Cidades, Comunidades e Territrios, 25 (Dez/2012), pp. 68 - 82 ISSN: 2182-3030 ERC: 123787/2011

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CIDADES, Comunidades e Territrios

A Guerra e a Paz no discurso miditico sobre segurana pblica na cidade do Rio de Janeiro

Pablo Nunes de Oliveira1, UERJ, Brasil

Abstract

This work is an effort to comprehend the mediatic speech. The main theme considered here is public security. More specifically, our purpose is to analyse how different politics of public security are propagated by the media. Using the theory about the different types of policing (Bayley, 2006; Bayley and Skolnick, 2006), there is the tension between the models of confrontational policing and community policing in Brazilian contemporary situation. My hypothesis is that governmental intervention in poor territories was (and is) intimately linked to the image that these territories have in the society. Press analysis was undertaken in order to capture some key pictures in governmental speech. The analysis of the papers is divided into two blocks. Two cases are considered: The first is dedicated to understand the implementation of the UPP in Santa Marta, localizing the related news and the way how they were presented during the analyzed period. Furthermore, there is an analysis of the newspapers during the period when Complexo was the centre of several police actions analyzed, considering the number of reports, their location and contents.

Keywords: Public Security; Policing; Media; Violence; Favela.

1. Introduo

Durante mais de um sculo de favela, esse territrio sofreu diversas intervenes, tanto no plano fsico, com todas as polticas estatais que ora defendiam as remoes, ora defendiam a urbanizao, quanto no plano simblico, tendo sua imagem sido modificada ao decorrer do tempo. Os dois planos se alimentam em um processo contnuo, produzindo uma imagem da favela que fomenta determinadas aes estatais nesses territrios, produzindo diversas imagens e intervenes, sendo a urbanizao de um lado e as remoes de outro, os dois meios de se resolver o problema da favela mais recorrentes2. As representaes sociais, em certa dialtica, so produzidas pela sociedade e produzem a mesma. No momento em que tais representaes so geradas, os indivduos passam a se valer delas para agirem e se localizarem no mundo3. Em suas reflexes sobre o material recolhido em pesquisa realizada no Distrito Federal, Porto sinaliza:

1 pablo.nunes@yahoo.com.br. 2 Para uma anlise aprofundada das intervenes estatais sofridas pelas favelas, cf. Burgos (2006). 3 Segundo Caldeira (2000), as narrativas so uma forma de ao social, pois produzem uma ordenao de mundo, ou seja, uma forma de organizar o mundo e assim conferir lgica e sentido a ele. Nesse sentido, a fala do crime, segundo a autora, passa ser a fala da cidade, na medida em que o crime a temtica recorrente pela qual grande parte dessa ordenao do mundo feita. O sentimento de insegurana e medo passa a ser naturalizado, pois a violncia massificada e tratada como banal, natural e imprevisvel. Grande parte desse sentimento causada pelo discurso miditico que acaba por incorporar essa fala do crime, massificando a violncia ocorrida em toda a cidade.

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Assim, a violncia representada como modus operandi da sociedade invocada como justificativa para a violncia policial, como transparece em vrios dos depoimentos colhidos. Da mesma forma, poder-se-ia dizer, a mdia constri o Rio de Janeiro como necessariamente violento, antro de banditismo. A partir da, existiria alguma forma de o Rio no ser representado por amplos segmentos da populao como violento? So as representaes como clichs, referentes estereotipados da sociedade. (2010:77)

Com o advento das Unidades de Policia Pacificadora foi inaugurada uma nova forma de insero do Estado nos territrios de pobreza que inserido na lgica da produo de imagens introduz uma nova dinmica simblica em relao s favelas, bem como a reconfigurao do lugar das mesmas na agenda pblica. Como salientado pelo site institucional das UPPs, essa poltica de segurana baseada no policiamento comunitrio4. Segundo Bayley e Skolnick (2006) os quatro pilares fundamentais para classificar uma poltica pblica de segurana como policiamento comunitrio so a preveno comunitria da violncia e do crime; modificao do patrulhamento feito pelos policiais, incentivando o patrulhamento a p; aumento da responsabilizao da polcia em relao comunidade; e a descentralizao do comando. Esses pilares so essenciais para que se possa afirmar que o policiamento tem o carter comunitrio em sua essncia e prtica. Diferente das caractersticas do policiamento de confronto que reativo, baseado basicamente em patrulhamento em viaturas, com o objetivo de combate ao crime e fortemente centralizado5.

Ficam claras as diferenas qualitativas entre as orientaes de policiamento, um voltado para o combate e totalmente reativo, com a utilizao de armamento pesado, viaturas, blindados, etc., e outro que se pretende pacificador como o prprio nome alude, interessado na preveno do crime e no relacionamento prximo com a comunidade. Nesse sentido, cria-se um par de lgicas que se confrontam: Uma que pode ser ilustrada com a ideia de Guerra6, voltada para o combate armado ao crime, e a outra ilustrada pela ideia de Paz, reforada pela negao ao modelo anterior, ao se voltar para o relacionamento com a comunidade e foco na preveno ao crime.

O presente trabalho um esforo para o entendimento do discurso miditico e sua ordenao da realidade com relao segurana pblica do Rio de Janeiro. O intuito verificar como se inscreve a tenso entre os modelos de policiamento (policiamento de confronto7 e comunitrio) dentro dos jornais do perodo estudado. Para efeitos dessa anlise, foi escolhido o jornal O Globo. A escolha se deu por ser o referido jornal um dos mais antigos e influentes no caso carioca. O jornal O Globo hoje tem a tiragem mdia de 262.435 exemplares por ano na cidade do Rio de Janeiro8, possui um pblico majoritariamente localizado na classe A e B e mantm uma forte legitimidade e credibilidade frente populao. Foram selecionados dois eventos-chave para a anlise do discurso miditico sobre a segurana pblica do estado. Os dois momentos so interessantes e complementares por guardarem diferenas e tambm similaridades. Foram escolhidos cinco dias para cada evento, ou seja, dois dias anteriores, o dia do fato e dois dias aps, com o intuito de capturar a tnica da cobertura sobre segurana pblica na poca e a eventual repercusso do evento.

