2181-6021-1-PB

download 2181-6021-1-PB

of 10

Transcript of 2181-6021-1-PB

  • 7/25/2019 2181-6021-1-PB

    1/10

    Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maring, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003

    O conceito de poder na filosofia poltica de arslio de Pdua

    Czar de Alencar Arnaut de Toledo* e Peterson Razente Camparotto

    Departamento de Fundamentos da Educao, Universidade Estadual de Maring, Av. Colombo, 5790, 87020-900, Maring,Paran, Brasil. *Autor para correspondncia. e-mail: [email protected] e [email protected]

    RESUMO. Marslio Mainardini, jurisconsulto e estudioso da poltica, nasceu em Pdua,Itlia, por volta de 1280 e viveu at 1343. Filho de um notrio da prestigiada UniversidadePatavina, estudou Direito em sua cidade natal, notvel centro da cultura jurdica da poca.Ele foi grandemente influenciado pela filosofia aristotlica, fato que pode ser verificado emsua obra:Defensor pacis(1324) na qual exps uma filosofia poltica delineada pelo esforo deconstruo de uma noo de Estado (ou governo) livre das arbitrariedades da cortepontifical de Roma (ou de Avinho). Seu conceito de soberania do povo contribuiugrandemente para a laicizao do Estado e do Poder, numa antecipao da Modernidade

    Poltica, construda a partir do sculo XVI. O texto enfoca mais detalhadamente seuconceito de poder por meio da anlise do modelo de organizao civil do Estado e tambmde seu repdio s ingerncias eclesisticas sobre os governos civis. A edio do Defensor dapazaqui utilizada a traduo brasileira de 1994.Palavras-chave:Marslio de Pdua, filosofia poltica, sculo XIV, poder.

    ABSTRACT. The Concept of Power in Marsilius of Paduas Political Philosophy.

    Marsilio Mainardini, called Marsilius of Padua, jurist and studious of politics was born inPadova, Italy, around the year 1280 and lived until 1343. His father was an important juristat the prestigious University of Padua. He studied Law in his hometown, that was anoutstanding juridical culture center of that time. He was influenced by AristotlesPhilosophy, a fact that can be verified on his work:Defensor pacis(1324) in which he exposeda political philosophy delineated by the construction effort of a State notion (orgovernment) free from the arbitraryties of the Roman pontifical court (and from Avignon).His concept of popular sovereignty contributed for secularization of the State and the

    Power, as an anticipation of the Political Modernity, built from the 16th

    century. The textfocus more details on the concept of power through the analysis of its State civilorganization model and also, the authors rejection to ecclesiastical interferences on civilgovernments. The edition of Defensor of Peace, which is used in this paper, is the Braziliantranslation from 1994.Key words:Marsilius of Padua, political philosophy, 14 thcentury, power.

    O tema do presente artigo o conceito de poderna filosofia poltica de Marslio de Pdua (1275-1343), poltico e jurista que, ao aderir ao partido dosgibelinos, cerrou fileiras ao lado daqueles quelutavam contra as pretenses papais de domniosobre o poder temporal. Sua mais importante obra oDefensor pacis(O Defensor da Paz) de 1324. Nela o

    autor formulou sua teoria de poder sustentando umargumento que prescindia do direito divino. Paraele, a sustentao do poder a soberania do povo.Devido a isso, considerado precursor dosmodernos. Sua passagem pela Universidade de Paris,onde comeou a ensinar em 1310 e exerceu o cargode reitor no ano de 1313, alm de seu apoio aoimperador Lus IV, da Baviera (imperador de 1314 a1347), rendeu-lhe perseguio e acusao de heresia

    (Frlich, 1987: 104). Sua viso de mundo deve,portanto, ser sempre considerada em funo dapoca em que ele viveu e das questes polticas queencarou. Marslio de Pdua testemunhou parte docativeiro de Babilnia da Igreja (1309-1376) -perodo em que a sede do papado foi transferida paraAvinho, no sul da Frana, onde sofreu fortssima

    influncia poltico-administrativa dos reis deFrana.1 O sculo XIV foi um perodo deturbulentas relaes entre o papado, os reis eimperadores. E foi em meio ao clima poltico tensoentre os governos civis e a cpula da Igreja que

    1 Veja-se ARNALDI, G. Igreja e papado. In: LE GOFF, J.;SCHMITT, J. C. Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval,v. I,p. 567-589, especialmente p. 584-587.

  • 7/25/2019 2181-6021-1-PB

    2/10

    268 Arnaut de Toledo e Razente Camparotto

    Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maring, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003

    Marslio de Pdua construiu sua filosofia poltica. Astensas relaes entre o Imperador Lus IV, do SacroImprio Romano Germnico e o papado,especialmente no perodo do pontificado do papaJoo XXII (Fischer-Wollpert, 1991: 107-108)2 na

    disputa pela administrao ou domnio de terras,3contribuiu, certamente, para a formao da visopoltica antipontifical de Marslio de Pdua. Adisputa no era novidade, porm, eram diferentes ostempos que viam nascer justificativas como as deMarslio de Pdua, claramente civis, para oferecersustentabilidade terica ao poder dos governantes(reis ou imperadores).

