1. Da Responsabilidade Civil No Novo Código

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Rev. TST, Brasília, vol. 76, n o 1, jan/mar 2010 17 DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO NOVO CÓDIGO Eugênio Facchini Neto * “O principal objetivo da disciplina da responsabilidade civil consiste em definir, entre os inúmeros eventos danosos que se verificam quotidianamente, quais deles devam ser transferidos do lesado ao autor do dano, em conformidade com as ideias de justiça e equidade dominantes na sociedade.” 1 INTRODUÇÃO: A RESPONSABILIDADE CIVIL NO NOVO CÓDIGO O Livro III, da Parte Geral do novo Código Civil, introduziu uma nova sistematização relativamente aos Fatos Jurídicos, diante da recepção legislativa da categoria do negócio jurídico. Depois de disciplinar essa categoria no Título I, o codificador dedicou o Título II (composto de um único artigo, que remete ao título anterior) aos atos jurídicos lícitos e reservou o Título III para algumas disposições gerais acerca dos atos ilícitos (arts. 186 a 188). Estas disposições genéricas são posteriormente complementadas e detalhadas no penúltimo título (Título IX – arts. 927 a 954) do Livro I da Parte Especial, denominado Da Responsabilidade Civil. Além disso, há inúmeras outras disposições esparsas pelo novel estatuto que igualmente tratam de aspectos da responsabilidade civil. Assim, ao invés de concentrar os dispositivos legais acerca da responsabilidade civil num único título, o legislador optou por desmembrar o tema em duas partes distintas, além de consagrar disposições * Doutor em Direito Comparado pela Universidade de Florença (Itália); Mestre em Direito Civil pela USP; Professor no Curso de Mestrado em Direito da PUCRS e na Escola Superior da Magistratura/ RS; Magistrado no Rio Grande do Sul. 1 ZWEIGERT, Konrad; KÖTZ, Hein. Introduzione al Diritto Comparato. v. II: istituti. Milano: Giuffrè, 1995. p. 316.

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  • Rev. TST, Braslia, vol. 76, no 1, jan/mar 2010 17

    DA RESPONSABILIDADE CIVILNO NOVO CDIGO

    Eugnio Facchini Neto*

    O principal objetivo da disciplina da responsabilidadecivil consiste em definir, entre os inmeros eventosdanosos que se verificam quotidianamente, quais delesdevam ser transferidos do lesado ao autor do dano, emconformidade com as ideias de justia e equidadedominantes na sociedade.1

    INTRODUO: A RESPONSABILIDADE CIVIL NO NOVO CDIGO

    OLivro III, da Parte Geral do novo Cdigo Civil, introduziu uma novasistematizao relativamente aos Fatos Jurdicos, diante da recepolegislativa da categoria do negcio jurdico. Depois de disciplinar essacategoria no Ttulo I, o codificador dedicou o Ttulo II (composto de um nicoartigo, que remete ao ttulo anterior) aos atos jurdicos lcitos e reservou oTtulo III para algumas disposies gerais acerca dos atos ilcitos (arts. 186 a188). Estas disposies genricas so posteriormente complementadas edetalhadas no penltimo ttulo (Ttulo IX arts. 927 a 954) do Livro I da ParteEspecial, denominado Da Responsabilidade Civil. Alm disso, h inmerasoutras disposies esparsas pelo novel estatuto que igualmente tratam deaspectos da responsabilidade civil. Assim, ao invs de concentrar os dispositivoslegais acerca da responsabilidade civil num nico ttulo, o legislador optou pordesmembrar o tema em duas partes distintas, alm de consagrar disposies

    * Doutor em Direito Comparado pela Universidade de Florena (Itlia); Mestre em Direito Civil pelaUSP; Professor no Curso de Mestrado em Direito da PUCRS e na Escola Superior da Magistratura/RS; Magistrado no Rio Grande do Sul.

    1 ZWEIGERT, Konrad; KTZ, Hein. Introduzione al Diritto Comparato. v. II: istituti. Milano: Giuffr,1995. p. 316.

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    avulsas para disciplinar certos aspectos particulares2 (como, por exemplo, osarts. 12, 20, 43, 206, 3, inciso V, 398, 406, 1.278, 1.296, 1.311, pargrafonico, 1.385, 3, dentre outros).

    Embora no o diga expressamente, e talvez at mesmo de forma noconsciente, a sistematizao do legislador revela toda a complexidade doabrangente tema da responsabilidade civil. O art. 186, por exemplo, que deveser lido conjuntamente com o art. 927, caput, assenta a regra geral daresponsabilidade extracontratual subjetiva por fato ilcito. J o preceito do art.188 deve ser compreendido luz do que dispem os arts. 929 e 930. Da suaconjugao percebe-se a previso de hipteses de responsabilidade civilextracontratual por fato lcito. O art. 187, por sua vez, contm importante

    2 Uma das inovaes mais importantes do novo estatuto civilista o captulo referente aos direitos dapersonalidade, introduzido logo nos primeiros artigos do Cdigo (arts. 11 a 21). O carter pedaggicode tal previso sobremodo importante, por revelar um novo sistema de valores, uma chave de leituraoferecida ao intrprete j no incio do Cdigo. Tal previso pode ser interpretada como um sinal daatenuao do patrimonialismo reinante no Direito Civil clssico, e como um impulso em direo desejada repersonalizao do Direito Privado. Ou seja, um direito em que a pessoa humana (e suadignidade existencial) passa a ser colocada no centro do sistema, no lugar do patrimnio.O Codice Civile italiano de 1942 foi o primeiro a disciplinar (embora sucintamente), em formasistemtica, os direitos da personalidade (arts. 5 a 10). No Cdigo Civil portugus, a matria tratadanos arts. 70 a 81. Para uma viso sinttica a respeito da sistemtica portuguesa, consulte-se CarlosAlberto da Mota Pinto. (Teoria geral do Direito Civil). Coimbra: Editora Coimbra, 1985. p. 84-88 e206-213. A respeito da evoluo da tutela dos direitos da personalidade na Alemanha, em prismacomparativo, veja-se B. S. Markesinis. (The German Law of Obligations) v. II the law of torts: acomparative introduction. 3. ed. Oxford: Clarendon Press, 1997. esp. p. 63 ss.A tutela dos direitos da personalidade ampla e variegada, abrangendo a represso penal, proteoadministrativa, tutela reparatria, preventiva e inibitria. No mbito restrito da responsabilidade civil,a tutela meramente reparatria muitas vezes revela-se deficiente ou inadequada, motivo pelo qual justamente em tema de tutela dos direitos de personalidade que mais se percebe a perseverana deinstrumentos sancionatrios de tipo punitivo (como a ideia de pena privada), quando no se lograrevitar o dano, atravs de uma tutela preventiva (que o novo CC, em seus arts. 12, 20 e 21, corretamentepropicia). Sobre a aplicabilidade do instituto das penas privadas para a tutela dos direitos depersonalidade, veja-se GALLO, Paolo. Pene private e responsabilit civile. Milano: Giuffr, 1996.esp. p. 8-15; PONZANELLI, Guido. La responsabilit civile: profili di Diritto Comparato. Bologna: IlMulino, 1992. p. 15. Sobre os direitos de personalidade em geral, veja-se CAPELO DE SOUSA,Rabindranath V. A. O direito geral de personalidade. Coimbra: Editora Coimbra, 1995. esp. p. 485 ss,sobre tutela preventiva; ROPPO, Enzo. I diritti della personalit. In: Linfluenza dei valori costituzionalisui sistemi giuridici contemporanei. Milano: Giuffr, 1985. t. I. p. 99-122, onde o autor discorre sobreos trs modelos principais de tutela dos direitos da personalidade no Direito Comparado contemporneo,ou seja, o sistema norte-americano (caracterizado como um sistema de tutela forte e articulada), osistema alemo (tutela igualmente forte, mas menos articulada) e o sistema francs (identificado comoum sistema de tutela mais dbil). Em perspectiva mais constitucionalista, consulte-se BENDA, Ernst.Dignidad humana y derechos de la personalidad. In: BENDA, MAIHOFER, VOGEL, HESSE, HEYDE.Manual de derecho constitucional. 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 2001. p. 117-144; bem como PINTO,Paulo Mota. Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos depersonalidade no Direito portugus. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituio concretizada:construindo pontos com o pblico e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 61-83.

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    preceito, aplicvel tanto a direitos absolutos quanto relativos, contratuais ouno, direitos obrigacionais, reais, de famlia ou outros. O pargrafo nico doart. 927, e arts. 931, 933, alm de outros, de forma expressa adotam o princpioda responsabilidade civil objetiva fora aqueles que implicitamente adotamtal posicionamento, como o caso, a ttulo meramente exemplificativo, dosarts. 936, 937 e 938.

    O objetivo deste trabalho abordar as inovaes mais significativas emtema de responsabilidade civil, no sendo o momento de aprofundar a anlisede certos temas que, conquanto importantes, no sofreram significativa alteraolegislativa. Da mesma forma, no nos deteremos sobre inovaes meramenteformais, em que o legislador apenas trouxe para o Cdigo Civil aspectos jcristalizados na jurisprudncia ou j constantes de outras fontes como ocaso do dano moral (teria sido melhor que se utilizasse a nomenclaturacientificamente mais correta, de dano extrapatrimonial, do qual o dano moral apenas uma espcie3), de diuturna aplicao nos pretrios e previsto inclusiveno texto constitucional.

    NOES GERAIS E EVOLUO HISTRICA

    Savatier4 define a responsabilidade civil como sendo a obrigao queincumbe a uma pessoa de reparar o dano causado a outrem por ato seu, ou peloato de pessoas ou fato de coisas que dela dependam. Na verdade, o dano ocorridono se cancela mais da sociedade: o ressarcimento no o anula. Trata-sesimplesmente de transferi-lo de quem o sofreu diretamente para quem o deverressarcir5.

    Dificilmente haver no Direito Civil matria mais vasta, mais confusa ede mais difcil sistematizao do que a da responsabilidade civil. Ao tempo doCdigo de 1916, ponderava-se6 que em nenhum ramo do Direito mais sepatenteia o indesejado desequilbrio entre a disciplina legislativa e as impaci-entes exigncias da vida moderna. As nossas leis no campo da responsabilidadecivil espelham um passado extinto. Refletem, na rgida simetria do seu orde-

    3 Disto decorre a possibilidade de se identificar outros danos extrapatrimoniais, ao lado do dano moralpuro, do que exemplo o dano esttico: STJ, 3 T., REsp 94569/RJ, DJ 01.03.99; STJ, 4 T., REsp228244/SP, DJ 17.12.99.

    4 In: Trait de la responsabilit civile en Droit franais, t. I, n. 1.5 a lio de TRIMARCHI, Pietro. Rischio e responsabilit oggettiva. Milano: Giuffr, 1961. p. 16.6 PORTO, Mrio Moacyr. In: Enciclopdia Saraiva do Direito. v. 65. p. 476, verbete Responsabilidade

    pela guarda das coisas inanimadas.

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    namento, um estado de coisas que no mais o estado das coisas contempor-neas. Impotentes para solucionar os conflitos que no so do seu tempo e doseu mundo, obrigam os seus aplicadores ao uso de artifcios e acomodaesque, por vezes, tocam as raias do abstruso e do inconsequente.

    Pois bem, o novo diploma civil no alterou substancialmente este estadode coisas7. Poucas foram as inovaes profundas e significativas. A maioriadas aparentes alteraes legislativas nada mais do que uma incorporao, lei, de entendimentos jurisprudenciais consolidados ou tendenciais.

