38218932 Politica de Pedro Costa Jacques Ranciere

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    POLTICA DE PEDRO COSTA

    Jacques Rancire

    Como pensar a poltica dos filmes de Pedro Costa? Num primeiro nvel, a resposta parece

    simples: os seus filmes tm aparentemente como objecto essencial uma situao que est no

    centro do que est em jogo, em termos polticos, no nosso presente: a sorte dos explorados,

    daqueles que vieram de longe, das antigas colnias africanas, para trabalhar nos estaleiros de

    construo portugueses, que perderam a famlia, a sade, por vezes a vida nesses estaleiros;

    aqueles que se amontoaram ontem nos bairros de lata suburbanos antes de serem expulsospara habitaes novas, mais claras, mais modernas, no necessariamente mais habitveis. A

    este ncleo fundamental vm juntar-se outros temas sensveis: em Casa de Lava, a represso

    salazarista que enviava os opositores para campos situados no mesmo stio de onde partiam os

    africanos procura de um trabalho na metrpole; a partir de Ossos, a vida dos jovens lisboetas

    que a droga e a deriva social enviaram para os mesmos bairros de lata, para a partilharem

    a mesma vida.

    Uma situao social no chega, porm, para fazer uma arte poltica, como tambm no

    chega uma evidente simpatia pelos explorados e pelos desamparados. Exige-se habitualmente

    que a isso se acrescente um modo de representao que torne essa situao inteligvel enquantoefeito de certas causas, e que a mostre como produzindo formas de conscincia e afectos que

    a modifiquem. Reclama-se que os procedimentos formais sejam governados pelo esclareci-

    mento das causas e da dinmica dos efeitos. aqui que as coisas se complicam. Em nenhum

    momento a cmara de Pedro Costa faz o trajecto habitual que a desloca dos lugares da misria

    para os lugares onde os dominantes a produzem ou geram; em nenhum momento o poder

    econmico que explora e desterra, ou o poder administrativo e policial que reprime e desloca

    as populaes aparece nos seus filmes; em nenhum momento nada que se parea com uma

    formulao poltica da situao ou um afecto de revolta se exprime pela boca das suas perso-

    nagens. Dantes, alguns cineastas polticos, como Francesco Rosi, davam-nos a ver a mquina

    que desterrava ou deslocava os pobres. Outros, como Jean-Marie Straub ainda hoje, tomam o

    partido inverso, afastando a sua cmara da misria do mundo para nos dar a ver, num qualquer

    anfiteatro de verdura, evocador de grandezas antigas e de combates de libertao modernos,

    homens e mulheres do povo que enfrentam a histria e reivindicam orgulhosamente o projecto

    de um mundo justo. Nada disso em Pedro Costa: nem inscrio do bairro de lata na paisagem

    do capitalismo em mutao, nem instaurao de um palco apropriado grandeza colectiva.

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    Dir-se-ia que no se trata de uma escolha deliberada, mas da realidade de uma mutao

    social: imigrantes cabo-verdianos, brancos de classe social baixa e jovens marginais j no

    compem nada que se assemelhe ao proletariado, explorado e militante, que era o horizonte

    de Rosi e continua a ser o de Straub. O seu modo de vida, mais do que de explorados, de

    entregues a si prprios. At os polcias esto ausentes do seu universo, tal como os comba-

    tentes da luta social. Os nicos habitantes do centro que vm por vezes visit-los so as

    enfermeiras: e, ainda assim, uma fractura ntima que as leva a perderem-se ali, mais do

    que os cuidados a prestar s populaes doentes. E os habitantes das Fontainhas vivem a

    sua condio de um modo que era condenado nos tempos brechtianos, como um destino,

    que eles discutem no mximo para saberem se foi o cu, a sua escolha ou a sua fraqueza

    que os submeteu a ele.

