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Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 NA TRILHA DAS TROPAS: OS CHARQUEADORES DE PELOTAS E SUAS ESTRATÉGIAS PARA ATUAR NOS MERCADOS DO GADO VACUM (RIO GRANDE DO SUL, C. 1850 - C. 1890) ON THE TRAIL OF THE TROOPS: THE CHARQUEADORES OF PELOTAS AND THEIR STRATEGIES TO ACT IN CATTLE MARKETS (RIO GRANDE DO SUL, 1850 -1890) Jonas Moreira Vargas Universidade Federal do Rio Grande do Sul Correspondência: IFCH/UFRGS - Caixa postal 15055, CEP: 91501-970 Bairro Agronomia, Porto Alegre-RS E-mail: [email protected] Resumo O município de Pelotas foi o maior produtor de carne-seca do Império do Brasil, exportando o seu charque para o sudeste e o nordeste do país, onde o mesmo compunha parte fundamental da dieta dos escravos e das populações pobres litorâneas. O presente artigo estuda o funcionamento do comér- cio de gado bovino para o seu abate nas fábricas de charque pelotenses. Tratando-se de um merca- do repleto de percalços, busco identificar como os proprietários destes estabelecimentos agiam para garantir bons lucros nas safras e que tipo de estra- tégias os mesmos realizavam para diminuir as inseguranças presentes em todas as etapas deste circuito mercantil. Palavras-chave: Fronteira; Comércio de gado; charque. Abstract The city of Pelotas was the largest producer of dried meat in the Empire of Brazil, ex- porting its beef jerky to the southeast and northeast of the country, where it consisted fundamental part of the diet of slaves and the coastal poor. This paper studies the functioning of the cattle trade to be slaugh- tered in Pelotas beef jerky plants. Since this was a market full of mishaps, I seek to un- derstand how the owners of these estab- lishments acted to ensure good returns after each season and what kind of strategies they performed to decrease the insecurities pre- sent in all stages of the commercial circuit. Keywords: Boundary; cattle trade; jerked beef

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Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 NA TRILHA DAS TROPAS: OS CHARQUEADORES DE PELOTAS E SUAS ESTRATGIAS PARA ATUAR NOS MERCADOS DO GADO VACUM (RIO GRANDE DO SUL, C. 1850 - C. 1890) ON THE TRAIL OF THE TROOPS: THE CHARQUEADORES OF PELOTAS AND THEIR STRATEGIES TO ACT IN CATTLE MARKETS (RIO GRANDE DO SUL, 1850 -1890) Jonas Moreira Vargas Universidade Federal do Rio Grande do Sul Correspondncia: IFCH/UFRGS - Caixa postal 15055, CEP: 91501-970 Bairro Agronomia, Porto Alegre-RS E-mail: [email protected] Resumo OmunicpiodePelotasfoiomaiorprodutorde carne-seca do Imprio do Brasil, exportando o seu charquepara osudestee onordestedopas, onde omesmocompunhapartefundamentaldadieta dos escravos e das populaes pobres litorneas. O presente artigo estuda o funcionamento do comr-ciodegadobovinoparaoseuabatenasfbricas decharquepelotenses.Tratando-sedeummerca-dorepletodepercalos,buscoidentificarcomoos proprietriosdestesestabelecimentosagiampara garantirbonslucrosnassafrasequetipodeestra-tgiasosmesmosrealizavamparadiminuiras inseguranaspresentesemtodasasetapasdeste circuito mercantil. Palavras-chave:Fronteira;Comrciodegado; charque. Abstract The city of Pelotas was the largest producer ofdriedmeatintheEmpireofBrazil,ex-portingitsbeefjerkytothesoutheastand northeastofthecountry,whereitconsisted fundamentalpartofthedietofslavesand thecoastalpoor.Thispaperstudiesthe functioningofthecattletradetobeslaugh-teredinPelotasbeefjerkyplants.Sincethis wasamarketfullofmishaps,Iseektoun-derstandhowtheownersoftheseestab-lishmentsacted toensuregoodreturnsafter each season and what kind of strategies they performedtodecreasetheinsecuritiespre-sent in all stages of the commercial circuit. Keywords:Boundary;cattletrade;jerked beef JONAS MOREIRA VARGASPgina | 263 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 O charque foi um componente fundamental na dieta dos escravosde gran-de parte das plantations brasileiras e o Rio Grande do Sul, ao longo do sculo XIX, tornou-seoprincipalpoloprodutordoImprio.Nestecontexto,omunicpiode Pelotas tornou-se responsvel por mais de das carnes exportadas pela provncia. Mas para manter os altos ritmos de produo de charque, Pelotas demandava uma enorme quantidade de gado. Ao menos na segunda metade do oitocentos, algo en-tre300e400milnovilhoseramabatidosanualmentenascharqueadaspelotenses. As safras geralmente se iniciavam em novembro vindo a se estenderem at maio do outroano.Nestapoca,oscaminhosquelevavamatPelotasequecruzavam, principalmente, os municpios da regio da campanha eram trafegados por dezenas e mais dezenas de tropas de gado vacum (Mapa 1). Assim sendo, o comrcio de ga-do era fundamental no apenas para os negcios dos charqueadores como tambm paraboapartedosprodutoresruraislocalizadosemoutrosmunicpiosdoRio Grande do Sul, visto que a pecuria bovina era o carro-chefe da economia provin-cial e a venda dos novilhos para as charqueadas constitua-se na principal finalidade da atividade criatria. Mapa 1 Pelotas e as demais cidades da provncia do Rio Grande do Sul (1875) Fonte: adaptado de FELIZARDO, Julia Netto. Evoluo administrativa do Estado do Rio Grande do Sul (Criao dos municpios) - Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 264 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 Contudo, nada pode ser mais ingnuo do que pensar este mercado funcio-navanamaisplenatranquilidade.Ocomrciodetropaserarepletodepercalos. Os criadores de gado, fossem pequenos, mdios ou grandes, queriam obter o maior preopossvelpelosseusnovilhosemuitasvezesvendiam gadomagropelo preo dosgordos.Emoutrasocasiesosmesmosrecebiamdinheiroadiantadodochar-queador sem conseguir cumprir os acordos de fornecimento de gado na safra. Alm disso,oscriadorestambmsofriamcomassecas,epizootias,saqueseroubosno campo,semcontarosproblemasreferentesescassezdamodeobraeinsegu-ranadasguerrasque, geralmente,afetavam a atividadecriatrianafronteira.So-ma-seaistoofatodequeostropeiros,osintermedirioseoscorretorestambm queriamobterganhosnasnegociaesetudoistotornavaosmercadosdogado bastante inseguros desde a sua base, ou seja, na montagem das tropas nas estncias, at o seu destino final, quando as mesmas eram entreguesnas portas das charquea-das.Nestesentido,necessrioperguntar:comooscharqueadorespelotensesagi-amparatentarinterferirnestemercado,diminuirassuasinseguranaseevitaros prejuzos na safra?O presente artigo busca demonstrar as estratgias sociais e econmicas dos charqueadorespelotensesparacontornarosdistintospercalosqueafetavamos mercadosdogadonaregio,almdecompreenderosmecanismosqueestrutura-vam os mesmos. Inspirado nas contribuies da Antropologia Econmica e no seu dilogo com a Histria, parto do pressuposto de que naquela sociedade coexistiam diferentesespaoseconmicosdetrocas,cujossistemasdeestruturaointerna reuniam racionalidadesdistintas.1 Nocaso aqui estudado,tratava-sede ummerca-do que no era regulado somente pelas leis da oferta e da procura, apresentando um notvel espao aberto influncia das relaes pessoais sobre o mesmo.2 Sobre os rebanhos da provncia no meado do oitocentos Toda a charqueada necessitava de muitas tropas de novilhos para tocar seus negcios, mas nem todo o charqueador era um grande criador de gado. Com raras excees, por maior que fosse o rebanho de um charqueador, ele no era capaz de suprirnem5%donmerototalderesesabatidasemseuestabelecimentodurante uma safra. Conforme Lus Farinatti, a taxa de reproduo anual do rebanho de um estancieiro da regio da campanha devia chegar a 20%. Mas como somente os no- 1 Ver,porexemplo,KULA,Witold. Teoria econmica do sistema feudal.Lisboa:Presena,1979;GO-DELIER, Maurice. Racionalidade e irracionalidade na economia. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, s/d; POLANYI, Karl. A Grande Transformao: as origens da nossa poca. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1980. 2 Ver, por exemplo, LEVI, Giovanni. A Herana Imaterial: trajetria de um exorcista no Piemonte do scu-lo XVII. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000; LEVI, Giovanni. Economia camponesa e mer-cadodeterranoPiemontedoAntigoRegime.In:OLIVEIRA,MnicaR.de;ALMEIDA,Carla (Org.).Exercciosdemicro-histria.RiodeJaneiro:EditoradaFGV,2009;GRENDI,Edoardo.Po-lanyi:Dallantropologiaallmicroanalisistorica.Milano:EtasLibri,1978;GIL,TiagoLus.Coisasdo caminho: tropeiros e seus negcios do Viamo Sorocaba (1780-1810). Tese de Doutorado, UFRJ, 2009. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 265 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 vilhos (machos com cerca de 3 anos) eram vendidos para o abate nas charqueadas, apenas 10% do total do rebanho era negociado anualmente.3 O charqueador de Pe-lotascomomaiornmerodecabeasdegadoentreosseusbenspossuamaisde 34milresesdecriar.Portanto,elepoderiaabateranualmenteemsuacharqueada cercade3.400novilhosdeseuprpriorebanho.4 Comoumgrandecharqueador abatia algo entre 20 a 25 mil bovinos numa safra5, ele podia compor de 13% a 17% da matria-prima animal a partir do custeio de suas prprias estncias noUruguai. Mas tal situao foi nica. Tendo em vista que o segundo charqueador com o mai-orrebanhoinventariadodetinha13milreseseagrandemaioriadosmesmosou no possua animais de criar ou era dono de pequenos rebanhos, como demonstra-rei a seguir, pode-se concluir que mais de 95% do gado abatido nas charqueadas era comprado de estancieiros e tropeiros de outras regies. Portanto, no se pode falar em autoabastecimento de animais para nenhum destes empresrios. Todos os char-queadores dependiam totalmente dos mercados de gado. Aanlisedogrficotambmpossibilitaperceberqueapesardalevedimi-nuio(sempreoscilante)dosritmosdeabatenadcadade1870,somentenos anos1880queaindstriacharqueadoraviu-se numaprofundacrise.Contudo,no momentointeressacompreendermelhorasrelaesdosritmosdeabatecomo mercadodegados.DeacordocomoMapa numrico das estncias da Provncia e ani-mais que possuem,contabilizadosem1858,oRioGrandedoSultinhacercade3,5 milhes de cabeas de gado vacum distribudas em 15 municpios. No entanto, este nmeroerabemmaior,vistoquenesteslocaisalgunsdistritosnotiveramseus rebanhos recenseados e outros 11 municpios nem sequer remeteram as suas estats-ticas para a Presidncia da Provncia. Entre estes ltimos, havia importantes regies decriaodegadocomoUruguaiana,Caapava,SoGabrieleCruzAlta,por exemplo.6 Portanto, noseriaexageradoconsiderarquenos anos1850haviamais de 5 milhes de reses pastando nos campos da provncia. De acordo com as estima-tivasde AlvarinoMarques,estaera a populaobovinadoRioGrandedoSulno inciodadcadade1820.Tendoemvistaasmuitasperdasocorridasdurantea GuerradosFarrapos(1835-1845),provvelquenomeadodooitocentososndi-cestenhamrecuperadoestacifra.Em1889,estenmero havia alcanadoos7mi-lhes de cabeas de gado.7 3 FARINATTI, LuisAugusto.Confins Meridionais: famlias de elite e sociedade agrria na fronteira sul do Brasil (1825-1865).Santa Maria: Ed. UFSM, 2010. 4 InventriodeFelisbinadaSilvaAntunes.N.68,m.2,Pelotas,CartriodoCiveleCrime (APERS).Empesquisaanterior,subestimeiototaldorebanhoconsiderado,mencionandoqueo mesmo era de 25 mil reses. Aproveito o espao deste artigo para corrigir esta informao. 5 Correio Mercantil de Pelotas. Edio de 20.07.1875 (Biblioteca Pblica de Pelotas). 6 Mapa numrico das estncias existentes dos diferentes municpios da provncia, de que at agora setemconhecimentooficial,comdeclaraodosanimaisquepossuemecriam,porano,edon-mero de pessoas empregadas no seu custeio (Fundo Estatstica, mao 02, AHRS). 7 MARQUES, Alvarino da F. Episdios do Ciclo do Charque. Porto Alegre: Edigal, 1987. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 266 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 Grfico 1 Nmero de reses abatidas nas charqueadas de Pelotas (1862-1890) Fonte: PIMENTEL, Fortunato. Charqueadas e frigorficos: aspectos gerais da indstria pastoril do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria Continental, s/d. Apesardataxadereproduodosrebanhosserconsideradade20%pela maioria dos especialistas, o nmero deanimais que criam por ano realizado pelos re-censeadoresfoicalculadoem15%,oqueresultaem7,5%demachos.Portanto, numapopulaobovinade5milhesdereses,algoentre375e500milnovilhos emtodaaprovnciaestariamdisponveisparaseremnegociadosanualmente,de-pendendo da taxa de reproduo que se aceite. Mas antes que se conclua qualquer questo a respeito destes dados, outros trs importantes fatores devem ser conside-rados.Primeiramente,conformeMarques,foisomenteapartirdadcadade1870 que os rebanhos da regio norte do Rio Grande do Sul comearam a ser remetidos paraPelotas.Antesdisso,apenasosmunicpiosaosuldorioIbicu,naregioda campanha, e da regio central da provncia, estavam inseridos no espao econmi-co pecuarista que abastecia as charqueadas pelotenses.8 Portanto, grande parte des-segado,sobretudoosdoplanalto norteedaregiomissioneira, noeramremeti-dos para Pelotas, uma vez que esta rota tomou fora apenas nas dcadas de 1870 e 1880.9 Estesanimaiseramconsumidoslocalmente,mastambmpodiamsernego- 8 No Mapa 1, o rio Ibicu est localizado acima de Uruguaiana e Alegrete, estendendo-se quase at Santa Maria. 9MARQUES, Alvarino da F. Op. cit., p. 93. 050.000100.000150.000200.000250.000300.000350.000400.000450.000500.00062/6363/6464/6565/6666/6767/6868/6969/7070/7171/7272/7373/7474/7575/7676/7777/7878/7979/8080/8181/8282/8383/8484/8585/8686/8787/8888/8989/90JONAS MOREIRA VARGASPgina | 267 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 ciadoscomascharqueadasdovaledorioJacu,comasdeSaltoePaysandu(no Uruguai)ouremetidosparaSanta Catarina,ParaneSoPaulo, pormeiodoco-nhecido comrcio da tropas que conectava estas regies desde o perodo colonial.10 Emsegundolugar,Pelotasnoera anicaregiocharqueadoradosuldaprovn-cia,poisosmunicpiosdeJaguaroeRioGrandetambmrecebiamsignificativas levasdegado.Em1854e1855,porexemplo,as9charqueadasexistentesemJa-guaroabateramrespectivamente35.163e41.697reseseas7fbricasemRio Grande abateram 15.100 e 14.000, nos mesmos anos.11 Terceiro,nemtodoogadocriado noRioGrandedoSulera remetidopara ascharqueadas.No anode1874,porexemplo,a populaopelotenseteve11.538 resesdestinadasparaoseuprprioconsumo.Nadcadade1880,PelotaseRio Grandejuntasconsumiramanualmentecercade30milreses.12 Ora,oshabitantes livresde ambasascidadesperfaziamcercade 10%dapopulao provincial(reali-zandoomesmoclculoacrescidoda populaoescravaondiceeraquaseomes-mo). Se a taxa de consumo de carne bovina entre os habitantes dos demais munic-piosdaprovnciaacompanhavaosmesmosritmosdestasduaslocalidades,seria possvelconsiderarque, nadcadade1870,cercade200milresesforam abatidas anualmente para o abastecimento da populao provincial. Isto daria um consumo per capita de carne bovina em torno de 90 a 100 kg por ano (calculando-se que uma rspoderiarender180a210kgdecarnecomosso).13 Trata-sedeumaestimativa bastanteplausvelsecomparadaaosoutrospasesdoPrata.Em1861,oUruguai inteiro,cujapopulaoaproximava-sedadoRioGrandedoSul,consumiuno abastecimentodesuapopulao293milreses.14 BuenosAires,porexemplo,apre-sentouumndicedeconsumoper capitade100a120kg,namesmadcada.Com umapopulao10vezesmaiorquePelotas,a capital argentina,em1867,recebeu 468.909ovinose578.000vacunsparaalimentaodeseusmoradores.15 Portanto, 10 Ver,porexemplo,MARQUES,AlvarinodaF.Op.cit;GIL,TiagoL.Op.cit.;ZARTH,Paulo Afonso. Histria Agrria do Planalto Gacho. Iju: Editora da UNIJU, 1997; ARAJO, Thiago L. de. Escravido,fronteiraeliberdade:polticasdedomnio,trabalhoelutaemum contextoprodutivoagropecurio (viladeCruzAlta,provnciadoRioGrandedoSul,1834-1884).DissertaodeMestradoemHistria, UFRGS, 2008; FONTELLA, Leandro G. Sobre as runas dos Sete Povos: estrutura produtiva, escravido e distintosmodosdetrabalhonoEspaoOrientalMissioneiro(ViladeSoBorja,RioGrandedeSoPedro, 1828-1858). Dissertao de Mestrado em Histria, UFRGS, 2013. 11 MARQUES,AlvarinodaF.Op.cit.,p.123.Ofciode24.03.1856.AutoridadesMunicipaisde Rio Grande,mao215-A.AHRS.Atranscriodos dadosdeRio Grandeforam gentilmentecedi-dos pelo historiador Vincius Pereira de Oliveira.12 PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 100. 13 COUTY,Louis.AErvamateeoCharque.Pelotas:Seiva,2000[1882],p.119.BarraneNahum dizemqueemMontevideu,nasegundametadedo oitocentos,cadabovinopodia render161kgde carne,ossoegorduras(BARRAN,JosePedro;NAHUM,Benjamin.Historia Rural del Uruguay mo-derno (1851-1885). Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1967, p. 162). 14 BARRAN, Jose Pedro; NAHUM, Benjamin. Op. cit., 1967, p. 124. 15 Entre 1867 e 1876, Buenos Aires e os arredores receberam mais de 3 milhes de reses para alimen-tao.