    O presente trabalho no pretende seguir uma linha meramente exegtica,simplesmente comentando, artigo por artigo, os novos dispositivos quedisciplinam a responsabilidade civil. Busca-se, ao contrrio, trabalhar o temada responsabilidade civil, luz de sua evoluo histrica e das tendnciaspercebidas no exame do Direito Comparado, para que se possa melhor apreendero sentido das alteraes legislativas, que sero, obviamente, apontadas.

    O foco atual da responsabilidade civil, pelo que se percebe da suaevoluo histrica e tendncias doutrinrias, tem sido no sentido de estarcentrada cada vez mais no imperativo de reparar um dano do que na censurado seu responsvel. Cabe ao Direito Penal preocupar-se com o agente,disciplinando os casos em que deva ser criminalmente responsabilizado. AoDireito Civil, contrariamente, compete inquietar-se com a vtima8.

    7 Em relao ao Cdigo Reale como um todo, j foi dito que o novo Cdigo arrojado e ao mesmotempo tmido na funo de conformao da realidade. arrojado porque estabelece as bases a partirdas quais o Direito pode evoluir, mudar e se adaptar s novas realidades. Essa possibilidade de mudanaest na estrutura aberta e flexvel, nas clusulas gerais e conceitos jurdicos indeterminados, os quaisvo manter o novo Cdigo jovem independentemente das transformaes futuras da sociedade. Porm,o Cdigo de 2002 tmido porque no inova em suas regras, somente consolidando modelos jurdicosque a doutrina e jurisprudncia j haviam recepcionado (BRANCO, Gerson Luiz Carlos. O culturalismode Miguel Reale e sua expresso no novo Cdigo Civil. In: BRANCO, Gerson L. C.; MARTINS-COSTA, Judith (Orgs.). Diretrizes tericas do novo Cdigo Civil brasileiro. So Paulo: Saraiva, 2002.p. 79).

    8 Alis, trata-se de lio antiga entre ns, se lembrarmos que Clvis Bevilqua j afirmava que o DireitoPenal v, por trs do crime, o criminoso, e o considera um ente antissocial, que preciso adaptar scondies da vida coletiva [...]; o Direito Civil v, por trs do ato ilcito, no simplesmente o agente,mas, principalmente, a vtima, e vem em socorro dela, a fim de, tanto quanto lhe for permitido, restauraro seu direito violado (Teoria geral do Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p.272-273).Deve ser imediatamente ressalvado, porm, que nas ltimas dcadas percebe-se um movimento emsentido parcialmente contrrio mas que paradoxalmente no neutraliza o quanto foi dito acima. Refiro-me assim chamada redescoberta das penas privadas. Trata-se do movimento, intenso sobretudo nosEstados Unidos e na Itlia, que vai na direo da percepo da impossibilidade de se atribuir apenas aoDireito Penal o desempenho de uma funo sancionatria. Tambm o instituto civilista das penas privadaspode ser utilizado para tal fim, sancionando economicamente algum que tenha violado preceitos tico-jurdicos, afetando dolosamente (ou em forma gravemente culposa) interesses juridicamente protegidos,

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    Por outro lado, tende-se a substituir a ideia de um dbito ressarcitrioderivado de um fato ilcito a cargo do sujeito responsvel, pela noo de crditoa uma indenizao a favor da vtima9. Trata-se de uma verdadeira inverso deperspectiva, com inmeras consequncias no mbito da responsabilidade civil.Como diz M. Bessone, a tendncia de atribuir responsabilidade civil a funode assegurar uma tutela ressarcitria em todos os casos de danos sofridos porum sujeito induziu a doutrina e a jurisprudncia a submeter a uma reviso ascategorias dogmticas, velhas de sculos10. J vai longe a poca em que umaCorte de Justia podia afirmar que o empresrio industrial deveria serconsiderado, por definio, um benemrito da sociedade, e que, portanto,deveria ser tutelado contra pretenses ressarcitrias relativas a danos conexos sua atividade; pretenses essas acrescentava-se que se viessem a seracolhidas com largueza, colocariam em perigo a produtividade e a eficinciada indstria, com graves danos para a economia do pas. Disto decorreria odever de cada cidado de suportar os riscos que a atividade industrial, de perse, comporta11.

    O casusmo que caracterizou a legislao romana impediu o surgimentode um princpio geral de responsabilidade. Em nenhum momento o Direitoromano disps de uma ao que abrangesse toda e qualquer espcie de dano.Foi somente com Domat, no sculo XVII, que desabrochou, no solo frtil criadopelo jusnaturalismo, o princpio genrico da responsabilidade civil, em textoque posteriormente serviu de base redao do art. 1.382 do Cdigo Civilfrancs, inspirador de inmeras legislaes posteriores.

    Do ponto de vista histrico, portanto, o ilcito civil procede do ilcitopenal. Todo o progresso em termos de responsabilidade civil tem consistidoem generalizar as regras desta, ao passo que a cincia penal procura, cada vezmais, precisar claramente os elementos do delito penal.

    a tal ponto de merecer, por isso, uma sano civil consistente no pagamento de uma indenizao. Usa-se, assim, um instrumento de direito privado para fazer avanar polticas sociais. Voltaremos ao temaao longo do trabalho. Quanto no exclusividade do Direito Penal para o exerccio de funessancionatrias, veja-se CENDON, Paolo. Responsabilit civile e pena privata. In: BUSNELLI, FrancescoD.; SCALFI, G. (Org.). Le pene private. Milano: Giuffr, 1985. p. 294.

    9 De acordo com ALPA, Guido. Trattato di Diritto Civile: v. IV la responsabilit civile. Milano: Giuffr,1999. p. 7.

    10 Problemi attuali della responsabilit civile. In: MACIOCE, Francesco (Org.). La responsabilit civilenei sistemi di common law: v. I profili generali. Padova: Cedam, 1989. p. 21.

    11 Trata-se do caso Losee v. Buchanan, julgado pelo equivalente ao Tribunal de Justia do Estado deNova Iorque, em 1871. Aluso ao caso e ao desenvolvimento posterior da responsabilidade civil, sob oinfluxo renovador do princpio da solidariedade social, encontra-se em VACCA, Letizia (Org.). Laresponsabilit civile da atto illecito nella prospettiva storico-comparatistica. Torino: Giappichelli, 1995.p. 14-15.

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    Dentro deste contexto, a importncia do Cdigo Civil francs de 1804 paradigmtica, pois ali ficou consagrado, em termos claros, que todo e qual-quer fato do homem, que causa um dano a outrem, obriga o culpado a repar-lo(art. 1.382). Ou seja, ficou consagrado o princpio da atipicidade da responsa-bilidade civil, mediante clusula geral instituidora de uma responsabilidadesubjetiva.

    Mudana profunda passou a sofrer a teoria da responsabilidade civil apartir do ltimo quartel do sculo XIX, acentuando-se ao longo do sculo XX,em consequncia dos fenmenos da industrializao, acentuada urbanizao emassificao da sociedade. o que alguns chamam de era do maquinismo. Avida em conglomerados urbanos acarretou a multiplicao dos acidentes. Coma disseminao do uso de mquinas no processo industrial e no quotidiano daspessoas, operou-se sensvel modificao na orientao da doutrina e dajurisprudncia para o tratamento das questes relativas responsabilidade civil.Surgiu ento a necessidade de socorrer as vtimas.12

    Foi a que a doutrina partiu para a reviso de alguns conceitos at entoconsiderados dogmas, como o da necessidade de uma culpa para justificar odever de reparar os danos causados por algum. Difundiram-se, ento, as teo-rias do risco. Na verdade, a ideia genrica de responsabilidade objetiva(independente de culpa) abrange uma mirade de teses e enfoques diversos sendo mais importantes as teorias do risco-proveito, risco-criado, ideia de ga-rantia, responsabilidade objetiva agravada13.

    At o final do sculo XIX o sistema da culpa funcionara satisfatoriamente.Os efeitos da revoluo industrial e a introduo do maquinismo na vidacotidiana romperam o equilbrio. A mquina trouxe consigo o aumento donmero de acidentes, tornando cada vez mais difcil para a vtima identificaruma culpa na origem do dano e, por vezes, era difcil identificar o prpriocausador do dano. Surgiu, ento, o impasse: condenar uma pessoa no culpada

    12 Mazeaud & Mazeaud. Leons de Droit Civil. Paris: Montchrestien, 1956. p. 302.13 Responsabilidade civil agravada a denominao empregada pelo Prof. Fernando Noronha

    (Responsabilidade civil: uma tentativa de ressistematizao. Revista de Direito Civil, v. 64, p. 12-47;Desenvolvimentos contemporneos da responsabilidade civil. Revista dos Tribunais, v. 761, p. 31-44),para se referir responsabilidade que excepcionalmente ocorre quando uma pessoa obrigada a indenizar,independentemente de haver um nexo de causalidade adequada entre a sua atividade e o dano acontecido.Seriam exemplos de uma tal responsabilidade agravada a responsabilidade do estabelecimento prisionalpela incolumidade do preso, em caso de suicdio, ou de assassnio por outros detentos; a responsabilidadedo hospital pela incolumidade do paciente; do estabelecimento bancrio pela incolumidade do cliente,ainda que no correntista; do transportador pela incolumidade do passageiro, ainda que este no tenhaadquirido bilhete; do fabricante ou consumidor pelo chamado acidente de consumo etc.

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    a reparar os danos causados por sua atividade ou deixar a vtima, ela tambmsem culpa, sem nenhuma indenizao.

    Para resolver os casos em que no havia culpa de nenhum dosprotagonistas, lanou-se a ideia do risco, descartando-se a necessidade de umaculpa subjetiva. Afastou-se, ento, a pesquisa psicolgica, do ntimo do agente,ou da possibilidade de previso ou de diligncia, para colocar a questo sobum aspecto at ento no encarado devidamente, isto , sob o ponto de vistaexclusivo da reparao do dano. Percebe-se que o fim por atingir exterior,objetivo, de simples reparao e no interior e subjetivo, como na imposioda pena14.

    Os juzes, em princpio, recusaram-se a aplicar desde logo a teoria daresponsabilidade objetiva. Desejosos de se manterem dentro da teoria da culpa,mas tendo que garantir s vtimas a efetivao de seu direito reparao domal injustamente sofrido, passaram eles a usar um mtodo singular.Tradicionalmente, constatava-se a existncia da culpa antes de condenar-se oculpado. Inverteram eles, ento, o iter lgico: constatando que a vtima tinhadireito a ver reparado seu prejuzo, esforavam-se em descobrir uma culpaque pudesse justificar a deciso. Ou seja, adotavam-se processos tcnicos deextenso do conceito de culpa, para tentar garantir o direito reparao dosdanos, sob a gide da responsabilidade subjetiva, dilatando abusivamente aideia de culpa, de que so exemplos os expedientes das presunes de culpa,da teoria da culpa na guarda das coisas, teoria da culpa anterior, teoria da culpadesconhecida, teoria da culpa coletiva, culpa das pessoas jurdicas, etc.15

    Outros mais audazes, todavia, romperam com a ideia de culpa e tentaramformular uma doutrina de responsabilidade civil com base em ideias objetivistas.Na Frana, inicialmente, a teoria do risco foi imaginada tendo em vista umasituao especial: a responsabilidade do patro no caso de acidente de trabalhode que fossem vtimas seus empregados. Assinalou-se, ento, que era justoque quem recolhesse o benefcio, as vantagens, de uma empresa, indenizasseaqueles que, sem poder esperar os mesmos proveitos, fossem vtimas deacidentes: ubi emolumentum ibi onus; cuius commoda, eius et incommoda.