    Mas ento o que pensar da maneira como a cmara de Pedro Costa se instala nestesespaos? quele que escolheu falar da misria prescreve-se habitualmente que se lembre

    que ela no um objecto artstico. E, no entanto, Pedro Costa parece fazer exactamente o

    contrrio. Parece aproveitar todas as oportunidades para transformar o cenrio das vidas

    miserveis em objecto artstico. Uma garrafa de gua de plstico, uma faca, um copo, alguns

    objectos espalhados numa mesa de madeira clara numa casa ocupada e eis que, com uma luz

    rasante, surge a oportunidade para uma bela natureza morta. Se a noite descer sobre essa casa

    sem electricidade, duas pequenas velas em cima da mesma mesa daro conversa miservel

    ou a uma sesso de chuto um ar de claro-escuro holands do Sculo de Ouro. O trabalho das

    retroescavadoras constitui uma oportunidade para pr em relevo, com o desabamento dascasas, cotos de beto esculturais ou grandes pedaos de parede, contrastantes, de cor azul,

    rosa, amarela ou verde. O quarto onde a tosse da Vanda lhe dilacera o peito encanta-nos com

    as suas cores esverdeadas de aqurio, onde at vemos mosquitos a rodopiar.

    acusao de esteticismo podemos, claro, responder que Pedro Costa filmou os lugares

    tal como estavam: as casas dos pobres so normalmente mais sarapintadas do que as dos

    ricos, as suas cores brutas so mais agradveis ao olho do apreciador de arte do que o esteticismo

    standard das decoraes pequeno-burguesas e, j na poca de Rilke, as casas esventradas

    proporcionavam ao mesmo tempo aos poetas exilados um cenrio fantstico e a estratigrafia

    de um modo de habitar. Mas o facto de Pedro Costa ter filmado estes lugares tal como estavam

    quer dizer outra coisa, que diz respeito poltica da arte. Depois de Ossos, renunciou a compor

    cenrios para contar histrias. Dito de outro modo, renunciou a explorar a misria como

    objecto de fico. Instalou-se nesses lugares para a ver viver os seus habitantes, ouvir-lhes a

    palavra, apreender-lhes o segredo. A cmara que joga virtuosamente com as cores e as luzes

    faz corpo com a mquina que d queles actos e palavras tempo para se desenrolarem. Mas

    a resposta que lava o autor do pecado de esteticismo provoca imediatamente outra suspeita,

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    outra acusao: que poltica essa que toma como seu dever registar, durante meses e

    meses, os gestos e as palavras que reflectem a misria de um mundo?

    Em resumo, a crtica coloca as conversas no quarto da Vanda ou a errncia de Ventura no

    interior de um simples dilema: ou esteticismo indiscreto, indiferente situao dos indiv-

    duos em questo, ou ento populismo que, pelo contrrio, se deixa cair na cilada dessa

    mesma situao. Mas isso situar a abordagem do cineasta numa topografia bem mesquinha

    do alto e do baixo, do prximo e do longnquo, do dentro e do fora. situ-la num jogo

    demasiado simples de oposies entre a riqueza das cores e a misria dos indivduos, entre

    a actividade e a passividade, entre o que dado e aquilo que tomado. O mtodo de Pedro

    Costa esfora-se justamente por fazer explodir este sistema de oposies e esta topografia, em

    benefcio de uma potica muito mais complexa de trocas, correspondncias e deslocaes.

    Para a abordarmos, vale a pena determo-nos num episdio deJuventude em Marcha quepoderia resumir, nalguns quadros, a esttica de Pedro Costa e a poltica desta esttica.

    O episdio coloca-nos primeiro no cenrio normal da existncia de Ventura, o de um

    trabalhador imigrante que partilha com um dos irmos uma casa pobre. Ouvimos primeiro

    a voz de Ventura a recitar uma carta de amor, enquanto a cmara se fixa num canto de parede

    cinzenta que rompe o rectngulo branco de uma janela, diante da qual quatro garrafas de

    vidro compem outra natureza morta. Pressionada pela voz do amigo Lento, a recitao de

    Ventura esbate-se lentamente. No plano seguinte, mudana brutal de cenrio: natureza

    morta que servia de cenrio recitao sucedeu um outro rectngulo colorido, retirado de

    uma parede ainda mais sombria, um quadro cujo recorte parece romper pela sua prpria luzo negrume envolvente que, porm, lhe toma as margens. Cores bastante semelhantes s das

    garrafas desenham a arabescos onde se consegue reconhecer a Sagrada Famlia fugindo para o

    Egipto com um bom squito de anjos. Anunciada por um barulho de passos, uma personagem

    aparece-nos no plano seguinte: Ventura, encostado parede entre o retrato de Hlne Fourment

    pintado por Rubens, o autor da Fuga para o Egipto, mostrada no plano precedente, e um Retrato

    de um Homem de Van Dyck.

