%0) a Messiaen (nascido em 1908).

Do mesmo modo que os próprios pássaros, suas vocalizações são de todos CJS iipt>s. Algumas sào penelninlemenie fortes. O gnio da corruíra castanha (Atrícbom rufenscens) da Austrália "ê tão intenso que deixa uma forte sensação nos ouvidos".1 Outros pássaros podem dominar a paisagem

1 A. .1. Marshall Thí Function of Vocal Mimicry in [ürdv t-'mu \fiiíy^trne. v.5o. p.9. 19*i0.

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R. Muovf SçhulçT

sonora, pela sua quantidade. A araponga pequena (Aíanorina melanoplirys) ouvida nos arredores de Melbourne, com seu persistente som de sino soan-do sempre, aproximadamente, nas mesmas ali uras (Mi, Fã, Fá|). provtx'a uma paisagem sonora lão densa quanto a criada pelas ciganas, emlxira se diferencie dela pelo fato de manter uma certa perspectiva espacial, pois eis sons dos pássaros provêm de ponios reconhecíveis, diferentemente do cslridulo das cigarras, que cria uma presença contínua, aparentemente sem primeiro plano ou fundo,

Em muitas partes elo mundo, o canto dos passaros ê rico e variado, sem ser imperialLslicamenle dominador, Assim, São Francisco de Assis adotou cvs pássaros como símbolo da docilidade, do mesmo modo que seu con-temporâneo muçulmano Jalal-ud-din Rumi adotou a flauta de caniço para sua seita mística come» símbolo de humildade e simplicidade, em oposiçáti á vulgaridade e à opulcncia ele -seu tempo. Mais adiante voltaremos a falar da importância simbólica do canto dos pássaros lanlo para a música quan-to para a paisagem sonora,

A vocalização dos pássaros tem sido muito estudada em ler meus musi-cais. Hni principio, txs omitólogos coiistrut-im palavras encantadoras, e ue não constam ele nenhuma linguagem conhecida pelo homem, para descre-ver esses sons.'

Partial de bico grosso DiC ua-n-ri-ri Tcht... tebi... Tur-ui- ai

"IVniillião verde uâ-uá-uá-uá-cbvttcbou chuti-chuu-tu-ui-iti Criiza-hkvi jib.. ihip-thip-thip-jt-fi-fi-Jt Grande cliapim zi-tu, zi-tu. pai-ít. tsu-tí, tsu-ttcbitiR-st.

chin^-si. didíi-dula -didtl. litpol -bt-ttit-si-dida

Papj-most-LS tcblrnl. tchtmt, tchitttl, dtdtú- didtA- cli Tzit-tzit- tzit- lrt4t. trt4t. trui

Tnrdevvisgueirii tri-ui-ri-o-rt, tri-ai-h-o-i-o:

Tri-uio tif-o-ui-ti-aii

Cotfrirnizão trecs-trfcs. crec-ave. rep-txp

Narre:ja tic-tk-lie-lue-tie-1lit'-lit-txti-chip it. Chip-it, cbic-cbuc. iuc-tuc*

2 ffc tnni-nuis KIU iru-Jè.\ di» lu-inuia] fiirani .submetidos a adaptj<,-<.x.'\ buvcandixii- oni partus1 it** UIH.I <vprVH*ffl:içâ :ipn->yinuiLi di> niesmn vim. <N. T.i

} KM Nicholson, L Koch IKOWS of BiW Bird Lumilon. 19 in.

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A oimoçõo do mundo

A notação musical tamlx-m foi utilizada, e ainda o é, por Olivier Messiaen, que transformexi a transcrição em uma complexa forma de arte. Mas, apesar da engenhositlade desse trabalho, as vocalizações dos pássaros, com poucas exceções, não se prestam ãs situações musicais. Muitos dos sons emitidos não são sons simples, mas ruidtis complexos, e a alta freqüência e o tempo rápido de muitos cantos impedem que sejam transcritos em um sistema nolacional prt>jclado para as tessituras em freqüênt ias mais graves e íempos mais lentos tLi rmisica humana. I'm mêttKit» mais preciso de notação é o do espectógrafo sonoro e os omltólogos, atualmente, o esmo utilizunde».

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«.•ipcciójtrafii Mxniim di.it irij-ur liaraiin-ntc <is .MHIA dim- püvinis que tèm <'iuilicLidf.\ lonais. ,ii Mim do rouxinol; muito puro. com harmônicos, b) toutinegra; assobio claro; c) canino do pãniarto: (finado musical; d) pardal cor úv -íL-SSO: ruído M.-tn altura definida, c-i pnjiu.-i*o papai-lo auMraliano: vôo liarulht-mo, guinem».

A estrutura do canto dos pássaros costuma ser elaborada, pois muitos deles sao exeeulantes virumvsricos Alguns são lamlxhn imiladores A ave do paraíso, da Austrália, é uma imitador.» solx-rba, t- seu canto. <jua.se sem-pre, inclui não somenie imitações de cantos de mais quinze outras espécies de pássaros, mas também o relinchar de cavalos, o som de serras, buzinas de automóvel e apitos de fábrica! Os cantos de muitos pássaros contêm motivos repelidos, e emliora muitas vezes a função das repetições seja obs-cura, esses leitmotivs nielõdicos, variações e expansões mostram certas simi-laridades com os recursos melódicos usados na música, tais como os empre-gados pelos troubadours ou por Haydn e \vhgner. Em alguns de seus por-menores, a linguagem afetiva de certos pássaros, como vem sendo mostra-

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R. Murro/ ScKqfsr

do, mantém relação com as formas de expressão humana vocal e musical. Por exemplo, os sons aflitos dos pintainhos sào eomposios apenas por fre-qüências descenelentes. enquanto as freqüências ascendentes predomi-nam nos cantos de prazer. Os mesmos contornos gerais estão presentes nas expressões ele tristeza e prazer do homem.

Mas. apesar dessas similaridades, é óbvio que, seja o que for que os pássaros estejam comunicando, suas vocalizações são projetadas para seu próprio benefício e não para o nosso. Alguns homens ]x*dem descolirír os seus códigos, mas ;i maitir parte ,se comentará apenas em ouvir a extrava-gante e surpreendente sinfonia de suas vozes. Os pássaros, como os poe-mas, não precisam significar, mas ser.

Sinfonias dos pássaros do mundo

Cada território da Terra terá sua própria sinfonia de pássaros, produ-zindo um som fundamental nativo - tão característico quanto a língua dos homens que vivem nesse lugar, Em Paris, Victor Hugo ouviu os pássaros dos Jardins de Luxemburgt» durante <» mês de maio. época elej acasalamento;

Os quincunxes e tabuleiros enviavam se muuuuiierne tio meio da lu/, perfu-tiies e fuluores. Os raintis. faist antes ;i claridade do meio-dia, pareciam cjuert:r abr.lcar-se. Nos sicôinuros, cliilreava-n bandos tie loutinegras, d e -Kird.iis Iriunfan-le?,, tie pLca-paus tjue subiam pelo Tronco dos castanheiros fiando bicadas rl<«> liüracusda tasca ... ííni uma rnaf-nificencia límpida. O grande silêncio t b natureza feliz enchia ti jardim. Silênciii celeste, compatível t o m mil miiüir-js. amillios de nirifios, üunido de enxames, palpitações d o vento.1

Uma rica polifonia como essa está ausente das pastagens da Amérira do Níone. Pm uma planície perto de Pittsburgh, liá um século, um escritor ale-mão não encontrou "absolutamente nada ... aié uma grande elisiáneia em comprimento e largura, não havia um pássaro, nem uma borboleta, nem grilo de animal, nem zumbido de inseto-"/ Nas pastagens, os sons se evapo

1 VietoT Hugo les wKerat>kb; l*i#l. [c*d iirav Os wiseniects. 't'racl Cirli* Sanuií. San íKaulo: Circulo J(i I.IVIXJ 1 CiUdo ilt' tAíldSCOpv Pai'iliny if the Xitreteenlh Century Marc ri VjiKe-ívlli Nrw Víirk, VP\. p. Hífi

S TiTdi^irKl KurnheTíccr lS-rAHwnka-»\u<ie. ]HSS. <*iudi> de- li-asid tii^nstlinl The AI-ICIíL-JII Scene, lhe (jcofiraphicalRei^wir, v.LVIlt, n.l, p.71, lyí-H

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A oFinoi-60 do mundú

ravam, como se nunca tivessem sido pnxluzidos. Nas estepes russas, o can-to dos pássaros também era freqüentemente, isolado: "Tudo parece morto: somente acima, nas profundezas celestiais, uma coiovia está gorpeando e, das alturas etéreas, as notas prateadas caem sobre a terra amada e, de tem-pos em tempos. <> griu* de um:! gaivoia, ou o som metálico de uma codorna ecoa na estepe"." De longe em longe, apenas uma espécie é ouvida: "Como era encantador esse lugar! Os papa-figos emitiam o seu canto formado por três sons clanjs, parando somente o tempo suficiente para deixar o campo-nês alisorvê-lo, por enire os úmidos sons flautados, até a última vibração"." K no inverno os pássaros se mislu ravam aos sinos dos trenós: "O que pode-ria ser mais agradável tio que sentar-se sozinho ã beira elo campo de neve e ouvir o chilrear dos pá.ssaros no silêncio cristalino de um dia de inverno enquanto, tie algum lugar muito distante, soavam os gui/os de uma tróica que passava - aquela graça melancólica do inverno russo!".*

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* Miixmi Crtifki OntdbiHHi. Citado i\e Marci« Vdbecclii. up eu., p £*"•>.