    Os partidrios da teoria do risco (ento risco-proveito) passaram apretender aplicar suas ideias a outros campos da responsabilidade civil. Era a

    14 Sobre essa passagem, consulte-se J. Mosset Iturraspe, Responsabilidade por daos, p. 119.15 Uma percuciente anlise crtica de tais expedientes tcnicos encontra-se em LIMA, Alvino. Culpa e

    risco. 2. ed. So Paulo: RT, 1999. p. 70 a 108; bem como em SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidadesem culpa. So Paulo: Saraiva, 1974. p. 80 a 94.

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    evoluo da teoria do risco-proveito em direo teoria do risco-criado. Assim,pelo simples fato de agir, o homem muitas vezes cria riscos potenciais de danopara os outros. justo, portanto, que suporte ele os nus correspondentes16.

    Dentro da teoria do risco-criado, destarte, a responsabilidade no maisa contrapartida de um proveito ou lucro particular, mas sim a consequnciainafastvel da atividade em geral. A ideia do risco perde seu aspecto econmico,profissional. Sua aplicao no mais supe uma atividade empresarial, aexplorao de uma indstria ou de um comrcio, ligando-se, ao contrrio, aqualquer ato do homem que seja potencialmente danoso esfera jurdica deseus semelhantes. Concretizando-se tal potencialidade, surgiria a obrigao deindenizar17.

    16 Uma das aplicaes desta teoria pode ser percebida no fantstico desenvolvimento da responsabilitdu fait des choses (responsabilidade pelo fato das coisas), levado a cabo pela jurisprudncia francesa.Sobre tal desenvolvimento, v. VINEY, Genevive. In: GHESTIN, Jacques (Dir.). Trait de Droit Civil.volume dedicado Introduction la Responsabilit. Paris: LGDJ, 1995. esp. p. 292.

    17 Este seria o caso da responsabilidade do proprietrio de um veculo. Possivelmente no houve, nahistria da humanidade, uma outra inveno que tenha causado mais destruio e ceifado mais vidas doque o automvel. O proprietrio de um veculo deve ter plena conscincia da sua enorme potencialidadedanosa. Sabedor disso, ele deve ter conscincia dos riscos agregados quando coloca um veculo emmovimento. Se, por culpa ou por uma fatalidade, aquela potencialidade de dano se concretizar, deve oproprietrio assumir o dever de indenizar (ressalvando-se hipteses em que tal responsabilidade no sejustifica, como quando o acidente tiver ocorrido por culpa da prpria vtima, por exemplo). a ideia derisco-criado, que se distingue da anterior ideia de risco-proveito pelo fato de que mesmo na ausnciade qualquer proveito para o proprietrio da coisa perigosa, o dever de indenizar acionado.J em 1942 o Cdigo Civil italiano estabelecia, em seu art. 2.054, a responsabilidade objetiva docondutor do veculo, solidariamente com o seu proprietrio, pelos danos causados pela circulao domesmo. Andrea Torrente e Piero Schlesinger referem, a propsito, que a circulao de veculos constituiuma tpica atividade perigosa Manuale di Diritto Privato. Milano: Giuffr, 1995. p. 636.Quanto responsabilidade objetiva do proprietrio perante os Direitos francs e alemo, v. LAWSON,F. H.; MARKESINIS, Basil S. Tortius liability for unintentional harm in the common law and the civillaw. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1982. v. I. p. 174-177. No direito alemo, v. LARENZ, Karl.Derecho de obligaciones. t. II. Madrid: Rev. de Derecho Privado, 1959. p. 677-683. Sobre os sistemasde ressarcimento de danos causados pela circulao de veculos no espao europeu, em geral, consulte-se ALPA, Guido; BESSONE, Mario. La responsabilit civile. 2. ed. Milano: Giuffr, 1980. v. II. esp.p. 93 a 125.Tambm no sistema ptrio vem se entendendo, embora sem muita clareza e sem tanta coeso, que aresponsabilidade civil em matria de acidentes de trnsito de natureza objetiva (ideia de risco-criado),no sentido de que os riscos derivados da circulao de veculos devem ser suportados pelos proprietriosdos mesmos, desde que presente relao de causalidade adequada. Isto significa que, ocorrido um danoderivado de acidente de circulao, deve o proprietrio do veculo responder pelo mesmo,independentemente de culpa, salvo se demonstrar a inexistncia ou a ruptura de nexo causal, ou seja, aocorrncia de fora maior (o chamado fortuito interno, como problemas mecnicos do veculo, noafasta a responsabilidade civil), culpa exclusiva da vtima (a culpa concorrente apenas implica a repartiode danos) e fato de terceiro. Nesse sentido: STJ, 4 T., AgResp 250237/SP, DJ 11.09.2000; STJ, 3 T.,REsp 56731/SP, DJ 10.03.97.

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    Uma outra ideia que encontra abrigo no amplo espectro da responsabi-lidade objetiva a de garantia, que particularmente eficiente para explicarcertas espcies de responsabilidade objetiva, como quando o autor direto dodano desprovido materialmente de bens ou renda18. Ou seja, o legislador,exemplificativamente, ao responsabilizar os preponentes pelos atos dos pre-postos, teria visado assegurar s vtimas a efetivao de seu direito indenizaodos prejuzos injustamente sofridos, direito este que restaria seriamente com-prometido se dependesse unicamente da solvabilidade do autor direto do atodanoso.

    Uma ideia que transita sob a mesma denominao, porm com configu-rao distinta, foi formulada por B. Starck19. Parte o ilustre autor da constataode que as demais teorias buscam o fundamento da responsabilidade civil pelolado do autor do dano. Na teoria da culpa, o agente responde porque agiuculposamente. Na teoria do risco, a responsabilidade se explica porque o agenteteria criado um risco para os demais, ou porque retirou algum proveito de umacoisa ou do trabalho de outrem. Criticando tais posicionamentos, entende Starckque tal fundamento deve ser buscado pelo lado da vtima. Diz ele que todapessoa possui direito vida e integridade corporal, da mesma forma que temdireito integridade material dos bens que lhe pertencem, e, mais generica-mente, segurana material e moral. Existindo estes direitos subjetivos, elesdevem ser protegidos e garantidos pelo Direito (objetivo). Ou seja, Starckreconhece a existncia de um direito individual segurana, cuja violao noautorizada constitui um dano causado em contrariedade ao direito, uma injus-tia em si mesmo, independentemente das disposies fsicas ou psicolgicasdo seu causador. Tambm Andr Tunc abre espao em sua obra20 para abordaro tema da responsabilidade civil sob o ngulo da garantia dos direitos indivi-duais.

    Costuma-se dizer que os partidrios da culpa colocam-se comodefensores das liberdades individuais e protetores das atividades necessrias vida em sociedade, ao passo que os promotores do risco surgem como pioneiros

    18 Este, por exemplo, o posicionamento de Mazeaud-Tunc (Tratado terico y prctico de laresponsabilidad civil delictual y contractual. Buenos Aires: EJEA, 1963. t. I. v. II. p. 513-525); Sourdat(Trait gnral de la responsabilit. Paris: ILGJ, 1911. t. II. p. 64); Henri Lalou (La responsabilitcivile. Paris: Dalloz, 1928. p. 231-232); e, mais recentemente, Mauro Bussani (As peculiaridades danoo de culpa: um estudo de Direito Comparado. Trad. H. Saldanha. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2000. p. 15).

    19 Domaine et Fondement de la Responsabilit sans Faute. In: Revue Trimestrielle de Droit Civil, n. LVI,ano 1958, p. 509; Essai dune thorie gnrale de la responsabilit civile considre en sa doublefonction de garantie et de peine prive. Paris: L. Rodstein, 1947; p. 217/218.

    20 TUNC, Andr. La responsabilit civile. 2. ed. Paris: Economica, 1989. p. 149/155.

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    da seguridade social21, ou, ainda, que a equidade que engendrou a teoria dorisco. a moral que mantm a teoria da culpa22.

    O fato que a teoria da responsabilidade civil comporta tanto a culpacomo o risco. Um como o outro devem ser encarados no propriamente comofundamentos da responsabilidade civil, mas sim como meros processos tcnicosde que se pode lanar mo para assegurar s vtimas o direito reparao dosdanos injustamente sofridos. Onde a teoria subjetiva no puder explicar e basearo direito indenizao, deve-se socorrer da teoria objetiva. Isto porque, numasociedade realmente justa, todo dano injusto deve ser reparado.

    Destarte, o foco atual da responsabilidade civil, pelo que se percebe dasua evoluo histrica e tendncias doutrinrias, reside cada vez mais noimperativo de indenizar ou compensar dano injustamente sofrido, abandonando-se a preocupao com a censura do seu responsvel. Cabe ao Direito Penalpreocupar-se com o agente, disciplinando os casos em que deve sercriminalmente responsabilizado. Ao Direito Civil, contrariamente, competeinquietar-se com a vtima. Na esfera dos danos materiais, busca-sesubstancialmente reparar um dano, e no punir o agente causador (ao menosno como objetivo ou funo da responsabilidade civil). Como refere KarlLarenz, no se trata, como no Direito Penal, de reagir frente ao fato culpvel,mas sim de levar a cabo uma justa distribuio dos danos: quem causa umdano a outrem por meio de um ato antijurdico, ainda que de modo apenasobjetivamente negligente, est mais sujeito a ter que suportar o dano do queaquele que diretamente o sofreu, sem ter contribudo para o evento23.

    Houve a participao do legislador neste movimento renovador, comoindicam as leis sobre acidentes de trabalho e sobre acidentes ferrovirios queforam ento sucessivamente promulgadas, nas quais a teoria da responsabilidadeobjetiva encontrou guarida. Mas foi sobretudo a jurisprudncia, mormente afrancesa, que desempenhou ativo papel no alargamento dos limites daresponsabilidade civil, no intuito de, cada vez mais, proteger as vtimas.

    A RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO CONTEMPORNEO ESUAS TENDNCIAS

    Como foi visto, a tendncia manifesta da teoria da responsabilidade civil no sentido de ampliar, cada vez mais, a sua abrangncia, a fim de possibilitar

    21 HUSSON, Leon. Les transformations de la responsabilit. Paris: PUF, 1947. p. 149.22 WALD, A. Influence du Droit franais sur le Droit brsilien dans le domaine de la responsabilit

    civile. Rio de Janeiro: Dep. de Imprensa Nacional, 1953. p. 12.23 LARENZ, Karl. Derecho justo: fundamentos de tica jurdica. Madrid: Civitas, 1985-1990. p. 118-119.

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    que todo e qualquer dano possa ser reparado. Para que isso acontea, necessrioafastar-se, progressivamente, do princpio da culpa. Isso ocorreu, avanando-se em direo a um modelo misto, onde, ao lado da culpa, h espao para umaresponsabilidade civil objetiva, fundada no risco ou na ideia de garantia.

    Nas ltimas dcadas, porm, percebe-se que esse modelo misto tornou-se mais complexo, com o surgimento de um terceiro modelo de responsabili-dade, no individual, mas coletiva, fundada na ideia de solidariedade. JeanGuyenot24 e Ren Savatier25, por exemplo, afirmam que as tendncias contem-porneas se traduzem por um movimento em direo socializao da respon-sabilidade e dos riscos individuais, ao trmino do qual toda a vtima de umacidente dever estar virtualmente certa de ser indenizada. Nesse sistema, oEstado absorveria todos os riscos e os redistribuiria por todo o corpo social,atravs de um imposto. Assim, o prejuzo de um seria suportado, afinal, portodos.