    Nossa anlise do conceito de poder na filosofiapoltica de Marslio de Pdua parte de sua principalobra, Defensor pacis (1324). Ela dividida em trspartes e a primeira parte contm sua filosofia polticapropriamente dita. Segue-se a segunda, que, alm deseu contedo poltico, revela as concepeseclesiolgicas de Marslio de Pdua. Ambas as partesso retomadas na terceira e ltima: a concluso.Inicialmente, o pensador paduano procuroudemonstrar que o poder somente atuaria em umasociedade poltica consolidada. Desse modo, quandoa comunidade civil evolusse das formas imperfeitaspara as formas mais aperfeioadas, o poder adquiririasubstrato para seu exerccio jurisdicional. Dessemodo, o poder teria seu exerccio sob a condio deformas polticas perfeitas, isto , institucionalizadas,para o seu controle e eficcia. Conforme Marslio dePdua, essa perfeio, semelhana da natureza,seria resultado de um processo evolutivo racional de

    organizao das partes em relao ao todo. Ento,percebe-se que o poder no tem condies de atuarem benefcio do homem a partir de indivduosisolados, pois, de acordo com o filsofo paduano:

    O ser humano, na maioria das vezes, est mais inclinado afazer o mal impelido ou pelo amor ou pelo dio ou pelacobia ou sob presso de splicas ou ainda na esperana devir a gozar de um beneficio ou prazer qualquer4.

    O poder, atuando coletivamente, deveriacontrolar essa inclinao malfica do homem. A leihumana, por meio do poder contido em sua

    2 Trata-se de Jacques Duse, eleito papa em 07 de agosto de

    1316 por um Colgio, no qual, 17 dos 24 cardeais eramfranceses, e os demais, italianos. Seu pontificado durou at suamorte em 4 de dezembro de 1334, quando tinha 89 anos e foifortemente marcado pelas disputas e guerras que protagonizou.Outras marcas distintivas de seu pontificado foram: o nepotismoe o aumento da presena francesa no colgio cardinalcio.

    3 Cf: DUFY, E. Santos e pecadores. p. 123-125. Veja-se tambm:COLLINS, M.; PRICE, M. A. Histria do cristianismo. p. 118-119,2000.

    4 MARSLIO DE PDUA. O Defensor da paz, Primeira parte,Captulo XVI, pargrafo 5. Doravante indicado da seguinteforma: DP, seguido da parte (I, II ou III), do captulo, oucaptulos, e do pargrafo, quando necessrio, 1994.

    essncia, controla os excessos da vontade e da razohumanas. Pode-se constatar que a vontade e a razohumanas possuem excessos em seus mecanismos emvirtude da supramencionada inclinao malfica danatureza imperfeita do homem. Nota-se,

    inusitadamente, que a mesma razo que concebe alei controlada por esta em seus excessos. Percebe-se nessa relao entre lei e poder um paradoxo, poisa mesma vontade que constitui o poder na leitambm controlada pela mesma lei. Como podehaver controle atravs de um poder originalmenteeivado de excessos? Assim, o problema da filosofiapoltica marsiliana est na prpria natureza humana.Marslio de Pdua tentou resolver esse problema apartir da superioridade numrica e da qualidade derazes a servio do processo legislativo, numacoletividade maior: a sociedade civil. Por isso,Marslio de Pdua afirmou que a lei umenunciado ou princpio que procede duma certaprudncia e da inteligncia poltica.5

    Pode-se perceber que o poder, na filosofiapoltica marsiliana, deveria estar a servio da paz e dasobrevivncia do homem na comunidade civil.Conforme Marslio de Pdua, o sentimento decaridade sobrenatural e a cooperao entre oshomens viabilizariam a vida em sociedade. Klmelafirma que a filosofia poltica marsiliana apresenta ohomem exclusivamente em sua dimenso social6.Assim, o exerccio do poder seria aperfeioado pelasrelaes de cooperao social. O filsofo paduanoentendia que uma pluralidade de legisladoresescolhidos proporciona uma superioridade numrica

    ou quantitativa e qualitativa de experincias einteligncias a servio do poder. Marslio de Pduasalientou que a lei um olho constitudo porinmeros olhos.7 Pode-se notar que a cooperaoou ajuda mtua entre os cidados aperfeioaria odevido controle do exerccio do poder jurisdicional,que atuaria circunscrito pelas leis elaboradas a partirda cooperao de vrias inteligncias polticas noprocesso legislativo.

    Pode-se perceber que a razo, sob a forma deinteligncia poltica, por si s no seria suficienteenquanto processo legislativo. Sob essa perspectiva,o poder no seria controlado somente pela razo oupela prudncia poltica. Seu exerccio tambm relacionado s virtudes como a justia e a eqidade,por exemplo. Com base nisso, no bastaria ocontrole racional do poder, mas, seria necessrio queeste atuasse no mbito da justia requerida. Por isso,

    5 Idem, ibidemI, X, 46 KLMEL, W. Universitas civium et fidelium: kriterien der

    sozialtheorie des Marsilius von Padova.In: Medioevo. p.70.7 MARSLIO DE PDUA. DP I, XI, 3.

  • 7/25/2019 2181-6021-1-PB

    3/10

    O conceito de poder na filosofia poltica de Marslio de Pdua 269

    Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maring, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003

    Marslio de Pdua demonstrou a importncia da leicrist ou evanglica que, segundo ele, imprimiriajustia e bondade aos atos humanos, no mundotemporal. Marslio de Pdua constatou que asreligies seriam como leis que contribuiriam para o

    aperfeioamento dos atos humanos que j estonormatizados pela lei humana ou civil. Assim, asconcepes extradas das virtudes da religio como abondade, o amor fraternal e a justia colaborariamno sentido de propiciar o exerccio de um poderpoltico temperado e eqitativo. Gilson, a esserespeito, observa que, na filosofia poltica marsiliana,os sacerdotes existem para ensinar o Evangelho,primeiro tendo em vista a salvao eterna e,acessoriamente, para facilitar a tarefa da polcia(Gilson, 1998: 862).