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R Murrey Schgfar

Mas nas florestas da Birmânia essa claridade era impossível tie se en-contrar, comei Somerset Maugham descobriu quando lã esteve. "O rumor tios grilos e sapos e os grilos deis pássaros" produziam um ruído tremendo, "tie modo que até que se a cosi ume u ele |xxle ser difícil dormir," "Na o há silêncio no Lesie," conclui Maugham.''

Os ornitólogos ainda não mediram a densidade estatística tio canto dos pássaros nas diferentes partes do inunelo com dela lhes que nos permitam fazer comparações objetivas - comparaçi-es eme ajudariam a fazer mapas dos complexos ritmos da paisagem stinora natural. Mas eles têm realizado muitos trabalheis em oulro campo de interesse para o pesquisador da pai-sagem sonora, classificande) tipcis e funções das canções dos pássaros. Basicamente eles se classificam assim;

eanlos de prazer canlos de- :in>njsita CutUos de dcle^i lemtotud cantos de alerta cjnlos der võo cantos de pUima>^i:m tantos tie ninho cante ns de alimenfu

Ptxlem-se ericortimr equivaléncias para muitos desses cantos na experi-ência humana de produzir sons. Paia tt>mai alguns, exemplos obvie»; os cantos territoriais tios pássaros são reproduzidos no som tias buzinas dos auttimóveis^ t»s cantos de alerta, nas sirenes da polícia; e os cantos de prazer, no rádio na praia. Ne>s cantos territoriais dos pássaras, encontramos a gêne-se da idéia de espaço acústico, tia qual trataremos mais adiante. A definição do espaço por significados acústicos é muito mais antiga elo que o estabelc-cimenio tie cercas e limites ele propriedade: e, á meti ida que a propriedade privada se toma cada vez mais ameaçadora no mundo moderno, é de crer que os princípios reguladores da complexa rede de espaços acústicos que se sobrepõem e tiiteqxrnetram, comei ocorre enüe os |iãssanis e animais, terão ele novo uma grande significação também para a comunidade humana.

Os pássaros podem ser distinguidos pelos sons que produzem ao voar. O grande e lente» adejar da águia é bem diferente da tremula agitaçát> dti

'} Sfimerutt Maufthani 7V fientieman in the Parfuur \nnc\nr,. l-^O. p I.W

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A 0Í\r\ocào do mundo

pardal no ar. "Na verdade eu nàe> vi os pássaros, mas ouvi o rápido rufar de suas asas", escreveu Frederick Philip Grove dejjois de cruzar as pradarias canadenses durante a noite. O amedrontado êx<xJo de um bando tie gan-sos em um lago do Norte canadense - um brilhante adejar de asas na água — é um som que se imprime ião firmemente no espírito dos que o ouvem quanto qualquer trecho de Beethoven.

Alguns pássaros têm asas furtivas: "O vôo da coruja é muito silencioso; suas asas são almofadadas na pane inferior. Você pode ouvir seu Jínelo cante:» mas não o seu vôo, mesmo que ela circule em volta de sua cabeça na escuridão".1^ Somenie os que vivem perto da terra pexiem distinguir os pássareis pelos sons de suas asas ao voar. O homem urbano releve essa habilidade apenas para insetos e tráfego aéreo.

Nota-se com tristeza como o homem moderno está perdendo até o nome deis pássaros. "Eslou ouvindo um pássaro" é uma resposta que freqüentemente recebei durante eus pas.seios auditivos pela cidade.

"Que pássaro?" "Não sei." A estrutura lingüística uno é apenas assunto da lexicografia.

Só percebemos aquilo que podemos nomear. Rm um mundo dominado pelo homem, quando o nome de uma coisa morre ela é eliminada da socie-dade e sua própria existência corre perigo.

Insetos

CDs sons de insetos que o homem moderno reconhece mais facilmente são os mais irritanies. O perni longo, a mosca e as vespas são facilmente reco-nhecíveis. O ouvinte alento potle mesmo dixer qual é a diferença entre pernitongos macho e fêmea, pois nonnalmente o macho produz um som mais agudo. Mas só um apicultor silx* distinguir todas as variantes dos sons das abelhas. Leon Tolstói criava alxrlhas em sua propriedade e o som delas ê tteserilo por ele lanto em Ana Katvntnaquanto em Gaenxt cfmz. "Ouvi-am-se constantemente os diversos sons do enxame tias que voavam diligen-te, dos ociosos zangãos e das abelhas-guardiãs, que defendiam do inimigo ti que era seu."11 Quando uma colme ia sem rainha está morrendo, os apicul-tores ficam sabendo pelo som;

10 F Philip drove. O U T Prairie Truth Toronto. 1*122, p.V5 11 LWJII T-JLMóí. Anna Karetdna. Trad, e;. earm.it. New Yurk. I'Xrf. pW7. led. hftiv: Ana Kare-

nina Trad Jnin tijspjr Sim'"*"* Siii.i )M.ui|o' Alwil Cultural, I1)?].]

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R. Murrrjy Scfiafer

O vc"x> tias arxjlri js nfiei é t t u no nas colmeLcs viva**; U el leim e 41 snm que t* apieulior entonira muelarii. (Juando twie t u parede ela colinéia doente, em vez de umii respeista insUntâneu e enmivedda. o zumbido de tk-/eil:i*> tie mi lira res tie :dx%-IfiuLs artjueantlo ameacadoramente a parle de Irj.s ele seu*- o i r p o i e ui l l n ip i t lo atlejar pf tx luz int ln .ic'iiele vivo /.umbidti . ele é atingido | K í I u m y j tn desvunexu e CeMMiin t f , vindo de diferentes jxirtt-s t l i colmèLi dc-serla ... lirn volta tia erilr.idá j:i não exiMe iiíjUele enxamr tk- giurdas curvarKlo-se. e trnmlx-'teando ameaçai, prontos J morrer em <Sefe?s;t tbi colli icii i. J:i n;»n .•*• ouvem o zunido ty-ive, o zumbido d j lalniLi, o cantei tie á ^ U ter* v ine, m;is o alvoroço fenditlo e dLsctintLmle da t tc i tordci i i . "

Nas Gex?rgicfis. Virgílio descreve o mcxlo t:omo os apicultores romanos "faziam um barulho vibrante" com cimbalos a f im de atrair as abelhas para as colméias. líle também descreve vivida mente como duas colmcias de vez em quanilo guerreiam ocasionalmente entre si com "gritos semelhan-tes aos sons abruptos de um trompete" | l

O.s sons dos insetos são produzidos em um número surpreendente de maneiras. Alguns, como os dos mosquitexs e os zangàos, resultam apenas ela vibração das asas. A tessitura das freqüências dos sons das asas de>s insetos situa-se entre 4 e l.luO vibrações poi segundo, e muitos dos sons ele insetos t|tie ouvimos sã<j prtxluzidos por essas oscilações. Mas. quantlo a borboleta movimenta suas asas entre cinco e tlez vezes peir segundo, ti lesultado é muito débil e muito grave para ser registradti. Na abelha co-mum, a freqüência da balida das asas é de 200 a 250 ciclos por segundo, e a do pernilongo t Andes cantans) foi medida em >K7 cicltis por segundo (c.p.s..). Essas freqüências, então, seriam as notas tvásicas dos sons resul-tantes; mas, como um rico espectro de harmônicos está sempre presente, ei resultado pode ?>cr um som misto, como um diapasâo pouco discemível.

Out rei t ipo de seim produzido por alguns inseieis é o elas batidas no chão. Ê o caso de muitas espécies de lénniias. Um grande número de rérmitas pode bater no chão em uni.sse.mo. presumivelmente come» recurso de advertência, numa méelia de cerca de dez vezes por segundo, produ-zindo um débil lainlxir i lar Julian Huxley escreve: "Lembro-me de estar acordado uma noite no campo, peito do l.ago Hdvvard, no Congo ltelga. e ouvir um estranho estalido ou tiquc-laque. Uma lanierna revelou que ele

\2 UTJII TCJIXII»!. War and Peace. Trad (" O.-irpftr lrunlnn. I1>"1. p<»H (11I tra.s . Guerra c fju±. Rio ele lanem» CM*>. iy*iu. |

H Virgílio, írttVS*Crtí. Livri' ÍV. wr>os fij-fi-i r "0--J. inid. <:. Oay tx-wL-, Nt-iv Virfk, l <*>•*.

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A t iR ix i ^d do mundo

vinha de uma coluna de lérmiias que cruzava o chão da tenda sob a proteção da cscuridâei".1*

Outros inseteis, COTIKJ OS grilos e cenas lonnigas, produzem estridulos esticando uma parte de sua anatomia, chamada scrafxrr, sobre outra, de nome files.1" Ü resultado desse* contínuo raspar é um rumor complexo, rico em sons harmônicos. A variedade desses mecanismos produtores de estrkJukis é enorme, e certamente a maie»ria tkis sons produzidos pelos insetos è feita dessa maneira.

As cigarras figuram entre os insetos mais ruidosos. Klas pixxluzem som por meio de membranas rígidas em timbales."- de texrura semelhante á do pergaminho, próxima â junção do tórax e do abdome, t|ue são postas em movimente» por um vigortiso músculo preso á sua superfície interna; e.sse mecanismo produz uma série de esta lidos, semelhantes aos de uma tampa de estanho quando pressionada com tis dedos. O movimento do timbale <que chega a uma freqüência de cerca de 'i.^óO c.p.s.) é grandemente ampli-ficado pela câmara de ar que reveste a maior parte do alxlome, de modo que o som fXxJe ser ouvido a meia milha de distância. Em países como a Australia e a Nova Zelândia, elas produzem um som quase opressivo em determinada epexa Ide dezembro a março), embora durante a neiiie cedam lugar ao suave cricrilar tios grileis.