    Este terceiro modelo vai alm da ideia de uma simples responsabilidadeobjetiva, pois esta permanece uma ideia vinculada a parmetros individuais,ao passo que o modelo ao qual agora nos referimos transcende o indivduo esocializa as perdas. No se trata, portanto, de condenar algum individualizadoa ressarcir um prejuzo, mas sim de transferir para toda a sociedade, ou paraum setor desta, uma parte do prejuzo. A hiptese, alis, no nova, bastandoter presente o que sucedeu no mbito da responsabilidade por acidente detrabalho, bem no campo do seguro obrigatrio de responsabilidade civilenvolvendo veculos automotores26.

    Costuma-se dizer que onde o sistema de seguridade social se apresentaparticularmente abrangente, de modo a satisfazer em modo adequado o princpiodo bero ao tmulo, a responsabilidade civil poder recobrir territrios mais

    24 La Responsabilit des personnes morales publiques et prives. Paris: LGDJ, 1959. p. 6.25 SAVATIER, Ren. Les mtamorphoses conomiques et sociales du Droit Civil daujourdhui. Paris:

    Dalloz, 1952. p. 263.26 Tal modelo, portanto, no novo sequer entre ns. Todavia, algumas experincias identificadas no

    Direito Comparado demonstram que se trata de um modelo com grande potencial expansivo, comoatestam alguns exemplos. As duas experincias mais ousadas dentro desse modelo ocorreram na Suciae na Nova Zelndia (sendo este o modelo mais abrangente). Trata-se de sistemas que tendencialmentebuscam garantir a indenizabilidade de qualquer acidente sofrido por uma pessoa. Tais programas somantidos atravs de fundos institudos por uma imposio tributria generalizada. Uma anlise dossistemas representativos desse terceiro modelo de responsabilidade civil encontra-se em PONZANELLI,Giulio. La responsabilit civile: profili di Diritto Comparato. Bologna: Il Mulino, 1992. esp. p. 119a 148.

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    limitados e ser ativada de acordo com seus princpios clssicos27. Onde, aocontrrio, for deficiente o sistema de seguridade social, por apresentarimportantes lacunas em seu programa assistencial, parece inevitvel que omodelo de responsabilidade civil venha a desenvolver uma funo camufladade um tipo de seguridade social privada, cumprindo, em via supletiva, umafuno distributiva de riqueza.

    OUTRAS FUNES DA RESPONSABILIDADE CIVIL

    A funo originria e primordial da responsabilidade civil, portanto, areparatria (de danos materiais) ou compensatria (de danos extrapatrimoniais).Mas outras funes podem ser desempenhadas pelo instituto. Dentre essas,avultam as chamadas funes punitiva e dissuasria28. possvel condensaressa trplice funo em trs expresses: reparar (ou compensar), punir e prevenir(ou dissuadir). A primeira, e mais antiga, dessas funes conhecida e a ela jfizemos referncias. Vejamos as outras duas.

    Funo punitiva: a funo punitiva, presente na antiguidade jurdica,havia sido quase que esquecida nos tempos modernos, aps a definitivademarcao dos espaos destinados responsabilidade civil e responsabilidadepenal. A esta ltima estaria confinada a funo punitiva. Todavia, quando sepassou a aceitar a compensabilidade dos danos extrapatrimoniais, percebeu-seestar presente ali tambm a ideia de uma funo punitiva da responsabilidadecivil. Para os familiares da vtima de um homicdio, por exemplo, a obtenode uma compensao econmica paga pelo causador da morte representa umaforma estilizada e civilizada de vingana, pois no imaginrio popular est-setambm a punir o ofensor pelo mal causado quando ele vem a ser condenadoa pagar uma indenizao. Com a enorme difuso contempornea da tutelajurdica (inclusive atravs de mecanismos da responsabilidade civil) dos direitosda personalidade, recuperou-se a ideia de penas privadas. Da um certo revival

    27 por isso que, em doutrina, fala-se, por vezes, em zenith (Andr Tunc) ou de parbola (F. Busnelli) daresponsabilidade civil, exatamente para sublinhar o fato de que este instituto, depois de ter atingido seupice no sculo XX, estaria comeando a perder terreno diante de outros institutos em ascendncia,igualmente finalizados a disciplinar o custo social dos acidentes, como, por exemplo, o seguro e aprevidncia social. Sobre esse enfoque, veja-se GALLO, Paolo. Pene private e responsabilit civile.Milano: Giuffr, 1996. esp. p. 4 ss.

    28 Seria interessante notar que os antigos sistemas socialistas de responsabilidade civil concediam maiorimportncia que os sistemas ocidentais s funes de preveno e dissuaso de condutas anti-sociaisque igualmente seriam nsitas na responsabilidade civil, como refere TUNC, Andr. Internationalencyclopedia of comparative law, v. XI, Torts, chapter 1, Introduction, Tbingen, J. C. B. Mohr (PaulSiebeck), 1974, p. 12.

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    da funo punitiva, tendo sido precursores os sistemas jurdicos integrantes dafamlia da common law, atravs dos conhecidos punitive (ou exemplary)dammages. Busca-se, em resumo, punir algum por alguma condutapraticada, que ofenda gravemente o sentimento tico-jurdico prevalecente emdeterminada comunidade29. Tem-se em vista uma conduta reprovvel passada,de intensa antijuridicidade.

    Funo dissuasria: distingue-se esta da anterior por no ter em vistauma conduta passada, mas por buscar, ao contrrio, dissuadir condutas futuras.Ou seja, atravs do mecanismo da responsabilizao civil, busca-se sinalizar atodos os cidados sobre quais condutas a evitar, por serem reprovveis doponto de vista tico-jurdico. bvio que tambm a funo reparatria e afuno punitiva adimplem uma funo dissuasria, individual e geral. Porm,esse resultado acaba sendo um efeito colateral, benfico, mas nonecessariamente buscado. Na responsabilidade civil com funo dissuasria,porm, o objetivo de preveno geral, de dissuaso ou de orientao sobrecondutas a adotar, passa a ser o escopo principal. O meio para alcan-lo,porm, consiste na condenao do responsvel reparao/compensao dedanos individuais.

    No Direito ptrio tambm encontramos referncia funo dissuasria,tanto na doutrina30, quanto na jurisprudncia31, embora o nvel de profundidadee de sistematizao das anlises ainda esteja aqum das anlises encontradasno Direito Comparado.

    DA RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA

    A clusula geral relativa ao tema, que no Cdigo de 1916 estava con-substanciada no art. 159, agora resulta da fuso de dois dispositivos legais os

    29 Trata-se de uma funo frequentemente invocada pelos tribunais, do que serve de exemplo o seguinteacrdo: Responsabilidade civil. Dano moral. Acusao injusta de furto em mercado. A injustaimputao de furto a cliente de mercado e a sua revista causam constrangimento passvel de indenizao.A fixao do dano deve levar em conta o carter compensatrio e punitivo (TJRS, 6 CC, CC70001615152, j. 11.04.01, Rel. Des. Cacildo de Andrade Xavier).

    30 Dentre outros, NORONHA, Fernando. Desenvolvimentos contemporneos da responsabilidade civil,Revista dos Tribunais, v. 761, p. 40-41; que denomina tal funo de funo preventiva.

    31 (...) A condenao, alm de reparar o dano, deve tambm contribuir para desestimular a repetio deatos desse porte (...) (trecho da ementa do REsp 295175/RJ, STJ, 4 T., DJ 02.04.01);Responsabilidade civil. Dano moral. Espancamento de condmino por seguranas do Barra Shopping.A indenizao por dano moral objetiva compensar a dor moral sofrida pela vtima, punir o ofensor edesestimular este e a sociedade a cometerem atos dessa natureza (STJ, 3 T., REsp 283319/RJ, DJ11.06.01); no mesmo sentido: STJ, 4 T., REsp 265133/RJ, DJ 23.10.00; aludindo a uma funo inibitriada RC, v. TJRS, 10 CC, AC 70001051846, j. 31.08.00, Rel. Des. Luiz Ary Vessini de Lima.

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    30 Rev. TST, Braslia, vol. 76, no 1, jan/mar 2010

    arts. 186 e 927, caput. Efetivamente o art. 186 estabelece um preceito segundoo qual aquele que, por ao ou omisso voluntria, negligncia ou imprudn-cia, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral,comete ato ilcito, ao passo que o caput do art. 927 prev as consequnciasjurdicas de tal fattispecie: aquele que, por ato ilcito (arts. 186 e 187), causardano a outrem, fica obrigado a repar-lo.

    Desconsiderando-se a meno ao dano moral32 (inovao meramenteformal, como j salientado), e abstraindo-se a subdiviso em dois artigos daclusula geral anteriormente contida no art. 159, a diferena de redao entreas duas clusulas pode at passar despercebida a uma rpida leitura, emborapudesse conter uma profunda consequncia jurdica. De fato, enquanto o antigoart. 159 falava em violar direito, ou causar prejuzo a outrem, a nova clusularefere violar direito e causar dano a outrem. Se a alterao fosse em sentidocontrrio, poder-se-ia sustentar que o legislador estaria acolhendo a ideia deuma responsabilidade civil de cunho punitivo ou eventualmente dissuasrio, eno de natureza reparatria/compensatria. Isto porque a obrigao de indenizarpoderia decorrer, em tal hiptese, tanto do fato de ter sido causado um prejuzo,quanto da hiptese de uma mera violao do direito. Todavia, uma interpretaosistemtica consolidada j ento conduzia ao entendimento de que um dosrequisitos da responsabilidade civil era justamente a presena de um dano(material ou moral). Assim, o novo Cdigo Civil apenas deixou claro o queantes era implcito.

    Portanto, quanto a esse aspecto, a alterao foi mais de forma do que decontedo. De acordo com a vontade do legislador, a responsabilidade subjetivacontinua sendo o fundamento bsico de toda a responsabilidade civil: o agentes ser responsabilizado, em princpio, se tiver agido com culpa.

    32 Refere-se, apenas, que o novel legislador concedeu uma tutela incondicionada aos danos morais, deixandode seguir no que fez bem alguns modelos restritivos existentes no Direito Comparado. A legislaoitaliana, por exemplo, praticamente restringe a reparabilidade dos danos extrapatrimoniais aos casosem que o comportamento do agente configure um ilcito penal. verdade que a jurisprudncia italianavem ampliando tal tutela, a partir de uma viso constitucionalizada do Direito Privado. A mesma limitaolegal e a mesma superao hermenutica ocorreram na Alemanha. No Direito ingls, os danos nopatrimoniais costumam ser indenizados somente quando se inserem em uma das seguintes rubricas: a)pain and suffering (dor fsica ou psquica); b) loss of expectation of life (ou seja, uma presumveldiminuio da durao da vida da vtima); c) loss of amenities of life, tambm chamada de loss ofenjoyment of life (trata-se da impossibilidade de continuar a gozar de alguns prazeres mundanos, comopraticar esportes, andar a cavalo, guiar etc.); e, mais recentemente, d) nervous schock (traumas psquicos,fortes abalos emocionais etc.).

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    DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA

    Uma das maiores novidades introduzidas pelo novel estatuto reside nopargrafo nico do art. 927, que assim dispe:

    Haver obrigao de reparar o dano, independentemente de culpa,nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmentedesenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco paraos direitos de outrem.33 (grifo nosso)

    Na vigncia do velho diploma civilista, repetia-se a lio segundo aqual o fundamento (nico) da responsabilidade civil era a culpa, e que somenteem casos especficos, previstos expressamente em lei, albergava o ordenamentoptrio algumas hipteses de responsabilidade objetiva, citando-se, ento, oscasos da responsabilidade civil do Estado, do acidente de trabalho, do seguroobrigatrio de responsabilidade civil dos proprietrios de veculos (DPVAT),dos acidentes nucleares, do transporte ferrovirio, do transporte areo, dentrevrios outros, sempre previstos expressamente na legislao. Quanto a esseaspecto, nenhuma alterao real ocorreu, resolvendo o legislador simplesmentetranspor para o formante34 legislativo a lio doutrinria corrente.