(BARSKY,Osvaldo;DJENDEREDJIAN,Julio.Historiadel capitalismo agrariopampeano.La expansin ganadera hasta 1895. Buenos Aires: Universidad de Belgrano/Siglo XXI, p. 347-357). JONAS MOREIRA VARGASPgina | 268 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 mesmo que o Rio Grande do Sul consumisse menos de 200 mil reses anuais para o abastecimentodascidades,taisnmerosnopodiamserdesconsideradospelos charqueadores, pois era um gado perdido na safra pelotense.16 O resultado que da estimativade375mila500milnovilhosproduzidosporanonaprovnciatalvez nem a metade era vendida para Pelotas. Portanto,comopartesignificativadosnovilhosnoeraremetidaparaas charqueadasdePelotas,osseusproprietriosprecisavamacessaroutrosmercados paramanterosaltosnveisdeabatequecaracterizaramasdcadasde1840a 1870.17 Na dcada de 1860, eles alcanaram uma mdia de quase 400 mil reses por ano.ComonotouMarques,Pelotasestavaabatendomaisgadoqueoproduzido emtodaaregiosuldoRioGrande.Portanto,comoaindstriacharqueadora pelotense se matinha? Segundoo autor, a diferena era coberta pela introduo paranodizercontrabandodegadouruguaio,emnmeroaproximadode100 mil reses por ano.18 No existem dados precisos sobre este comrcio (e muito me-nos sobre o contrabando) para testar a considerao de Marques, mas, em 1864,o PresidentedaProvnciadeclarouqueoRioGrandedoSulabsorveumaisde130 milresesdopasvizinho.19 Portanto,tendoemvistaestesnmeros,ficaevidente que o gado uruguaio foi indispensvel na manuteno dos altos ndices de abate das charqueadas pelotenses (Grfico 1). Sem as tropas vindas de Cerro Largo e Tacua-remb,departamentosquereuniamumagrandepresenadegrandescriadores (sendo muitos deles brasileiros), provvel que a economia charqueadora tivesse se estagnado. Nestesentido,adependnciadascharqueadasdePelotasparacomogado criadonoUruguaieraumfatorestruturalnaeconomiaregional,dependendoda entrada de tropas que somavam mais de 100 mil reses por safra.20 O leitor pode no ter muita dimenso do que significava este grande contingente de bovinos negocia-dosanualmentenascharqueadas.Apenasparaumacomparao,em1854,apro-vncia de So Paulo inteira possua 532 fazendas de criao com 35 mil cabeas de 16 EmBuenosAires,porexemplo, osprimeirossaladeiristasenfrentarammuitosproblemascom as autoridades administrativas e a populao portenha, pois desviavam grande parte do gado destinado alimentao dos habitantes, provocando a carestia no abastecimento (GIBERTI, Horacio. Historia Econmica de la ganadera argentina.BuenosAires:Solar,1981).BuenosAires,nosanos1820,abatia quase75milresesanualmenteparaabastecersomenteoseuespaourbano.Oconsumodecarne vacumpercapitanacidade,nofimdosculoXVIII,erade193kgporano(GARAVAGLIA,Juan Carlos.Delacarnealcuero:losmercadosparalosproductospecuarios(BuenosAiresysucampaa,1700-1825). Anuario del IEHS. Tandil, n. 9, 1994, p. 61-95). 17 VARGAS, Jonas Moreira. Pelas margens do Atlntico: um estudo sobre elites locais e regionais no Brasil a partir das famlias proprietrias de charqueadas em Pelotas, Rio Grande do Sul (sculo XIX). Tese de Dou-torado em Histria. Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2013. 18 MARQUES, Alvarino de F. Op. cit., p. 92. 19 RelatrioPresidentedaProvnciadoRioGrandedoSul,EspiridioEloydeBarros,de1864,p. 60. 20 BarraneNahum afirmamque,durante adcadade1860,oBrasilrecebia250mil resespor ano, masnopossvelsaberseestesanimaisforam todosremetidosparaoRio Grande doSul(BAR-RAN, Jose Pedro; NAHUM, Benjamin. Op. cit., 1967, p. 124. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 269 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 gado.21 NoParan, porsuavez,haviaquase65 milreses,em1825.22 Istodemons-tra que os saques, contrabandos e arreadas, cada vez mais comuns na fronteira, no envolviam interesses econmicos de pouca monta. As dezenas de milhares de bovi-nosroubadosecontrabandeadostraziamvultososprejuzosaosproprietrios,aju-dandoacompreenderagravidadedosconflitosquesesucederamnafronteirae porqueosestancieirosincomodaramtantooImprionoperodo.Algunsdeles, comoJosLusMartins,declararamtersofridoumsaquede40milresesdeseus campos, ou seja, perderam rebanhos equivalentes aos totais de uma provncia brasi-leira.23

Noentanto,istonodesencorajouoscharqueadoresainvestiremenormes montantes de capital em estncias de criao na regio da campanha e/ou no Uru-guai. Em 1863, por exemplo, o coronel Toms Jos de Campos, charqueador pelo-tense, comprou de Jos Rodrigues Candiota 13 e sortes de campo em Cerro Lar-go(noEstadoOriental)pagandoovalorde54:000$deris.Amaiorcomprade uma estncia no Uruguai foi feita por Antnio Jos de Oliveira Leito, que foi s-cio dos irmos Barcellos em uma charqueada entre os anos 1850 e 1860. Em 1859, LeitocomprouumcampoemTacuarembepagouovalorde135:000$deris pela propriedade rural. Contudo, os maiores valores investidos em estncias se de-ram em propriedades do lado brasileiro da fronteira. Em 1868, por exemplo, Possi-dnio Mncio Cunha comprou a Estncia Paraso, localizada em Jaguaro, pagan-do 190:134$160 a Jacintho Antnio Lopes. E em 1866, Jos Antnio Moreira, um dos charqueadores mais ricos de seu tempo, realizou o maior investimento em ter-rasfeitoporumcharqueador,comprandoaEstnciadoPoncheVerde,emBag, pelo valor de 256:000$ de ris.24

Contudo, se a quantidade de gado contida nas estncias de um charqueador no cobria nem 5% do necessrio para os trabalhos de uma safra, porque estes em-presrios investiam grandes montantes de capital em uma estncia na fronteira su-jeita a todo tipo de saques e ataques? Porque optavam em tornarem-se grandes cri-adores de gado, vindo a arcar com gastos com pees, capatazes e escravos em seus camposseoretornoemtermosdenovilhosporsafraeranfimo?Oestudodos mercadosdegadoeseusmecanismosinternosajudaaentenderaracionalidade deste empreendimento. 21 LUNA, Francisco; KLEIN, Herbert. Escravido africana na produo de alimentos. So Paulo no sculo XIX, Estudos Econmicos, v. 40, n. 2, 2010, p. 315. 22 GUTIERREZ,Horcio.FazendasdegadonoParanescravista,RevistaTopi,2004,p.110. Comparando tais nmeros com os do Rio Grande do Sul, Gutierrez considerou que a produo e o nmerodefazendasparanaensestornava-seumaninharia(GUTIERREZ,Horcio.Op.cit.,p. 110). 23 VARGAS, Jonas M. p. cit., 2013, p. 287. 24 Livros de notas do 1, 2 e 3 Tabelionato de Pelotas (1832-1890) APERS. Para maiores detalhes ver VARGAS, Jonas M. Op. cit., 2013.JONAS MOREIRA VARGASPgina | 270 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 Pelasmalhasdoparentesco:o mercadodogadoparaascharqueadasde Pelotas Pode-se imaginar que a comercializao de animais vacuns durante a poca dassafrasdascharqueadaspelotensestornavaaregiodacampanhasul-rio-grandenseumespaodeintensotrfegodetropasdegado.Comojfoidito,os novilhosabatidosnascharqueadasprovinhamnoapenasdasestnciasrio-grandenses, como tambm das uruguaias, e podiam possuir trs distintas origens: as tropas de desconhecidos que chegavam at Pelotas por intermdio de agentes e ne-gociantesqueasvendiam aoscharqueadores; astropasdecriadoresmaisconheci-dos que j possuam negcios pr-acordados com os charqueadores (que lhes adian-tava dinheiro) e as tropas levadas at o mercado/feira de gados de Pelotas (a tabla-da),ondeeramcompradas pelosprprioscharqueadoressema presenadetantos intermedirios.Umavezqueatabladapareceterseconstitudoemimportanteespaode compraevendadegadossomentenosanos1870,analisareielasomentenofinal desteartigo.Antesdaquelapoca,oscharqueadorescomumenteadiantavamdi-nheiroaosseusagentesquepartiamparaointeriordaprovnciaoucruzavama fronteiraparacomprartropasdegadodosgrandesestancieiros,trazendoasmes-mas para as charqueadas durante a poca das safras. Mas o contrrio tambm ocor-ria. Grandes estancieiros podiam ter parentes e agentes envolvidos com a formao detropaspararemete-lasPelotas,tornandoestemercadorepletodeintermedi-rios.Umprocessojudicial,datadodedezembrode1874,trazricosdetalhessobre estastransaes.Nestaocasio,oscharqueadoresGonalves&Lcio,porinter-mdiodeumagente,FranciscoS.daR.Formiga,compraram umatropadenovi-lhos do capito Pedro Lus Osrio, estancieiro em Bag. Tendo fechado o negcio, ocapitoordenouqueseucapataz,JosRodriguesdeAlmeida,acompanhasseo agenteatasuainvernadanoCandiotinhaafimdeentregarqueleFormigaas reses gordas da propriedade do autor e que ele apartasse e quisesse comprar, a pre-odetrintaedoismil riscadanovilho.Formigaescolheu115reseseocapataz levou-os at Pelotas. Segundo o estancieiro, no querendo sofrer o risco de perda dodinheiroconduzidopelocapataz,disseaoscharqueadoresqueaceitavauma ordem contra estes por toda a importncia da compra do gado para ser paga na ci-dadedePelotasequenestesentidoescreveuparticularmenteaosmesmos.Rece-bendoaordem,oscharqueadoresnegaram-seapagar,atitudequefezocapito Osrio entrar na Justia contra ambos.25 Mas a histria era muito mais complexa. A partir da leitura das muitas car-tasanexadasaoprocessoverifica-sequeFormiganoeramandatriodoschar-queadores. Como tropeiro, ele comprava gados para revender nas charqueadas ofe- 25 Ao ordinria de PedroOsriocontraGonalves &Lcio.N.1177,m.42,1 cartrio docvel, Pelotas, 1875 (APERS). JONAS MOREIRA VARGASPgina | 271 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 recendo-os a mais de um charqueador. Tendo fechado um negcio com alguns cri-adores, ele escreveu para Gonalves & Lcio oferecendo as tropas. Os charqueado-resnoquiseram.Formigavoltouainsistir,dizendoquenoqueriapassarpor conversadorperanteosfazendeiros, poisjtinhaos gadostratadosecontavacon-duzi-los para as charqueadas. Gonalves & Lcio aceitaram, mas exigiram que as tropasdeveriamserdegadobem gordo,por preo nuncamaisde32$000cada um novilho e que se viessem em tais condies lhe pagariam a comisso que de praxe.Oscharqueadorescomplementaram:comotambmdepraxefornecer