F difícil descrever as cigarras para alguém que não as conheça. Quan-do jovem. Alexander Pope. ao traduzir a frase de Virgíliei sole sub ardenti resonant arfntsta cicadis "("enquanto os pomares ecoam os sons das áspe-ras cigarras e os meus"), serviu-se dei expediente ele utilizar um som mais reconhecível para comunicar a nx^sma ieléia a seus leitores de língua ingle-sa: "77JC Mealing sheep with my complaints agree"1'{"O carneiro que bale concorda com minhas queixas").

A literatura clássica, a exemple» da literatura oriental, está cheia ele refe-rências às cigarras. Klas ocorrem na iltucki (em que :i palavra grega teltix,

I t Julian Huxley, laidwlrri* Koch. Animal ijingua^e. New Yoik, llKvi, p.H. IS f Is jpi lm, pciri pntciur.ir st)fis. ravp-im :is Ivwdas duras dt- sius asas anterior?* No cay» das

íümngrfs. rsK> US .interns as rt-spcnsliveis pclu sum. Scntpers e filet < iL-niujlmentu- "-rat.pjduri.-s' t- "•linu.%'") vii> nintics a|-it<(ixLir-iiivcis dadi*-*- ^ i-siruturjis st-mUiada.*. da antena int* ca.vi tlas formiicis' c dt* JSJIS l no CJSO dos f-rilos t. f N T »

10 O IUJOIL- (kiiibalt- i- dünlu pc'la JpfuJ(in*iicD<j ciaii CCíTD tipi- dc- ijiivJuxr. (N. T.l I ^ (!i»iH]iarar Virnilm, ficiit^a If. cmn j pcir-ilr.isir iter ^op*'. 7?JC Set und PteJttnti

01

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R. Murray Schafer

T£TTt£, costuma ser erroneamente tratluzida como "gafanhoto") e nas obras de Ilesíodo. Teexrito diz que os gregos as mantinham em gaiolas por sua habilidade canora c essa prática ainda é comum entre as crianças das tetras dei Sul.1" Pm Tedftt. de Platàe», Sin/rates conia que originalmente as cigarras eram homens tocados pelas musas que passavam a vida cantando e, esque-cendo-se de comer, morriam e lena.st'iam e:tjin<> iiLselos. No laoísme.i, as cigarras se assexiamm a hsien, a alma, e imagens de cigarras eram utilizadas quando se preparava um exiqx» para ser incinerado a lirn de auxiliar a alma a se libertar dele após a morte. A importância da cigarra na paisagem sonora do Sul, assim como o simholismo por ela provejeado, tem sido negligenciada desde o comparativamente recente acúmulo nórdico das civilizações euro-péia e americana.

Quando se tornam parte do calendário dos fazendeiros, os insetos, co-mo os pássaros, evidenciam-se na paisagem sonora e tornam-se sinais para determinados atos: "Podem-se preparar as terras para a semeadura en-quanto lã em cima a cigarra, olhando os pastores ao sol. faz música na fronde das árvores".

Os sons dos insetos, então, formam ritmos tanto circadianos quantt> sazonais, mas os entomologistas ainda não os mediram com pormenores suficientes para que o pesquisador da paisagem sonora seja ««paz de esta-belecer claros modelos sonoros a partir deles. Tem havido muitas dificulda-tles tia análise prtreisa tla_s iniensidades e freqüências dos sons dos insetos. Isso tx*orre tanto porque as espécimes individuais sãti difíceis tie isolar quanto pesque <is sons produzidos por inseTos geralmente lem estnatuias de fre-qüências complexas ou ruídos de ample> espectro, ceuit harnie'mitcis que. em geral, alcançam a faixa dos ultra-sons. O gafanhotei Scbistocera gregaria emite um som de cena de 25 decilxris quando gravado bem prtiximo à fonte, mas o ruíelo de balida de asa alinge W decilxris quando em v(n>. O ruidti do vôo do gafanhoto do deserto foi medido e atingiu perto de 67 decibéis a uina distância de dez centímetros do microfone. A potência de som de muitas mariposas pode não ultrapassar 20 decibels quando gravado bem próximo ã fonte, enquanto <JS insetos dotados de asas e corpos rígidos, como as moscas, as abelhas e os besouros, produzem sons superioa*s a ^u ou íiO decibéis. Como o txivido humane» c. mais sensível aos sons situados em tessituras médias e>u alias, o* sons de freqüência mais aguda (em uma

W TC.-I.VIJK., idyll.Ml. A. S. t-' Guw IKd. j . Camlxidfce. 1'iSü, t . l . p.UV.

Í.2

A ofinoçãO do mundo

média situada entre *iíX) e l.(XX) c.p.s.) soam maLs fortes ao ouvido; mas nenhum ouvido humano ptxle escutar as freqüências mais agudas do cha-mado dos gafanhotos, que foi verificado estarem na faixa de 90 mil c.p.s. -isto é, duas oitavas acima da capacidade de audição do ouvido humano.

Para nossos propósitos, contudo, uma simples impressão geral deis sons dos insetos c suficiente. Mais. talvez, do que qualquer outro som na nature-za, eles neis dào a impressão tie serem constantes ou exonerem numa linha ininicrrupia, Em jvarte isso |Xxle ser uma ilusão, pois muitos insetos modu-lam em pulsações ou variam de muitos modos sutis, mas. ajxrsar de» efeito "granulado" que tais m<xlulações criam, a impressão dada por muitos inse-tos é de contínua e invariável monotonia. Como a linha rela no espaço, a linha constante no som raramente exorrt* na natureza, e ela só exorrerã ce>m a introdução da maquinaria mexlerna pela Revolução Industrial.

O som das criaturas das águas

Os sons das criaturas vivas são emitidos apenas no âmbito de uma estru-tura muito estreita, em lorne> da superfície da terra - muito menos do que 1% de seu raiei, em extensão. Confinam-se á superfície da lerra. ao mar, a umas poucas braças abaixo de sua superfície e ao ar imediatamente acima dela. Mas nessa área relativamente |%quena a diversidade de sons produzi-dos pelos organismos vivos é tlesconcertantemente complexa. Mão é neissei propeisito aqui catalogar todo*; os sons da natureza e somente tocaremos em alguns deles que estão entre os menos usuais.1"

F.mlx»ra nem uxie*s os peixes tenham mecanismos produtores de st>m nem desenvolvido órgãos auditivos, muitos deles produzem sons únicos* alguns dos quais extremamente muito fortes. Alguns peixes, como ei pei-xe-lua (rol inó ou certas espécies de cavala, produzem sons rangendo ou batendo os denies. Outros fazem sons expelindo gases ou vibrando a bexiga natatorial" Um peixe, o misgurnus.J1 prcxluz um ruídti forte en-

14 Um Iv/cn k'V:ii)LicliL'n(i> dt ' d jd ixs J i v n u LICSM: JSSUIIICI, um l ivro i k i I|IJ:LI t-xtrjínu.is minwri» MI*. Unns. <"• Animai tjin/nuatie. d í Julk-n Huxley e l .udwig I V K M . New York. I**H

2U A lx.xej{3 n;natí'ift.i dus ptixc-s é um ót#h* u t i l i iado paia ;i fluMjiJikuLidt.-, nu v/ja, tis CX-íXILS, c*uanif<i ([Urrem sull i i (Li Coluna t k JKlLa- rnc l lern :i fvsifcu i l r J I t-, f ]u:mdi i <|ucT?in di-.H'i'r, t-.svazi:im rtü. Í N . T. l

21 \ i > ESr.Lsil, HI IHHJIC |x j |yul j r ili-sM.' [ieiw ú -duft j". (Ps. T. l

6 a

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R. Murray Schofor

golindo bolhas de ar e expelindo-as com força pelo anus. Pelo menos 34 gêneros de peixe produzem som pela vibração da bexiga natatória.

Os tantos das baleias têm sido objeto ele um número ct>nsiderâvel de esiuelos recenTes, e algvm.s regisiros da baleia jubarte" foram pre»elu/:itlos comercialmente em I970. A imetliata e espetacular atenção de que foram alvo deveu-se parcialmente á comoção pr< »voeaela pelo fate> de e>s caniores pertentvreiii a uma espécie em exlinçáo. além elei falo de as canções se-rem obsc*ssivamenle lx*las. Além disso, eles moslraram a muita gente, que se havia esquecido tie que os peixes eram seus ancestrais, as alxibadas sonoras das profundezas eiceànicas e uniram os efeitos de feedback da música popular eletrônica e de guitarra aos múltiplos ecexs da acústica submarina - assuntei ae> qual voltaremos mais adiante. Os cantos das Ixi-leias ju banes podem ser analisa deis em lermos musicais. Cada canlo pare-ce consislir numa série ele variações sobre lemas e>u mtHivos conslanles, repetidos em um número diferente de vezes Os pesquisadores estão cev meçando a indagar se diferenies grupos ou famílias tie baleias ju banes não leriam diferentes dialetos.

Muitos crustáceos emitem sons. O camarão mantis (Cbltnidelia2* * pro duz um som forte friecionando partes de sua cauda, ene^uanto a lagosia espinhosa da Flórida emile um som grasnatlo friccieinandei um<i ponia especial existente em suas antenas. Ouire>s crustáceos produzem csialidos, zumbideis, assobieis ou mesmo rugitlos que nãei rarei ptxlem ser ouvieleis da praia.