    A novidade se encontra na segunda parte do referido pargrafo nico,onde se consagra uma segunda clusula geral em tema de responsabilidadecivil, reconhecendo-se a obrigao de reparar os danos independentemente de

    33 A nova norma possivelmente inspirou-se no art. 2.050 do Cdigo Civil italiano de 1942 (chiunquecagiona danno ad altri nello svolgimento di unattivit pericolosa, per sua natura o per la natura deimezzi adoperati, tenuto al risarcimento, se non prova di avere adottato tutte le misure idonee a evitareil danno), embora a nossa frmula legislativa possua feio mais rigorosa, j que no prev clusulaexoneratria. A jurisprudncia italiana a propsito do referido dispositivo legal abundante. Dela seextrai que cabe ao juiz decidir, segundo juzos de experincia, se a atividade perigosa ou no. Indicaesjurisprudenciais sobre atividades tidas como perigosas so encontradas em PESCATORE, G.; RUPERTO,C. Codice Civile annotato com la giurisprudenza della corte costituzionale, della corte di cassazione edelle giurisdizioni amministrative superiori. Milano: Giuffr, 1993. v. II. p. 3394 a 3397; e em GERI,Vinicio. Responsabilit civile per danni da cose ed animali. Milano: Giuffr, 1967. p. 162 ss: manipulaode explosivos; uso de serra eltrica; atividades envolvendo metais incandescentes; produo e distribuiode metano; servio de abastecimento de gs para uso domstico; circulao de veculos automotores,atividades de caa, parque de diverses, dentre outros.Os emritos comparatistas alemes Zweigert e Ktz referem que a jurisprudncia austraca foi maiscorajosa do que a alem ao reconhecer, mesmo na ausncia de legislao especfica, que possa haverresponsabilidade sem culpa quando o dano tenha sido causado por atividade perigosa do empresrioru, deixando-se ao juiz a deciso sobre a periculosidade da atividade (Introduzione al DirittoComparato. Trad. it. v. I: principi fondamentali. Milano: Giuffr, 1992. p. 204).

    34 Usa-se aqui a expresso formante legislativo no sentido utilizado pela doutrina comparatista italiana,a partir da teoria da dissociao dos formantes, desenvolvida por Rodolfo Sacco.

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    32 Rev. TST, Braslia, vol. 76, no 1, jan/mar 2010

    culpa, quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do danoimplicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

    A periculosidade deve ser aferida objetivamente, pela sua prpria natu-reza ou pela natureza dos meios empregados, e no em virtude docomportamento negligente ou imprudente de quem agiu. Ou seja, a periculosi-dade deve ser uma qualidade preexistente, intrnseca e no eliminvel. O homemprudente pode apenas reduzir tal periculosidade, sem jamais conseguir elimi-n-la.

    Discorrendo acerca de atividades perigosas, ainda sob a vigncia doCdigo de 16, Carlos A. Bittar referia que deve ser considerada perigosa aquelaatividade que contenha em si uma grave probabilidade, uma notvelpotencialidade danosa, em relao ao critrio da normalidade mdia e reveladapor meio de estatsticas, elementos tcnicos e de experincia comum35.

    Pertinentes ao tema so as observaes do Prof. Pietro Trimarchi36 arespeito de dispositivo similar do codice italiano:

    No exerccio de qualquer atividade perigosa pensvel a ado-o de medidas suplementares de segurana, alm daquelas em relaos quais exigvel, por um critrio de razoabilidade, a adoo. Pode-seexigir que os controles sejam feitos em modo sempre mais minucioso efrequentes; os dispositivos de segurana podem ser multiplicados, eoutros, mais novos e complexos, podem vir a ser adotados. Mas h umlimite razovel a tudo isto: l onde o risco residual suficientementeescasso, levando-se em conta numa apreciao pontual a utilidadesocial de tal atividade, em cotejo com o custo excessivo de ulterioresmedidas de segurana a serem adotadas, a ponto de poder paralisar aatividade. Alm deste limite, certamente existem medidas ainda poss-veis de serem adotadas e idneas a reduzirem o risco, mas no se podefalar em culpa se tais medidas no so empregadas. Assim, se a respon-sabilidade civil ainda assim vem a ser imposta, ela no mais estarfundada na culpa.

    Percebe-se, assim, que a lio do Direito Comparado no sentido deque cabe substancialmente ao magistrado identificar a periculosidade daatividade, mediante anlise tpica. No se trata de simples decisionismojudicial, em que cada juiz possa desenvolver um critrio prprio. Ao contrrio,

    35 BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade civil nas atividades nucleares. So Paulo: RT, 1985. p. 89.36 TRIMARCHI, Pietro. Rischio e responsabilit oggettiva. Milano: Giuffr, 1961. p. 277.

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    alm da anlise tpica, no se pode jamais olvidar que o Direito configura umsistema, embora aberto e mvel. Assim, o magistrado deve ser sensvel snoes correntes na comunidade, sobre o que se entende por periculosidade,bem como deve estar atento a entendimentos jurisprudenciais consolidados outendenciais. Alm disso, em bom exemplo de mobilidade intersistemtica, podeo julgador inspirar-se (embora no esteja vinculado a ela) na legislaotrabalhista e previdenciria que caracteriza determinadas atividades como sendoperigosas para efeitos de percepo do respectivo adicional.

    Segundo Miguel Reale37, a adoo da clusula geral da responsabilidadeobjetiva pelo novo cdigo teria sido uma decorrncia do acolhimento doprincpio por ele denominado de socialidade. Segundo ele, em princpio,responde-se por culpa. Porm, se aquele que atua na vida jurdica desencadeiauma estrutura social que, por sua prpria natureza, capaz de pr em risco osinteresses e os direitos alheios, a sua responsabilidade passa a ser objetiva eno mais subjetiva. Diz o projetista ter recorrido a um conceito de estruturasocial, semelhante ao que ocorre em matria de acidente de trabalho, isto ,toda vez que houver uma estrutura socioeconmica que ponha em risco, porsua natureza, os direitos e interesses de terceiros, daqueles com os quais essaestrutura entra em contato s vezes sem nem sequer ter qualquer benefciodireto ou indireto da sua operabilidade.

    DO ABUSO DO DIREITO38

    Inovao importantssima, que poder vir a sofrer grande desenvolvi-mento jurisprudencial, reside no novo art. 187, que assim dispe: Tambmcomete ato ilcito o titular de um direito que, ao exerc-lo, excede manifesta-mente os limites impostos pelo seu fim econmico ou social, pela boa-f oupelos bons costumes.

    37 REALE, Miguel. O projeto de Cdigo Civil: situao atual e seus problemas fundamentais. So Paulo:Saraiva, 1986. p. 10-11.

    38 No h como aprofundar o estudo deste instituto que comportaria extenso tratamento monogrfico no mbito destas consideraes panormicas sobre as novidades mais importantes em tema deresponsabilidade civil extracontratual no novo cdigo. Para um aprofundamento, remetemos o leitorpara a leitura, dentre outros, dos seguintes trabalhos: LEVI, Giulio. Labuso del Diritto. Milano: Giuffr,1993; SPOTA, Alberto G. Tratado de Derecho Civil. t. I. v. 2: relatividad y abuso de los derechos.Buenos Aires: Depalma, 1967 (860 pginas dedicadas ao tema, em tica comparada); CORDEIRO,Antnio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-f no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 1984. v. II. p.661 a 901; ARIAS, Lino Rodrigues. El abuso del Derecho. Buenos Aires: EJEA, 1971; e ROTONDI,Mario (Org.). Inchieste di Diritto Comparato: v. 7 labus de Droit. Padova: Cedam, 1979; obracoletiva e indicativa da matria no Direito Comparado.

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    Trata-se da figura do abuso do direito, um dos institutos jurdicos dereao ou de conteno invocao de um direito subjetivo, por objeo decarter tico, dentro do entendimento que o direito no pode se prestar afinalidades consideradas contrrias tica. Insere-se na mesma linha, porexemplo, do princpio do nemo auditur turpitudinem suam allegans.

    Embora a teoria do abuso do direito seja relativamente recente, seusgermes j esto contidos no Direito romano, como deixa entrever a expressode Paulo: non omne quod licet honestum est39, bem como na mxima deCcero: summum jus summa injuria.

    A ascenso da figura do abuso do direito est ligada relativizao doinstituto do Direito subjetivo. Diz-se, por exemplo, que a crise do Direitosubjetivo leva ao surgimento de outras situaes jurdicas subjetivas, ouinteresses socialmente apreciveis, que no seriam direitos tutelveis ergaomnes, como ocorre com a propriedade, mas interesses juridicamenteprotegidos. Nessa perspectiva, o exerccio de um direito subjetivo estariacondicionado realizao de finalidades de carter supraindividual, orientadasaxiologicamente pela Constituio. Conexo a esta tendncia estaria o carterobjetivo de tal responsabilidade40.

    Inicialmente a teoria do abuso do direito era vista sob um prismasubjetivo, segundo o qual um ato seria considerado abusivo se fosse exercidosem um real interesse e com o intuito de prejudicar terceiros (era a hiptese daaemulatio, o primeiro caso de abuso de direito de que se cuidou, reprimindo-se-o em praticamente todos os sistemas jurdicos), ou ento quando do ato nodecorresse quaisquer vantagens para o agente.

    Posteriormente, porm, ampliou-se tal noo, objetivando-se sua base.Isto porque ainda quando ausente o animus nocendi, o exerccio de um direitopode causar a terceiros danos desproporcionais em relao aos benefcioshauridos pelo titular do direito. Josserand foi o divulgador de tal concepo.Seu pensamento pode ser resumido nos termos seguintes: Haver abuso dedireito quando o seu titular o utiliza em desacordo com a finalidade social paraa qual os direitos foram concedidos. (...) Os direitos foram conferidos ao homempara serem usados de uma forma que se acomode ao interesse coletivo,obedecendo sua finalidade, segundo o esprito da instituio41.

    39 D., 50, 17, 144.40 Nesse sentido manifesta-se LEVI, Giulio. Responsabilit civile e responsabilit oggettiva. Milano:

    Giuffr, 1986. p. 77.41 Apud RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. So Paulo: Saraiva, 1975. v. IV. p. 54.

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    Na maioria dos sistemas jurdicos, a ideia de abuso do direito foiinicialmente acolhida pela jurisprudncia42. Somente em um segundo momentoo legislador, depois de consolidada a instituio, por fora de sistematizaodoutrinria, buscou incorpor-la em texto normativo.