2. Santa Marta

A favela Santa Marta se localiza no morro Dona Marta, em Botafogo, Zona Sul da cidade do Rio. A ocupao do morro teve incio a partir do consentimento do Colgio Santo Igncio, dono do terreno, para que seus funcionrios pudessem se estabelecer e construir moradias nas encostas do morro. A partir de ento a ocupao

4 Criadas pela atual gesto da secretaria de Estado de Segurana, as UPPs trabalham com os princpios da Polcia Comunitria. A Polcia Comunitria um conceito e uma estratgia fundamentada na parceria entre a populao e as instituies da rea de segurana pblica. Fonte: http://upprj.com/wp/?page_id=20, acesso em 20 novembro 2012. 5 Para uma discusso mais aprofundada sobre o perfil do policiamento de confronto, cf. Batitucci (2011). 6 Como ser discutido na sesso sobre o Complexo do Alemo, vrias imagens e discursos no perodo estudado remetem a ideia de que uma guerra estava sendo travada. 7 Para outra discusso sobre a mudana de perspectiva em relao ao tipo de policiamento em favelas do Rio de Janeiro, cf. Cunha (2012). 8 Fonte: Associao Nacional de Jornais. http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/jornais-no-brasil/maiores-jornais-do-brasil. Acesso em 10 feveveriro 2012.

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se intensificou, devido oferta de trabalho crescente na regio, e consequentemente a migrao da populao de outras reas da zona sul para o morro. Por ser um terreno privado, a favela Santa Marta nunca foi ameaada de remoo pelo Estado, no tendo sofrido com as politicas severas empregadas pelos aparelhos estatais, principalmente no perodo da ditadura militar9.

Na poca da implantao da UPP do Santa Marta, o Jornal O Globo abriu espao para noticiar um problema enfrentado pela Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Dentro da PM os policiais recebiam alimentao que vinha diretamente do quartel. A refeio era preparada por policiais que se deslocavam de suas obrigaes devidas para cozinhar a alimentao dos outros. Esse problema recebeu maior cobertura do jornal do que as questes sobre a UPP do Santa Marta, merecendo reportagem prpria na pgina 14 do jornal do dia 17 de dezembro de 2008.

A nica meno Segurana Pblica foi feita em uma matria sobre uma operao realizada na favela da Rocinha. Na pgina 12 do jornal, h a reportagem sobre essa operao, apontando os erros que a polcia teria cometido na ao. Em um pequeno espao, o autor da reportagem d sua opinio, criticando a posio da polcia e revela seu posicionamento a favor do modelo de ocupao policial realizado no Santa Marta, construindo uma oposio em relao ao truculenta na Rocinha. Aqui, timidamente pelo espao dedicado, pode-se enxergar a tenso entre os tipos de policiamento realizados no Rio de Janeiro. De um lado, a truculncia policial, aes descoordenadas e com pouco uso dos setores de inteligncia. Do outro, o prottipo de Unidade de Polcia Pacificadora realizado no Santa Marta, que pela oposio feita, pode ser considerado como um modelo de policiamento que se diferencia qualitativamente do anterior, segundo o autor da reportagem:

As cenas da operao policial ontem na Rocinha so enfadonho e aterrorizante repeteco de tantas outras aes: tiroteio, granadas, trnsito obstrudo em vias importantes da Zona Sul, risco de balas perdidas, etc. (...)

Por isso, cada vez mais consolida-se como modelo indicado o da ocupao definitiva dessas favelas. Como ocorre na Dona Marta. (O Globo. 17/12/2008. Caderno Opinio, p. 12).

No dia 18 de dezembro de 2008, a capa do O Globo recebe a manchete: Ex favela de milcia ter nova polcia. Nota-se que o policiamento prometido para a favela do Batan considerado novo e no corpo do texto o jornalista diz: (...) a favela do Batan vai ganhar um batalho de policiamento comunitrio nos mesmos moldes do que est sendo criado no morro Dona Marta (...). Esse o primeiro registro, dentre a amostra desta pesquisa, que trata o policiamento realizado no morro Santa Marta como comunitrio. Na pgina 17 do mesmo jornal, h uma reportagem de meia pgina com o ttulo: Batam tambm ter policiamento comunitrio. No meio da matria h uma fotografia mostrando um treinamento de tiro. Nesta matria, fica clara a tenso entre Guerra e Paz nos discursos miditicos quando o objeto a segurana pblica, que sintetizada pelo antagonismo simblico entre um texto que fala sobre policiamento comunitrio e uma imagem de treinamento de tiro. A matria diz:

Recrutas que vo participar do novo policiamento comunitrio no Morro Dona Marta, em Botafogo, a partir de amanh, participam de um treinamento no BOPE, para conhecer de perto o relacionamento entre os integrantes dessa unidade de elite e os moradores da favela Tavares Bastos, no Catete. A comunidade est h dez anos livre do trfico e convive com o grupamento policial no alto do morro. (...) (O Globo, 18/12/2008, Caderno Rio, p. 17).

Interessante notar que o treinamento que buscou mostrar aos recrutas como os policiais do BOPE se relacionam com a comunidade Tavares Bastos foi ilustrado por um treinamento de tiro. Apesar de fazer parte da prerrogativa do policiamento, o empunho e a utilizao de armamento deveria estar em segundo plano quando a lgica do policiamento a comunitria. A resoluo de conflitos e as matrias da rea de Humanas deveriam ser enfatizadas, pois fornecem o material terico para o policial se basear quando o foco o relacionamento com a comunidade10. Fica clara a permanente aluso a um ethos guerreiro, que est impregnado nos currculos de

9 Fonte: Associao de Moradores e Amigos de Botafogo http://www.amabotafogo.org.br/historia/santa_marta.asp, Acesso em 14 fev. 2012. 10 Cf. Poncioni, 2005.

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formao dos policiais cariocas11. A preparao dos policiais para enfrentar situaes de guerra evidente, e no foge a essa lgica a imagem que ilustra a matria sobre policiamento comunitrio. Mesmo sugerindo novas lgicas do fazer policial, o paradigma da guerra se faz presente de forma contundente.

Fonte: O Globo. 18/12/2008. Caderno Rio, p. 17.

No dia 19 de dezembro, dia da inaugurao da UPP no Morro Santa Marta, no houve nenhuma informao sobre o evento. Aqui cabe uma constatao: como ficar claro at o final da exposio sobre a UPP do Morro Santa Marta, no houve uma cobertura jornalstica ampla sobre o episdio. Em sua maioria, as matrias tratam tangencialmente sobre a UPP (como no caso da matria acima), ou comentam outros aspectos da Pacificao do territrio (como a especulao imobiliria). Minha hiptese de que a pauta sobre segurana pblica no ganha espao se no houver algum tipo de evento violento que aflore o sentimento de insegurana na populao, ou algum tipo de escndalo12.