    Pode-se constatar que na filosofia polticamarsiliana, o exerccio jurisdicional do poder no selimitaria ao homem, considerado individualmente.Assim, a formao da comunidade civil seriacondio para o exerccio do poder. Marslio dePdua reforou essa concepo, quando indicou ainclinao natural do homem para a plenitude de suasuficincia na vida em sociedade. Desse modo, opoder ou a autoridade do governante, exercido nocontrole racional das leis, deveria dispor e organizarracionalmente as vrias funes e aptides dosgrupos sociais, para proporcionar e suprir asuficincia e a autonomia do reino ou da sociedadecivil. O poder, nessas bases tericas, deveria estar aservio da sobrevivncia humana diante de suasnecessidades materiais. Nessas circunstncias, a

    devida existncia humana no contexto de um gruposocial dependeria de condies materiais queproviriam dos frutos do trabalho dos diversos grupossociais reciprocamente considerados. Assim, o poderencontraria substrato em uma estrutura material deatuao na sociedade civil, em sua prpria atividadeordenadora dessa mesma estrutura. Pode-seperceber que aqui a soberania de um Estado,tambm depende de sua autonomia e independnciaeconmica. Nessa perspectiva, as caractersticasdesse modelo de poder civil estariam consoantes aoimanentismo, ou seja, tal poder possui mecanismosintrnsecos e independentes. Marslio de Pduabuscou, a partir dessa idia, enfatizar a autonomia deum reino soberano e independente.

    Ento, as partes ou classes sociais, segundo opensador paduano, so organizadas conforme a razoe o motivo de sua instituio para consolidar acomunidade civil perfeita. A razo inerente leiagregada ao poder atua no planejamento e nacomposio dos grupos sociais que esto em situaode mtua dependncia. Marslio de Pdua, inspirado

    em Aristteles, expressou essa racionalidade daorganizao civil ao atentar para a relao entre otodo (comunidade civil) e as partes (grupos sociais)ao definir as causas das origens diversas dos grupossociais. Desse modo, a causa material consiste na

    prpria humanidade. As causas formais so oshbitos considerados sob as formas das pessoas queos possuem. Essas causas formais, destacou opensador paduano, so os preceitos que a causaeficiente determinou ou outorgou s pessoas e suasdeterminadas funes.8 O pensador paduanocomparou essa organizao civil racional razo dosmecanismos da natureza que oferece autonomia esobrevivncia aos organismos em geral.

    A origem ou causa remota do poder, segundoMarslio de Pdua, Deus. Constata-se aqui ainfluncia da doutrina de So Paulo, segundo a qualtodo poder vem de Deus (Nisi potestas non a Deo est).Assim, na filosofia poltica marsiliana, o poderpresente na lei divina, por si, j seria expresso dopoder de Deus. No entanto, percebe-se que o podercontido na lei humana provm da somatria dasvontades conscientes e individuais da totalidade doscidados, por meio de um consenso. Apesar disso, acausa final ou remota dos poderes inseridos tanto nalei divina quanto na lei humana Deus. Essaafirmao explica a presena da hierarquia nafilosofia poltica marsiliana cujo pice damanifestao do poder Deus.9Conforme Marsliode Pdua, Deus, a partir do livre-arbtrio divino,concedeu liberdade razo humana para, porintermdio de seu livre-arbtrio, estabelecer seus

    governantes. Pode-se afirmar que Deus, conferindoautonomia e liberdade de iniciativa s intelignciashumanas para o estabelecimento dos governos,proporcionou-lhes autoridade e atravs da liberdadeconcedida s suas vontades, o poder de governar.Torna-se constatvel que qualquer ingernciaperniciosa no livre-arbtrio, concedido razo e vontade dos homens por Deus para oestabelecimento dos governos temporais,considerar-se-ia uma intromisso e uma ofensa aoprprio livre-arbtrio divino. Percebe-se queMarslio de Pdua estabeleceu uma conexo entre olivre-arbtrio divino e o livre-arbtrio humano. Aconcesso divina do poder e da liberdade degovernar, no mbito do livre-arbtrio humano, olimiar exato da laicizao da filosofia poltica dopensador paduano. O pensador paduano afirmouque Deus estabelece os governos por meio da razo

    8 MARSLIO DE PDUA. DP I, VII.9 Idem, ibidemI, IX, 2.

  • 7/25/2019 2181-6021-1-PB

    4/10

    270 Arnaut de Toledo e Razente Camparotto

    Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maring, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003

    humana, qual conferiu liberdade para efetivar talinstituio.10

    De acordo com as analogias desenvolvidas pelopensador paduano, o sentir do conjunto doscidados agiria como princpio ou como causa

    motora, atravs da vontade consensual dos cidados,imprimindo fora ou lei e poder ou autoridade noprimeiro e mais nobre rgo do organismo social, aclasse governante. O poder ou autoridade considerado o calor ou energia global proveniente dasoma de todas as vontades dos cidados, ordenadasnum consenso. Esse poder ou autoridade contida nalei consiste no prprio poder coercivo da mesma.Tal consenso de vontades, na viso de Barani, no somente um procedimento de assembliaparticipativa para estatuir leis, e sim umatransferncia de poder parte preponderante(valentior pars), equiparada ao povo (Barani, 1979:266). Pode-se notar que esse poder ou jurisdiocoerciva a razo da existncia da lei. possvelconstatar, na filosofia poltica marsiliana, que opoder e a lei possuem uma interdependnciafundamental. Desse modo, a lei no existe sempoder e este no tem razo de existir sem a lei. Essadependncia mtua entre lei e poder conduz a umparadoxo. Como pode ser o poder condio deexistncia da lei que , ao mesmo tempo, condiode existncia do poder? Percebe-se um esforoterico de Marslio de Pdua na busca de umimanentismo poltico, onde as causas e as origensdos instrumentos de exerccios do poder sobuscadas neles mesmos. Assim, o pensador paduano,

    por meio desse modelo poltico imanentista,contrariou os partidrios da teocracia pontifical queteorizavam um modelo poltico transcendentalista,sob o manto da teologia. Esse veemente ataque dofilsofo paduano em busca de uma sociedade polticaautnoma, porm, possui um paradoxo originrio daprpria contrariedade da natureza humana, incapazde formar um poder totalmente autnomo eindependente em razo de sua imperfeio original.Segundo Marslio de Pdua:

    Na verdade, um poder no qualificado como lcito ouilcito, e a diferena que h entre ambos no pode ser notadaseno atravs de atos lcitos ou ilcitos dele decorrentes ou quepodem acontecer por seu intermdio11.