    Assim, por exemplo, diante de textos legislativos que qualificavam odireito de propriedade como um direito absoluto, sagrado e inviolvel, os juzesfranceses ousaram romper com tal absolutismo do Direito subjetivo e, atravsde sucessivas decises, firmaram naquele ordenamento jurdico a figura doabus du Droit. A primeira deciso paradigmtica a respeito foi pronunciada nolongnquo ano de 1855, pelo Tribunal de Colmar, na qual se determinou ademolio de uma falsa chamin que um vizinho havia construdo em seuterreno (invocando um suposto irrestrito direito de construir que integraria odireito de propriedade), com o aparente propsito de retirar a iluminao ecirculao de ar sobre a janela do prdio vizinho. Naquela deciso, ainda queos juzes tivessem o cuidado de reconhecer que o direito de propriedade decerta forma absoluto, afirmaram que o direito subjetivo deve ter um limite,consistente na satisfao de um interesse srio e legtimo da parte do titulardo invocado direito subjetivo. Naquele caso, os juzes no identificaram talinteresse srio e legtimo na edificao da falsa chamin da a ordem de suademolio. Estas duas qualidades seriedade e legitimidade do interesse foram posteriormente aceitas e absorvidas pela doutrina e jurisprudncia, afim de serem aplicadas a casos anlogos. Com isso se estabeleceu, em solofrancs (mas com grande influncia sobre as demais experincias jurdicas),um limite para o exerccio excessivo e irregular de um direito43.

    No caso brasileiro, tal teoria j fora acolhida pelo codificador de 16, quea havia inserido no art. 160, I, segunda parte, do Cdigo Civil, interpretado acontrario sensu.

    O novel legislador, a respeito do chamado abuso de direito, tomouposio a respeito das duas tendncias principais existentes a respeito do tema,a teoria subjetiva do abuso do direito e a teoria objetiva, adotando esta ltima.De fato, o novo Cdigo, como se viu, no exige inteno de prejudicar,contentando-se com o excesso objetivamente constatvel. De acordo com oart. 187 do novo texto, em exegese confirmada por uma interpretao sistemtica

    42 o quanto informa VISINTINI, Giovanna. I fatti illeciti. Padova: Cedam, 1990. v. II. p. 286.43 Referncias a esse caso, numa discusso que abrange a necessidade e a tendncia de um direito mais

    solidrio e menos individualista, encontram-se em SESSAREGO, Carlos Fernandez. Un nuovo mododi fare Diritto. In: VISINTINI, Giovanna (Org.). Il Diritto dei nuovi mondi. Padova: Cedam, 1994.p. 229-276; o trecho citado encontra-se na pgina 236.

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    (j que o novel estatuto fala tambm em funo social do contrato e funosocial da propriedade tendo o Prof. Miguel Reale vrias vezes referido tersido adotada a diretriz da socialidade como uma das chaves de leitura doprojeto), percebe-se que o legislador entende que os direitos subjetivos noso conferidos ou reconhecidos aos indivduos de uma maneira aleatria, ouem perspectiva meramente individual. Os direitos, mesmo os de naturezasubjetiva, possuem uma destinao econmica e social. Considerando quevivemos em forma societria e que o exerccio dos direitos subjetivos repercutena esfera jurdica das outras pessoas, interessa sociedade a maneira pela qualexercemos nossos direitos. Destarte, quando, no exerccio de um direito, o seutitular se desvia destes parmetros, vindo a causar um dano a outrem, ficaobrigado a repar-lo.

    DA RESPONSABILIDADE CIVIL DOS INCAPAZES

    Relativamente responsabilidade civil dos incapazes, houve importanteinovao introduzida pelo novel cdigo. Sob a gide do Cdigo de 16, osincapazes eram considerados irresponsveis, sendo que pelos seus atos danososrespondiam seus pais, tutores e curadores, na forma do art. 1.521. Apenas emrelao aos menores pberes, entre 16 e 21 anos, havia previso de que tambmeles responderiam pessoalmente por seus atos ilcitos extracontratuais44,consoante art. 156 e nesse caso tratava-se de responsabilidade solidria comseus genitores ou tutores.

    Pois bem, o novo art. 928, na esteira das codificaes europeias, adota oregime da responsabilidade subsidiria e equitativa dos incapazes. Tratando-se de verdadeiro jus novum, convm que nos detenhamos um pouco mais sobrea inovao.

    A responsabilidade dos incapazes passou por uma singular evoluo nahistria do Direito. Ao cabo de uma evoluo que durou milnios, chegou-senovamente ao ponto de partida, embora sob formas mais civilizadas e mediantenovos fundamentos. Efetivamente, na antiguidade os incapazes erampessoalmente responsveis pelas consequncias de seus atos45. Posteriormente,

    44 Alm da hiptese excepcional de responsabilizao de um adolescente (menor entre 12 e 18 anos),pelas consequncias patrimoniais de um ato infracional (crime ou contraveno), na forma do art. 116,c/c arts. 112, II, 103 e 2, todos do Estatuto da Criana e do Adolescente.

    45 Primeiro, porque poderiam sofrer sanes pelo simples resultado material de seu agir; segundo, porque,fazendo parte de um agrupamento familiar, territorial ou poltico, eles acompanhavam a coletividadena adversidade, para que fosse dada satisfao vtima.

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    deixaram de s-lo46. Atualmente, h uma forte tendncia universal a torn-losmais uma vez responsveis pela reparao dos prejuzos a que derem causa,sob o prisma da equidade. Tratar-se-ia de uma responsabilidade patrimonial,no de responsabilidade pessoal.

    A ideia da responsabilizao dos incapazes com base na equidade apre-senta duas caractersticas, realadas por Eugenio Bonvicini47: a subsidiariedade,porque opera em substituio ausncia de obrigao de ressarcimento porparte do encarregado da vigilncia, e a discricionariedade por parte do juiz,que dever fixar o montante da indenizao com base em um critrio de equi-dade portanto em valor que poder ficar aqum do prejuzo sofrido.

    Constata-se, assim, que a teoria da irresponsabilidade absoluta da pessoaprivada de discernimento est em franca decadncia, substituda que est sendopelo princpio da responsabilidade mitigada e subsidiria. nessa tendnciaque se insere o novo cdigo, que introduz inovao importante no campoterico, embora provavelmente fadado a receber poucas invocaes prticas,pois parece-nos que o suporte ftico hipottico da nova norma raramente seconcretizar.

    Perante o novo diploma, a responsabilidade do incapaz ser subsidiria,pois somente ser acionada se as pessoas por ele responsveis no tiveremobrigao de faz-lo ou no dispuserem de meios suficientes. Como aresponsabilidade dos pais, tutores e curadores, pelos atos danosos praticadospor seus filhos, pupilos e curatelados de natureza objetiva, independente deculpa (art. 933 do novo CC), sero muito raras as hipteses em que tais pessoasno tero tal responsabilidade48. Igualmente raras sero as hipteses em que osmenores disponham de recursos hbeis para suportar a indenizao e que omesmo no ocorra com seus pais. Mais comum poder vir a ser uma tal hiptese,no caso dos pupilos e curatelados, pois muitas vezes os tutores e curadores tempatrimnio menor do que o daqueles.

    De qualquer sorte, a responsabilizao direta dos incapazes s ocorrerse os recursos necessrios ao pagamento da indenizao no privarem o incapazou as pessoas que dele dependam do necessrio, segundo a dico da lei.

    46 Foi somente ao final do perodo pr-clssico do Direito romano que se passou a entender os menores eos loucos como irresponsveis.

    47 La responsabilit civile per fatto altrui. Milano: Giuffr, 1976. p. 633.48 Algumas hipteses podero ocorrer, porm. Pense-se na hiptese em que o menor estiver empregado,

    caso em que a responsabilidade pelos atos danosos praticados por ocasio do trabalho desloca-se dospais para o patro. Na hiptese do empregador ser insolvente, a vtima poderia ter interesse de ressarcir-se junto ao prprio menor, acaso tivesse patrimnio, j que nessa situao os seus genitores no teriamresponsabilidade indenizatria.

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    DA RESPONSABILIDADE PELOS ATOS LCITOS

    Em relao responsabilidade civil pelos atos lcitos, no houve signi-ficativa inovao legislativa. De fato, o sistema anterior foi substancialmentemantido, como se constata do exame conjunto dos arts. 188, 929 e 930 donovo Cdigo, comparado com o disposto nos arts. 160, 1.519, 1.520 e 1.540do Cdigo anterior.

    Ou seja, quem pratica as condutas previstas no art. 188 (ato praticadoem legtima defesa, exerccio regular de um direito e estado de necessidade49)no comete ato ilcito, como expressamente refere o legislador. Consequente-mente, pratica ato lcito. Apesar da licitude da conduta, se a vtima tiver sofridoum dano injusto, por no ter dado causa ao seu infortnio, o agente causadordo dano dever reparar os danos, uma vez preenchidos os suportes fticos dosarts. 929 e 930 do novel estatuto.

    RESPONSABILIDADE PELO FATO DO PRODUTO

    O novo Cdigo, em seu art. 93150, alude responsabilidade civil doempresrio pelo fato do produto, mantendo-a sob a gide da responsabilidadeobjetiva, na esteira da experincia semelhante apontada pelo DireitoComparado. Num exame superficial, poder-se-ia dizer que nenhuma inovaoreal se apresenta, pois o direito vigente, representado pelo Cdigo de Defesado Consumidor, j estabelecia a responsabilidade objetiva pelo fato do produto,como se percebe da leitura de seu art. 12, em mais extensa redao. Alis, oprprio art. 931 ressalva outros casos previstos em lei especial, como nopoderia deixar de ser, pois o Cdigo Civil, sendo uma lei geral, no poderiapretender revogar uma lei que disciplina relaes especiais, como so as relaesde consumo. A poca das codificaes totalizantes, que buscam tudo disciplinar,j ficou definitivamente para trs. Assim, os cdigos gerais, como o novodiploma, devem coexistir com diplomas que disciplinam relaes especiais,

    49 Responsabilidade civil. Acidente de trnsito. Coliso com veculo regularmente estacionado. Fato deterceiro. Fechada. Estado de necessidade. Licitude da conduta do causador do dano. Ausncia deculpa demonstrada. Circunstncia que no afasta a obrigao reparatria (arts. 160, II, e 1.520, CC). Omotorista que, ao desviar de fechada provocada por terceiro, vem a colidir com automvel que seencontra regularmente estacionado, responde perante o proprietrio deste pelos danos causados, nosendo elisiva da obrigao indenizatria a circunstncia de ter agido em estado de necessidade. Emcasos tais, ao agente causador do dano assiste to somente direito de regresso contra o terceiro que deucausa situao de perigo (STJ, 4 T., REsp 12840/RJ, DJ 28.03.94). No mesmo sentido: STJ, 4 T.,REsp 127747/CE, DJ 25.10.99.

    50 Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresrios individuais e as empresasrespondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulao.

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    luz de princpios prprios, cabendo Constituio fornecer os critrios e osprincpios necessrios para a composio de um sistema coerente.

    Todavia, um exame mais detido aponta algumas diferenas de redaoentre o novo texto e o dispositivo consumerista. De fato, enquanto o art. 12 doCDC faz aluso a produtos com defeitos, o novo art. 931 refere, de maneirasimples, que os empresrios respondem pelos danos causados pelos produtospostos em circulao, no fazendo qualquer meno a produtos defeituosos.Por isso que a comisso que tratou do tema da Responsabilidade Civil, naJornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judicirios doConselho de Justia Federal (STJ), em Braslia, nos dias 11 a 13 de setembrode 2002, aprovou, por unanimidade, a proposta apresentada por AdalbertoPasqualotto, incorporando as ponderaes feitas na ocasio pelo juristaargentino Jorge Mosset Iturraspe, no sentido de que o art. 931 amplia o conceitode fato do produto existente no art. 12 do Cdigo de Defesa do Consumidor,imputando responsabilidade civil empresa e aos empresrios individuaisvinculados circulao dos produtos.