No dia 20 de dezembro de 2008, no h nenhuma meno a polcia, segurana pblica e/ou favela na capa do jornal. A primeira matria sobre a temtica aparece na pgina 21, discorrendo sobre o caso de tiroteio ocorrido na favela da Mar. Nessa mesma pgina h um pequeno espao reservado para falar sobre a inaugurao do Posto de Policiamento Comunitrio (PPC):

Com bom humor, o governador Srgio Cabral inaugurou ontem o novo Posto de Policiamento Comunitrio do Morro dona Marta, em Botafogo, ocupado pela PM desde 19 de novembro e, segundo a polcia, livre do trfico (...) A maioria das pessoas quer que este projeto d certo. E estejam certos de que esta experincia no vai parar aqui. No podemos aceitar o domnio de comunidades. como se isso fizesse parte da paisagem carioca. Isso uma vergonha, inaceitvel, no podemos achar normal. O Batam j est sendo preparado. Outras comunidades tambm, disse o Governador Srgio Cabral. (O Globo, 20/12/2008, Caderno Rio, p. 21).

11 Ibidem. 12 Para maiores informaes sobre como a pauta de Segurana Pblica tratada dentro das redaes, cf. Ramos e Paiva, 2007.

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O espao concedido para a divulgao da implantao da UPP do Santa Marta foi um pequeno retngulo localizado na parte inferior da pgina, tendo acima uma reportagem de meia pgina sobre o caso de violncia ocorrido na favela da Mar. Novamente vemos a tenso entre Paz e guerra, e como os acontecimentos violentos ganham maior visibilidade dentro do jornal do que os que noticiam, no caso, a UPP do Santa Marta. O que parece sustentar essa lgica a associao direta que se faz entre segurana pblica e violncia, como se o objeto principal de anlise quando a pauta segurana pblica fosse estritamente os eventos violentos, colaborando para a sobreposio da fala do crime com a fala da cidade (Caldeira, 2000).

Diferentemente dos outros dias, o quinto dia do perodo escolhido para anlise agregou diversas reportagens sobre a implantao da UPP no Santa Marta e seus efeitos, sentidos e esperados. Na capa dO Globo do dia 21 de dezembro de 2008 encontra-se uma foto grande, no meio da pgina, retratando uma mulher com sua filha em frente a um barraco. A legenda diz: apesar de desempregada, Antnia Aparecida Nascimento, de 43 anos, ao lado da filha, est feliz: agora s falta arrumar um trabalho. Ao lado desta fotografia, a manchete: Esperana e medo no Dona Marta: procura de imveis cresce; comunidade teme a volta do trfico. Apesar do processo de pacificao da comunidade ter livrado o territrio do domnio do trfico, como dito pela PM, o medo e a insegurana continuam sendo recorrentes na vida dos moradores, como explicita a manchete. A esperana acompanhada do medo forma uma dualidade que vai ser trabalhada extensivamente nas reportagens desse jornal, especificamente.

Na pgina 16, abrindo o espao dedicado s notcias do Rio, a reportagem intitulada Vidas Blindadas conta como os moradores do Santa Marta se protegem dos tiroteios. Mais uma vez h o desvio da ateno jornalstica da pacificao para o cenrio de guerra. A reportagem e as autoridades dizem que no h mais trfico armado no territrio, mas mesmo assim o espao dado para falar sobre a violncia. A tenso entre paz e guerra no discurso miditico sobre segurana pblica permanece, mas sempre a fala pende para a ilustrao de uma situao de violncia, que incite o medo, mesmo que seja um medo referente a uma situao no passado, como no caso dos moradores do Santa Marta que mesmo com a ocupao e o policiamento comunitrio sendo feito no territrio, tm medo da volta do trfico e contam como se defendem de tiroteios.

Na pgina 17, encontramos a primeira matria dedicada exclusivamente a falar sobre o policiamento comunitrio. Da mesma forma como as demais, a matria recebe pouco espao, localizada em um retngulo na parte inferior da pgina:

De acordo com o comandante do Bope, tenente-coronel Alberto Pinheiro Neto, mais do que o uso da fora, a principal orientao ouvir os moradores: O policial tem que conversar com os moradores. Fazer com que suas necessidades sejam atendidas, dar ateno sempre. (ibidem: 17)

Apesar do comandante do Bope colocar a conversa como algo primordial e central para que as necessidades da populao sejam sanadas, o treinamento dos 125 soldados que foram deslocados para o Santa Marta contemplou somente treinamento de confrontos. No foi citada nenhuma instruo no que tange busca por conhecer as demandas da populao, resoluo de conflitos ou qualquer tipo de tcnica para lidar com os moradores do morro como atores do processo de pacificao. Analisando pela tica dos conceitos propostos por Skolnick e Bayley (2006), a proposta flagrada no discurso do comandante do Bope se enquadra nos ideais de policiamento comunitrio, colocando a populao como fomentadora das aes dos policiais, com vias do bem-estar da comunidade como um todo. Mas mesmo que a proposta esteja enquadrada, pelo que se observou na matria, no h meno a um treinamento adequado para esse fim, mas sim um treinamento que reproduz o ethos guerreiro, voltado para as situaes de conflito e no para as situaes cotidianas de mediao com a comunidade.

Como se pode notar, a cobertura jornalstica da inaugurao da UPP do morro Santa Marta foi tmida. No foi dada ateno ao caso, e quando o assunto foi pauta de reportagens, a pacificao aparece tangenciando outro assunto, e sempre localizada em pequenos espaos na parte inferior das pginas do jornal. Poucas so as matrias dedicadas a tratar do policiamento comunitrio, e mesmo as que tratam, conjugam a lgica da guerra com a da paz, em certo paradoxo que, de diferentes maneiras, se faz presente em todo o discurso miditico sobre segurana pblica estudado.

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3. Complexo do Alemo

O Complexo do Alemo um conjunto de 13 favelas situadas na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Seu ncleo principal se situa no Morro do Alemo, que integra a Serra da Misericrdia, formao geolgica da regio. Com o advento da industrializao na regio e a abertura da Avenida Brasil em 1946, Leonard Kaczmarkiewicz, dono de algumas terras na regio, em 1951, dividiu o terreno em pequenos lotes que foram vendidos aos poucos, aproveitando o intenso processo de industrializao do local, que nesta poca j representava um importante plo industrial da cidade. A intensificao da ocupao ocorreu no governo de Leonel Brizola, tendo o local experimentado grande crescimento demogrfico13.