Ne» inicio da primavera, os pântanos de muitas partes do mundo se enchem de sons de sapos e. lãs. A América do Norte possui ioda uma orquestra de executames: o lamúrio da rá-de-boca-estreita, o latido dos sapos-cachorro, o assobio das rãs saltadoras, o sapo grilo-do-brejo e o trinadf> da rã americana; t> minúsculo sapo grilo-do-brejo st*a aimo um inseto, o sapo-do-campo prt*duz sons de guizo, o sapo roedor ronca, o sap<» verde teica banjo e e o sapolieii do Sul arrola.

Quando Julian Huxley visitou a América e ouviu o grito do sapo-lxx pela primeira vez. "recusou-se a acreditar que aquele som procedia de um

22 Tfnmf)lxtLÍ'uhale ao urijun:*!. e.uit t- i fxi í ídc. cm pcíiu^uc-;-. a bak-u c u r i u n d j " ou l ub jnc " • i i in iu ' uu is 0*11111111 As IMI I -U- . íUIJJIIL1 (icrlcru f i l l no ULIILTO Sh^iplent. IN T l

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A. crFino^ÕO do mundo

simples sapo; o som sugeria um animal grande e muito perigoso, tão forte e grave era".*' No Norte, os sapt>s significam o mesmo que as cigarras para os japoneses e australianos. A estridulação altamente resst>nante de algu-mas espécies, como o sapo-do-sul i Bufo terrestris), assemelha-se mesmo à elas cigarras, e os trinados sustenta elos do sapo-do-oesTe Uiufo cognattts) duram cerca de 33 segundos, como já foi registrado. Mas com o passar tia noite, o ardor diminui nos pântanevs; a voz dos sapos-boi cai em altura e os outros instrumentistas gradualmente param de tex"ar.

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R. Murray Schafer

Os sons dos animais

¥. impossível examinar iodos os sons prexluzidos pelos animais. Mencio-narei apenas alguns, no nosso caminhe) em direção ao homem. Os carní-voros produzem os st>ns individuais de maior tessitura entre evs animais, e muilos deles, como o urro tio leão. o uivo elo leilx» ou a risa ela tia hiena, tém qualidades de tãe» grande impacto que se imprimem imediatamente na imaginação humana, provocando imensas imagens acústicas, lima vez e»uvideis, nunca mais serão confundidos ou esquecidos. Estão entre tis grandes sons que fazem história. Os homens que apenas ouviram falar deles pelos lábios de um bardo estremecerão só em pensar.

I.udwig Koch registrou pelo menos seis tipos distintos de expressão vocal nos leões. Os filhotes grilam para obter atenção dos pais, c aparen-temente grilam de modo diferente de acordo com o genitor que está sendo solicitado. A resposta maternal é um som ressonante, semelhante a um grunhidu. Há um "grito ele prazer", observado principalmente nos lews em cativeiro, que se inieia com o aparecimento tio tratador. O som prexJu-7ido eju.mdo a fera .st- encontra sozinha, alimentada t- tranqüila é um ros-nado suave e profundo. No momento em que a presa é apanhada, os leões emitem um breve e amedrontador ladrido de ferocidade. Por fim, hã o verdadeiro nigido, normalmente ouvido ã noite, o que é raro à luz do dia, As vezes, quando rugem, os leões mantêm a boca junto at» chão, o que intensifica a ressonância e a vibração da voz.

Os leões não ronronam. Os leopardos c as panteras, sim, e fortemente. Ao lado dos sons de sibilar e fungar que a maioria elejs felinos prxxluz quan-tlo eslá brava, emitia qual lem o seu próprio repertório de sons únicos. Por exemplo, o puma lem um forte grito lamurioso. elo qual Julian I lux ley eliz que "poderia ser confundido enxineanKjnte com um grilo de criança", en-quanto eis filhotes produzem um som sibilado. Os tigres são animais menos hamlhcntos que os leões, porém, no ciei, emitem um grilo desbragado. semelhante ao dos gatos comuns, mas grandemente aumentado.

O uivo dos lobos é isolado e persistente. Km geral, o líder da alcatéia começa em solo; então, os outros se juntam em corei, urrando, em princi-pio, e depois baixando para um ladrido atormentado. No grilo do lobo. encontramos um rilual vocal que define a demarcação lerrilorial da alca-léia pelo espaço acústico - exatamente do mesmo modo que a irompa de caça demarca a floresta e o sino da igreja, a paróquia.

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A trWfioçfyo da mundo

Os sons produzidos pelos primatas sempre inieressaram e divertiram o homem. Fies existem em grande diversidade, variando do apito, do grito e dos sons inarticulados ao grunhido e ar> rugido. Alguns são muito fortes. O macaco-gritador da América do Sul tem a voz mais forte dentre os mamífe-ros dei seu tamanho,, e diz-se IJUC seu som percorre cerca tie cinco quilôme-tros em espaço aberto, e três na floie-sta densa. O animal term uma estrutura especial, semelhante a um fole. em sua laringe, que ti ajuda a produzir esse veilume sonoro. Knlretanto, ainda não se fez nenhuma medida exata do gritei desses animais. Medimos os gibões de Hcxilack em um pico de 110 dBA,-"1

fora de suas jaulas, no zoológico de Vancouver. Julian Huxley fala a respeito tie um amigo que ouviu os guiões no zexjJõgico de Londres, quando ele estava ne» Oxford Circus, durante as plácidas horas tio começo tia manhã. Seria uma distância de dois quilômetros, aproximadamente.

O gorila é o único primata que descobriu um mecanismo de sons não-vocais: ele golpeia o próprio peilo com os punhos, prexJuzindo um stwn lorte e cavo, Isso é feito tanto quando ele produz sons vocais como quan-do não o faz. O gorila desceibriu a propriedade ela ressonância indepen-dentemente do mecanismo natural da caixa vocal. Ele parece estar sempre na iminência de descobrir o instrumento musical, sem ser capaz de com-pletar a transição do som pessoal para o artificial, lãnto quanto sabemos, somente o homem é capaz de fazer isso.

O homem faz ecoar a paisagem sonora na fala e na música

Iodos os sons dos animais mencionados nestas páginas entram em algu-mas poucas categorias. 1'txlem ser sons de alerta, chamados de acasalamento, comunicação enire mães e seus recém-nascidos, sons de alimentação e sons sociais. TodtíS .são identificáveis nas emissões vocais tio homem, e o proixv sito deste livro será ilustrar como eles têm sido tralxilhados nas comunida-des humanas ao longo da história.

21 eis dL-olxiis s;L4> mais prvcLsamrnte desiludo-. pc-La adK'fui tier A. H on C á MJ;I altteviaçãii dll dllA indka que as freqüências, mais graves do semi sJo iraiadas dcsfas-ut-avc-lnic-nii: put uma nrde tmiruc-ru/ada. .std-JM.t-am.-jtJibi. iii* instruiiit-iiUi ilc mLiliila. dr uma ituneira jpn.mirrp tlamenie equivalent a discriminação eiu oo^ icio liununu ame us sons de baixa freqüência. dBU indica que .1 discriminate» e nicnur, cnqujiuu dEK: n-iHim-nia uma iv>]H».«a C|UUNC-ex:ii3 ati Hfiui iph- eslá tt-niki inedklo

6?

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R Mumay Scbafer

l*ara começar, devemos alentar ao fato de que muitos dos sinais comu-rticados entre animais - o s de caçada, alerta, mede», raiva ou acasalamento -não raro correspondem estreitamente, em duração, intensidade e inflexão, a muilas exclamações humanas. O homem lambem pode gorgolejar, uivar, assobiar, grunhir, rugir ou gritai. Isso, somado at» fato de o homem muitas vezes compartilhar eis mesmos lerrilórios geográficos com os animais, reme-te ao seu freqüente aparecimento no fole'lore e em rimais. Nesses rituais, como a dança dos macacos deis balineses, as vozes dos animais são con jura-das pelo homem, em estreita imitação. Marius Schneider escreve:

l- precisei que se lenha ouvido para se pereelier tomo os afiori^ines são capa-zes de itiular as barulhos de animais e os sons ela natureza de maneira tão realista. Chegam mesmo a lavei' "concertos de tiíiiurezn". mis t-uai.*- cada cantor -niiTa um determinado som (ontb.s. vento, árvores plan^c-nles, grilos ele animai.4- assustados), "concerto*.' tk- ^rpreeixJeines magnitude e lx-le?a "'

Eslamos naquele lempo remoto da Pré-hislória em que <x-í>rre o duplo milagre ela fala e tia milsit*a. Como essas ativitlatles LtjmeearaTii? Seria preci-pitado insistir em que a fala originou-se exclusivamente da imitação onomatopaica da paisagem sonora natural. Mas não ptxle haver dúvida de que a língua dançou e ainda continua a dançar t om a paisagem sonora. Os poetas e eis músicos têm mantido viva a memória, ainda que o homem mexlerrto se lenha convertido em um "espectador de óculos". No que concerne ao nivelanwnto do estilo vocal humanei, o lingüista Oct o Jespersen escreveu:

Uma uinst-qiu-ncLi ela crvilizaeãc» avançada é i"tie* a paixão ou, pelo menos, a expressão ela paixão seja nnxleratla. daí ser forçoso concluir que a fala tio homem rwocivili7a<lo e primitivo tjr.i mais apaiiconadamerite agitada do que a nussa, ma is .semelhante ã maska ou á canção ... Kmlxira eilhemn*. a comunicação do pe*nsamen-to como o principal nhjeio da fala .. é perfeitamente pONtfvel que a hnííuagem se (enfia tlesenvtitvklei a partir de algo que nãe> tivesse outre» propósito a não ser o tk; exercitar os músculos da Ixica e tb tfan>anta e divertir-se, a si mesmo e aos outros, pela produção tk -sons agradáveis t»u, pt*ssivclmcnte, apenas estranhe* 2~

A onomatojxêia reflete a paisagem sonora. Mesmo tom a nossa lingua-gem avançada, ainda hoje continuamos, no vocabulário descritivo, a res-gatar sons ouvidos no ambiente acústico; e bem ptxle ser que as mais complexas extensões acústicas do homem - suas ferramentas e seus recur-

2-fi M:iri'is SVhnfick-r. Primitive Mu-si, 77N' .Ví-ir difttrti Itiiá^ry t>fMusic. v I. London. lOS", p *). £" e!*itr> Jesperv."!1. Linguam: Its Natuit, Ix-velc-pmcnt and Origin, l/induii. l'X>*. pi20 c tjT.