    As trs obras so clebres e bem localizadas: estamos entre as paredes da Fundao

    Gulbenkian. No se trata evidentemente de um edifcio situado no bairro de Ventura. Nada

    no plano precedente anunciava esta visita, nada no filme indica que Ventura tenha um gosto

    particular pela pintura. O realizador transportou brutalmente Ventura para este museu, que

    a ressonncia dos passos no cho e a iluminao nocturna nos fazem supor vazio de quaisquer

    visitantes, requisitado para esta sequncia. A relao entre os trs quadros e a natureza

    morta cinematogrfica anterior, a relao entre a casa arruinada e o museu, mas tambm

    talvez entre a carta de amor e a distribuio pictrica compem, portanto, uma deslocao

    potica bem especfica, uma metfora que, no interior do filme, fala da arte do cineasta, da

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    sua relao com a arte dos museus, da relao que cada uma delas mantm com o corpo da

    sua personagem, e portanto da poltica de cada uma.

    Num primeiro momento, podemos pensar que apreendemos esta poltica de um modo

    muito simples. Num plano mudo, um vigilante, tambm negro, aproxima-se de Ventura e

    murmura-lhe qualquer coisa ao ouvido. Enquanto Ventura sai da sala, o vigilante tira do bolso

    um leno e apaga o vestgio dos seus ps. Compreendemos: Ventura um intruso. O vigilante

    dir-lhe- mais tarde: este museu um refgio, longe da algazarra dos bairros populares e

    daqueles supermercados onde ele antes tinha de proteger as mercadorias do roubo genera-

    lizado; um mundo antigo e tranquilo, perturbado apenas quando por acaso aparece ali

    algum do mundo deles os dois. Isso j Ventura confirmara com a sua atitude, deixando-se

    levar sem resistncia para fora da sala e depois para fora do prprio museu, pela escada de

    servio, mas tambm j com o seu olhar, perscrutando um enigmtico ponto, aparentemente

    situado bem acima dos quadros. A poltica do episdio seria lembrar-nos que os prazeres da

    arte no so para os proletrios, mais precisamente ainda que os museus esto fechados aos

    operrios que os construram. isso que o dilogo entre Ventura e o vigilante do museu nos

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    jardins da Fundao torna explcito, dizendo-nos por que razo Ventura est no seu lugar

    neste stio onde est deslocado: dantes no havia ali seno mato e pntanos povoados de rs.

    Foi ele quem limpou o mato com outros operrios, quem terraplanou, quem fez as canali-

    zaes, transportou os materiais, ps no seu lugar a esttua do fundador e lhe semeou erva

    aos ps. Foi tambm ali que caiu de um andaime.

    O episdio seria, portanto, uma ilustrao do poema de Brecht que pergunta quem

    construiu a Tebas das sete portas e outros esplendores arquitectnicos. Ventura representaria

    aqui todos os que construram custa da sua sade e da sua vida os edifcios cujo prestgio

    e fruio ficaram reservados a outros. Mas esta lio simples no justificaria que o museu

    estivesse deserto, vazio at daqueles que desfrutam do trabalho dos Venturas; no justificaria

    que as sequncias filmadas no interior do museu fossem inteiramente silenciosas; que a

    cmara se demorasse no beto das escadas de servio pelas quais o vigilante conduz Ventura;que ao silncio do museu sucedesse uma longa panormica por entre as rvores, pontuada

    por um canto de pssaros, nem que Ventura contasse por ordem a sua histria, desde o dia