A cobertura do jornal O Globo do dia 26 ao dia 30 de novembro de 2010, guarda diferenciaes significativas no que toca estritamente comparao com o perodo analisado na seo anterior, referente cobertura da inaugurao da UPP do Santa Marta. E essa diferenciao sustenta e potencializa as questes discutidas anteriormente sobre o paradoxo simblico entre as lgicas de guerra e paz flagradas no discurso do jornal estudado, bem como o choque entre os modelos de policiamento, que de certa forma se correlacionam com essas lgicas.

Como um prefcio de toda a narrativa sobre os fatos ocorridos no perodo estudado, a edio de 26 de novembro traz em sua capa: O dia D de Guerra ao Trfico.

Com indito apoio da Marinha, tropas do BOPE desembarcaram na Penha e ocupam o bunker do trfico.

(...) o comboio foi aplaudido pelas pessoas nas ruas. Numa semelhana simblica com o desembarque das tropas aliadas na Normndia que abriu as portas para a derrota da Alemanha nazista -, a ao na cidade foi o dia D do combate ao trfico que, desde domingo, realiza ataques em vrios locais. (O Globo, 26/11/2010, Capa, p. 1).

Pelo discurso, constri-se um cenrio de guerra e, consequentemente, violncia que se espalha por toda a cobertura jornalstica. Nesses pequenos fragmentos podemos localizar elementos semnticos que por si s falam e constroem a ideia de guerra: dia D, desembarcaram e bunker. Todas essas palavras aludem guerra, mais especificamente Segunda Guerra Mundial, que ser comparada ao na Penha em outro fragmento da mesma capa. Destaca-se tambm o apoio da Marinha na ao, que emprestou Polcia Militar veculos blindados de guerra, contribuindo ainda mais para que o cenrio de guerra fosse instaurado. Ao criar um clima de tenso gera-se no pblico atingido um sentimento de insegurana e ausncia das garantias individuais, como fica expresso na fala de dois leitores do jornal, veiculadas no espao reservado para a opinio dos mesmos:

Sendo uma guerra, o que , sem dvida, fundamental que o inimigo morra pelos seus ideais. () S podemos torcer para que tudo termine com o menor nvel de baixas civis. (O Globo, 26/11/2010, Caderno Opinio, p. 8)

Envoltos no sentimento e no cenrio de guerra, os prprios leitores se apropriam dessa lgica e estruturam seu discurso, e tambm (podemos cogitar) seu cotidiano, levando em conta o cenrio de violncia instaurado como modificador de alguns de seus hbitos, ou mesmo modificador da geografia da cidade, localizando pontos onde o perigo iminente e que so, por isso, evitados.

Como contextualizao dos fatos expostos e localizao dos que viro a ser analisados, cabe salientar os acontecimentos ocorridos no Rio de Janeiro no perodo que comeou no dia 20 de novembro e se estendeu at s operaes na favela da Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemo. Vrios pontos da cidade estavam sendo alvo de aes violentas de traficantes, como incndio a veculos e arrastes. O que se sustentou no discurso da mdia na poca de que a onda violenta que a cidade estava sofrendo se devia instalao das UPPs, que estariam 13 Fonte: Voz das Comunidades, disponvel em http://www.vozdascomunidades.com.br/complexo-do-alemao/historia-do-complexo-do-alemao, acesso em 14 fevereiro 2012.

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desestruturando o trfico armado na cidade. Ento, de certa forma, a onda de violncia representou uma marca importante da ao das UPPs. Com a popularidade das UPPs em alta, o governo deu incio s operaes que ficaram marcadas no imaginrio coletivo como a principal guerra contra o trfico, que possibilitaria de uma vez por todas desarticular o chamado bunker ou fortaleza do trfico.

Diferentemente do que aconteceu com a cobertura acerca da instalao da Unidade de Polcia Pacificadora do Morro Santa Marta, os eventos que culminaram na operao no Complexo do Alemo receberam papel central da cobertura jornalstica dO Globo, que criou um caderno especial para os eventos. Como no poderia ser diferente, o caderno foi intitulado A Guerra do Rio e trazia todas as informaes sobre os ataques em toda a cidade e as operaes realizadas pela polcia. No caderno do dia 26 de novembro (o primeiro analisado) destaca-se a manchete A fortaleza era de papel se referindo ao trfico instalado na Vila Cruzeiro, que tinha sido invadida pelos policiais em uma operao que prenunciou a tomada do Alemo.

Em relao a esse caderno, especificamente, destaca-se tambm o intenso uso de imagens e infogrficos, que ilustram praticamente todo o material. Fotos da fuga dos traficantes para o Complexo do Alemo, nibus incendiados, militares armados com fuzis, populao da favela correndo para se proteger, blindados da Marinha, todas essas imagens colaboram para que o cenrio de guerra ganhe forma, volume e cor, ao passo que destacam exatamente elementos que por si s do o sentido de que uma guerra est em andamento. Alm das fotografias, os infogrficos aparecem em praticamente todos os jornais desse perodo. No caso da operao da Vila Cruzeiro, o infogrfico ilustrava a rota usada pelo efetivo policial para entrar na favela, quais as armas utilizadas, o tamanho do efetivo, etc..

No mesmo jornal, uma matria especificamente sobre as UPPs aparece na pgina 11:

UPPs reduzem ataques na Zona Sul do Rio (). Com favelas ainda dominadas por traficantes, Zona Norte tem mais casos. (O Globo, 26/11/2010, Caderno A Guerra do Rio, p. 11)

A matria destaca que a causa da ausncia de atos de violncia na Zona Sul seria a instalao e consolidao de UPPs na regio, fato que dificultou, segundo o jornal, a fuga dos traficantes, pois com as reas pacificadas os mesmos no encontrariam refgio nesses territrios. Assim, as UPPs no poderiam mais ser utilizadas como rota de fuga, j que o domnio do trfico teria sido desarticulado dentro dessas favelas. Na pgina seguinte veiculou-se uma entrevista do secretrio de segurana Jos Mariano Beltrame em que discorre sobre a poltica de segurana que executa e d detalhes sobre a lgica utilizada para as aes ocorridas na poca:

- O senhor acha que os policiais conseguiram dar o recado aos bandidos de que vo partir para o enfrentamento? - H 2 anos estamos mostrando que queremos a pacificao. O nosso objetivo principal retomar os territrios. (...) - Como ser o policiamento na Vila Cruzeiro? - A partir de agora, o BOPE vai andar pelas ruas da comunidade e perguntar o que as pessoas precisam. (...) - No geral, o resultado das UPPs positivo? - Hoje temos 200 mil pessoas livres do fuzil (...) o Rio tem esse inimigo que o fuzil. (O Globo, 26/11/2010, Caderno A Guerra do Rio, p. 12).