    Esse modelo poltico autnomo e imanentista,teorizado por Marslio de Pdua, fora reflexo de suaformao escolstica. A lgica aristotlica aplicada filosofia poltica marsiliana propiciou a formao deum sistema poltico auto-suficiente, que se justificou

    10 Idem, ibidemI, IX, 2.11 MARSLIO DE PDUA. DP II, XIII, 7.

    por razes prprias e independentes. Esse sistemapoltico hermtico propiciou a formao da razohistrica de uma sociedade civil com bases tericasprprias. Pode-se constatar que uma conseqnciadessa razo prpria do sistema poltico escolstico a

    evidncia de uma razo de Estado em Marslio dePdua. De Sousa identificou em Marslio de Pdua,na obra Defensor pacis, a antecipao do princpio darazo de Estado12. Marslio de Pdua, ao compararesse sistema lgico da sociedade civil a umorganismo autnomo, afirmou que as aes nessemodelo orgnico e suficiente de comunidade civilno so isoladas, pois causam efeitos em todo oorganismo social e civil. A ao poltica e, portanto,pblica, deve estar voltada para o todo social. Porisso, ela requer a somatria de vontades, fruto doconsenso do conjunto da populao. Percebe-se queessa somatria de vontades se configura na ao pormeio da unidade quantitativa da ao, que quesitocivil para se considerar um governo unitrio oudetentor da unidade numrica. Ainda segundo ofilsofo paduano, qualquer ao do prnciperepresenta a ao de toda a comunidade civil.13

    A partir das analogias feitas pelo filsofopaduano, o poder ou calor consiste em uma energiaque se propaga desordenadamente, e deve sercontrolada pela lei humana.14Nessa perspectiva, a leihumana regula os atos voluntrios, pelos quais essepoder da lei originado do impulso ou energia daprpria vontade humana e imperfeita em suanatureza, e que se manifesta em relao a umapessoa ou objeto exterior. Tais atos humanos

    voluntrios, segundo Marslio de Pdua, sodivididos em controlados e no-controlados. Os atoscontrolados transitivos ocorrem a partir demovimentos de rgos externos. Esses atos, nafilosofia poltica marsiliana, so importantes para acompreenso do poder, pois ele exercido atravs daexteriorizao desses atos, como a posse, porexemplo. Ento o poder contido na lei deve tambmse exteriorizar para controlar com eficcia os atoshumanos voluntrios controlados transitivos. Se aunidade quantitativa da ao obtida pela soma dasvontades humanas da parte preponderante, suaexteriorizao s pode se efetivar atravs de atoshumanos controlados transitivos, pois sua origem uma vontade consensual de natureza humana.Trata-se, portanto, de um poder genuinamentehumano proveniente da natureza humana e, numplano coletivo, de um poder civil. Percebe-se que a

    12 Veja-se: Razo de Estado. In: DE SOUSA, J. P. G. et al.Dicionrio de Poltica.p. 451.

    13 MARSLIO DE PDUA. DP I, XV, 4.14 Idem, ibidemI, XV, 5 e seguintes.

  • 7/25/2019 2181-6021-1-PB

    5/10

    O conceito de poder na filosofia poltica de Marslio de Pdua 271

    Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maring, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003

    valorizao do indivduo, enquanto ser ouorganismo que tem o poder de exteriorizar atos apartir de sua vontade, e se projeta no modelopoltico de sociedade civil que, a partir de umaassociao de homens (de vontades), tambm

    exterioriza seu poder por meio de atos. Na filosofiapoltica marsiliana, a esfera do agir est voltada parao pblico, pois a esfera do agir, de acordo comsua finalidade requerida, consiste em prover asuficincia comum maior parte dos cidados nestavida.15 J no tocante lei divina, ela poderegulamentar tanto os atos humanos controladostransitivos quanto os imanentes, contribuindo para apaz nos regimes civis de governo.16

    Percebe-se que o poder do legislador humano,que parte das vontades conscientes do conjunto doscidados, legtimo em seu exerccio. Ento, pode-se notar que a legitimidade presente na esfera dopoder divino est tambm presente na esferatemporal ou humana do exerccio de poder. A causade tal legitimidade est na liberdade concedida porDeus aos homens para o estabelecimento dosgovernos temporais com reflexo no consensopopular de transferncia de poder para o legisladorhumano. Essa legitimidade dos governos temporaisde origem divina sugere que a medida da liberdadeda razo legiferante nos planos divino e humano, porpossurem Deus como causa remota, evidenciamalguma inter-relao. O filsofo paduano, na obraDefensor pacis, prope uma relao ao menos indiretaentre lei humana e a lei divina, o pice da hierarquiadas leis. Entre essas leis, indicou uma espcie de

    direito natural, que conhecido pelos povos de todoo mundo e so considerados direitos naturais pormetalepse. Quanto relao entre as leis humana edivina, o pensador paduano afirmou:

    Todavia, sempre se deve considerar algo lcito ou ilcito, antessegundo o que estabelece a lei Divina do que a humana,especialmente nos casos em que h divergncia entre ambasquanto a seus preceitos, proibies e permisses17.