    preciso da sua chegada a Portugal, 29 de Agosto de 1972, e que a sequncia se detivesse

    brutalmente na designao do local de onde Ventura caiu um dia. Ventura aqui algo

    completamente diferente de um trabalhador imigrante que ilustre a condio dos seus. A

    vegetao do cenrio, a posio de Ventura, inclinado por cima do vigilante, o tom solene das

    suas palavras que parecem recitar um texto que o habita, tudo isso est o mais longe possvel

    de qualquer crnica da misria. Ventura aqui um contador da sua prpria vida, um actor

    que manifesta a grandeza singular dessa vida, a grandeza de uma aventura colectiva qualo museu parece incapaz de fornecer um equivalente. A relao da arte de Pedro Costa com

    aquilo que est exposto nas paredes do museu excede a mera demonstrao da explorao do

    trabalho ao servio do prazer do esteta, da mesma maneira que a figura de Ventura excede a

    do trabalhador despojado do fruto do seu trabalho. Para compreender isto necessrio

    inscrever a sequncia num ncleo bem mais complexo de relaes de reciprocidade e

    no-reciprocidade.

    Em primeiro lugar, o museu no o lugar da riqueza artstica por oposio indigncia

    do trabalhador. Os arabescos coloridos da Sagrada Famlia no mostram nenhuma superio-

    ridade evidente em relao ao enquadramento da janela e das quatro garrafas da habitao

    pobre dos dois operrios, e a moldura dourada que a encerra aparece como um recorte do

    espao mais mesquinho do que a janela dessa habitao, um modo de anular o que a rodeia,

    de tornar desinteressantes as vibraes da luz no espao, os contrastes de cores nas paredes,

    os rudos do exterior. O museu o lugar onde a arte est encerrada nesta moldura sem trans-

    parncia nem reciprocidade. o lugar de uma arte avarenta. Se exclui o trabalhador que o

    construiu, porque exclui o que vive de deslocaes e de trocas: a luz, as formas e as cores

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    cambiantes ou o rumor do mundo, da mesma maneira que os trabalhadores vindos das ilhas

    de Cabo Verde. talvez por isso que o olhar de Ventura se perde algures na direco do tecto.

    Poderamos pensar que visa j em pensamentos o andaime donde caiu. Mas tambm pode-

    mos pensar noutro olhar para o ngulo de um outro tecto, no novo apartamento que visita

    conduzido por um outro irmo de Cabo Verde, muito parecido com o empregado do museu:

    igualmente seguro de que Ventura est ali fora de stio, neste lugar que reclama para uma

    famlia imaginria, igualmente preocupado em apagar os vestgios do intruso neste lugar

    assptico. sua lbia, gabando os equipamentos scio-culturais do bairro, Ventura ops

    apenas um brao esquerdo majestosamente estendido para o tecto e uma frase lapidar: Est

    cheio de aranhas. Nem o funcionrio municipal nem ns estamos em condies de verificar

    a presena das aranhas no tecto. Talvez seja Ventura quem tenha, como se costuma dizer,

    uma aranha no tecto [Avoir une araigne au plafond: expresso francesa equivalente ater macaquinhos no sto]. E mesmo supondo que estes insectos se passeiam de facto

    pelas paredes da habitao social, isso ser certamente coisa pouca em comparao com a

    lepra que corri as paredes da casa do amigo Lento ou de Bete, e nas quais pai e filha

    se divertiam, como bons discpulos de Leonardo da Vinci, a ver toda a espcie de figuras

    fantsticas desenhadas. Mas o erro das paredes brancas da casa no bairro social que acolhe

    o proletrio tal como o das paredes sombrias do museu que o rejeita precisamente esse,

    o de rechaar essas figuras aleatrias em que a imaginao do proletrio, que atravessou os

    mares, afugentou as rs do centro da cidade e escorregou do andaime, se pode igualar do

    artista. A arte pendurada nas paredes dos museus no apenas ingrata em relao ao construtorde museus. Tambm avarenta em relao riqueza sensvel da sua experincia, como quela

    que a luz faz brilhar nas casas mais miserveis.