A edio do dia 27 de novembro traz em sua capa o anncio: Comea a batalha no Alemo. A frase vem acompanhada de vrias fotografias, que mais uma vez colaboram para a construo de um cenrio de guerra (militares no cho com fuzis empunhados, um morador alvejado esperando socorro, bandidos armados para usar o termo que descreve a fotografia, etc.). A partir da pgina 19 comeam as matrias referentes aos casos de violncia e operaes da polcia no Rio. Depois da operao na Vila Cruzeiro e o incio da tomada do Alemo, segundo o jornal, os incidentes de violncia na cidade diminuram consideravelmente, fato atribudo ao policiamento ostensivo e s operaes ocorridas nas favelas citadas.

Na pgina 26, O Globo diz: Tenso deixa vielas da Rocinha quase desertas. Em panfletos distribudos na favela, traficantes ameaam com represlias ofensiva da polcia na Zona Norte. Mostra-se, com isso, que o clima de

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tenso aps as operaes no se restringe ao entorno dos territrios, mas tambm atinge a comunidade da Rocinha, na Zona Sul da cidade, que na poca no possua UPP instalada. Adiante, na pgina 31, uma matria destaca o uso do blindado da Marinha como um fator determinante para o sucesso das operaes. A matria tem como ttulo Blindado se torna estrela da operao, enfatizando o papel imprescindvel do veculo para que as operaes pudessem transcorrer da maneira como se deram. O blindado por si s j possui uma carga simblica muito forte, pois adveio de uma fora militar, sua utilizao se d em ambientes e em situaes de guerra e sua presena por si s contundente, pelas suas dimenses e armamentos que carrega.

Na pgina seguinte, localiza-se a Logo: a pgina mvel que traz uma discusso sobre a natureza dos ataques ocorridos no Rio de Janeiro em novembro de 2010. A discusso girou em torno da possibilidade de enquadrar os acontecimentos como atos terroristas. A pgina ilustrada por uma foto que cobre a sua totalidade: um veculo incendiado. Em cima dessa foto, as opinies dos entrevistados, que de forma unnime defenderam que os ataques no podem ser classificados como terrorismo. No h sequer uma pessoa que defenda tal teoria, mas se instaura um debate para discutir o assunto. Agora, mais um fator gerador de medo colocado em questo, contribuindo para que o estado de insegurana possa se intensificar, com a possibilidade de elevarmos os ataques categoria de ataques terroristas, to massificados e divulgados pela mdia mundial. No h dvidas de que a nomeao da onda de ataques como terrorismo agrega a ela elementos simblicos que vo se somar aos outros elementos no imaginrio coletivo.

No dia 28 de novembro de 2010 aconteceu o que se nomeou de Tomada do Alemo, evento que por suas especificidades ficou/foi marcado no imaginrio coletivo. A cobertura jornalstica foi intensa, tendo modificado toda a grade de programas das principais emissoras. Em relao ao jornal O Globo, sua capa anuncia:

Bandidos no aceitam ultimato e polcia decide invadir Alemo hoje.

A polcia decidiu, ento, que invadir hoje a regio considerada o maior bunker do trfico no Rio. O sinal de que est prximo o contra-ataque dos policiais com apoio de 800 homens do Exrcito foi a proibio de acesso de qualquer pessoa ao morro, por volta das 19:30. (O Globo, 28/11/2010, p. 1).

Destacam-se novamente signos que trazem tona a imagem de guerra, com o cerco ao maior bunker do trfico em uma operao que foi extensivamente coberta pelos diversos meios de comunicao. A respeito da operao, Beltrame em entrevista disse: A polcia est muito consciente daquilo que ela deve fazer. Estava consciente de que um caminho sem volta. Chega de pr a poeira para baixo do tapete. Segundo o secretrio, a operao era inevitvel, pois a polcia tinha entrado em um caminho sem volta. Em nota, o governador Srgio Cabral defende as operaes:

As operaes so essenciais para garantir o ir e vir das pessoas. O momento de retomada de territrios, de afirmao de ordem e do estado de direito democrtico dizia a nota Estamos todos unidos. Todos com o mesmo propsito: seguir em frente, sem qualquer recuo, na busca da libertao das pessoas do poder de bandidos nas comunidades. (O Globo, 28/11/2010, Caderno A Guerra do Rio, p. 1)

Est veiculado na fala do governador o tom de necessidade das operaes, que trariam para esses territrios a ordem e o estado de direito democrtico, garantindo s populaes o direito de ir e vir e retomando esses territrios do domnio do trfico. O objetivo expresso: libertar as pessoas do poder de bandidos nas comunidades. Sobre as UPPs, o espao reservado nessa edio se encontra na pgina 10 do caderno, e ltima pgina dedicada a discutir segurana pblica no jornal. A matria anuncia a reserva de um espao dedicado construo de uma Unidade de Polcia Pacificadora na Penha e o incio de projetos sociais. Mais uma vez o espao dedicado a informaes sobre as UPPs e/ou policiamento comunitrio foi restringido a uma pequena matria de fim de pgina. A violncia, a lgica da guerra, no material estudado, possui mais espao no jornal analisado, contribuindo para que o sentimento de insegurana e medo se espalhe e se fundamente na sociedade como um todo, uma vez que as matrias que tm como foco a violncia so privilegiadas dentro do jornal O Globo no perodo estudado em detrimento daquelas que tm como foco o policiamento comunitrio, ou outras aes que fujam dessa dinmica. Rondelli em relao a essa dinmica da mdia diz:

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[A mdia] quando se apropria, divulga, espetaculariza, sensacionaliza ou banaliza os atos de violncia est atribuindo-lhes um sentido que, ao circularem socialmente, induzem prticas referidas violncia. Se a violncia linguagem forma de comunicar algo , a mdia ao reportar os atos de violncia surge como ao amplificadora desta linguagem primeira, a da violncia. (Rondelli, 1998).

O dia 29 de novembro, um dia aps a operao no Complexo do Alemo, traz em sua capa:

O Rio mostrou que possvel.