    Pode-se dizer que o poder somente deve existircom a lei, pois a razo livre concedida por Deuspara ditar leis que proporcionam o exerccio polticodo poder, imprimindo a autoridade legtima dessaliberdade de origem divina ao prprio poder

    governante, operado nos moldes dessa mesma lei. Apartir dessa concesso divina, Marslio de Pduaacentuou o carter racional, autnomo e, portanto,civil, do poder na sociedade poltica. Pode-se dizerque a legitimidade do poder de origem divina que se

    15 Idem, ibidemI, XII, 7.16

    Idem, ibidemII, VIII e IX.17 Idem, ibidemII, XII, 9.

    localiza no pice da hierarquia das leis consiste, emltima instncia, numa ligao entre o homem eDeus concebida de modo especial pelo cristo naIdade Mdia. A esse respeito, De Libera afirma:

    Percebe-se aqui que a atitude de alguns modernos quedenunciam nas burocracias autoritrias um respeito quasereligioso pela hierarquia, subestimam e desconhecem oprprio alcance da noo que eles utilizam: a idia dehierarquia inicialmente religiosa, depois, com oCristianismo, eclesistica, antes de ser poltica. A visohierrquica da ordem poltica a politizao de umaestrutura originariamente religiosa, no a sacralizao deuma estrutura originariamente poltica (De Libera, 1998:455-456).

    A hierarquia, de origem religiosa, influenciou apoltica de Marslio de Pdua. O universo culturaldo cristo medieval compreendeu como cartersagrado o papel atribudo aos reis. Os reis, segundorelatos medievais, curavam afeces ganglionares(escrfulas) com um simples toque e um sinal dacruz. Felipe IV, o Belo, rei da Frana, mesmopossuindo um grande aparato jurdico-poltico emseu governo, no se dispensou de praticar tais rituaisde cura, demonstrando uma suposta manifestao deum poder religioso na consolidao do seu poderpoltico.18 Marslio de Pdua, definitivamente, noafirmou a existncia de um poder sagrado ou divinonos reis, porm, imbudo dessa cultura do cristomedieval, valorizou a figura do imperador. Talcompreenso pode ser relacionada com a valorizaodo Novo Testamento por Marslio de Pdua emdetrimento da hierocracia pontifical que utilizou o

    Antigo Testamento para legitimar o poder do SumoPontfice, pois pode-se perceber que, a partir daNova Lei, Deus se humanizou em Cristo para estarentre os homens. Assim, a ligao entre o homemmedieval e Deus, atravs da hierarquia, evidenciou-se com mais fora na filosofia poltica. Acerca dadignidade dos reis, Marslio de Pdua afirmou queconsiderando, pois, o fato de que Cristo no foinem rei e senhor tanto do imperador romanoquanto de qualquer outro monarca ou prncipe, masbem mais seu igual.19

    O poder coercivo, na filosofia poltica marsiliana,ganha propores globais de atuao no organismosocial quando se exterioriza e se irradia por meio dageneralidade da lei apoiada no prprio aparatomilitar e coercivo. Nessas propores, o filsofopaduano denominou o poder de esprito que,atravs de uma unidade quantitativa de ao, ageem todo o organismo civil ao ser requerido o seu

    18 Cf: BLOCH, M. Os Reis Taumaturgos, passim, 1993.19 MARSLIO DE PDUA. DP I, XIX, 10.

  • 7/25/2019 2181-6021-1-PB

    6/10

    272 Arnaut de Toledo e Razente Camparotto

    Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maring, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003

    exerccio. No entanto, h casos excepcionais em quea amplitude rigorosa da lei no prev determinadassituaes concretas, constituindo uma omisso oulacuna da lei. Sob essas circunstncias, percebe-seque o poder ou a autoridade delegada ao governante

    perde sua forma de controle ou limite de atuao.Assim, na ausncia da fora universal de causalidadeda lei, o monarca detm todo esse poder originadoda vontade consensual dos sditos, ao seu livre-arbtrio. Nessa situao excepcionalssima, ogovernante prudente e justo deve temperar a atuaodo poder disponvel sua discrio. Trata-se do usoda eqidade ou epiquia que, conforme Marsliode Pdua, uma interpretao benvola e flexvelque mitiga a omisso ou amplitude rigorosa das leis.

    Segundo o filsofo paduano, o conceito dejustia nas leis o que serve melhor ao interesse dacidade ou sociedade civil e aos grupos sociais, maisespecificamente, ao conjunto dos cidados. Logo,constata-se que o poder deve ser exercido de acordocom as leis elaboradas para propiciar o bem comuma todos. O conceito de lei, para Marslio de Pdua,tomado em si mesmo, ao revelar a medida exata dojusto e do til para a sociedade civil, chamado dedoutrina ou cincia do direito ou ainda cinciaacerca dos atos civis. Esse mesmo conceito, aoestipular ou impor um preceito coercivo ou umapena especfica, denomina-se lei no sentido maisestrito e correto. De acordo com o pensadorpaduano, a necessidade de legislar est na realizaocorreta dos julgamentos civis preservados, na medidado possvel, das imperfeies dos atos humanos

    decorrentes dos excessos da inteligncia e davontade. Sob essa tica, o juiz deve se condicionar aopreceito determinado na lei, respeitando a seguranado princpio da legalidade para os governostemporais.

    Esse princpio da legalidade est apoiado numapluralidade de legisladores eleitos e dotados derepresentatividade perante a parte preponderante.Percebe-se que Marslio de Pdua tentou resolver omencionado paradoxo da natureza humana em suafilosofia, a partir da quantidade e da qualidade deinteligncias envolvidas no governo temporal. Umreflexo disso a importncia somente conferida maioria (parte preponderante) da totalidade doconjunto dos cidados. Sendo assim, se uma minorialegislasse em proveito prprio, estaria ferindo aliberdade dos demais cidados. Segundo o filsofopaduano, a liberdade dos civis est em obedecer auma norma constituda e estabelecida pelo prprioagente que a ela se deve submeter. Essa reflexoinsere Marslio de Pdua nas tendncias docontratualismo medieval, que culminou em teorias

    constitucionalistas. A concepo de legisladorhumano suscita ambigidades na obra Defensor pacis.Apesar de o governo ser uno, de a jurisdio ser una,h uma composio pluralista de membros noexerccio do poder que legislam, julgam e executam

    decises na sociedade civil. De Souza apresenta umasoluo para essa dvida:

    primeira vista, os captulos iniciais do Defensor pacissugerem que cada um desses poderes exercido por umapessoa diferente, mas na segunda parte daquela obra, noDefensor minor e no De Iurisdictione, percebe-se claramenteque o Legislator Humanus-Princeps so a mesma pessoa.20