    o que diz j a narrao de Ventura ao contar a sua partida de Cabo Verde no dia 29 de

    Agosto de 1972, a chegada a Portugal, a transformao de um paul em fundao de arte, e a

    queda. Colocando Ventura neste cenrio, Pedro Costa tambm lhe fez ganhar um tom la

    Straub, o tom da epopeia dos descobridores de um mundo novo. O problema, ento, no

    abrir os museus aos trabalhadores que os construram, mas fazer uma arte altura da

    experincia desses viajantes, uma arte que provenha deles e que eles possam, por sua vez,

    partilhar. o que nos mostra, depois da queda brutal da narrativa de Ventura, o episdio

    seguinte, construdo como um duplo regresso: um regresso leitura da carta e umflash-back

    do acidente. Vemos Ventura com a cabea ligada voltar a uma barraca de madeira com o tecto

    devastado, sentar-se acabrunhado a uma mesa, exigir imperiosamente a Lento que venha

    jogar s cartas e, enquanto bate ruidosamente carta aps carta, retomar a leitura da carta de

    amor que quer ensinar a Lento, o analfabeto. Esta carta, vrias vezes recitada, serve de refro

    ao filme. Fala-nos de uma separao e de um trabalho nos estaleiros longe da amada, mas

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    tambm de um reencontro prximo que ir abrilhantar duas vidas por vinte ou trinta anos,

    do sonho de oferecer amada cem mil cigarros, vestidos, um automvel, uma pequena casa

    de lava e um ramo de flores de quatro tostes, e do esforo para aprender cada dia novas pa-

    lavras, palavras belas talhadas medida apenas de dois seres, como um pijama de seda fina.

    Ventura no tem ningum a quem enviar esta carta, feita para uma s pessoa, mas ela na

    realidade o seu desempenho artstico, que ele gostaria de partilhar com Lento porque o de-

    sempenho de uma arte da partilha, de uma arte que no se separa da vida, da experincia dos

    deslocados e dos seus meios para preencherem a ausncia e para se aproximarem da pessoa

    amada. Mas tambm a carta pertence to pouco a Ventura como a este filme. Ela escandia j,

    mais discretamente, o filme ficcional de que Juventude em Marcha como que o eco e o

    avesso: Casa de Lava, a histria da enfermeira que vai para Cabo Verde para acompanhar

    Leo, um trabalhador com a cabea fracturada, como a de Ventura, num outro estaleiro.A carta aparecia primeiro nos papis de Edite, a exilada da metrpole que foi para Cabo

    Verde para estar perto do amante enviado pelo regime salazarista para o campo de concen-

    trao do Tarrafal, e que a ficou depois da morte deste, adoptada, no seu descaminho, pela

    comunidade negra que ela sustentava com a sua penso e que lhe agradecia em serenatas. A

    carta de amor parecia, portanto, ter sido escrita pelo condenado. Mas no hospital, cabeceira

    de Leo, Mariana dava-a a ler jovem Tina, irm do ferido, pois estava escrita em crioulo; Tina

    apropriava-se da carta, que se tornava ento para o espectador uma carta enviada, no do

    campo da morte pelo deportado, mas de um estaleiro em Portugal por Leo. No entanto,

    quando Mariana interrogava Leo por fim sado do coma, a sua resposta era peremptria:como teria ele escrito aquela carta de amor? No sabia escrever. E subitamente a carta j no

    pertencia a ningum em particular nem era dirigida a ningum em particular; aparecia como

    a carta de um desses escritores pblicos, igualmente capazes de formular as emoes amo-

    rosas dos iletrados e os seus requerimentos administrativos. A sua mensagem de amor per-

    dia-se na grande transaco impessoal que ligava Edite ao militante morto, tal como ao

    trabalhador negro ferido, mas tambm cozinha da antiga cozinheira do campo ou msica

    do pai e do irmo de Leo, com quem Mariana partilhara tambm o po e a msica, que no

    queriam ir ver Leo ao hospital mas refaziam a casa dele, a casa onde s entraria pelas suas

    prprias pernas, ao mesmo tempo que eles prprios se preparavam para partir para os esta-

    leiros de Portugal.