í I H

A efinoçáo do mundo

sos de sinalização - também continuem, até certo ponio. a ampliar os mesmos modelos arqueiipicos. Estivemos discutindo os animais, Entre as características tia linguagem, o homem tem muitas palavras para descrever os sons dos animais que eslão mais próximos dele. São verbos, palavras de ação. e a maior parte ainda é onomatopaica:

O cachorro kae O cachomnlio gane í) E3lo miav rovmnd A vaca mu^e O leão rufie A cabra bale O 1i#re rttímt O M X ) UrfW O rain guitteba O burro zumt O porto gruubei.nl guitubd O ca vá Io reitnciw cm nucha*

A língua inglesa reproduz somenie os animais com exs quais os ingle-ses, em suas muitas migrações, estiveram em estreito contato. Mas a língua inglesa não conhece nenhuma palavra especial para os animais remetfeis, com os quais nãej teve contatei: o galago, o mangabey, o lhama ou o lapir.

Algum dia um lingüista ira investigar as mais primevas imitações huma-nas, ainda encontradas no folclore e nas rimas infantis, em que temos uma decidida tendência para duplicar os sons reais de animais e pássaros. As diferenças entre as linguagens são interessantes.

Cachorro: IX»W-WüW th. arf-arf lAmi. gnaf-gnaf IF», how-how (Ar), «aú-^ü IV), won-won fj>, kwee-kwee (L>

Gato: purT-puir (D, ron-ron ti-'.). schlinurr-sclmuiT (Ali Carneiro, baa-baa <l>. met- méé (Gr.,). Mi maa'-maa' tAr.) Abelha: buzz (I). /.u/.-xuz lAr», bun-bun (J), vü-vü IV). Galo: o «.'k-a-dk jodle-dr,*.- <ll, cock-a-tlidlc-tkiw [ShakespeareI,

kikeriki (All, kokke-kokko (J>. kiokki <L)-V

28 A lin^iu imeli-sj c- muitu mais 1 irmmait ipj-ca que- o ponujjès Nu tniducáo daí vow* tie» aniiraü, pc-rtle-v li.is*;i ntc sonoridade imitaliv.i das m*-.snus palavra* e-iti injili-.s: harks, )vtf>s. mtsjHs, pum, nwxts, roars, Itteais. .otarls. botes, s<jiuwks, bttiys, gmnts ufueals. ieí?tnnies. neighs ( N T »

2(J As jbrcviacocs das linguagens s,»rv I - inglês. Am - inj lí- aim-rii-an». F - In-nct-.s, Ar - ar-ahr, V - vietnamita, J - -jp<M>L-.t, Al - alemão. Cír - fuepf<. M - ninJaiu, LJ - urdu. L - lokelc: tnlx*

6'í

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R. Murray Schafor

A essa lista poderíamos acrescentar muita1- outras palavras interessan-tes, como espitTo: kerehoo <.Am>, atishof.» ( | i , achum (Ar>. cheenk <U), kakchun y>, ach-shi tV).-*'

Naturalmente, tais imitações se limitam aos fenômenos disponíveis para reprodução, em uma tlelenninada lingviagem. Mas um estudo come» eMe. se f<»r reativado diligentemente, ]x*deiia deixar-nos maLs pent» tie avaliar de que modo os trateis críticos dos sons naturais são percebidos por dife-rentes povos.

No vocabulário tinornaiopaico. o homem harmoniza-se com a paisa-gem son<.»ra ã sua volta fazendo ecoar seus elementos. A impressão ê absorvida; a expressão é devolvida. Mas a paisagem sonora é demasiado complexa para ser repre>duzitlu pela fala humana, Assim, somente na mú-sica é que o homem encontra verdaeleira harmonia dos mundos interior e exterior. Será também na música que ele criara os seus mais perfeiteys modelos, da paisagem sonora ideal da imaginação.

i l í i t'.ar\w>. [1'cxkinr*. :u-rt'M.rti1:ir a C7k.su-. palavras as de l i s t t'uai r n l c -.in |V.jrTU^uO-í., icsj jec-livanw-nti-: ar/ au. ntn rc.-ti. lx:. zntirj zion, mcuricij <S. T.)\

.^0 Fm português, atcfnm. -iS. T i

7 D

3 A paisagem sonora rural

A paisagem sonora Hi-Fi

Ao discutir a transição da paisagem sonora rural para a urbana, uti l i-zo delis termos: bi-fte lo-fi) Ksses termos precisam ser explicados. I 'm sistema hi-fiè aquele que possui uma razão sinal/ruído favorável. A pai-sagem sonora bi-fi ê aquela em que ejs sons separados podem ser clara-mente ouvidos em razão do baixe» nível de ruído ambiental. Km geral, o campei é mais hi-ft que a cidade, a ntiite mais que o dia, os tempos antigos mais que os modernos. Na paisagem sonora bi-ft, os sons se sobrepõem menos freqüentemente; há persjxíctiva - figura e fundo, "o som de um balde na lx»rda de um pt-ço e o escalide:» de um chicote a distância" - a imagem é ele Alain Fournier, para descrever a economia acústica da zona rural francesa.

O ambiente silentie»so tia paisagem sonora hi-ft permite ao ouvinie escu-tar mais longe, a distancia, a exemplo de** exercício* ele visaei a 1ong:t distância no campo. A cidade abrevia essa habilidade para a audição (e visão) a distân-cia, marcando uma das maLs importantes mudanças na história da jx?rcepçátj.

Km uma paisagem sonora lo-fi, os sinais acústicos individuais são ob.s-curecidos em uma população de sons superdensa. O som translúcido -

l íti-fi e luji - alia fitlHidadr e liaixa r idd i i tuk (V. T.l

71

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R. Murray Schotirr

passos ria neve, um sino de igre-a cruzando o vale ou a fuga precipitada de um animal no cerrado — é mascarado pela ampla faixa de ruído. Perde-se a perspectiva, Na esquina de uma rua, no centre) de uma cidade moderna, nào há distância, há somente presença. Há fala cruzada em ttxltxs os ca-nais, e para que os sons mais comuns possam ser e>uvidos eles tem de ser intensamente amplificados. A rransição tia paisagem sonora hi-ft para lo-fi ocorreu gradativamente, ao longo dos séculos, e nos capítulos seguintes será meu propósito mostrar de que modo isso se deu.

No ambiente silenciose» da paisagem sonora bi-fi, mesmo as mais msig-nifieanies peflurbaçé*e-*- ixxlem comunicar informações interessantes ou vitais; "Fie foi perturbado em sua meditação por um RI ido dissonante, que vinha da easa ele eochev V.r,i o cata-vento tio telhado girando, e essa mudança no venio era o sinal ele uma chuva calamitosa ".* Ü ouvido huma-no é alerta comei o tie um animal, No silêncio da noile, uma velha senhora paralitica, na história de Turgucnicv, pexle ouvir as toupeiras fazendo to-cas sob o chão. "lslo é que é bom", ela reflele, "não há necessidade de pensar." Mas os poelas pensam em cada som. Goethe, com o ouvido en-costado na grama: "Quando sinto mais perto do cotação o formigar de um pequeno universo escondido embaixo das ervilhas, e são os insetos, mos-cardos de formas inumeráveis cuja variedade desafia o observador, síntei a presença do Todo-poderoso, que nos criou ã sua imagem'/

Dos ptwmenores mais próximos ao horizonte mais distante, os ouvidos operavam com delicadeza sismográfiea. Quando os homens viviam quase sempre isolados ou em pequenas comun idades, os sons não se anion toa-vam, eram rodeados por lagos de quietude e o pastor, o madeireiw e o fazendeiro sabiam lê-los como indícios das mudanças no ambiente.

Os sons pastoris

De mexlo geral, eus pasios eram mais silenciostis ele» que a fazenda. Virgílio os descreve bem:

2 IIHHIUS Hardy. Par f'nmi the Madding Çnued U>inl<in. 192(1, p.2*)l 3 Johann W'oilgnng von eVwihe. Die ljf:dt*n dt*s Jun^en "*vnhers. In: Wv**i>. Vctlnur,

ISW, e.19, p.H. {ixl. iiiu-s.. Wenher Trad Oak-âo Cutiim!*». SJIí Pjulrv Ahrü Culiuial, IVM. 1 .K. leimpit'xsi'iii IV*" .-S, p i s |

7 2

A ofinoçõo tio itKindo-

Alx'lhas hibcleanas te lisonjeiam com elelicatlo /.umliklci, pelo-> portals do seine* ... OuvinLs ON vinhaleiros cantando paru a brisa, ent^uanlo. durante UxJn t> u:ni|X-, cm, it:u.v queridos pomlxis, a viva VOJ., serão nuvidos e as mlinhas, tio alio do outeim, não deixarão sei1!) arrulhos terem fim '

Os pasltires, diz Lucrécio. devem ler recebido tio som do vento suges-uàes para oa seus canteis e assobieis. Ou elos pássart»s. Virgílio diz que Pã ensinou os pastores "a juntar alguns cantços mm cera" como forma de conversar com a paisagem:

Doce ê a imirniuntnte música do pinheiro disiantt-na primavera,

ei pa.steir de cabras, t o m o doce tamlk'm ê o seu silvo ... mais eltice. pastor, é a lua cailcão

dei que o riacho distante que cJcsce das rcxhas. em sal picos.'