    Marslio de Pdua, em que pese haver teorizado asoberania de um reino atravs da unidade numrica, reconhecido como um precursor da separao dospoderes (Bonavides, 1992: 148). H quem defendaainda que o paduano , entre outros, o primeiroescritor que distinguiu o poder executivo do poder

    legislativo (Mosca, 1980: 93). Conforme foimencionado por Marslio de Pdua, a lei,proporcionando uma sociedade poltica temperada,est livre da malcia e da ignorncia humanas, o que imprescindvel aos julgamentos civis. Desse modo,as causas ou objetivos precpuos da lei consistem emconcorrer para a justia e o bem comum, promover aorganizao social e proporcionar segurana eestabilidade governamental sociedade poltica. Ocumprimento da lei, segundo o pensador paduano, possvel mediante uma fora coerciva exercida porum grupo militar ou defensivo, cuja funo primeiradeve estar a servio da execuo do poder. Ento, opoder, atravs desse aparato militar, exterioriza-sepor ocasio da transgresso da lei. Isso decorre danecessidade do controle efetivo dos atos humanoscontrolados transitivos. Quanto ao carter fsico emilitar da exteriorizao do poder, o pensadorpaduano esclareceu que h um grupo militar oudefensivo, ao qual muitas dentre as artesmecnicas [grifo nosso] prestam servio.21

    O filsofo paduano notou que a religio pode serconsiderada lei ao prescrever uma norma e arespectiva punio no outro mundo. A retificao, ainterpretao e a supresso das leis humanascompetem somente autoridade do legisladorhumano. A pessoa que detm o poder de fazer

    cumprir as leis o conjunto dos cidados ou suaparte preponderante. Assim, essa pessoa quedispe da fora coerciva contra transgressores dalei.22A lei, entendeu o filsofo paduano, tempera o

    20 DE SOUZA, J. A. de C. R. Marslio de Pdua e o Deiurisdictione imperatoris in causis matrimonialibus. In:Leopoldianum. p. 159-160, 1984.

    21 MARSLIO DE PDUA. DP I, V, 8.22 Idem, ibidemI, XII, 5.

  • 7/25/2019 2181-6021-1-PB

    7/10

    O conceito de poder na filosofia poltica de Marslio de Pdua 273

    Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maring, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003

    poder e assegura liberdade e vida suficiente a todosos grupos sociais organizados na sociedade civil.Desse modo, Marslio de Pdua aconselhou que oprncipe deve estar atento a esse detalhe, pois suasvirtudes no cumprimento da lei despertam a

    reverncia e a observncia das normas jurdicas pelossditos. Nesse aspecto, sendo o prncipe faltoso naobservncia da lei ou tirnico em suas aes, podevir o monarca a ser deposto pelo conjunto dapopulao.

    Pode-se afirmar que o respeito lei consistenuma espcie de educao cvica, uma educao aservio do poder, na teoria poltica marsiliana. Seupoder no se restringe exteriorizao da fora fsica,mas preconiza uma educao baseada em preceitosmorais numa comunidade civil pela paz. A leipossui, nesse sentido, um enunciado deconhecimento, de inteligncia poltica. Infere-sedisso a ateno disponibilizada pelo pensadorpaduano ao processo legislativo. A comear pelaprudncia e inteligncia requerida pela classe socialdos legisladores. Quando Marslio de Pdua fez umacomparao figurada entre a lei e um olhoconstitudo de inmeros olhos, interpreta-se que oolho, segundo o filsofo paduano, um dos rgosmais nobres do corpo porque grande responsvelpela recepo do conhecimento. A nobreza do olhoest em sua capacidade de apreender fatos econhecimentos. Acerca disso, o pensador paduanoobservou que as imagens ou simulacros e asespcies das coisas que, de certo modo, so para aalma a base para o conhecimento23.

    Percebe-se que o conhecimento acerca do que justo e til para a sociedade civil redunda no prprioconhecimento da lei, na filosofia poltica marsiliana.Na segunda parte da obra Defensor pacis, Marslio dePdua denotou a importncia desse aprendizado,quando disse que os membros da Igreja deveriam serpunidos com mais severidade, pois j conhecem eprofessam essa educao nas virtudes das leis dareligio. Outro indcio dessa importante funoeducadora do poder, constata-se na importncia queo filsofo paduano atribuiu s disciplinas operativasem sua filosofia poltica. Remotti identifica essatendncia na filosofia poltica marsiliana, aoevidenciar nela um modelo pedaggico destinado aformar uma identidade pessoal, social e histrica doscidados, prpria do contratualismo. Remottiressalta que, no Defensor pacis, a lei no provmsomente da autoridade, pois discutida e aprovadaem assemblia pelos que a ela esto obrigados.24

    23 Idem, ibidemII, II, 5.24 REMOTTI, R. Il Paradigma del diritto e le modalit dellintervento

    pedagogico. Disponvel em: Acesso em: 14 Jun. de 2002.

    25 MARSLIO DE PDUA. DP I, X, 5.26 MARSLIO DE PDUA. DP I, IX, 7.27 Idem, ibidemI, XII, 4.

  • 7/25/2019 2181-6021-1-PB

    8/10

    274 Arnaut de Toledo e Razente Camparotto

    Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maring, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003

    comum28. Floriano Jonas Csar define o bemcomum na filosofia poltica marsiliana:

    Devemos entender corretamente, porm, o que este bemcomum. Ele diz respeito, primeiro, vida suficientepresente, felicidade civil que, dentre todos os desejos

    possveis ao homem neste sculo, vista como o melhor e o[fim] ltimo dos atos humanos. Diz respeito, porm,tambm vida suficiente eterna, que os cidados tambmdesejam e buscam (Csar, 1994: 73).