    a esta grande circulao entre o aqui e o alhures, entre os militantes da metrpole e os

    trabalhadores forados ao exlio, entre os letrados e os iletrados, os sensatos e os desenca-

    minhados, que pertence a carta que Pedro Costa d a ler a Ventura. Mas, prolongando o seu

    destino, a carta volta sua origem, e uma outra circulao vem enxertar-se no trajecto dos

    imigrantes. A carta foi, na verdade, escrita por Pedro Costa misturando duas fontes: uma

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    carta de trabalhador imigrante, mas tambm a carta de um verdadeiro escritor, Robert Desnos,

    escrita sessenta anos antes num outro campo, o de Flha na Saxnia, no caminho que o levou

    a Teresin e morte. Assim, o destino ficcional de Leo e o destino real de Ventura vem-se

    englobados no circuito que liga o exlio vulgar dos trabalhadores aos campos da morte. Mas

    tambm a arte do pobre, a arte dos escritores pblicos e a dos grandes poetas se vem includas

    no mesmo tecido: uma arte da vida e da partilha, uma arte da viagem e da comunicao para uso

    de todos cuja vida viajar, vender a sua fora de trabalho e construir as casas e os museus dos

    outros, mas tambm transportar a sua experincia, a sua msica, a sua maneira de habitar e de

    amar, de ler nas paredes ou de escutar os cantos dos pssaros e dos homens.

    A ateno a todas as formas de beleza que as casas dos pobres podem apresentar como

    a escuta das palavras muitas vezes andinas e repetitivas, no quarto da Vanda ou no aparta-

    mento novo onde a encontramos desintoxicada, mais gorda e me de famlia no releva,portanto, nem do formalismo esteticizante nem da deferncia populista. Inscreve-se numa

    outra poltica da arte. Esta poltica estranha que constitua em espectculo o estado do

    mundo para apelar tomada de conscincia das estruturas da dominao e mobilizao

    das energias. Encontra os seus modelos na carta de amor de Ventura/ Desnos ou na msica

    da famlia de Leo: uma arte onde a forma no se separa da construo de uma relao social

    e da mobilizao de uma capacidade que pertence a todos. No se trata do velho sonho

    vanguardista da dissoluo das formas da arte nas relaes do mundo novo. Trata-se de pensar

    a proximidade da arte com todas as formas em que se traduz a afirmao de uma capacidade

    para a partilha ou de uma capacidade partilhvel. O pr em relevo dos verdes no quarto daVanda no se separa da tentativa que Vanda, Zita, Pedro ou Nhurro fazem para examinar as

    suas vidas e assim se reapoderarem delas. A natureza morta luminosa, composta com uma

    garrafa de plstico e alguns objectos recuperados do lixo em cima da mesa de madeira clara

    de uma casa ocupada est em harmonia com a teimosia do ruivo em limpar com a sua faca,

    apesar dos protestos dos seus companheiros, as manchas desta mesa votada aos dentes da

    retroescavadora. No a misria do mundo que Pedro Costa filma, mas a sua riqueza, a

    riqueza de que qualquer um se pode apoderar: a de apreender o esplendor de um reflexo de

    luz, mas tambm a de falar altura do seu destino. Mas trata-se tambm de fazer com que a

    riqueza sensvel e o poder da palavra e de viso que so subtrados vida e ao cenrio das vidas

    precrias lhes possa ser restitudo, possa ser posto sua disposio, como uma msica de que

    possam desfrutar, como uma carta de amor cujos termos possam tomar de emprstimo para

    os seus prprios amores.