adiantamentodequantiasporcontadastropas,masreceandoremet-laspela diligncia, autorizaram a Formiga a sacar contra eles () por intermdio de Mano-elSoaresdaSilvadeBag,aoqualtambmpediuqueauxiliasseFormiganossa-ques,afimdequeatropasassemaior,equeessessaquesseriamreligiosamente pagos. Mas o tropeiro no teria cumprido o trato, trazendo novilhos magros para acharqueada.Formigaaindapediuaoscharqueadoresquecobrissemasdespesas do seu capataz e dos seus pees (que ele chamava de minha gente) e numa carta escrita por ele aos mesmos charqueadores disse que se a sua comisso no fosse de 4$000 por cabea de gado, ele poderia levar a tropa para outro charqueador.26 OcasoocorridonesteprocessoconvergecomoqueAlvarinoMarqueses-creveu a respeito das tropas de gado remetidas para Pelotas. Conforme o autor, no topo da hierarquia deste comrcio estava o tropeiro-patro, que era o dono da tropa eassumia,porsuaprpriacontaerisco,todasasfasesdonegcio.Tambmcha-madodetropeirocomprador,eledeviaterprofundosconhecimentosdetodasas tarefasdeumtropeirodesdeasdopeoatasdocapataz.Ningumchegavaa tropeiro-patrosemantesteraprendidoaslidesdaestncia.Depoisdestevinhao capatazdastropas,responsvel porcontratarospees,quedeviamserhomensde sua confiana, e conduzir as tropas de forma hbil e segura at as charqueadas: le-varumatropadegadoxucro,atravsdecamposabertos,cruzandopelomeiode gado estranho, varando picadas e arroios cheios, durante um ms inteiro, chegando ao destino sem perdas e extravios de animais, com o estado da tropa em condies denofazerfeiofrente asoutraseraresponsabilidadedocapataz.Por ltimo,os peeseramosqueexecutavamasordensdocapatazauxiliandoaconduodas tropas. Eles recebiam, em mdia, 150$000 por viagem (embora no se saiba a poca exatadorelatodo autor,paraseestimarosignificadodestesganhoseconmicos). Conforme Marques, era possvel realizar at trs viagens durante uma safra.27 No foi raro localizar contendas judiciais semelhantes a mencionada anteri-ormente.Emjaneirode1854,porexemplo,ocharqueadorJooVinhascobroua senhoraAdrianadeCarvalhoovalorde1:634$463referenteaodinheiroquelhe 26 Ao ordinria de PedroOsriocontraGonalves &Lcio.N.1177,m.42,1 cartrio docvel, Pelotas, 1875 (APERS). 27 MARQUES, Alvarina da F. Op. cit., p. 199-202. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 272 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 entregou para ser pago em gados.28 Em junho de 1857, o mesmo Vinhas, juntamen-te com o charqueador Jos Antnio Moreira, acionou a Justia para cobrar o valor de 16:000$ referente aos adiantamentos que deram a Joaquim Manoel Teixeira pa-raquelhescomprassemtropasdegadonoUruguai,oqueorunofez.29 Char-queadores e comerciantes seguidamente associavam-se para comprar tropas ou aba-ter reses em estabelecimentos de terceiros. Estas parcerias no eram registradas em cartrio e apenas so possveis de se perceber nas entrelinhas de processos judiciais e recibos anexos em inventrios. Tais parcerias e sociedades tinham prazos curtos, sendo dissolvidas em uma ou duas safras, podendo ser restabelecidas em outras. O motivodasmesmaserareunirocapitalnecessrionumempreendimentomomen-tneo,almdediminuirosprejuzosnumnegciomalsucedidocomtropeirose estancieiros.provvelquemuitasdasdvidasativasencontradaseminventrios post-mortemdecharqueadorestambmfossefrutodenegciosenvolvendogado com agentes e criadores, mas no possvel saber com preciso, visto que a origem das dvidas dificilmente eram discriminadas. O que se pode perceber na leitura destes e de outros processos judiciais que osnegciosenvolvendocompraevendadetropaseramcheiosderiscos,comoos prprios charqueadores Gonalves & Lcio afirmaram. Primeiramente, porque em ltima instncia, estes empresrios dependiam da boa f dos negociantes e da com-petnciadosagentes.Portanto,estesdeveriamserhomensdesuaconfianaede boa reputao na praa. Segundo, a qualidade do gado trazido nem sempre era ga-rantidaesvezesnoeraporculpadoagente,pois,emboraalgicademercado sugerisse que os melhores rebanhos ficassem com quem pagasse os maiores preos, na prtica, os criadores que recebiam adiantamentos tinham compromissos com os charqueadores credores ou seus agentes e, como demonstrarei a seguir, outros vn-culos de dependncia acabavam afetando as transaes. E terceiro, os negociantes e criadores podiam trocar de parceiros comerciais ano a ano, tornando o processo de abastecimento de gado ainda mais instvel. Numa ao judicial estudado por Fari-nattifoipossvelverificarqueoestancieiroManoel JosdeCarvalhoremetiaseus gados tanto para Montevidu, quanto para Pelotas e Triunfo, ou seja, ele diversifi-cavaassuastransaesedeviadirecion-lasaosabordosvalorespagosemcada praaoudasvantagens garantidasporcadacharqueador.NocasodeCarvalho,o charqueador pelotense Manoel Batista Teixeira lhe adiantava quantias em dinheiro, condicionando o criador de gado a comprometer-se com ele na safra seguinte.30 Asoluoparacontornarestesproblemasseriadiminuirosriscosetornar todo o processo o mais seguro possvel. Uma safra que se iniciasse com problemas no abastecimento de gado dificilmente gerava bons lucros. Na cabea dos charque- 28 Ao Ordinria de Joo Vinhas contra Adriana de Carvalho, n. 1011, m. 36, 1 cartrio do cvel, Pelotas, 1854 (APERS). 29 Ao Ordinria de Joo Vinhas e Jos A. Moreira contra Joaquim M. Teixeira, n. 1028, m. 36A, 1 cartrio do cvel, Pelotas, 1857 (APERS). 30 FARINATTI, Lus Augusto. Op. cit. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 273 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 adores amelhorformaderesolveresteproblemaeraeles prpriosdefazerempre-sentes em cada etapa da transao mercantil Contudo, isto era impossvel. Durante a safra, o charqueador permanecia muito tempo ocupado no trabalho da charquea-da, no fretamento de seus iates e na cidade fechando negcios, para realizar longas viagens at a regio da campanha com o fim de escolher os melhores animais. Da queasoluoencontradamaisprticaeracolocarosseusprpriosparentespara tomaremcontadestesnegcios.Nestesentido,muitocomumencontrarirmos, sogros, filhos ou genros de charqueadores estabelecidos com estncias na fronteira, svezesadministrandoasprpriasterrasdocharqueador,svezescomseuspr-prios estabelecimentos pecurios.31 Em dezembro de 1845, o capito Joo Jacintho de Mendona, charqueador em Pelotas, escreveu uma longa carta ao compadre que administrava a sua estncia no Uruguai. necessrio ler os seus principais trechos, pois eles sintetizam todo o processo mencionado: O portador desta o capataz de campo da charqueada Don Meceno, que segue aessacomJooBenguelaeJooparasercapatazdatropaqueVossaMerc dever fazer na Estncia apartando tourada velha, novilhos e vacas para que se-ja de mil reses para cima. Eu quero de pronto aliviar o campo, e no possvel que tive s gado meu deixando o alheio, por isso deveria Vossa Merc entender-se com os vizinhos para que venha todo o gado que houver deles a quem paga-reie apartetodas asmarcasquehouveremnosrodeiosconhecidosedesconhe-cidos fazendo uma relao de todas de que deve deixar nota no Livro da Estn-ciaparaeu depoisjustarcontas comos donos,edosvizinhosquenotiverem encontro[dar]odinheiropelaspessoas aquemelesencarregarem().Vossa Mercjustarpelopreoqueosmais compramequandoamesmoqueiram o dinheiro, aqui o mandar buscar, e se o quiserem no Rio Grande ou em Pelotas, tambmlomandareidar().Mande-meacontadogadoqueahouverde Agapitoparaeupoderlhepagarodinheirodogadoqueveionestatropalho mandeiporJosAntnioaAgapitoeoutrosdequemelefoiProcurador,e at deJoaquimdasPedrasquetemdemediroarrendamentodocampo(grifo meus) Mantendoocompadreeoutrosparentesnocoraodasgrandesestncias da fronteira, o capito Mendona substitua a insegura cadeia de intermedirios por uma pessoa mais prxima e de sua inteira confiana, encarregando-o de tratar com osvizinhosemseunome,podendosacarcontraelenaspraasdePelotaseRio Grande.Portanto,odinheiroeasredesderelaessociaisqueseconstituama partir da permanncia de seus parentes naquela propriedade eram o seu diferencial peranteoutroscharqueadoresquenorealizavamomesmoinvestimento.Pouco adiantava ao charqueador ter o capital para investir nas tropas se no possusse bo-asrelaessociaiscomgrandesestancieiros.Narealidade,senotivesseosegun-do,talveznoadquirissetantariqueza.Ocompadre,administrandosuasgentese 31 Tal fenmeno tambm ocorreu em outros espaos geo-econmicos do Brasil, como, por exemplo, a presena de lavradores de cana ao redor dos engenhos de propriedades de seus parentes.Ver, por exemplo,FRAGOSO,Joo.EfigniaAngola,FranciscaMunizforraparda,seusparceirosesenhores:fre-guesias rurais do Rio de Janeiro, sculo XVIII. Uma contribuio metodolgica para a histria colonial. Topi, v. 11, n. 21, 2010, p. 74-106. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 274 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 escravosmencionadosnacarta,eraoencarregadonoapenasdecomprarosme-lhoresrebanhosentreosvizinhos,masdeconseguir amodeobranecessriadu-rante a safra inteira: AgentequelevaoMecenoeaqueahouverpodememquatrooucincodias domarporodepotros aindaqueinteirosparaosrodeiosefazerdepoisoser-viodamarcaoque deve continuarlogoquesaiaatropacoma gentedaEs-tncia e a mais que Vossa Merc juntar e for precisa, assim como os posteiros e todososvizinhosquequeiramvenderseusnovilhosevacasdeseuscampos. (grifos meus) Rigoroso em suas contas, o charqueador alertava o compadre para que tives-se o mesmo cuidado:O seu gado, do Mendona, e finado Jos Thomas devero da sair registrados e contadosassimcomotodoomaisgadoquevier.JosAntniodizquetinha contado a tropa no dia da chegada que era de setecentos e oitenta e quatro, des-tasfaltamtrsresesnoseiseeleseenganououseelasfugiramdopastoreio. No deixe Vossa Merc de contar a a tropa que o mesmo farei eu aqui. () So-bremarcao,VossaMerc faroquelheparecerjusto assim comoademeus filhos, pois se eu me pretendesse regular pelas marcaes que faria de cinco mil e trezentas reses, mais de trinta mil reses deveria eu ter na Estncia. Interessante observar que em seus campos pastavam no apenas os animais do charqueador, como os do seu compadre, dos seus filhos e outros parentes, inclu-indo at o de seu finado sogro, capito Jos Tomaz, que tambm era charqueador.32 Numltimotrechodamissiva,ocapitoMendonadizquej estava preparando outro capataz para seguir para a estncia nos prximos dias, evidenciando um pro-cesso que devia se repetir vrias vezes ao longo de cada safra: Euporestes dez diaspretendomandaroutrocapatazpara fazeroutra tropana Estncia e nos vizinhos e muito lhe recomendo a brevidade desta tropa que vai conduziroMecenoparaaprontarocarregamentoparaoiatedoViraloloque embreveesperocom aFlorindaetalvez suas filhasa acompanhemterVossa Merc o prazer de as ver aqui() Junto tem carta de suas filhas que esto boas () De seu compadre e amigo Joo Jacintho de Mendona.33 A leitura da carta indica que as filhas do administrador estavam na charque-ada com a dona Florinda, esposa do charqueador. Provavelmente, ela era madrinha das meninas. O entrelaamento das relaes familiares com as econmicas era evi-dente.Ocompadrecriavaseusanimaisnos prprioscamposdocharqueador,ofe-recendoemtrocaseustrabalhosesua lealdade.Apartirdostrechosdescritosfica 32 Sobre esta utilizao familiar das pastagens na regio da campanha ver FARINATTI, Lus A. Op. cit.33 Carta de Joo Jacintho de Mendona a Joo Teodoro Ferreira de Souza. Livro de Registros Ordi-nrios n. 4, Tabelionato de Pelotas (APERS). JONAS MOREIRA VARGASPgina | 275 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 ntidoqueMendonaconseguiamontarmuitastropasdegadogordonoapenas pelo capital que possua, mas tambm porque estava muito bem representado e es-tabelecidonoUruguai.Suaestnciaserviacomobaseparaarregimentartrabalha-dores, estabelecer alianas e conceder favores para a populao local. Tratava-se de umusopolticodaterra,paraalmdousoeconmico.Masocharqueadorsabia que devia pagar um preo baixo, mas justo, pelo gado dos seus vizinhos, tanto que recomendouaocompadrequeverificasseoquantoestavase pagandona localida-de. E com relao a isto, ele foi sincero com o seu prprio compadre: No sou de parecerqueVossaMercvendaoseugadosemdesfrut-lobem,porquetudotem seupreo,masse houverdeinsistirdeovenderaoutroeuficareicomele porque noquerobarulhonocampo.Seoprpriocompadrevendesseoseugadopara outrocharqueador,oqueosvizinhospensariam?Poderiamtom-locomoexem-plo. Por depender dos servios do compadre, o charqueador cobriria qualquer ofer-ta ao gado do mesmo. Mas somente a ele, pois o charqueador precisava da sua con-fiana,numarelaopessoalreiteradaanoaano.Eestaeraaformacomoeste mercado se comportava em sua base, ou seja, na formao das tropas. Relaes de dependncia e alianas sociais cotidianas confundiam-se com relaes de mercado, num espao de trocas bastante pessoalizado. Aleituradoinventriopost-mortemdocapitoJooJacinthodeMendona tambmajudaaelucidarestasrelaesfamiliares.Proprietriodeduascharquea-das e pai de 11 filhos, sendo 7 mulheres, Joo possua pelo menos 2 genros que in-vestiramnosnegcioscomcharqueadas:ManoelFranciscoMoreiraeHeleodoro de Azevedo e Souza Filho. A anlise de suas dvidas ativas e passivas demonstram significativastransaeseconmicasnointeriordaparentela.Aoarrendarachar-queada do falecido sogro, o genro Manuel, por exemplo, desembolsou a metade do valorpagoporigualarrendamentorealizadoporoutroindivduosemligaes comafamlia,revelandoumntidofavorecimentoaogenro.Almdisso,ofilho Francisco era proprietrio da invernada dos Molhes, onde parte do gado do pai se encontravanaengorda.Ousoconjuntodeescravosalugadoseoemprstimode dinheiro de uns aos outros tambm pareceu ser corrente. O genro Dr. Ovdio Trigo Loureiroconservavaconsigo asnotasdeuma dvidadeumcomercianteuruguaio para com o seu sogro.34

Outroexemplodecomoasrelaesdeparentescoestruturavamaatuao dos charqueadores nos mercados do gado na fronteira pode ser dado pela carta que oComendadorHeleodorodeAzevedoeSouza,doCerroLargo,noUruguai,re-meteuaocharqueadorBoaventuraRodriguesBarcellos,em1855.Namesma,ele relata os negcios que fez nos ltimos meses, comprando-lhe gado no Uruguai e em 34 InventriodeJooJacinthodeMendona.Processon.41,maon.1,Ano1862,2Cartriodo Cvelde Pelotas(APERS).Esteentrelaamentoentreparentescoenegcios, comum ssociedades agrriasepr-industriais,possuarazessocioculturaisantigasentreaselitesdaregio.Ver,por exemplo, HAMEISTER, Martha D. Para dar calor nova povoao: Estudo sobre estratgias soci-ais e familiares a partir dos registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutora-do. PPGHIS/UFRJ, 2006.; GIL, Tiago L. Op. cit. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 276 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 Bag,deonderemeteutropas paraocharqueador.Encerrando acarta,Heleodoro escreve: Recomendo-me saudoso comadre Silvana, meu afilhado e sobrinhos e a Vossa Merc em particular por quem jamais deixarei de firmar-me por seu compa-dre amigo.35 Quandoseobservaoprocessodeabastecimentodegadoemoutrasempre-sascharqueadoras,casossemelhantesseevidenciam.OviscondedaGraa,por exemplo,tinhanoseufilhoCatoLopes,estancieiroemUruguaiana,umimpor-tante ajudante e fornecedor de gado. Cato era incumbido pelo pai de comprar tro-pasdegadoeremet-lasparaacharqueada.Atarefaeraeivadadedificuldades, motivo pelo qual se tornara privilgio de grandes conhecedores. Erros de clculos podiamcausaravultadosprejuzos,pois,comonoseusavabalana,opreodo boi,tendoporbaseopesopresumvel,eracalculado aolho.36 Afamliadochar-queador Jos Rodrigues Barcellos tambm apresentou transaes comerciais como estas. Carla Menegat demonstrou que esta famlia possua parentes estancieiros no Uruguai, de onde enviavam gado para as suas charqueadas mantendo a produo e ocomrciodemaneiraconjunta.37 Poupooleitordeoutrosexemplos,maschar-queadores como Felisberto Incio da Cunha, Anibal Antunes Maciel, Jos Antnio Moreira,AntnioJosdaSilvaMaiaeJacintoAntnioLopes,entreoutros,tam-bm apresentavam este mesmo modelo de atuao no mercado de gado. Eram pro-prietrios de fazendas na fronteira onde estabeleciam-se como grandes compradores de tropas por intermdio de filhos, irmo, compadres ou genros. Se os charqueadores buscavam colocar seus parentes e agentes de confiana em setores estratgicos da economia pecurio-charqueadora, as famlias de grandes criadores da campanha pareciam fazer o mesmo. Estudando os Assis Brasil, de So Gabriel,TassianaSaccolpercebeuqueentreosirmosfazendeiros,Antniomon-tava tropas para vender nas charqueadas de Pelotas.38 Em Alegrete, um dos irmos RibeirodeAlmeidatambmpareciaestabelecernegciosnestemesmosentido.O majorAntnioMncioRibeirochegouamigrarparaPelotasondeestabeleceu-se como comerciante e fazendeiro e veio a casar dois filhos com os herdeiros do char-queadorJoaquimGuilhermedaCosta.39 ConformeFarinatti,osricosestancieiros 35 Carte de HeleodorodeA.SouzaparaBoaventuraR.Barcello.Fazenda doPalheiro,06.01.1855. Registros Diversos de Pelotas, Livro n. 5, Pelotas (APERS). 36 REVERBEL,Carlos.Um Capito da Guarda Nacional.Caxias/Poa: UCS/Martins Livreiro,1981, p. 19. 37 MENEGAT, Carla. O tramado, a pena e as tropas: famlia, poltica e negcios do casal Domingos Jos de AlmeidaeBernardinaRodriguesBarcellos(RioGrandedeSoPedro,SculoXIX).PortoAlegre:PPG-Histria UFRGS, Dissertao de Mestrado, 2009. 38 SACCOL, Tassiana P. Um propagandista da Repblica: Poltica, letras e famlia na trajetria de Joaquim Francisco de Assis Brasil (dcada de 1880). Dissertao de Mestrado em Histria, PUCRS, 2013, p. 63. 39 VARGAS,JonasMoreira.Entre aparquiaeaCorte:os mediadoreseasestratgiasfamiliaresdaelite poltica do Rio Grande do Sul (1850-1889). Santa Maria: Ed. da UFSM/Anpuh-RS, 2010. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 277 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 da fronteira tambm atuavam no comrio de tropas e no prestamismo e realizavam tais empreendimentos em parceria com outros membros da famlia.40 Portanto,possvelperceberquealgunsgrandesestancieirosarrematavam os novilhos dos pequenos produtores, formavam uma tropa e vendiam ao agente do charqueador ou para um determinado tropeiro, vindo a lucrar como criador e como negociante,vistoquedeveriamcolocarumataxasobreovalordos gadoscompra-dos de terceiros. Neste sentido, este mercado acabava se concentrando nas mos de poucosgruposdeagentes,atravessadores,criadoresenegociantes,poismontar uma tropa e envi-la para Pelotas exigia custos que somente poucos podiam finan-ciar. Conforme Marques, o deslocamento para as charqueadas envolvia um grande nmerodetrabalhadoresemobilizavaumasriederecursosnecessriosparaa longa viagem, pois cada tropa trazia de 10 a 12 homens, para a sua conduo e cui-dado,ecadahomemtrazia,parasuamontariaereserva,de5a8cavalos.Alm disso,oestancieirotinhaquegarantircomidaehospedagemaosmesmos.41 pos-svel que os charqueadores tambm pagassem parte destes custos, conforme os tra-tos estabelecidos com tropeiros e estancieiros.Neste processo de formao das tropas, alm dos agregados e pequenos cri-adores,atmesmoosescravoscampeirospodiamcolocarsuaspoucasresesno mercado.Pesquisando aescravido napecuriadacampanhario-grandense,Mar-celoMatheuslocalizouumrecibodevendadeumatropadegadosnoinventrio post-mortem de um estancieiro.42 O documento lista 10 criadores que colocaram seus animaisparaformaratropa.EntreosmesmosestavamosescravosDomingose ManoelMulato,com8e5animaisrespectivamente,aafilhadadosenhor,que colocou 3 novilhos, e outros parentes, pois tinham o seu mesmo sobrenome. Cada um deles possua a sua prpria marca de gado registrada no documento.43 Alm de comporem a maior parte dos proprietrios da regio da campanha44, a participao de agregados, mdios e pequenos criadores era fundamental na formao das tropas de gado. Pesquisando o mesmo mercado de gado em Buenos Aires durante o colo-nialtardio,JuanC.Garavaglianotouqueamaiorpartedosrebanhosquechega-vam nos 3 grandes currais da capital pertenciam aos menores criadores que vendi- 40 FARINATTI, Lus A. Op. cit., p. 59-68. 41 MARQUES, Alvarino da F. Op. cit., p. 197-202. 42 OcompradordastropaseraocapitoAntniodeCastroAntiqueira,filhodocharqueadorDo-mingosdeCastroAntiqueira,oviscondedeJaguari.Estehaviafalecidoem1852,quandojno fabricavamaischarque,arrendandoasuafbrica. provvelqueAntnio tenhaajudado opaina aquisiode tropasecontinuavanesteramo denegciosnutrindo-sedaredemercantilecreditcia legada pelo Visconde. 43 MATHEUS, Marcelo S. Fronteiras da liberdade: escravido, hierarquia social e alforria no extremo sul do ImpriodoBrasil.SoLeopoldo:Oikos;Ed.Unisinos,2012,p.200.Apossibilidadedeescravos campeiros criarem seus pequenos rebanhos e juntar seu peclio com a venda dos mesmos j foi ates-tado por outros autores.44 Ver, por exemplo, GARCIA, Graciela. O Domnio da Terra: conflitos e estrutura agrria na Campanha Rio-grandense Oitocentista. Dissertao de Mestrado em Histria, UFRGS, 2005; FARINATTI, Lus. Op. cit. Op. cit. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 278 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 am suas tropas aosintroductores, estes sim, os que remetiam-nas para os curraleros.45 Tantocharqueadorescomosaladeiristasdependiamdetodoequalquergado(de boaqualidade,obviamente),fossedegrandesinvernadores,fossedecriadorespo-bres. Conforme Montoya, entre os credores arrolados no inventriopost-mortem do saladeiristaFranciscodeMedina,estavaelpueblodendiosdeYapeyqueco-bravam 10.074 pesos referentes a 12.895 cabeas de gado que venderam ao empre-srio.46 Portanto,nummercadobastanteinseguro,repletodeoportunistasecriado-res arruinados, os charqueadores precisavam diminuir os riscos para manter os seus lucrosnofinaldasafra.Aquelesmaisbemestabelecidosnaregiodacampanha, combonsscioseagentesqualificadospossuammelhorescondiesdecomprar tropas de gado gordo para suas fbricas do que os demais. Os menos preparados ou com menores recursos acabavam ficando com novilhos magros, tendo que os abater na falta de outros. Tratava-se de um processo interessante onde o capital econmi-coeraconvertidoemcapitalrelacional,vistoqueobomgerenciamentodeuma grande estncia favorecia a ampliao da clientela na fronteira, para ser reconverti-do em lucros, uma vez que as relaes econmicas mantidas com a mesma cliente-la, seus vizinhos e demais dependentes, diminuam os riscos no processo de abaste-cimento de gado e aumentavam as chances de compra das melhores tropas da regi-o da campanha. Neste sentido, fica evidente que o charqueador no utilizava a sua estncianoautoabastecimentodegado,pois,rarssimasvezes,osseusnovilhos compunham mais de 5% do que ele abatia numa safra, como j mencionei. Mesmo contandocomascriasdeparenteseagregadosqueseutilizavamdesuasterras,a maiorpartedogadoqueeleabatianacharqueadaeradeoutroscriadores,muitos deles seus vizinhos ou proprietrios nos mesmos distritos onde suas terras estavam distribudas.Nocasoaquiestudado,aestnciapareciafuncionarcomoumabase estratgica do charqueador e de seus agentes fornecedores de gado.Mas a estncia representava mais do que isso. Ser estancieiro no Rio Grande do Sul, possuir campos que fugiam de vista, muitos escravos a cavalo e animais em milhares, era sinal de prestgio social, visto a insero dos grandes proprietrios em outrosespaosdepoderenotabilidade.Almdisso,osgrandesestancieirosgeral-menteeram grandessenhoresdeescravos(paraospadresda regio)e,porconta do seu poder nas localidades, eles simplesmente influam de forma determinante no processoeleitoraldeseusdistritosrurais.NoRioGrandedoSul,opoderpoltico local,a grandepropriedadeeaautoridademilitartendiam aandarjuntas.Masse nem todo o grande estancieiro era um militar, praticamente todos possuam paren-tes militares ou oficiais da Guarda Nacional. Isto lhes conferia outro grande poder: o de influir no recrutamento e na vida das pessoas pobres, controlar o contrabando 45 GARAVAGLIA, Juan Carlos. Op. cit., p. 81-85. 46 MONTOYA, Alfredo. Historia de los saladeros argentinos. Buenos Aires: Ed. Raigal, 1956, p. 26-27. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 279 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 eapassagemdegadonafronteira.47 Aquelesmaisbemposicionadosconheciam muitas pessoas, batizavam filhos de oficiais, arrumavam cavalos e soldados para as guerrasedistribuamfavoresdiversos.Portanto,serproprietriodeumagrande estncia potencializava os mesmos a concentrarem os mencionados recursos mate-riais e imateriais nas mos de sua famlia.48

Neste sentido, possvel verificar um outro fator de diferenciao social, po-lticaeeconmicaentreosprprioscharqueadores.Nemtodostinhamcondies decomprar umaestncianumaregiodistante(menosaindanopasvizinho),ar-cando com todos os gastos e prejuzos que as mesmas podiam apresentar. Portanto, manter-senotopodaelitecharqueadoraconstitua-senuminvestimentobastante dispendioso. Analisando os inventrios post-mortem de todos os charqueadores para qual esta fonte foi localizada possvel verificar que somente uma pequena parcela teve condies de investir em tais bens. De 78 inventrios post-mortem de charquea-dores pelotenses abertos entre 1810 e 1900, somente 11 possuam estncias no Uru-guai e 16 na regio da campanha rio-grandense (sendo que 1 inventariado apresen-tavaestnciasem ambas).Tratava-sede umgrupo privilegiadode26charqueado-res(33%)queestavamouentreosmais ricosdogrupoouentreosdefortunain-termediria.49