    O filsofo paduano escolheu um tipo de governotemperado que julgou ser o mais perfeito: amonarquia real. A partir dessa escolha, Marslio dePdua dedicou a obra Defensor pacis a Lus IV, daBaviera. O monarca, segundo o pensador paduano,deve atuar atravs do exerccio do poder restrito ecircunscrito das leis. O poder deve ser temperado econtrolado tambm pelo princpio da legalidade. Ofilsofo paduano teorizou o governo representativo

    de um s. Conforme Marslio de Pdua, vriosgovernantes legitimariam vrias sentenas causandoum caos poltico e gerando prejuzos cidade, comolutas, sedies, conflitos e facciosismos. Omandatrio supremo, porm, deve governar noslimites da lei, do justo e do til sob pena de serdeposto pela populao. Essa unidade de comandoest relacionada unidade quantitativa da ao e unidade numrica do Reino. Segundo Marslio dePdua, no se trata de uma unidade absoluta, nem deuma predicao formal de uma unidade numricaqualquer, tampouco uma predicao de algumconceito universal de unidade29. Marslio de Pdua,ao conceituar a unidade numrica de um reino,

    utilizou-se de um instrumento caro aos escolsticos,a abstrao. Percebe-se que o pensador paduanoabstraiu o carter numrico do conceito de unidadede um reino, preservando as individualidades daparte preponderante, na medida em que noteorizou um conceito universal de unidade. Assim,Marslio de Pdua, a respeito da unidade numrica,reiterou que isto no significa, porm, que elassejam uma pessoa formalmente, sob determinadoaspecto, mas de fato o so, consideradasnumericamente.30

    A partir dessa abstrao do conceito de poder,pode-se perceber algumas formas de seu exerccio.

    Uma manifestao perceptvel dessa abstrao daunidade do poder o contratualismo31. Outroconceito tratado nesse modelo de poder civil foi o desoberania, caracterizada como o poder proveniente

    28 MARSLIO DE PDUA. DP I, XII, 5.29 MARSLIO DE PDUA. DP I, XVII, 11.30 Idem, ibidemI, XVII, 11.31 Veja-se Contratualismo, In: BOBBIO, N. et al. Dicionrio de

    Poltica, 1992.

    do conjunto dos cidados e que impera acima decada um deles individualmente. a chamadasoberania popular, ou seja, o poder ou autoridadeque emana do povo. Esta unidade de poder soberanona obra Defensor pacis, est vinculada a um reino

    especfico. O poder atua atravs da jurisdio numdeterminado territrio. Outra manifestao daabstrao da unidade do poder civil o conceito depersonalidade jurdica estatal. A unidade quantitativade ao a partir do conjunto dos cidados de umreino influenciou, na gnese da chamada vontadedo Estado, ou seja, a vontade ordenada originria doconjunto de vontades da parte preponderante. Esseconsenso de vontades imprime na sociedade polticaou reino um status de pessoa com capacidadejurdica, possuindo direitos e deveres. O filsofopaduano afirmou:

    Trata-se efetivamente de uma unidade de ordem, no de

    uma unidade absoluta, quer dizer, de muitos homensconsiderados um ou de um conjunto de pessoas que afirmaconstituir algo nico quantitativamente. Isto no significa,porm, que elas sejam uma pessoa formalmente, sobdeterminado aspecto, mas de fato o so, consideradas emrelao a uma unidade relativa ao nmero, isto , o governopor quem so organizadas32.

    Percebe-se que a teoria poltica de Marslio dePdua, a partir de tais abstraes, viabilizadamediante os frutos da evoluo racional das formasmais imperfeitas para as mais perfeitas de associaohumana. Assim, essa evoluo consiste num reflexodo aprimoramento humano em atividades queprovm da natureza e da arte. A organizao da

    cidade, segundo Marslio de Pdua, est em funodo viver bem. Percebe-se mais uma vez que o podersomente existe numa associao humana quando huma evoluo das condies materiais e histricaspara a consolidao da comunidade civil. Taiscondies, atravs do poder, propiciam a paz e aprosperidade da vida humana na sociedade civil. Afilosofia poltica marsiliana, ao teorizar o modelopoltico do reino, agregou-lhe conceitos dafilosofia poltica de Aristteles ao mesmo tempo emque antecipou caracteres do Estado Moderno. Bertinota que a concepo marsiliana de Regnumvem ase colocar como meio termo entre a doutrina

    aristotlica da plis e a idia moderna de Estado.

    33

    A idia de soberania popular somada veementedefesa da liberdade, suscitou em alguns estudiosos aidentificao de Marslio de Pdua com idiasdemocrticas da Modernidade Poltica. Tais idiasforam defendidas por Marslio de Pdua com

    32 MARSLIO DE PDUA. DP I, XVII, 11.33 BERTI, E. Il Regnum di Marsilio tra la polis aristotelica e lo

    stato moderno. Medioevo. p. 181, 1979.