Cidade comemora a libertao do Alemo e a maior vitria sobre o trfico. (O Globo, 29/11/2010, p.1)

A capa, alm do tom de esperana e comemorao, ilustrada por uma fotografia que foi amplamente divulgada, da bandeira do Brasil sendo hasteada. Assim como quando um exrcito invade um territrio inimigo e o vence, as foras de segurana hastearam sua bandeira, demonstrando que os inimigos que tinham sua sede naquele territrio foram derrotados e retirados de seu poder sobre aquele lugar. Analisando de outro ngulo, podemos verificar que a ideia de que de certa forma o Estado no estava presente veiculada tangencialmente, pois a marca da entrada do Estado naquele territrio foi o hasteamento do smbolo nacional, e at mesmo palavras utilizadas como retomada do a esse evento o tom de que o Estado agora estava se fazendo presente naquele territrio, uma vez que o outro poder foi desarticulado.

Na pgina seis do jornal mais uma vez abre-se o espao para a discusso de opinies, apresentando ao leitor a opinio do jornal em relao aos acontecimentos que vinham ocorrendo desde o dia 20 de novembro daquele ano. Alguns trechos so interessantes para flagrar a lgica do jornal O Globo:

O terrorismo que antecedeu o dia D (...) isso porque as UPPs cumprem um papel ttico de asfixiar economicamente as quadrilhas, ao mesmo tempo que permitem polcia criar laos com os moradores. E, estrategicamente, batalhes avanados abrem espao para o poder pblico realizar programas de incluso social, atravs de servios de infraestrutura, educao, saneamento, sade, lazer, etc. (...). (O Globo, 29/11/2010, Caderno Opinio, p. 6)

Apesar da discusso feita no dia 27, o jornal faz questo de utilizar a palavra terrorismo como forma de nomear os eventos violentos ocorridos na cidade do Rio de Janeiro. Por si s a escolha de palavras para se transmitir uma notcia j implica em uma imagem que pode ser construda de maneira sensacionalista, como no caso aqui citado. Na discusso feita no dia, nenhum dos especialistas que foram ouvidos apoiou o enquadramento dos acontecimentos como terrorismo, mas mesmo assim o jornal O Globo mantm a alcunha. Como em outros dias, a edio do dia 29 tambm traz o caderno especial A Guerra do Rio, aberto com a manchete:

A senhora liberdade abriu as asas sobre ns.

Populao comemora libertao histrica em operao exemplar, sem sequer um inocente ferido. (O Globo, 29/11/2010, Caderno A Guerra do Rio, p. 1).

Para colaborar com a imagem de libertao e paz trazida pela operao, a capa do caderno especial ilustrada pela fotografia que estampou diversos jornais, sites e outros meios de comunicao:

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Fonte: O Globo, 29/11/2010, Caderno A Guerra do Rio, p. 1.

A imagem vem colaborar com o tom de libertao que foi dado a toda a cobertura no dia ps-operao, unindo a imagem do policial com a imagem da paz. Alm desta matria, na pgina 12 a temtica da paz que foi levada ao complexo novamente tratada: Na comunidade, alvio e esperana: moradores do Alemo assistiram ao policial confiantes da chegada de dias de paz.

O caderno especial segue dando nfase ausncia de civis feridos, alta tecnologia utilizada na operao, ttica utilizada pelas foras de segurana, etc.. Na pgina 9 o governador Srgio Cabral d entrevista onde diz: a reao do carioca me emocionou, salientando que o que estava em jogo era o sucesso de toda a poltica de segurana que estava sendo desenvolvida pela sua gesto.

Mais uma vez colaborando para que o cenrio de guerra fosse construdo, as pginas 14 a 16 mostram detalhes da operao, como o depoimento dos reprteres que estiveram envolvidos na cobertura, entrevistas com policiais envolvidos, que foram chamados de guerreiros do Alemo e ainda com alguns moradores. At o fim do caderno A Guerra do Rio mais algumas reportagens falam sobre como a ao policial pode ser tomada como um aviso para outras quadrilhas que se espalham pelo estado, matrias sobre as apreenses de drogas e armamentos, missa no Corcovado em nome da Paz, como a cobertura modificou a grade da emissora Globo, que cobriu as aes ao vivo, e ao final do caderno, uma pgina inteira dedicada a agradecimentos de algumas pessoas aos policiais: No aguentava mais criar meus filhos no meio de tantos bandidos circulando fortemente armados pelas ruas diz Joana, moradora do Complexo do Alemo.

O jornal do dia 30 de novembro, ltimo do perodo analisado para as aes no Complexo do Alemo, traz em sua capa a preocupao com o futuro do complexo de favelas: Exrcito pode ficar 7 meses no Alemo at a nova UPP: militares vo usar a experincia de paz no Haiti para manter cerco e patrulhamento. De certa forma, ao destacar o uso da experincia obtida no Haiti, o jornal O Globo mais uma vez traz para o discurso a simbologia e a carga semntica da guerra, demonstrando que de certa forma as experincias vividas no Haiti e no Rio de Janeiro podem ser semelhantes.

A partir desse dia, o caderno especial A Guerra do Rio encerrado, e as matrias que concernem segurana pblica da cidade do Rio de Janeiro passam a serem veiculadas no caderno intitulado Rio. Em entrevista, o ento presidente Lula diz: Eu j ia visitar o Complexo do Alemo. Eu agora vou com muito mais prazer. As matrias seguem relatando os planos e repercusses ps-operaes. Divulgam os planos para a reconstruo de

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algumas reas e o aumento de infraestrutura nesses territrios, enumeram os prejuzos do trfico de drogas e mostram moradores saqueando o que anteriormente era patrimnio dos traficantes.

Na pgina 21 o sentimento de esperana e satisfao com as operaes e o futuro desse complexo de favelas mais uma vez o tema:

Cenrio de destruio, mas clima de esperana

Vielas do Alemo tm lixo, veculos destrudos e casas abandonadas, mas moradores acreditam em dias melhores. (O Globo, 30/11/2010, Caderno Rio, p 21)

Essa matria ilustrada com duas fotos: policiais da PM ajudando uma senhora a se locomover pelas ruas da favela e outros policiais beijando crianas de colo.

Fonte: O Globo, 30/11/2010, Caderno Rio, p 21.