    Por outro lado, ao contrrio do CDC, que busca definir o que se podeentender por produto defeituoso (art. 12, 1) e fixa as hipteses defensivasque o fornecedor poder arguir em seu favor, o diploma civilista nada dispe arespeito. Relevante, ainda, o fato de que no houve qualquer meno pocaem que [o produto] foi colocado em circulao argumento central daquelesque entendem que o CDC no contempla a responsabilidade do fabricantepelos chamados riscos do desenvolvimento (development risks). Da porque possvel sustentar-se que o novo Cdigo Civil foi alm do diploma protetordos consumidores, pois contemplou inclusive os riscos de desenvolvimento.Nesse sentido, alis, resultou outra concluso unnime da referida Comisso,com o seguinte enunciado: A responsabilidade civil pelo fato do produto pre-vista no art. 931, do novo Cdigo Civil, tambm inclui os riscos do desenvol-vimento.

    Como o art. 931 contm verdadeira clusula geral, pois, ao contrriodos art. 12 e 13 do CDC, no especifica uma fattispecie concreta quedesencadeie sua aplicao (genericamente se refere a danos causados pelosprodutos postos em circulao, sem distinguir a responsabilidade do fabricantedaquela dos comerciantes), acreditamos que a proteo fornecida pelo Estatutodo Consumidor passar a ser enriquecida por este dispositivo. Alm disso, avantagem da incluso de tal matria no mbito de um Cdigo Civil, denecessrio carter geral, reside em que tal dispositivo poder ser invocadoquando eventualmente no se estiver diante de uma relao de consumo equando no for aplicvel o contido no disposto no art. 17 do CDC.

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    DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELO FATO DE OUTREM

    Dentro da teoria da responsabilidade civil, a ideia originria era no sentidode que uma pessoa s poderia ser responsabilizada pelos seus prprios atosdanosos. A responsabilidade, portanto, seria direta, pessoal. No desenvolvimentoda teoria, passou-se ideia da responsabilidade indireta ou complexa. Ou seja,constatou-se que era possvel algum vir a ser civilmente responsabilizadopelos atos praticados por outra pessoa, a quem fosse ligada de alguma forma.Essa evoluo ocorreu para que se pudesse garantir s vtimas dos danos apossibilidade efetiva da reparao dos prejuzos sofridos.

    O novo Cdigo Civil no inovou substancialmente no tratamento damatria relativa responsabilidade civil indireta. A inovao formal consisteem reconhecer que se trata de responsabilidade objetiva, independente de culpa.Todavia, j era esse o fundamento reconhecido pela doutrina mais atilada51 epela jurisprudncia mais consequente.

    No Cdigo Civil vigente, a matria veio tratada no art. 1.521, que previua responsabilidade dos pais, tutores e curadores, patres e comitentes, por atosde seus filhos, pupilos, curatelados, empregados e prepostos, alm dos donosde hotis52 e internatos, por atos de seus hspedes e alunos internos. Quanto aoinciso V do art. 1.521, trata-se de actio in rem verso, cuja previso, alis, sequerseria necessria, pois inerente ao sistema. Exatamente as mesmas regras foramreproduzidas no novo estatuto, como se percebe da leitura do novo art. 932.

    RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PAIS PELOS ATOS DOS FILHOSMENORES

    Estabelece o art. 1.521, inciso I, do Cdigo Civil novecentista, aresponsabilidade dos pais pelas consequncias danosas dos atos praticados

    51 Realmente, uma pessoa responsvel pelo ato danoso praticado por outrem somente quando nenhumaculpa lhe puder ser atribuda. Efetivamente, se uma culpa lhe pudesse ser atribuda, esta pessoa seriacertamente obrigada a reparar os danos, mas isso ento ocorreria em razo de sua prpria conduta. Noexiste responsabilidade pelo ato de outrem cada vez que uma pessoa repara um dano causado poroutrem, mas unicamente quando uma pessoa repara as consequncias danosas de uma culpaexclusivamente alheia (AMBIALET, Janine. Responsabilit du fait dautrui en Droit mdical. Paris:LGDJ, 1964. p. 13.

    52 escassa a casustica relativa responsabilidade dos hotis com fulcro no art. 1.521, IV. Eis um casointeressante: Responsabilidade civil. Hspede de hotel que lesiona o gerente. Culpa presumida dodono do estabelecimento. Art. 1.521, IV, do CC. (...) 2. A lei presume a culpabilidade do hoteleiro porato do seu hspede. Cabe ao estabelecimento tomar todas as medidas de segurana e precauo, porcuja falta ou falha responsvel (...) (STJ, 4 T., REsp 69437/SP, DJ 14.12.98).

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    por seus filhos menores que estiverem sob seu poder e em sua companhia. Onovo diploma legal substancialmente manteve tal regra, apenas substituindo ovocbulo poder pelo vocbulo autoridade.

    Sob a gide do velho Cdigo, a quase unanimidade dos doutrinadorescostumava vincular a responsabilidade dos pais existncia do poder familiar,ou, mais precisamente, aos deveres de guarda e de educao que lhe soinerentes. Segundo este posicionamento, se o menor comete um ato ilcito,isto significa que seus pais no o teriam vigiado com o cuidado necessrio(culpa in vigilando) ou porque falharam na educao do filho (culpa ineducando). Ou seja, os prprios pais teriam cometido uma culpa.

    Para ns, que inclusive sob a gide do Cdigo de 1916 vislumbrvamosna responsabilidade por fato alheio uma obrigao de cunho objetivo, nopodamos encontrar na culpa o fundamento nico de tal responsabilidade,mesmo sendo ela presumida. Somente poderia ela resultar da existncia dopoder familiar, vinculado a uma ideia de garantia e no a uma ideia de culpa. a soluo que o legislador vem de adotar, expressamente indicando o carterobjetivo da responsabilidade dos pais pelos atos dos filhos.

    Quanto aos demais pressupostos para a responsabilizao dos genitores,no houve alterao digna de nota. O legislador, alis, poderia ter aproveitadoa nova codificao para espancar algumas divergncias que persistem a respeitodo tema, como a questo da responsabilidade dos pais pelos atos dos filhosemancipados53, eventual responsabilidade do responsvel de fato por incapazno interditado54, responsabilidade dos genitores, em caso de separao de

    53 H quem entenda que como a lei se refere a filhos menores, sem restries ou condicionamentos, talexpresso abrangeria inclusive os filhos emancipados por qualquer das formas em lei.A maior parte da doutrina, porm, costuma distinguir a causa da emancipao para determinar asubsistncia ou no da responsabilidade paterna. Assim, distingue-se a emancipao expressa (porconcesso paterna) da emancipao por casamento, entendendo-se que naquela a responsabilidade dospais persiste, s ficando afastada nesta ltima hiptese.Um terceiro posicionamento, com argumentos aparentemente mais slidos, sustenta que aresponsabilidade dos pais afastada sempre que o filho se encontra emancipado por qualquer forma.Nesse sentido o magistrio de Orlando Gomes (Obrigaes. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 357),Alvino Lima (A responsabilidade civil pelo fato de outrem. Rio de Janeiro: Forense, 1973. p. 35),Antonio Chaves (Tratado de Direito Civil. So Paulo: RT, 1985. v. 3. p. 97), Vicente de Paulo Vicentede Azevedo (Crime, dano, reparao. So Paulo: RT, 1934. p. 330-331), Serpa Lopes (Curso de DireitoCivil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962. v. V. p. 274-275).

    54 A respeito do tema, veja-se MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi,1972. v. 53. p. 123; MENDONA, M. I. Carvalho de. Doutrina e prtica das obrigaes. Rio deJaneiro: Freitas Bastos, 1938. t. II. p. 458; Mazeaud-Tunc. Tratado terico y prtico de la responsabilidadcivil delictual y contractual. Buenos Aires: EJEA, 1962. t. I. v. II. p. 475.

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    fato, separao judicial e divrcio, a adoo ou repulsa expressa da teoria doposto social, segundo a qual pessoas que estejam exercendo funesassemelhadas a dos pais (v.g., padrasto ou madrasta, detentor de guarda etc.)responderiam civilmente nos mesmos moldes dos genitores55.

    RESPONSABILIDADE CIVIL DOS EMPREGADORES E COMITENTES

    No Cdigo Civil de 1916, a matria estava regulada nos arts. 1.521, III,1.522, 1.523 e 1.524. Pela leitura dos referidos dispositivos, constata-se que olegislador havia adotado o regime da culpa provada, ou seja, o patro oucomitente s responderia pelas consequncias danosas decorrentes de atos deseus empregados ou prepostos se ficasse provada uma conduta culposa de suaparte.

    Posteriormente, atravs do trabalho da jurisprudncia, interpretou-se oart. 1.523 como se contivesse uma presuno relativa de culpa (Smula n341/STF). Apesar da possibilidade terica da reverso de tal presuno relati-va, mediante prova em contrrio, o exame das solues jurisprudenciaisefetivamente aplicadas revelava o extremo rigor na admisso de tal prova ex-culpatria, mostrando que, na verdade, praticava-se uma verdadeira presunoabsoluta de culpa, j que no se admitia, na prtica operacional, que o empre-gador afastasse a sua responsabilidade demonstrando apenas que ele,empregador, no tinha agido com culpa. Ora, presumir-se algum culpado eno se admitir que ele desfaa tal presuno significa a adoo, na verdade, deum critrio de responsabilizao objetiva, independentemente de culpa. E nes-se sentido efetivamente vem se orientando a jurisprudncia h longas dcadas,embora nem sempre verbalizando tal posicionamento.

    Para que exista relao de preposio no se exige a presena de umvnculo laboral tpico56. Da mesma forma, pouco importa que o servio consista

    55 Aguiar Dias (Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 1979. v. 2. p. 175-177-179-180),Pontes de Miranda (Manual do Cdigo Civil brasileiro de Paulo de Lacerda. Rio de Janeiro: Jacinto R.Santos, 1927. v. XVI. 3. parte. t. I. p. 289) e Serpa Lopes (op. cit., v. V, p. 275), por exemplo, entendemque a responsabilidade civil prevista no antigo art. 1.521, I, do CC (reproduzido no atual art. 932, I)incide no apenas sobre os pais, mas tambm sobre quem lhes faz as vezes. Tais posicionamentos, emverdade, revelam a adoo da teoria do posto social, a que se refere Cunha Gonalves (Tratado deDireito Civil. So Paulo: Max Limonad, 1957. v. XII. t. II. p. 647-648).

    56 Nesse sentido: Quanto relao de preposio, no importa, para a sua caracterizao, que o prepostoseja ou no salariado, e nem se exige que as relaes entre preponente e preposto sejam permanentes,podendo elas ser meramente eventuais. Assim, o servio pode consistir numa atividade duradoura ounum ato isolado, tanto material, quanto intelectual. Para haver relao de preposio, suficiente aexistncia de um vnculo de dependncia, que algum preste um servio por conta e sob a direo de

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    numa atividade duradoura ou num ato isolado, possua carter gratuito ouoneroso, revista a forma de tarefa manual ou intelectual57.

    Por outro lado, para que surja a responsabilidade do preponente pelosatos danosos do preposto, necessrio que tambm este seja responsvelpessoalmente. Isto no significa que deva ter ele incorrido em culpa. Seporventura o preposto tiver agido em estado de necessidade, causando umdano, seu ato ser lcito e ele no ter agido com culpa, a teor do disposto noart. 188, II, do novo Cdigo Civil. No obstante, ser constrangido a indenizaros danos causados, nos termos do art. 929 do novo CC. Nesta hiptese, talobrigao estender-se- ao preponente.