Os pastores ttx:avam flauta e cantavam uns para os outros a fim de fazer passar as horas solitárias, como nos mosiram a forma dialogada do Iditio de Teõcrilo e as hclngas de Virgílio; e a música delicada de suas canções constituem talvez os primeiros e decerto os mais persisrenies ar-quétipos sonoros pnxluzidos pele» homem. Séculos cie flauta pitxiuziram um som referencial que ainda sugere claramente a serenidade da paisa-gem pastoril, emlxira muitas imagens e recurse>s literários tradicionais esie-jam começatnlo a desaparecer. O st>U» tie imirumemos ele madeira sempre retrata a pastoral, e esse arquéii|x-> é tão sugestive» que mesmo um orques-trador grandilciqüentc como Herlioz reduz a sua orquestra a um dueto entre um corne inglês e um oboé solistas para docemente nos conduzir ao campo [Sinfoniafantástica, leiteiro movimento).

Na paisagem si lente do campo, os sons suaves e límpidos emitidos pela flauta do pastor assumiam poderes miraculosos. A natureza escutava e res]x»ndia pe>r simpatia: "A música chegava aos vales e eus vales a envia-vam ãs estrelas - alé os pastores serem avisade* por Vésper que ele viam voltar para casa e contar os carneiros enquanto ela percorria, importuna, o céu ouvinte".'-1 Texxrrjto foi ti primeiro poeta a fazer a paisagem ecoar os

•> Vir^il"*. 7ln-Paitíiral ft/enu, faUifla. |. Tr.ul li. V. Rkii. Hantumelsw,mh. Middle-**-*;. 19**9. S Tt*ócritt> Idyil! Org. e trad ingl. A S l: e^mihrridgc. ISW. v.l b VIIKüKI. The PasturtilPoems, up üt.. ÍAU^í. VI.

7.1.

Page 35: A Afinacao Do Mundo - Murray Schafer

R. Muir-JY Schafer

sentimentos das (lamas dos pastores e os poetas pastoris o têm copiado desde enlão:

Fíxerdta-te em canções canipesrre*» na alegre flauta pastou! . ensinando as matkir.Ls a lazer eco aos encantos de Arnarilis,"

diz Virgíliei. 1'ara uma repetição desse miraculoso poder da música, preci-saremos esperar os romancistas dei século XIX.

A paisagem sonora pastoril que nossos poetas descreveram continuou pelo século XIX. Alain Ftiurnier a descreve na França: "De longe en» longe, a voz distante elos pastores, de um menino chamando por um companhei-ro ou de uma moita de abeto a outra crescia na grande calma da tarde gelada"'.11 A conexão enire cidade e campo é captada tie forma encantadora na descrição ele Thomas Handy:

O pastor da colina leste podia gritar para dar a nolícia do parte- tk- uma ovelha ao pastoreia col ina oe>1e, por stifwe a.s chaminés interpostas da cidattezinha, sem maiores, inconveniente*. p:ir.i a própr ia vu7. íáu próximas eram as in>írerttt^ pasta-gens, incrustadas nos quintais dos burgueses. F ã noite erj possível ficar parado na cidade e ouvir, J ; IN pastagens nativas Hí*N niveis ntais l iaixos dt- relvado. o do te mugi t lo ths novilhas e os profundos e c;ílitlos sopros em que aquelas criaturas se ceimpraziam v

Sons de caça

Um tipo bem diferente de arquétipo sonoro nos foi legado pelas caça-das, pois a trompa iranspassa as sum bras tia floresta com sons hen »i cos e belicosos. Quase iodas as culturas parecem ter empregado algum tipo de trompa na guerra e na caça. Os romanos utilizavam a Irompa circular de tubo tônico como instrumento tie sinalização para seus exércitos, e liá inúmeras referências a ela em Díon, Ovidio e Juvenal; mas, quando Roma declinou, a arte de fundir mela is parece ler desaparecido e com ela se perdeu um senn rnuilo especial. Quando "Sigmund it»eou a trompa que pertencera a seu pai e incitou os seus homens"1'1 erA em uma tmmpa de

7 iLsiik-tfi, ÍLÍ i ig j t. X Alain f ix imi i ' r 71<e Wanderer'te limndMeautnesj. Tr.wl !•• ftair. \ci»' Yrirk. 1971, p 2*1 9 Thomas H;ircly t-'dlrw Townsmen In tt'vw.v Tales tendon. 1*1 tC', p 111

Kl /?Jé- Saftu of tin- luhwttf*. eJrjt. K. tr. Kir.cti. Ujiid<jrt, IstfiS, p.iU.

?.:

A oüncíõo do inundo

chifre de animal que ele tocava. O mesmo tipo de insiRimen[e> aparece nas paginas da Cançào de Koiand. Mas no século XIV a técnica tie fundir me-tais foi redescolxfrta e tons brilhantes e metálicos começaram a ressoar em toda a Europa.

No sécule» XVI, a cor de cbasse Itrompa de caçai adquiriu como que um caráter definitivo, e esse instrumento obteve um significado especial na paisagem sonora européia, signifícadt) que perdurou alé lempos lx.*m re-centes. Nos dias em que a caça era popular, o campo raramente podia se ver livre deis charnaelos da trompa. e o elaborado códigej de sinais eleve ter sido amplamente conhecido e compreendido.

Como a cor de cbasse era uma trompa aberta e possuía somente alguns harmônicos naturais, seus vários sinais tinham um caráter muito mais rít-mico que melódico. Os vários códigos que foram preservados são de con-siderável complexidade e. naturalmente, variam bastante de um país pura outro. F.stes podem ser classificados assim:

1 chamados breves, que têm a Finalidade tie animar os cães de caca, de alertar, pedir ajuda e>u indicar as circunstâncias da caçada;

2 uma fanfarra especial para cada animal (várias para o veado, depen-dendo de seu tamanho e galhada)'

3 canções ornamentadas, para iniciar ou terminar uma caçada, ou como um sinal especial de alegria.

Tolstoi deu-nos um lx»m relato da natureza festiva ela trompa na Rússia;

O aJaride» dos cães de cava foi seguido pelo som grave do chamado tie caya ao loh i i . tocado pela trompa ele Dani lo. A marilhu |Utiloii-se ao> tivs primeiros caelmr ro.s e as vozes tios cães de caca podiam ser ouvidas com aquele som peculiar que serve pani anunciar que estão atrás de um [OIH>. OS condutores deis cães nao estavam agora acuLindo-i is, mas instig-.iníUnkS cum gritus tio *Hn! Hu! Hu!". F. a iodas a.s vozes sobressaia a ele I Janllu, tjue passava ek- u m som pmru i x l o a<j agutUi, penetrante. A voz de Dani lo parecia preencher toda a llorcsta, perfurá-la e ressoar ao longe Ho t a m po al ler lo."

Uma recordação contemporânea de uma jovem mostra ejuão forte ain-da é a herança da Caça no norte da Alemanha.

21 J.rtwi T<il.*lr>i. ti'tir and Fi\ne [jor-dun. I ' l T pÕ.Vi.

?.'J

Page 36: A Afinacao Do Mundo - Murray Schafer

R M-jrroY Schafar

Ainda estava escuro quando um dos caçadores, cerimoniosamente, abriu a ca-catla com uma faníarr.i cm sua rrotui^i se a area da região rjn.de se data a caçada não fosse um campo alieno, o único meio tie comunicação entre lacaelrihrs e batc-elr*rv*- teriam sniei <•* sinais emitidos pela trompa Durante ;i formarão, em que os caçadores fechavam a ãn\i t-m Irrê lados e i is batí*tlorcs em um, nxLis fkavan* rrlUil" quietos parJ não iX-rturbar os animais. O sile-neio era quebrado por um sinal da tn impa e lugjt > st- ouvia a ii-sposia te-rrivel e ix-rluranTc tk- uma trenuoera tie um unit** som 1t|ue mais parecia um trompete ele brinquedo), soprado peir um eit>s luatedores. CtitiK-camoS u atacar a lerra á nossa frente com o som de chocallios, potes, panelas, obx'tos que píoduziitm baiulhos de toda espécie e gntt*> em ltxtas as moduLivõev Amexlrontadis pelo fianilho, todas as criaturas vivas se perrurbavam e fugiam <k' seus ahrigos e vinham em direção aos caçadores. Chancas t|ue c*ramos, adoravam is fazer t*s mais fortes barullios ... Ao final do tlia, todos se reuniam em rexit e ouviam e> trompisia meandu as fanlarra-s cm sinal <k' rtT*ivno pelos animais monos Havia um sinal para cada animal, e Jembro-me de que ei ela raposa cm o mais belo, enquanto o do ctx'lho era muito fireve e simples. No fim do tlia, na escuridão da r>iile, :i caçada terminava tom uma fanlarra festiva, qua.se triuntante1'

A trompa de caça oferece-nns um som de grande riqueza .semântica. Em um nível, seus sinais fornecem um cexligo que todos os participantes compreendem. Hui outro, ela adquire significado simlxilito que sugere espaços livres e a vida natural de> campei. Falei lambem do som da trompa de caça corne) um som arquetípico. Apenas os SíITIIXNOS sonoros que atra-vessaram séculos e séculos merecem essa distinção, ixiis neis ligam ás mais antigas heranças ancestrais, dando continuidade nos níveis mais profun-dos da t*oivseaéncia.