    No ser isto o que podemos esperar do cinema, a arte popular do sculo XX, a arte que

    permitiu ao maior nmero de pessoas, queles que no transpunham as portas dos museus,

    deleitar-se com o esplendor de um efeito de luz num cenrio vulgar, a poesia de um tinir de

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    copos ou uma conversa banal ao balco de um caf qualquer? Confrontado com os que o

    colocam na linhagem dos grandes formalistas, Bresson, Dreyer ou Tarkovski, Pedro Costa

    reclama-se por vezes de uma linhagem completamente diferente: Walsh, Tourneur ou outros

    mais modestos, autores annimos de sries B, fabricantes de histrias bastante formatadas

    com oramento apertado para lucro das empresas hollywoodescas, e no era por isso que

    faziam os espectadores dos cinemas de bairro deleitar-se menos com o esplendor igual de

    uma montanha, de um cavalo ou de uma rocking-chair, sem qualquer hierarquia de valor

    visual entre homens, paisagens, animais ou objectos.1 O cinema revelava-se, assim, no corao

    mesmo de um sistema de produo voltado apenas para o lucro dos detentores, enquanto

    uma arte da igualdade. O problema, infelizmente sabemo-lo, que o prprio capitalismo j

    no o que era: se Hollywood continua florescente, os cinemas de bairro j no existem,

    substitudos pelos multiplexque do a cada pblico, sociologicamente determinado, o tipo dearte para ele formatado; e, como todas as obras que escapam a esta formatao, os filmes de

    Pedro Costa vem-se imediatamente etiquetados como filmes de festival, reservados ao

    prazer exclusivo de uma elite de cinfilos, e tendencialmente empurrados para o espao do

    museu e dos apreciadores de arte. Disto, claro, Pedro Costa acusa o estado do mundo, quer

    dizer, a dominao nua do poder do dinheiro que coloca na classe dos autores de filmes para

    cinfilos aqueles que se esforam por oferecer a todos a riqueza da experincia sensorial

    disponvel nas vidas mais humildes. o sistema que faz uma espcie de monge triste daquele

    que quer um cinema partilhvel como a msica do violinista cabo-verdiano ou como a carta

    comum ao poeta e ao iletrado. bem verdade que o domnio do dinheiro tende a constituir hoje este mundo onde a

    igualdade deve desaparecer at da organizao da paisagem sensvel: toda a riqueza deve a

    aparecer como separada, atribuda a uma categoria de detentores ou apreciadores particulares.

    Aos humildes, o sistema envia uns trocos da sua riqueza, do seu mundo, formatados para

    eles, separados da riqueza sensorial da sua prpria experincia. a televiso do quarto da

    Vanda. Mas esta distribuio do jogo no a nica razo que quebra a reciprocidade e separa

    o filme do seu mundo. A experincia dos pobres no apenas a das deslocaes e das trocas,

    dos emprstimos, dos roubos e das restituies. tambm a da fractura que interrompe a

    justia das trocas e a circulao das experincias. Em Casa de Lava havia o mutismo de Leo

    na sua cama de hospital, e j no sabamos se isto era a manifestao do coma traumtico ou

    o desejo de no voltar a encontrar o mundo comum; havia tambm a loucura de Edite, o

    seu esquecimento do portugus e o seu encerramento na bebida e na lngua crioula. A

    morte do militante no campo salazarista e o ferimento do imigrante num estaleiro portugus

    instituam, no corao da circulao dos corpos, dos cuidados, das palavras e das msicas,

    a dimenso do no-permutvel, do irreparvel. Em Ossos, havia o mutismo de Tina, a sua

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    62 - JACQUES RANCIRE

    incapacidade em saber o que fazer da criana que tem nos braos, seno lev-la consigo para

    a morte.Juventude em Marcha encontra-se como que cindido entre duas lgicas, dois regimes

    de troca da palavra e da experincia. Por um lado, a cmara instala-se no novo quarto da Vanda,

    um quarto branco assptico, atravancado por uma cama de casal com design de super-

    mercado. Uma Vanda ajuizada e mais cheia conta a a sua nova vida, a desintoxicao, a

    criana, o marido e os seus mritos, o tratamento e as preocupaes com a sade. Por outro

    lado, segue Ventura, muitas vezes mudo, outras falando por ordens imperiosas ou sentenas

    lapidares, outras perdido na sua narrao ou na recitao da carta. Instala-o como um animal

    estranho, demasiado grande ou demasiado bravio para o cenrio, por vezes com o olhar fixo