Tabela 1 Hierarquia de fortunas, rebanhos vacuns, ttulos de nobreza e altoscargos polticos a partir da anlise dos inventrios de 51 charqueadores (1845-1900)/ em libras esterlinas e percentuais (%) Faixas de fortunas Inventrios Estncias no Uruguai Estncias na campanha do RS Rebanhos superiores a 2.000 reses Ttulo de nobreza Alta poltica Mais de 100 mil4 (7,8)50,0100,0100,0100,0100,0 De 50 a 100 mil8 (15,7)50,075,0062,562,537,5 De 20 a 50 mil13 (25,6)23,17,77,715,423,1 De 10 a 20 mil9 (17,6)00000 Menos de 10 mil17 (33,3)011,7000 Fonte:CARVALHO,MrioT.de.NobilirioSul-rio-grandense.PortoAlegre:OficinasGrficasda Livraria do Globo, 1937; Inventrios post-mortem dos cartrios de Pelotas (APERS); Livros de Notas do 1, 2 e 3 Tabelionatos de Pelotas (APERS); VARGAS, Jonas. Op. cit., 2010; 2013. 47 Este ltimo tendeu a perder importncia a partir dos anos 1850 (FARINATTI, Lus A. Op. cit.). 48 A melhor pesquisa a cerca do papel do estancieiro naquela sociedade o de FARINATTI, Lus A. Op. cit. Para o seu papel na poltica local e regional ver VARGAS, Jonas M. Op. cit., 2010.49 Inventrios post-mortem dos cartrios de Pelotas (APERS). JONAS MOREIRA VARGASPgina | 280 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 No outro extremo, os charqueadores menos ricos ou de fortuna mais modes-ta possuam somente a sua charqueada em Pelotas e, em alguns casos, alguns terre-nos,datasdematosouchcaras nomunicpio.Portanto,nemtodoseram grandes criadores de gado. Dos 78 inventrios de charqueadores, somente 13 (16,6%) possu-am rebanhos superiores a 2.000 cabeas de gado (Tabela 1), o que, conforme Fari-natti, os qualificariam entre os grandes estancieiros na fronteira. Dos 12 charquea-doresinventariadoscomfortunasacimade50millibras,9eramproprietriosde grandes rebanhos. Joaquim J. de Assumpo possua 3.000 reses de criar, Felisber-to I. da Cunha 4.330, Jos R. Barcellos tinha mais de 4.600, Joo S. Lopes mais de 7.000, Joo S. Lopes Filho mais de 8.500, Jos I. da Cunha era dono de 11.400 re-ses,JoaquimdaS.Tavarestinhamaisde8.700eJosA.Moreirapossua13.000 reses em seus campos. Mas o maior criador do grupo foi o coronel Anibal Antunes Maciel,quetinhamaisde34.000cabeasdegadopastandoemsuasestnciasno Uruguai,comojmencionei.50 Deacordocom Farinatti,queestudou Alegreteen-tre 1825 e 1865 (uma das regies que concentrava os maiores criadores de gado do RioGrandedoSul),osproprietriosderebanhossuperioresa5.000resescompu-nhamotopodahierarquiasocial.51 Nestesentido,estescharqueadorespossuam um nmero de reses que poderia competir tranquilamente com os principais estan-cieiros da fronteira. Desnecessriodizerqueosmaisricosentreestescharqueadorestambm eram grandes escravistas e, juntamente com suas famlias, concentravam importan-tepoderpolticoeprestgiosocialnosomenteemPelotas,comoforadomunic-pio.De acordocoma Tabela1pode-severificarqueasfamliasdecharqueadores maisricastambmconcentravam,pormeiodeseusparentesprximos,umaalta notabilidade social (medido, neste caso, somente com o ttulo de nobreza) e um alto poder poltico (ministros de Estado, senadores e deputados gerais). E boa parte des-tasfamliaseramproprietriasde grandesestnciasnaregiodacampanhaou no Uruguai,almdepossuremgrandesrebanhos.Atendnciaconcentraoderi-queza fundiria, distines sociais e poder no interior do grupo evidente. As duas ltimasfaixasdefortuna(50,9%doscharqueadoresinventariados)praticamente notemacessoaorecursosconcentradospelosdecima.Portanto,ainversode capitais em grandes fazendas de criao de gado era um investimento cuja raciona-lidadenosepautavaexclusivamenteporinteresseseconmicos,emboraestese constitusse no principal fator. Tendo em vista a natureza dos mercados de gado na fronteira,apossedeestnciasgarantiaummelhoracessoaosrebanhosdosvizi-nhos, ao mesmo tempo que fornecia um grande poder e prestgio social s famlias latifundirias. No entanto, os anos 1870 seriam palco de uma transformao socio-econmica significativa, vindo a alterar as relaes de troca nos mercados de gado, como comento a seguir. 50 ParamaioresdetalhesarespeitodacomposiodosseuspatrimniosverVARGAS,JonasM. Op. cit., 2013. 51 FARINATTI, Lus A. Op. cit. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 281 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 A tablada e o seu funcionamento Atabladaeraumafeiradegado realizadaem Pelotas(acercade2Kmdas charqueadas)equeaconteciaaolongodetodaasafra.52 Asmelhoresdescries sobreatabladaforamfeitasporLouisCouty(1882),HerbertSmith(1882)eoCo-ronelZeferinodaCosta(cujasmemriasforamescritasnoinciodosculoXX). Taisescritosoferecemumadescriosobreadinmicadocomrciodogadoda tablada que, nas palavras de Smith, era um descampado extenso e quase liso, onde dedezembroamaiosevendiamastropasdegadoquechegavamaPelotas.53 provvel que a tablada no tenha funcionado sempre da mesma forma e que, aps a GuerradoParaguai,asuaimportnciatenhaaumentadoparaoscharqueadores. Couty mencionou que houve uma poca em que os charqueadores confiavam mais no sistema de tropeiros e agentes (aquele que analisei anteriormente), mas que, no inciodosanos1880,atabladajhaviasetornadooprincipalmercadodegados para os charqueadores.54 O coronel Zeferino Costa pertencia a uma famlia de corretores de gado em Pelotaseviveuduranteanosnasproximidadesdatablada.Rememorandoaslti-masdcadasdosculoXIX,eleescreveu:Eraatabladaafeiramaisinteressante que j vi. Ali reuniam-se, diariamente, todos os charqueadores. Ali, desfilava a pe-curiainteiradoRioGrande.Afeirainiciava-ses7horaseencerrava-ses12 horas,quandoosanimaiseramrecolhidosaopastoreioporpeesconhecidosda prpria localidade. Durante as negociaes, dez, vinte, trinta tropas ali se aglome-ravam,emreduzidoespao.Cadaumadelaserarodeadaevigiadapelapeonada queaconduziadaestnciaparaevitaroentrevero.ConformeoCoronel,havia tropeiros de toda a parte: Que diversidade de gente. Uns, vinham das Misses, de SoLuiz,SoBorja,deCimadaSerra,doAltoUruguai,com35emaisdiasde viagem;outros,doEstadoOriental;muitosde CachoeiraeRioPardo;e no pou-cos da fronteira.55 As memrias do Coronel devem fazer referncia ao final da dcada de 1870 einciodosanos1880,poiselemencionaosescravosqueoscharqueadoresleva-vam at o leilo e a presena de rebanhos vindos do norte da Provncia. Ora, como jmencionei,Marquesdizqueosrebanhosdestaregiosintegraram-seaomer-cado pelotense a partir dos anos 1870 e 1880. possvel que a compra do gado da regionortedaprovnciabuscassesanarumaprovveldiminuiodosrebanhos vindosdoUruguai.ConformeBarraneNahum,aGuerraCivilnopasvizinho, 52 COUTY, Louis. Op. cit., p. 135. 53 SMITH, Herbert. Do Rio de Janeiro Cuiab. So Paulo: Melhoramento, 1922, p. 135-141. As me-mrias do Coronel Zeferino foram reproduzidas por PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 110-120.54 COUTY, Louis. Op. cit., p. 136. 55 PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 111. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 282 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 ocorrida entre 1870 e 1872, foi ainda mais prejudicial economia do pas do que a RevoluoFlorista(1863-1865),sendoque,destavez,exterminouboapartedos rebanhos orientais.56 Soma-se a isto o fato de que o Rio Grande do Sul j no con-tava mais com os tratados de comrcio que vigoraram entre 1851 e 1861 e que eram totalmentefavorveis aextraodogado uruguaio. Nestesentido, umasadapara oscharqueadoresdevetersidocomprarosrebanhosdonortedaprovnciapara compensar a diminuio do gado vindo do Uruguai, o que coincide com os relatos do Coronel Zeferino. SobreofuncionamentodatabladaoCoroneltambmdeixouregistrado: No dia da entrada de tropas na tablada, os tropeiros gachos envergavam os seus melhores trajes e encilhavam os seus mais lindos pingos. Era o desfile da competi-odosmelhoresemaisgordosgados,dosmaisbeloseinvejadoscorcisdecola atadaetosadosacagotilho.57 Eraatentativadevalorizarosseusrebanhosem comparao aos dos concorrentes. Sobre o ambiente da feira de gado, Smith escre-veu: Rudes gachos, vestidos com a habitual camisa de chita, ceroulas ou bomba-chaseponchosriscados,galopamemtodasasdirees,conservandoosanimais nos lugares e impedindo que se misturem as tropas.58

Expostos os animais, iniciavam-se as negociaes. Intermediando as transa-es entre os estancieiros e os charqueadores estavam os comissrios de gado. Estes iniciavamasuaatividadediriaoferecendoosnovilhoserecolhendoasofertas. Antigoseconhecidoscomissriosdegadopossuamseusescritrioscheiosdene-gociantesetropeiros,ondeochimarro,oscomentrios,asperipciasdalonga viagem,oschistescorriamaroda.59 Umdosmaisantigoscomissriosdegado foiumfrancs,conhecidocomoSenhorDebise,queanunciavaevendiaassuas tropasemleilosempregritando:Can-can,petiteetgrandtoutensemble,quemd mais? Conforme o Coronel Zeferino, o francs era original, pois como no conhe-cia o peso, a qualidade, o valor dos gados que vendia, punha-os em leilo maior oferta. No entanto, o modo de negociar dos outros vendedores diferia, pois era me-nospblico.Elesabriamopreoparacadatropaerecebiam,emreserva,as ofertas,entregando-aquelequemelhorpagava.60 interessanteestaafirmao doCoronelZeferino,poisnegociandoemsegredo,erapossvelqueoutrosfatores 56 BARRAN, Jose Pedro; NAHUM, Benjamin. Op. cit.57 PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 110-120. 58 SMITH, Herbert. Op. cit., p. 137. 59 Apartirdosannciosdosjornaispossvelverificarapresenadecomissriosoferecendoseus serviosaoscharqueadores.Emdezembrode1890,oDirioPopularpublicavaoseguinteanncio: Tablada:JoaquimMonteiro&CompanhiaEncarregam-sedavendadatropa,natablada,por comisso mdica. Escritrio rua General Netto, n. 39. O mesmo anncio foi feito por outros dois indivduos, J. J. da Silva Braga e Boaventura S. Barcellos (JornalDirio Popular, 14 de dezembro de 1890. Anexo ao Inventrio de Cipriano Jos Gomes. N. 158, m. 5, 2 Cartrio do Cvel, 1890, Pelo-tas (APERS)). 60 PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 110-120. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 283 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 influssemnatransao,tornandoestemercadomenosimpessoaldoquepoderia parecer, e possivelmente eivado de relaes sociais diversas. ConformeSmith,oscharqueadoressupervisionavamtodasasnegociaes. Moviam-se rapidamente aqui e ali em belos cavalos, examinando as vrias tropas, calculando-lhes o valor com rapidez e preciso admirveis, fechando os negcios s pressascomestancieirosepees.Estatarefaeraeivadadedificuldades,motivo pelo qual se tornara privilgio de grandes conhecedores. Charqueadores ricos riva-lizavamentresioferecendocadaumopreoquemaisagradasseaosvendedores. SobreistoSmithafirmou:Omercadosempreativo,porqueaconcorrncia muitoforteentreosvinteoutrintacharqueadores;emgeral asboiadasinteirases-tovendidaspoucotempodepoisdechegadaseimediatamentelevam-naspara umadascharqueadasjuntoaorio.61 Comrelaoaocomportamentodoschar-queadores durante as negociaes, o Coronel Zeferino complementou: Oscharqueadores,nosseusluxuososcarros,puxadosporbelssimasecustosas parelhas,vinhamchegandofeira,ostentandoariquezadesuasequipagens. Chegadosaolocal,montavamnosseuscavalostrazidosreatapelosseuses-cravos,eapressavam-seemrecorrer as tropas venda,inspecionando-as,avali-ando, calculando o seu rendimento e perquirindo aos condutores: Quantos dias de marcha? Quantas disparadas? Vinham rondadas? Quantas encerras? E assim balanavamoqueelaspoderiamproduzir.Terminadaainspeo,comeavam as vendas.62

Quando se fechava um negcio entre o charqueador e os vendedores ouvia-se a frase: minha a tropa, mande entregar na charqueada. Vendiam-se os gados a prazos que variavam de 45 a 90 dias. No dia seguinte ao da entrega, o charquea-dor mandava levar ao corretor o documento comprobatrio da transao, que era um vale assinado pelo mesmo, com data e selos reconhecidos. Conforme o Coronel Zeferino,estedocumentoeradisputadopelosbancosecapitalistasparaserdes-contado aos juros de 3 e 4%. Os vales poderiam ser sacados em Pelotas (no Banco da Provncia ou no Banco Ingls), ou com os senhores Faustino Trpaga, Ant-nioH.Nogueira,BaroAlvesdaConceio,MartinBidart,JosMariaMoreira (filho de charqueador) e os charqueadores e capitalistas Baro do Jarau e Baro do Arroio Grande. Acadaano,entrenovembro/dezembroemaio/junho,pocadasafra,as negociaesnatabladaeramretomadaseacidadevia-senovamentepovoadapor umenormenmerodepessoas.DeacordocomSmithosanimaiscompradosna tablada representavam um valor total de cerca de 22 mil contos de ris, que iam pa-ra o bolso dos estancieiros a cada ano. Estes homens estabeleciam-se alguns dias na cidadeacomprarfornecimentoparaoanoseguinte, antesdevoltaremparasuas remotashabitaes.Ostropeirosepeesdediversasprocednciasecomopaga- 61 SMITH, Herbert. Op. cit., p. 138. 62 PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 110-120. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 284 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 mento em mos aglomeravam-se nas lojas e tavernas. Smith verificou que parte do dinheiropagopeloscharqueadoresaosestancieirosnastransaesenvolvendoas reses,acabavaretornandoao prpriocomrciopelotense.Econcluiu:Hmuitos grandes armazns na campanha que dependem dos de Pelotas, mas todos, direta ou indiretamente, assentam na indstria pastoril e nas charqueadas.63 DeacordocomoCoronelZeferino,ascasascomerciaisdacidadeatraam muitagentenapocadasafra.Pelotasenchia-sediariamentedeumapopulao exticaquecadadiaserenovavaeespalhava peloshotisSoPedro,Americano, Bonfiglio. As caravanas tinham hospedagem (pernoite) gratuita nas lojas de fazen-das,ondesustiam[sic]dassuasnecessidades(...).Nacidade,ferreiroseourives lucravambastante.Ascomitivasascendiama300homensdiariamenteeespa-lhavam a mos cheias o dinheiro ganho nas tropeadas. O salrio era de 5$000 di-rios para os pees e 8$000 para os capatazes. Uns dos artigos mais procurados eram asfacasrecamadasdeouro edeprata,osrebenques,estribos,esporasprateadose umsem-nmerodeartefatosqueavaidadedosgachossecompraziaemosten-tarequeserviriamcomodistinosocialaoretornaremparaseuslocaisdeori-gem. noite o encontro era no Curral das guas, espcie de Cabaret, existente no Hotel So Pedro.64 O princpio bsico da tablada era distinto do procedimento de compra de ga-dosdescritoanteriormente.Ainstituiodatabladapareciabuscarimprimiruma lgicamaisimpessoalstransaes,poishaviaespaopara alivrebarganha eat osleiles.Elabeneficiavaagrandemaioriadoscharqueadoresquenopossuam condies materiais de manter uma grande estncia na regio da campanha ou no Uruguaie,comisto,fecharmelhoresnegcioscomostropeirosdaquelasbandas. Mas,emcontrapartida,elaoscolocavanaobrigaodecompetircomosgrandes charqueadorespelacompradosgadosnatablada.Almdisso,estamudananas formasdenegociarogadorepresentavaumfenmenoeconmicoesocialainda maior.Elasimbolizavaopoderdocharqueadorsobreoestancieirodaregioda campanha. Isto chamou muito a ateno de Couty, pois nem no Uruguai e nem na Argentinaelepresencioualgoassim.65 Aoinvs dedependerdeumacadeiadein-termedirios negociando com o seu prprio dinheiro em lugares incertos, na tablada o charqueador tinha o prprio mercado dentro de sua cidade. Ele podia ver o gado, toc-lo,barganharcomostropeiros,ouseja,realizar acompradiretamentecomo vendedor. A tablada simplesmente tirava das mos do estancieiro da fronteira o po-der de fechar os negcios e transferia o mesmo para o charqueador. Alm disso, de acordo com as narrativas deixadas por Couty, Smith e o Coronel Zeferino, poss-velperceberqueatabladanofuncionavasomentecomolocaldenegcios.Ela tambmpossibilitavaoencontrodefamliase amigos,osacordospolticos,as ali- 63 SMITH, Herbert. Op. cit., p. 141. 64 PIMENTEL, Fortunato. Op. cit., p. 114. 65 COUTY, Louis. Op. cit., p. 135-137. JONAS MOREIRA VARGASPgina | 285 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 anasmatrimoniaiseera praticamente um palcoparaaostentaodostatussocial dosmaisricos.ComoensinouEdoardoGrendi,emsociedadesagrriasepr-industriais,osmercadostinhamumafunoqueultrapassavaosentidoeconmi-co.66 NoRioGrandedoSuloitocentista,osmercadosdogadopareciamestarde acordo com estas premissas. Consideraes finais TendoemvistaainseguranaquereinavanafronteiraentreoRioGrande do Sul e o norte do Uruguai, os contnuos saques e roubos de gado, as muitas guer-ras,almdasdoenasesecasqueperiodicamentepodiamafetaraqualidadedas reses,ocomrciodenovilhosparaascharqueadasconstitua-senumfenmeno repletodepercalos,sujeitoatodootipodeprejuzoseconmicos.Paramanter seuslucrosnassafras,oscharqueadoresprecisavamtornaresteprocessoomais seguropossvel.Comoosmesmosnopossuamcondiesdeestarempresentes emtodasasetapasdaredemercantil,ouseja,desdeacriaodosanimaiseda formao das tropas nas estncias at o seu transporte pelas estradas da provncia, a soluo era colocar pessoas de confiana para executar tais funes. Neste sentido, os charqueadores investiam grandes montantes de capital na compra de fazendas de criao e colocavam-nas sob a administrao de pessoas de confiana geralmente seusfamiliaresouestabeleciamlaosde parentescocomcriadoresdaquelasregi-es.Comosefosseumabaseterritorialestratgica,estasestnciasofereciamuma maior segurana na formao das tropas, na sua conduo e na qualidade dos novi-lhos entregues ao charqueador. Alm disso, a terra no era usada apenas economi-camente,mastambmpolticaesocialmente,poisgarantia ummelhoracessoaos rebanhos dos vizinhos, mo de obra e a uma rede de relaes e alianas imposs-veisdeconseguirseocharqueador nopossussehomensdeconfianaestabeleci-dosnafronteira. Osucessodetalinvestimentopodesermedidopelosimplesfato dequeoscharqueadoresmaisricosdePelotaseramosquehaviaminvestidoem estncias de criao e possuam grandes rebanhos.Se os charqueadores mais ricos podiam controlar mais ou menos o mercado dogado,tanto nafronteiracomonatablada,poucopodiamfazercomrelao aos mercadosatlnticos.Emalgunsespaoseconmicosdetroca,fatoresdeordem maiorregulavamospreosdasmercadorias,asuaofertaeasuademanda,sendo que em outros, os agentes envolvidos possuam maiores condies de influir no seu sistema interno. A tablada parecia buscar imprimir lgicas mais impessoais na com-pra e venda dos novilhos, anunciando que aquela sociedade, cada vez mais urbana eburocratizada,tambmapresentavaumatentativamaiorderacionalizaonas transaesmercantisdosetor.Ofatoqueseoscharqueadoresconseguiramim-primirummaiorcontrolesobreestemundomaisrural,osmesmosnoresistiram 66 GRENDI, Edoardo. Op.JONAS MOREIRA VARGASPgina | 286 Revista Territrios & Fronteiras, Cuiab, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014 s outras crises que afetaram este ramo de atividades e que provocaram a decadn-cia das charqueadas escravistas. No entanto, esta uma outra histria Artigo recebido em 10 de novembro de 2014. Aprovado em 17 de dezembro de 2014.