À trompa de posta

Outro som de características semelhantes, tamlxhn comum em todt» o cenãrie> europeu, foi o tia trompa de posta. Ela taml.x-m persistiu durante séculos, jxvis começou no século XVT, quande» a administração do correio estava a cargo da família Thurn and Taxis; e, como as rotas postais se esten-diam da Noruega à Espaniia. o mesmo ocorria com os chamados das trom-pas (.Cervantes os menciona.). Ma Alemanha, as ultimas [rompas de [Xisia fe>ram ouvidas em 1925.;-' Na Inglaterra, as irompas de posta estiveram em

12 Hildegartk- *vírerk.inip. njiiuinicacào pessoal l i (j>nnjriii--JCJ[3 part i iubi du l3«*ucsi'hi't hutidüsmiuisn-rium lür ib.s Prisi-und l-Vmnifli lewevn

?è.

A afinCH-òo da mundo

uso até 191-íi, quantlo o conreiei Londrcs-Oxiord era transportado |X;r estrada aos domingos. Na Áustria, as trompas estiveram em uso ate depois da Pri-meira Guerra Mundial, e ainda hoje não é penniiitlo a ningviém levar ou texar uma trompa de posta, o que realça o simlx>lismo sentimental do instru-mento1* {artigo 24 do Regulamento Postal Austriaeo, 1957).

A Irompa de posta tamlx*m empregava um código precisei de sinais para indicar diferentes tipos de corresponelèneia (expressa, normal, local, encomendas >, bem como toques indicadores de chegada, partida e perigo, além de indicações a respeite» dei numero de carniagens e cavalos - para que as estações de troca pudessem receber tais avisos com antecedência. Na Áustria, um recruta tinha seis me.ses para aprender os sinais e, se não o conseguisse, era demitido.

Pelas i\ias estreitas v através ela paisajtcm campestre, a trompa de pt»sia era ouvida nos vilarejos e nas alamedas das cidades, nos portões dos castelos em cima e nos monaslcrios embaixo, nos vales - em toeia parte, seu som era conliecidei-. em todo lugar cie era saudado alegremenTc. l-k- tocava tetelas as cordas do ceiraçãt» humano: esperança, lula, ansiedade e saudades de casa - sua magia despertava tcxkis e» sentimento*1*

Assim, o simlxilismo da trompa de |X»sta funcionava de mexlo diferen-te do da trompa de caça. Ela não conduzia o ouvinte para dentro da paisagem, mas, atuando de modo inverso, trazia notícias de longe, l inha cara ter cenirípeio em vez tie centrifugo, e os seus sons nunca eram mais aprazíveis tio que quande» a posta se aproximava da cidade e entregava suas cartas e volumes a quanros <*s esperavam.

Sons da fazenda

Comparada ã vida silenciosa tios pasios e às vibrantes celebrações da caça. a paisagem sonora da fazenda fornece todo um tuibllhão de ativida-des. Cada animal tem seus próprios ritmeis tie som e silêncio, tie despertar e repousar. O galo é o eterno despertador e o latido dos cachorros, o telégrafo original, poLs a invasão de uma propriedade por um estranho logo é denunciada ixde» latido tios cachorros, passado de um sítio a ouiro.

11 Or- (rnsi Pc*pp. fíiniunicacjo nevaial IS KarlThienK* Zur Gew.hu hit' de*. IVjMhoreis In: Postborwcbt tie and P>vtt>rirfi- Tc hcnUctierixich

U'lpufj: Friedíieh (lumber, I**)*». \i.h-~.

7 7

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R Murray Sthtifer

Muitos dos sons ela fazenda são pesados, cejitu» o lento vagar dos e*as-e*(is do gatl<» e dos cavalos de tração. Os pés dt»s fazendeiros também se movem vaga rosa mente. Virgílio nos fala tias "carroças de movimentos pe-sados", das máquinas de debulhar e "dei pese) excessivo ele> arado", e lam-IXMTI nos olerece um interessante retraio acústico elas casas de campo ita-lianas após o escurecer:

<"m fazeixk'iro permanece acnrtiaelr» e, com sua l4ica, corta madeira para fazer tochas. F enquanto isso. sua mulher alivia suas longas, tarefai tom canv'Vs e faz correr as lançadeiras. guinehante.s du te*ar pela trama, ou ferve o moslo tio vinho adocicado sobre a chama e aflora com Tolhas :i ínniíulacàc* t l t i caldeirão fooTljulhuMc '"

(Certos sons <la fazenda lém mudado pouco no decorrer dos séculos, particularmente os que sugerem a azáfama do trabalhei pesado; e as vozes dos animais também lêm dado uma consistência ele sons it paisagem sono-ra rural. Mas hâ também os sons típicos do lugar. De minha própria juven-tude, recordo-me de alguns. O primeiro que me vem à mente é o tie baler manteiga. Enquanto a nata era batida por meia hora ou maLs. uma mudan-ça quase imperceptível ocorria no som e na texTura. enquanto <> creme consistente ia se transformando em manteiga. A bomba manual, também em declínio, irrompe agora na minha memória comei um marco sonoro de minha juventude, embora naquele tempo eu a ouvisse deseuidadamente. Havia ouiros sons, como o gra.snado onipresente dos gansos ou o rangido e a batida da porteira. No inverno, ouviam-se os pesados golpes das botas para neve no pãtio nu o grite» dos corredores de trenó ao longo das estra-das pavimentadas no campo, No silencie» da noite de inverno, ouvia-se eim sübilei csialido, como se um prego saltasse de uma lãbua ern rneiti ao frio intenso. E havia os profundos acordes emitidos pelo cano da chaminé durante as noites de vento, E também eis ritmos regulares, como ei geingo que nos chamava para o jantar ou o sussurro do moinho de vento, que as mulheres acionavam diariamente às quatro horas tia tarde a fim de bombear ãgua para ei gado que regressava dos pusios

l>efinj como som fundamental um som regular que sustenta outros eventos sonoros, mais fugidkis ou recentes. Os sons fundamentais da fazenda eram

Ha Vujtilio. GcorutCs. l.itnj I, M-IXIS .N]-.í*i. Tlírtd. Scmll* Palmei Bi UM.-. Cliix.uj(ti 14SÓ.

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A oknoçoo do mundo

numerosos, pois no campo a vida tem poucas variações. Os sons fundamen-tais riodem influenciar o comportamento das pessoas ou criar ritmos que sào transportatkis para ouiros aspectos da vida. I'm exemplo bastará. Na Rússia de Tolsiõi, os camponeses guardavam as pedras ele amolar em pee|ueivas cai-xas tie estanho que ficavam presas aos cintos; t> ritmico chocalhar dessas caixas produzia um som típico durante os meses de preparação do feno.

A erva, quando a gadanlva a tonava, produzia um som manso e caía, amtmto-ando-se ern grandes medas, que despendiam inreiiMi aroma. Ot» eeifeiros, apena-tkis na zona em que trabalhavam, tao depressa deixavam vir o ruído tltxs cantis e o das í^adanhas eme davam nas arestas das pedras ao afiá-las, coino os juntos alegres com que se animavam uns aos outros.1'

Retornando deis campos, os ritmeis de> trabalho diário se estendiam nas canções.

Atras das casas seguiam as mulheres CLHII t» ancirihus ao omhm. ratliantes rios seus vestidos garridos, falando alto e ak'gremente. (Jma das mulheres, de voz. tosca e Iwavia, entoou uma canção que cinqüenta outras vozes, graves e agudas, acom-panhavam na altura dii eon» ... As medas, os canos, os prados. i»s campos distan-tes, tutlo sv lhe afigurem emlualado ao ritmo tk-ssa canção louca, acompanliada <k-assobieis e de gritos estridentes.1"

A Rússia, naturalmente, não é o único lugar onde e»s ritmos do trabalho foram incrustados nas canções folclóricas, mas as canções folclóricas sugeritlas pelo trabalho sempre trazem em si um acento pesado. Isso fica claro se compararmos a música do trabalhador dos campos com a leveza tias flautas do pasteir. Creio não estar indo longe demais se disser que t» homem só descobre o canto melodioso e o lirismo tia música na medida em que se lilx'rta do trabalhe» físico.

Ruídos na paisagem sonora rural

A paisagem sonora rural era silenciosa, mas conheceu duas profundas interrupções acústicas: o ruído da guerra e o "ruído" da religião.

17 Leon Tolítíü. Anna Karentna. New Yuík. 1%?. p.2"0. |ed. Imis.: Atttt Karenina. S.lu l*aulo: Ni* a Cullural. 1WS. 2\.]

1« Ihjclrm. p.291.

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R. Murray Sdiokir

Virgílio, cuja vitla foi freqüentemente interrompida pelas guerras roma-nas, lamenta essas intrusões na vida pastoril:

Tal era a t ida que o douratle» Saturno levava sobre a tetra:

a espécie humana aintLi não havia uvivkln o clamor d o clarim de guerra,

nem o ilangor da espatla na dura bignrna ."'