  • 7/25/2019 2181-6021-1-PB

    9/10

    O conceito de poder na filosofia poltica de Marslio de Pdua 275

    Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maring, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003

    esperana e at um certo radicalismo. Seu modelosupostamente considerado democrtico chega a serinterpretado como uma espcie de Estado totalitrio.Piaia, a esse respeito, observa na obra Defensor pacisoabsolutismo, conseqncia da transferncia da

    Plenitudo potestatis

    papal ao Legislator humanus

    e aoimperador; a ampliao ilimitada dointervencionismo estatal; o monismo jurdico; oimanentismo que reconduzido distinoaverrostica do dplice fim do homem, um pessoal etranscendente e um social. Essa concepo, segundoPiaia, prxima do Estado tico, podendo constituirum pressuposto filosfico do totalitarismo (Piaia,1976: 364-365).34

    Marslio de Pdua finalizou sua teoria polticaapresentada na obra Defensor pacis afirmando que,sem a existncia da sociedade civil, o homemimpedido de obter auto-suficincia, caminharia paraa sua prpria destruio. O poder age no sentidooposto a essa destruio, ou caos, organizando,aperfeioando e consolidando os mecanismos desobrevivncia do ser humano na sociedade civil.Nesses moldes, o exerccio do poder deve serefetivado de forma pacfica, pois, conforme Marsliode Pdua, com a ausncia de paz e concrdia numreino, no h unidade poltica, nem vida suficienteaos cidados. E sem isso, no h que se falar emsoberania e muito menos em sociedade poltica.Marslio relembrou que a paz foi transmitida deJesus Cristo para seus apstolos. Conforme opensador paduano, por meio da fora e do amor,anuncia-se a verdade, alcanando a paz nos regimes

    civis. Desse modo, com o estabelecimento do podere da paz no mbito de uma sociedade civil, h apossibilidade da existncia e consumao do maiordesejo do homem e fim ltimo de suas aes nessavida: a felicidade social.

    A reverberao das reflexes de Marslio dePdua se faz sentir ainda hoje. A tematizao dadiscusso sobre as fontes do poder poltico nasociedade ainda polmica. Poderamos afastar ainfluncia religiosa das esferas do poder civil comopretendia o autor? Parece que temos ainda um longocaminho a percorrer, a comear pela anlise dasorigens do pensamento poltico moderno. Marsliode Pdua, sem sombra de dvida, constituiu ummarco histrico dos primrdios da ModernidadePoltica, sendo imprescindvel a anlise de suacontribuio terica diante dos problemas polticosmodernos. Buscar a soluo desses problemas naorigem de suas discusses pode suscitar a descobertade novos desafios e at de provveis solues. O

    34 PIAIA, G. Democrazia o Totalitarismo in Marslio da Padova.Medioevo. p. 364-365, 1976.

    pensador paduano j trazia em suas reflexes, naIdade Mdia, proposta de solues para problemasque persistem at hoje no cenrio poltico nacional einternacional.

    Referncias

    ARNALDI, G. Igreja e papado. In: LE GOFF, J.;SCHMITT, J. Dicionrio temtico do ocidente medieval. 2volumes. Bauru: Edusc; So Paulo: Imprensa Oficial,2002, p. 567-589.BARANI, F. II Concetto di laicit come chiaveinterpretativa del pensiero poltico: Marslio da Padova.Medioevo:Rivista di Storia della Filosofia Medievale. Padova,Ed. Antenore, v. 5, n.5, p. 259-278, 1979.BERTI, E. Il Regnum di Marslio tra la polis aristotelicae lo stato moderno. Medioevo: Rivista di Storia dellaFilosofia Medievale. Padova, Ed. Antenore, v.5, n.5, p. 165-181, 1979.BLOCH, M. Os Reis Taumaturgos. So Paulo: Companhiadas Letras, 1993.BOBBIO, N. et al. Dicionrio de Poltica. 2 volumes.Braslia: EDUNB, 1992.BONAVIDES, P. Cincia Poltica. Rio de Janeiro: Forense,1992.CSAR, F. J. O Defensor da Paz e seu Tempo , 1994.Dissertao (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas, Universidade de So Paulo, SoPaulo, 1994.COLLINS, M.; PRICE, M. A Histria do cristianismo. 2000anos de f. So Paulo: Loyola, 2000.DALLARI, D. de A.Elementos de Teoria Geral do Estado . SoPaulo: Saraiva, 1995.DE LIBERA, A. A Filosofia Medieval. So Paulo: Loyola,1998.DE SOUZA, J. A. de C. R. Marslio de Pdua e o Deiurisdictione imperatoris in causis matrimonialibus.Leopoldianum: Revista de Estudos e Comunicaes.Santos, v. 11, n. 32, p. 145-191, dezembro, 1984.DE SOUSA, J. P. G. et al. Dicionrio de Poltica. So Paulo:T. A.Queiroz, 1998.DUFY, E. Santos e pecadores. Histria dos papas. So Paulo:Cosac & Naify, 1998.FISCHER-WOLLPERT, R. O lxico dos papas. De Pedro aJoo Paulo II. Petrpolis: Vozes, 1991.FRLICH, R. Curso bsico de histria da Igreja. 3 edio.So Paulo: Paulus, 1987.GILSON, .A Filosofia na Idade Mdia. So Paulo: MartinsFontes, 1998.KLMEL, W. Universitas civium et fidelium: kriterien dersozialtheorie des Marsilius von Padova.In: Medioevo:Rivista diStoria della Filosofia Medievale, Padova, Ed. Antenore, v.5,n.5, p. 49-80, 1979.MARSLIO DE PDUA. O Defensor da Paz. Petrpolis:Vozes, 1994.MOSCA, G.Histria das Doutrinas Polticas. Rio de Janeiro:Zahar, 1980.

  • 7/25/2019 2181-6021-1-PB

    10/10

    276 Arnaut de Toledo e Razente Camparotto

    Acta Scientiarum. Human and Social Sciences Maring, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003

    PIAIA, G. Democrazia o Totalitarismo in Marsilio daPadova. Medioevo: Rivista di Storia de lla Filosofia Medievale,Padova, Ed. Antenore, v. 2, n.2, p. 363-376, 1976.REMOTTI, R. Il Paradigma del diritto e le modalitdellintervento pedagogico. Disponvel em: Acesso em: 14 Jun. de 2002.

    VILANI, M. C. S. Origens medievais da democracia moderna.Belo Horizonte: Indita, 1999.

    Received on March 12, 2003.

    Accepted on September 25, 2003.