De certa forma, monta-se mais uma vez a imagem heroica desses atores, que ficar marcada, levando a diversas manifestaes de apoio e exaltao dos ideais desses policiais (nos carnavais de 2011 e 2012 diversas lojas de fantasias para crianas venderam uniformes de polcia pacificadora). No jornal estudado, fica claro o apoio dos seus leitores para as operaes e o modo como o Estado as conduziu. A cobertura das aes tomadas pelas foras de segurana no perodo analisado nesta seo foi emblemtica, no sentido de que foi amplamente assistida pela populao (ao vivo, pelas redes televisivas, Internet, redes sociais, etc.). Em relao ao jornal O Globo, a cobertura ganhou um espao privilegiado, tendo praticamente todas as capas do perodo estudado dedicadas a veicular as manchetes referente s operaes, houve grande nmero de fotografias e infogrficos ilustrando as matrias e agregando outros signos, etc. O tom de que uma guerra estava sendo travada evidente em todo o discurso, e mesmo quando o cenrio no era to alarmante, o jornal fazia questo de trazer o sentimento de insegurana e medo tona (quando da discusso sobre se os incidentes violentos podiam ser encarados como terrorismo e dias depois o editor os nomeia como tal, mesmo ficando claro na discusso que de modo algum estes eventos poderiam ser nomeados assim).

Os primeiros anos do governo de Srgio Cabral no estado do Rio de Janeiro foram marcados pela truculncia policial e uma declarada guerra s faces criminosas. Em entrevista emblemtica em que defende o controle de natalidade nas reas de pobreza como forma de diminuir a violncia no Rio de Janeiro (chamando as mesmas de fbrica de marginais), o governador diz:

Na hora que a gente vai pra uma comunidade e recebido a tiros, o que essas instituies querem que o governo faa? Se acomode? Na Coria, no havia uma operao policial h trs anos e meio desse tipo, com 350 policiais. Marginais estavam indo para a pista sem aquele temor de ir apenas na madrugada. Iam de dia, parando

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os carros, com fuzil, mandando parar, matando as pessoas. O estado no pode aceitar isso. Essa uma questo que no ideolgica. No adianta me chamar de truculento. Ordem pblica est dentro dos valores democrticos14.

O discurso do governador expressa o posicionamento do Estado em relao violncia, sendo o combate ao crime a tnica, transformando a metfora de guerra ao crime em poltica pblica. Assim, a pacificao parece ser uma forma de resposta s crticas ao tipo de poltica de segurana que se executava no Rio de Janeiro. As Unidades de Polcia Pacificadora anunciam em seu prprio nome a inteno de modificar a imagem das aes do governo com relao atuao policial. A partir da implantao da UPP do Santa Marta do modelo comunitrio de policiamento, este passa a espraiar-se por toda a poltica de segurana pblica do governo.

Devido ideia de que a violncia est intrinsecamente ligada pobreza, as favelas so diretamente apontadas como fonte da violncia que ocorre no Rio de Janeiro, sendo esses territrios os focos principais das polticas de segurana pblica. A ideia de classes perigosas atravessa o sculo e se instaura no Brasil como signo das populaes moradoras de territrios de pobreza:

No incio do sculo XX, a partir dos ideais eugnicos, muitas dessas teorias ganham peso no Brasil, e cresce no imaginrio social a crena nas classes perigosas, termo utilizado j em 1857, por Morel, em seu trabalho Tratado das Degenerescncias, para designar aqueles que no possuiriam nem a inteligncia do dever, nem o sentimento da moralidade dos atos, e cujo esprito no suscetvel de ser esclarecido ou mesmo consolado por qualquer ideia de ordem religiosa. (Coimbra, cit. por Oliveira, 2010, pp. 38-39).

As mudanas da imagem das favelas no cenrio social se imbricam com as polticas pblicas como meio de responder a essas imagens. Hoje, pelo visto nas reportagens analisadas, h a permanncia de dois modelos de policiamento totalmente distintos na proposta governamental. Pelas teorias analisadas, os ideais de cada tipo de policiamento envolvidos nessa tenso so totalmente dspares e, por isso, configura-se uma disputa entre os mesmos. No discurso do jornal O Globo, essa tenso visvel e se apresenta de formas distintas dentro de cada perodo estudado. Oscilando entre a pequena divulgao da UPP do Santa Marta e a ampla cobertura dos eventos ocorridos no Complexo do Alemo, o discurso do jornal se configura como um objeto importante para a compreenso das polticas de segurana pblica e sua imagem frente populao do estado.

4. Concluso

Na pgina 8 do jornal do dia 30 de novembro de 2010, dedicada opinio dos leitores, o ttulo seguinte abre as falas: Uma nova histria para o Rio e, em certa medida, todas as opinies desse espao seguem essa lgica de esperana e da possibilidade de que uma nova histria possa ser feita a partir da bem sucedida operao no Complexo do Alemo: por muito tempo no me sentia to orgulhoso! Parabns a todos, assim que se constri uma nao, palavras do leitor Jos Carlos Soares de Azevedo. Interessante notar o tom de orgulho, esperana e satisfao com uma operao que teve ares de guerra, enquanto a instalao da UPP no Santa Marta, sem nenhum tipo de conflito, no despertou tal sentimento nos leitores dO Globo.

As aes desencadeadas no Complexo do Alemo so vistas pelos leitores de maneira geral como necessrias para o estabelecimento de uma paz, uma ordem, e para a construo de uma cidadania, ou a implantao de um ideal nacional que de certa forma no se observava dentro daquele territrio. Definir os territrios de pobreza pela falta um discurso recorrente historicamente. O projeto dos Parques Proletrios tinha em sua essncia a necessidade de se transportar aos favelados ideais cvicos, de cidadania e higiene, caractersticas que lhes faltavam para que pudessem integrar a sociedade organizada (Burgos, 2006).

14 Fonte: Website do jornal O Globo, disponvel em http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00-CABRAL+DEFENDE+ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html, acesso em 9 abril 2012.

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No percurso histrico, como analisado brevemente nesse trabalho, a favela possuiu diversas imagens, que guiaram as polticas pblicas e o modo de relao da populao fora das favelas nesses territrios. Com a entrada do trfico, especialmente o de cocana, no Rio de Janeiro, a sociabilidade dentro das favelas modificada, colocando a violncia como um fator corriqueiro nesses territrios15. A possibilidade da ao violenta, to presente em seu cotidiano, modifica o modo pelo qual sua populao residente se relaciona com o territrio, seus vizinhos e at mesmo fora de suas casas, muitas vezes engrossando as opinies que tm a favela como um smbolo negativo na cidade.

A ideia de fala do crime, formulada por Caldeira (2000), engloba todas as narrativas em que a tnica seja crime e/ou medo, sejam elas conversas, narrativas, piadas, debates, etc. Nesse contexto, o discurso miditico mantm um papel fundamental, porque ele quem informa aos indivduos, algumas vezes exclusivamente, casos de violncia experimentados por parte da populao. Minha hiptese de que a repetio dos casos de violncia e a ampla cobertura, especialmente no caso da tomada do Alemo, produz um clima de tenso e perigo permanente e iminente, mas esse um tema para um trabalho futuro. Esses sentimentos se espalham no se restringindo apenas ao territrio alvo da interveno estatal. Deste modo, a fala do crime alimenta um ciclo onde o medo e a insegurana so trabalhados e reproduzidos, e a violncia, ao passo que combatida, tambm ampliada (Caldeira, 2000).