    com um brilho de animal selvagem, mais amide com a cabea curvada para o cho ou virada

    para cima: o olhar de um ausente, de um doente. Com Ventura no se trata de recolher o

    testemunho de uma vida difcil, mesmo que seja para perceber como, com quem e sob queforma ser preciso partilh-la; trata-se de confrontar o no-partilhvel, a fractura que separou

    um indivduo de si prprio. Ventura no um trabalhador imigrante, um humilde a quem

    seria preciso restituir a dignidade e a fruio do mundo que ajudou a construir. Ele uma

    espcie de errante sublime, uma personagem de tragdia, que interrompe por si prprio a

    comunicao e a troca.

    Com a passagem das paredes leprosas, dos cenrios coloridos e das cores berrantes do

    bairro de lata s paredes brancas dos prdios novos, essas paredes que j no fazem ecoar as

    palavras, parece ter-se produzido um divrcio entre dois regimes de expresso. Mesmo se

    Vanda se presta a fazer o papel de uma das filhas de Ventura, mesmo se este se senta suamesa, conversa no seu quarto e a faz at ocasionalmente baby-sitting, a fractura de Ventura

    vem lanar a sombra deste grande corpo quebrado, deste grande corpo deslocado, sobre a

    crnica da vida reabilitada de Vanda, e tingir de vaidade a sua histria. Este divrcio ntimo

    pode dizer-se nos termos de uma velha querela, resumida h mais de dois sculos por

    Jean-Jacques Rousseau no prefcio de La Nouvelle Hlose: estas cartas familiares so reais ou

    inventadas?, perguntava o objector ao escritor. Se so reais, so retratos. Aos retratos pede-se

    apenas que sejam fiis ao modelo, mas interessam a pouca gente fora da famlia. Os quadros

    imaginrios, em contrapartida, interessam ao pblico, mas para isso necessrio que se

    assemelhem j no a um determinado indivduo, mas ao ser humano. Pedro Costa diz as

    coisas de outra maneira: da pacincia da cmara que vem filmar todos os dias mecanica-

    mente as palavras, os gestos e os passos, j no para fazer filmes, mas como um exerccio

    de aproximao ao segredo do outro deve nascer no ecr uma terceira figura, uma figura

    que j no nem o autor, nem Vanda, nem Ventura, uma personagem que e no estranha

    s nossas vidas.2 Mas este aparecimento do impessoal v-se por sua vez implicado na disjuno:

    difcil para a terceira personagem escapar escolha entre ser o retrato de Vanda, encerrado

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    POLTICA DE PEDRO COSTA - 63

    no crculo de famlia das identificaes sociais, ou o quadro de Ventura, o quadro da fractura

    e do enigma que torna fteis os retratos de famlia e as crnicas familiares. Um dos nativos

    da ilha di-lo a Mariana, a enfermeira bem-intencionada: ela no tem a cabea partida. A fractura

    divide a experincia em partilhvel e no-partilhvel. O ecr onde deve aparecer a terceira

    personagem est esticado entre estas duas experincias, esticado entre a histria das vidas,

    arriscando-se a cair na banalidade, e o confronto com a fractura, arriscando-se a cair na fuga

    infinita. O cinema no pode ser o equivalente da carta de amor ou da msica dos pobres. J

    no pode ser a arte que restitui simplesmente aos humildes a riqueza sensvel do seu mundo.

    preciso que se separe, que consinta ser apenas a superfcie onde a experincia daqueles que

    foram relegados para a margem das circulaes econmicas e das trajectrias sociais se tenta

    traduzir por meio de figuras novas. preciso que esta superfcie acolha a ciso que separa o

    retrato do quadro, a crnica da tragdia, a reciprocidade da fractura. Uma arte tem de se subs-tituir a outra. A grandeza de Pedro Costa aceitar e recusar ao mesmo tempo esta alterao,

    fazer ao mesmo tempo o cinema do possvel e o do impossvel.

    1. Pedro Costa in Pedro Costa e Rui Chafes, Fora! Out!, Fundao de Serralves, 2007, p. 119.

    2. Ibid., p. 115.

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