Para Virgílio, os sons da guerra eram metal e ferro, e a imagem acúsiica permanece intacta até os dias de hoje, embora lhes devam ser acrescenta-das as exploseies de pólvora a partir do século XIV,

A Literatura mundial esta repleta de lia tal has. Parece ejuc <»s poetas e os cronistas sempre se espantaram com o ruído das batalhas. O poeta épico persa rerdowsi é lípie-o;

Aos grilos dos l>iv.s t- com o harulllo feito pela poeira negra, pelo ri-!*>mbar dos tambores e o relinchar deis cavalos de* guerra, as montanlus se dilace-ravam C a lerni se letldia ao kinge- Homem algum jamais presenciara lão furioso embate antes. Fragiiri iso era o t-sintlor produzido pelo enlrethocar dos machados de guerra, das espadas e tios arcos. O sangue: dos combatentes iransformava as planícies em paiiunos, a terra ixirecia um tnai de piclie cujas ontLis eram forma-das por machados, espadas r arco.-'"

Os exércitos condecorados para a batalha ofereciam um espetáculo visual, mas a batalha em si era acúsiica. Ae> barulho dos metais que se entrechocavam cada exército acrescentava seus gritos tie guerra e loques ele tambor TK» iniuilo de amedrontar o inimigo. (J barulho era um estrata-gema militar deliberado defendido jx'los amigos generais: ~í>eve-se man-dar o exército para a batalha gritando e. algumas vezes, correndo, porque seu siibiio aparecimento, e»S gritos e o fragor das armas confundem os corações dos inimigos".-*1 l^e Tãcite» n<»s vem interessante descrição de um canto de guerra germânico chamado íxtritus:

Com sua execução eles não apenas se inflamam de CuTügeni. mas ou vindo o som podem prever ti desfecho tie um combate em vja de se travar. Puis ou eles

19 Virj-flio, CJWWJíIí *. iivrti II. wxyis S.V8-S1O Trad C Day Lewwv N w York l'Xi-1. 2C.1 The Fpic rf tbcKings tübãb-nãma). Trad. Jteuhi-n levy. Chu-ijpi, \%7, p.5"? 21 (Jius.uid-.-r. lhe tienerul, XXIX. Trad. William A. Qltlíi-ther ei ül London. ]023, p-i~l.

ÜC

A ofinaçcVo do mundo

aterrorizam seus inimigos ou eles próprios se amedrontam, dependendo elo tipo do barulho cjue se faz no campo de batalha: e eles o vêem nUo apenas OXTIc» mu Has vozes cantando juntas, mas como um uníssono de valor. Seu propósito particular é prtiduzir um rugido úsjiero e intermiicnto: c cies mantêm os escudos em frente â boca pura que o som se1 amplifique em um profundo crescendo em razão da rvvrrberacae».-'*

Quando os mouros atacaram Castela em KMS , empregaram tocadores de tambor africanos que, de acordo com e> Poema de ElCid, nunca haviam sido ouvidos anteriormente na Europa. O barulho aterrorizou tis cristãos, mas "o bom Cid Gimpcador" apaziguou o seu exercite» prometendo con-fiscar os tambores e doá-los a Igreja. A asstx'iacao do barulho com a guerra e com a religião não foi fortuito e no tlecorrer deste livro leremos muitas ocasiões para emparelhá-los. Ambas as atividades sâe» escattilógicas. e sem dúvida há uma consciência desse falo por iras tia peculiar conversão da palavra latina Mlum (gvierru) no belKet elo alemão vulgar e do inglês antigo (significando "produzir um ruído forte") antes de sua fixação final no instrumento que deu ao cristianismo o seu sinal acústico.

Outro exemplo reforçara a relação entre religião, guerra c ruído, pois é a descrição de urna batalha religie»sa que parece ler side» travada apenas |X»r meio de sons:

FOJ ãs três h<»ras elo dia 1-t ele agosro de 1H31 que os cmzados, que estavam acampado*, na planície entre Domaiuicc e llorsuv Tyn. receljeram a nolkia de que <is hnssitas, -mh a Iwk-ranca de rrucopiu, n Clraivik-, estavam >c aproJtimando. Embora tis boêmios ainda estivessem a quatro milhas tk* distancia, o fragor dos seus camos de guerra e a canção "All ye warriors of Ciod" |Todc»s os guerreiros de Deusl, que k-das as suas hosier* entoavam, -á se podiam ouvir. Ü entusiasmo dos cmzados extinguiu-sc com rapidez eswrreecdora ... O acampamento alemão lieou em total confusão. <">s cavaleiros ce»rriam em iodas as direções, e o esfrcpiio tios canos vazios tjue eram conduzideís em retirada t|itase enc<»bria o som tlatjuele canto terrível ... Assim terminou a tru/ada IxiêrtiLi.-11

O que deseje» mostrar Com as diversas descrições tlestas páginas é quer

embora a paisagem sonora natural fosse em geral silenciosa, era dclitxTa-damente interrompida pelos ruídos aberranttes da guerra. A outra eicasião

22 Intuo. Germanta. Tiad. H. M^crin lv e S. A. Handfiird. Ujiniurtd.s*<irtli. Mictdluaux, iy*n, :•• I'.--

2\ H. C. Wells. The Outline of History: Ne» VWk, 1««0. p.*íyi

ai

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If. Murray Scfiafgr

para um forte ruído era a celebração religiosa, fira então que os chocalhos. tambores e ossos sagrados entravam em cena e soavam vigorosamente pam prexluzír o que. para e» homem simples, constituía certamente o maie»r evento acústico da vida civil. Não há dúvida de que essas ativíelades eram uma imitação direta dos amedrontadores sons da natureza já estudados, pois eles também tinham origens divinas. O trovão foi criado por Thor ou por Zeus, as tempestades eram combates divinos, os calaclismos, punições divinas, lembremos que a palavra de Deus. originalmente, chegou ao he>-mein pelo ouvido, e não pelo olho. Reunindo seus instrumentos e fazendo um ruído impressionante, o homem esperava, por sua vez, captar o ouvi-do de Deus.

Ruído sagrado e silêncio secular

Pelas muitas centenas de páginas de seu Mitológicos it, o antropólogo Levi-Strauss desenvolveu um argumento para colocar o ruído em paralelo com o sagrado e o silencie» na mesma relação com o profano,'" O argumen-to tie lévi-Strau-w, considerado do ponto tie vista tio mundo moderno criva-do de ruídos, pode parecer t»bscuro, mas os estudos tia paisagem sonora ajudam a lomá-lc» claro. O mundo profano era, se nao .silent iexso, quieto. F,. .se pensamios no "ruido" em seu .sentido menos pejorativo, como qualquer som forte, a relação entre ruído e sagrado fica mais fácil tie ser interpretada.

Ne» decorrer deste livro, vamos descobrir que um certo tipo de ruído, que agora podemos chamar de "Ruído Sagrado'", não somente estava ausen-te da lista de "sons prose ritos" que as sociedades, de tempos em tempt»s, fazem emergir, como era, tie fato, quase deliberadariiente invocado como unia pausa para o tédio da tranqüilidade. Samuel Kosen confirmou isso quando estudou o clima acústico de um pacato povoado tribal, no Sudão:

Fm £*cral, o nivt-l vrfituu nos povoados está ahaixu tk: "¥,) dh na escala C da medida de nível MMKVO. cxcelo ocasionalmente, at) nascer do sei! ou l<*j$o a|»ós, ejuaiitk» um animal domésiict». como um galo, carneiro, vaca uu pomho, *v fa/. ouvir. Durante seis meses tio ano. pesadas chuvas caem cerca de tré-> vezes por

2) I'reci.sii :i|<T.ir 'i kilíir de ipii- [i"vi-Str:iiiv- \w inhirnxui <|'u* ;• tenn.1 (to 'RuiiUi s^pLiln" dt'senvci|vid.i neste hern m.intém 'jviura rrlacàn. %e é fjue e\i<ee .ilfuiroa' (van r, t[\.ie d e escnreeu. No cnianti-, devo iL-conÀer-lhe o rruíriti» de ler exciudo minha imaginação.

• i :

A ofinoçoo do mundo

semana, com um ou <loi.s esiiculíliis <k* trovjo. Alguns homens se entregam em OerUs atividades produtiva*., c o m i hati-r nas frondes das palmeiras com um bastão tk- macieira. iVüts ;i ausência tk- Miprrfk ies altamente reverborantes, como paredes, forros, fhão ou mobiliário pesatlo e t c , na vizinhança aparentemente justifica os baixos níveis de intensidade medidos no nível MJtloro: ?3-?4 elh no ouvidu do tri-bal bailor.-"1

Os sons mais fones (cerca tie 100 decibéis) foram encontrados quando os habitantes do ptivoado estavam cantando e dançando, o que ocorria, para a maior parte deles, num perkxlo de cerca de dois meses, durante a celebração da colheita tia primavera" fislo é. um festival religioso).

Para toda a cristandade. o divino era sinalizado pelo sino da igreja. F. um desenvolvimento tardio da mesma necessidade de clamor que antes havia sido expressa pelo cante» e pelo estrondo. O interior da igreja tam-bém reverix?rava com os mais espetaculares eventos acústicos, pois o ho-mem trouxe para esse lugar não somenie as vozes que se ouviam nos cânticos, mas também a mais ruidosa máquina que aié entile» ele havia produzido - o órgão. K ele foi todo planejado para fazer a divindade ouvir

Comparado às espetaculares celebrações da guerra e da religião, a vida rural, e mesmo a da cidade pequena, era tranqüila. Existem no mundo muitas cidades silenciosas, onde a vida transcorre monotonamente, quase em segredo. As cidades pobres sào mais silenciosas que as prósperas. Visitei cidadezinhas em Hurgenland (Austria) onde o único som ao meio-dia é o adejar das cegonhas em seus ninhos nas chaminés, e cidades emptx-iradas tio Irã onde o único movimento é o eventual andar balançado de uma mulher carregando água enquanto as crianças permanecem silen-ciosamente sentadas nas mas. Camponeses e homens ele culturas tribais em todo o mundo participam de uma vasta rroca de silêncio.

2í Samuel Ko*en ei ai. Pft.-^nc.uiys Siiwiy u í a Relatively Nuisc-Krw Populaimn in tfi*- Suciin. AilK.'rie.ail Cll<iUi£u:-.i| Soi-irty. Transot.tums. v.SQ. p. l-lO-l. V)Ól

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