O modelo de policiamento voltado para o combate se choca com as ideias de policiamento comunitrio por partirem de fomentos diferentes. Ao passo que o primeiro tem como foco o combate ao crime, o segundo se prope a ser um servio populao, respondendo s suas demandas e focando-se na preveno ao crime. Esses ideais moldam as estruturas de cada modelo. Por focar-se no crime j ocorrido, o policiamento de combate exige que seu efetivo adote uma postura guerreira, com condicionamento fsico e tticas de combate, necessrios para as operaes que envolvem armamento blico pesado e veculos blindados.

Partindo da premissa de que esse modelo no eficiente (Moore, 2006), surgiu a necessidade de se pensar um novo modelo de policiamento que se preocupasse com a preveno do crime e que mantivesse uma maior afinidade com a populao. O policiamento para resoluo de problemas, o de proximidade e o comunitrio, prope uma nova dinmica para a segurana pblica, dando maior participao populao local. Cada policiamento guarda suas prprias especificidades, mas prope da mesma maneira a aproximao entre polcia e comunidade. As UPPs em sua concepo guardam elementos do policiamento comunitrio, e se qualificam como tal16, pretendendo levar a paz para os territrios onde o trfico se instalou.

Quando contrapostos os discursos com relao implantao da primeira UPP e os eventos ocorridos no Complexo do Alemo, fica clara a permanente tenso entre os modelos de policiamento. Alm disso, em uma correlao, as ideias de paz e guerra so trabalhadas, em um processo simblico que choca imagens, palavras e signos conflitantes na confeco do discurso. Talvez a matria mais representativa desse aspecto seja a veiculada no dia 18 de dezembro de 2008, onde o treinamento dos policiais destinados ao policiamento comunitrio ilustrado com a fotografia de um treino de tiro17. Nessa matria, policiamento comunitrio e combativo se sobrepem dando a tnica de todo o discurso estudado.

Todos os recursos informativos (textos, imagens, infogrficos) se combinam e formam um arranjo de significados em cada matria, que no seu conjunto informam muito mais do que a mera notcia. Por meio do choque entre textos, reportagens e imagens distintas podemos flagrar os mecanismos pelos quais o jornal construiu seu discurso e assim enxergar os caminhos, opes e posies que escolheu. As delimitaes utilizadas para criar a reportagem final so meios de organizar a realidade e lhe dar sentido. Nesse sentido, mais do que apenas informar, o discurso miditico do jornal O Globo, no perodo estudado, guia seus leitores para uma interpretao da realidade. No que toca estritamente s questes analisadas nesse trabalho, podemos perceber a grande midiatizao dos eventos violentos que ocorreram no Rio de Janeiro e as operaes realizadas no Complexo do Alemo e da Penha. Alm de cobrir os fatos simplesmente, o jornal se utiliza de outros meios para agregar valores ao discurso, como na discusso sobre terrorismo e os inmeros infogrficos que se assemelham 15 Cf. Machado da Silva, 2000. 16 Fonte: http://upprj.com/wp/?page_id=20. 17 Ver seo Santa Marta.

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aos que so utilizados quando a temtica so as guerras e outros eventos extremos. E, ao se analisar os eventos ocorridos no Santa Marta, nota-se o quo baixa foi a cobertura da entrada dessa nova lgica de policiamento. Quando as duas coberturas so comparadas fica evidente a escolha por noticiar eventos violentos e at mesmo exager-los18.

Ao fim e ao cabo, a presena das caractersticas de cada modelo de policiamento no discurso estudado revela a indefinio da escolha de um modelo a ser adotado. certo que o modelo combativo de policiamento permanece arraigado na cultura policial, inviabilizando algumas medidas com o intuito de modificar essa lgica19. At mesmo ao analisar a definio de UPP utilizada no site oficial, no fica clara a escolha de um modelo de policiamento20.

O que se nota de forma contundente a valorizao de eventos violentos e a criao de um cenrio de guerra, utilizando para isso smbolos e ideias que fazem interface com caractersticas especficas, sendo a Segunda Guerra Mundial um dos exemplos mais utilizados na cobertura dos eventos no Complexo do Alemo. A falta de cobertura no caso da inaugurao da primeira UPP, sediada no morro Santa Marta, tambm revela a escolha do jornal. De certa forma, a relativa paz experimentada nesse evento no interessante, apesar do apoio visto em pequenos discursos tmidos em algumas partes do jornal21. Essa falta de interesse na inaugurao da UPP no morro Santa Marta pode ser vista pelo espao que notcias sobre os uniformes dos policiais militares e questes referentes alimentao dos mesmos ganharam. Essas temticas foram amplamente trabalhadas, se configurando como a temtica sobre segurana pblica nesse perodo.

Ambas as lgicas se fazem presentes em praticamente todo o discurso estudado. Policiamento comunitrio e o voltado para o combate, paz e guerra, convivem dentro do mesmo discurso. Em reportagens em que a temtica somente o policiamento comunitrio, por exemplo, smbolos do policiamento de combate (forte hierarquia, ideais guerreiros, armamento pesado, etc.) so veiculados conjuntamente. De certa forma, essa interao mais visvel quando o tema policiamento comunitrio, que sempre acompanhado de alguma reportagem e/ ou imagem que liga as caractersticas do policiamento de combate matria.

O estudo do discurso miditico com relao segurana pblica pode auxiliar na discusso das polticas como um todo. Como dito, o discurso orienta a leitura do mundo, e um jornal de grande circulao atinge um considervel nmero de pessoas, que de certa forma sero atingidas por essa lgica de ordenamento da realidade. A convivncia dos smbolos dos dois tipos de policiamento revela que ideais e caractersticas tradicionais do policiamento ainda esto muito arraigados e permanecem como grandes estruturadores da realidade quando os assuntos so violncia, polcia, crime e segurana pblica.

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18 Para uma analise mais profunda sobre a relao entre mdia e violncia cf. Sodr, Soares e Kosovski (1994). 19 Cf. Poncioni, 2005. 20 Fonte: http://upprj.com/wp/?page_id=20. 21 Ver seo Santa Marta.

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