    Diante da ausncia de alterao significativa do texto pertinente (art.1.521, III, do Cdigo de 16, e art. 932, III, do novo diploma), dever ser mantidoo entendimento58 segundo o qual subsiste a responsabilidade dos patres ecomitentes pelos danos ocasionados por seus empregados no exerccio dasfunes que lhes incumbem, ainda que os ltimos tenham agido excedendo oslimites de suas atribuies ou tenham inclusive transgredido as ordens recebidas,no sendo necessrio que o comportamento ilcito dos prepostos se contenhana esfera das funes que lhes tenham sido atribudas. Basta que entre taisfunes e o subsequente fato danoso subsista uma relao de ocasionalidadenecessria, no sentido de que, ainda que faltando uma relao rigorosa decausa e efeito entre tais funes e o fato danoso, exista entre tais termos umnexo lgico, de tal forma que a funo desempenhada pelo preposto tenha sidoa ocasio necessria do fato ilcito e que aquela (funo) tenha tornado possvelou favorecido notavelmente a realizao deste (fato ilcito)59.

    outrem, deste recebendo ordens e instrues, sendo indiferente que a relao de servios, podendoresultar at de um ato de cortesia, como, por exemplo, quando um proprietrio de um carro o emprestaa um amigo (trecho do voto vencedor do Min. Natal Nader, em acrdo do STF, inserto na RF 299/41); no mesmo sentido: STJ, 4 T., AGA 54523/DF, DJ 22.05.95; STJ, 4 T., REsp 304673/SP, DJ22.03.02; STJ, 4 T., REsp 119121/SP, DJ 21.09.98; STJ, 4 T., REsp 304673/SP, DJ 22.03.02; STJ, 4T., REsp 119121/SP, DJ 21.09.98.

    57 Responsabilidade civil. Acomoda-se ao disposto no art. 1.521, III, CC, e relao de preposio neledescrita, a hiptese em que, embora o automvel causador do dano pertencesse ao seu condutor, estavalocado empresa a qual ele prestava servios, destinado a propiciar maior presteza na execuo dasatividades profissionais e ensejar lucros indiretos empregadora-locatria (STJ, 4 T., REsp 36386/SP, DJ 04.10.93).

    58 Nesse sentido: Alvino Lima (op. cit., p. 236), Wilson Melo da Silva (Da responsabilidade civilautomobilstica, p. 203) e, de certa forma, Pontes de Miranda (Manual, cit., v. XVI, 3. parte, t. I,p. 373-374).

    59 A amplitude de tal entendimento evidenciada pelo seguinte acrdo: Responsabilidade civil doempregador. O dolo do preposto, na prtica do ato ilcito, no exclui, por si s, a responsabilidade doempregador. Hiptese em que o empregado, no exerccio da profisso de motorista, praticou o homicdioaps uma discusso de trnsito com a vtima, motorista de um nibus coletivo (STJ, 3 T, AGA 109953/RJ, DJ 15.11.96).

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    A QUESTO DO DIREITO REGRESSIVO

    Para aqueles que fundamentavam a responsabilidade do comitenteunicamente sobre a noo de culpa, provada ou presumida, era difcil concebera existncia do direito regressivo. Isto porque, como argutamente j haviaassinalado M. I. Carvalho de Mendona60, se o obrigado indireto provou queempregou toda a diligncia e precauo, claro que dirimiu a culpa, deixou deser obrigado e, pois, no se trata de condenao e nem de regresso. Se, aocontrrio, no fez tal prova, h culpa pessoal, e se esta existe, no se compreendecomo possa existir tal regresso.

    Todavia, qualquer que fosse o fundamento da responsabilidade civil dosempregadores, a existncia de direito regressivo em face dos empregados eragarantido pelo art. 1.524 do estatuto de 1916, orientao essa que foi mantidano art. 934 do novo CC.

    Todavia, a questo pode apresentar algumas peculiaridades. Tal direitoregressivo existe sempre? ele integral? de justia a sua existncia?Analisemos tais questes.

    Nem sempre existe tal direito regressivo. Em primeiro lugar, afasta-se apossibilidade do exerccio do direito regressivo quando o preposto for incapaz,por menoridade ou demncia61.

    Outro caso de inexistncia de direito regressivo seria quando o prepostohouvesse agido estritamente sob as ordens e instrues do comitente. Se daexecuo de tais ordens decorrerem danos a terceiros, o preponente serconsiderado pessoal e diretamente responsvel, sem poder exercitar direitoregressivo. o quanto afirmam Henri & Leon Mazeaud62.

    Lembramos, ainda, a hiptese de o preposto, praticando ato lcito, vir acausar danos, como, por exemplo, o caso do ato praticado em estado denecessidade, no sendo a vtima do dano a causadora do perigo que originou oato.

    Assim, entendemos s existir direito regressivo se houver culpa dopreposto, em seu duplo aspecto objetivo (ilicitude do ato) e subjetivo(imputabilidade).

    60 Op. cit., p. 470.61 Nesse sentido as lies de Carvalho de Mendona (op. loc. cit., p. 471) e Henri Lalou (op. cit., p. 626).62 Trait thorique et pratique de la responsabilit civile dlictuelle et contractuelle. Paris: Recueil Sirey,

    1947. t. 1. p. 692.

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    A esse respeito, Genevive Viney63 entende que no se pode deixar delevar em considerao o fato de que o preposto no age para si, mas sim emproveito de uma empresa, cuja organizao no lhe pertence. Tendo em vistatal circunstncia, afirma ela que o preposto s dever responder pelas culpasgraves por ele cometidas, devendo o preponente absorver a indenizaodecorrente de culpas leves do preposto.

    A INDEPENDNCIA RELATIVA DA RESPONSABILIDADE CIVILFRENTE RESPONSABILIDADE PENAL

    Dispe o novo art. 935 do CC que a responsabilidade civil indepen-dente da criminal, no se podendo questionar mais sobre a existncia do fato,ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questes se acharem decididasno juzo criminal. Como este dispositivo praticamente reproduz o dispostono art. 1.525 do Cdigo de 16, poder-se-ia entender no ter havido qualquerinovao a respeito do relacionamento entre as jurisdies civil e criminal. Aregra da independncia entre as duas esferas efetivamente restou mantida, masparadoxalmente a manuteno da velha redao do art. 1.525 do Cdigo Civilimplica, em princpio, inovao substancial.

    De fato, alm do disposto no Cdigo Civil, o tema do relacionamentoentre as duas jurisdies encontra regramento tambm no Cdigo Penal (art.91, I), no Cdigo de Processo Penal (arts. 63 a 68, esp. art. 66) e no Cdigo deProcesso Civil (art. 584, II).

    Ora, cotejando-se o disposto no art. 1.525 do Cdigo Bevilqua com odisposto no art. 66 do CPP, percebe-se que a legislao processual penal haviainovado substancialmente, pois enquanto o diploma civil admitia que a decisocriminal que definisse a questo da autoria influenciasse tambm a esfera civil,o art. 66 do CPP somente atribua tal eficcia s decises penais que decidissemsobre a materialidade do fato. Decises sobre a autoria, portanto, norepercutiriam no cvel. Alm disso, no mais qualquer deciso sobre amaterialidade do fato teria influncia no cvel, mas somente aquela que tivesse,categoricamente, reconhecido a inexistncia material do fato.

    Como o CPP (DL 3.689, de 03.10.1941) foi editado posteriormente aoCdigo de 1916, obviamente derrogou o Cdigo Civil naquilo que com ele eraincompatvel.

    63 Trait de Droit Civil. Paris: LGDJ, 1982. v. IV. p. 903 a 906.

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    O novo diploma civil simplesmente passou ao largo de tal controvrsia,reproduzindo o disposto no art. 1.525 do Cdigo anterior. Da porque se tem,agora, que derrogado restou o disposto no art. 66 do CPP, o que acarreta umasubstancial inovao sobre o tema64.

    RESPONSABILIDADE CIVIL PELO FATO DOS ANIMAIS

    O art. 936 do novo CC disciplina a chamada responsabilidade civil pelofato dos animais. Houve alterao da forma legislativa, mas no houve inovaosubstancial. Efetivamente, utilizou-se frmula mais sinttica para expressar ovelho contedo do art. 1.527 do CC anterior. Segundo a nova redao, odono, ou detentor, do animal ressarcir o dano por este causado, se no provarculpa da vtima ou fora maior. Embora se possa entender que se trate depresuno de culpa, ou de simples inverso do nus da prova, entendemos queo novo dispositivo prev uma autntica responsabilidade objetiva, pois noexige o legislador que se prove a culpa do dono ou detentor do animal. O fatode poder tal pessoa excluir a sua responsabilidade no significa tratar-se deresponsabilidade subjetiva, pois ser objetivamente responsvel no implica odever de indenizar sempre significa apenas no ser necessria a demonstraode sua culpa. A responsabilidade objetiva admite causas de excluso deresponsabilidade. Dentre estas se encontram justamente a demonstrao daintervenincia de caso fortuito ou de fora maior65, a presena de culpa davtima e o fato de terceiro. Silvio Venosa66 realou o rigor do novo dispositivo,ao no exigir que a posse do animal seja qualificada, bastando a simplesdeteno. Nessa posio, coloca-se aquele que loca o animal para cavalgar

    64 Para maior aprofundamento sobre esta temtica, remetemos o leitor indispensvel leitura de AdroaldoFurtado Fabrcio (Absolvio criminal por negativa de existncia ou de autoria do fato: limites de suainfluncia sobre o juzo civil, AJURIS, 55-34-59), bem como de Araken de Assis (Eficcia civil dasentena penal. So Paulo: RT, 1993).

    65 Sobre a distino entre caso fortuito e fora maior no h consenso doutrinrio e jurisprudencial. Oselementos que alguns entendem caracterizar o caso fortuito, outros afirmam integrar o conceito defora maior. De qualquer sorte, a despeito das divergncias doutrinrias, o fato que a lei no osdistingue conceitualmente e atribui tanto a um quanto ao outro os mesmos efeitos a liberao daresponsabilidade, diante da ausncia (ou ruptura) do nexo de causalidade.Na jurisprudncia, de se referir acrdo do STJ, da lavra do Min. Slvio de Figueiredo Teixeira, noqual se toma posio acerca das divergncias doutrinrias: Segundo qualificada doutrina, que encontroueco nesta corte, caso fortuito o acidente produzido por fora fsica ininteligente, em condies queno podiam ser previstas pelas partes, enquanto a fora maior o fato de terceiro, que criou, para ainexecuo da obrigao, um obstculo, que a boa vontade do devedor no pode vencer, com aobservao de que o trao que os caracteriza no a imprevisibilidade, mas a inevitabilidade (STJ, 4T., REsp 258707-SP, v.u., j. 22.8.2000, DJU 25.9.2000, p. 111, RT 785/208).

    66 A responsabilidade por danos de animais, artigo publicado no jornal Valor Econmico (20.03.02).

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    ou para servio rural. Seciona-se o nexo causal, se o animal foi furtado, omesmo que ocorre a respeito do automvel. Tambm no h responsabilidadese os animais so selvagens ou sem dono. O dispositivo refere-se a animaisdomsticos ou mantidos em cativeiro.

    DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELO FATO DAS COISAS

    Costuma-se estudar sob a denominao responsabilidade civil pelo fatodas coisas as duas espcies de responsabilidade civil previstas nos arts. 937 e938 do novo Cdigo Civil, que correspondem exatamente s duas hiptesesreguladas nos arts. 1.528 e 1.529 do Cdigo de 16. Trata-se, aqui, de tradicio-nais figuras j disciplinadas pelo Direito romano, sob a denominao de actio depositis et suspensis e actio de effusis et dejectis. Tambm aqui no houve qualquerinovao. A mesma interpretao que vigorava sob a gide do cdigo antigo, nosentido de vislumbrar em ambas as hipteses casos de responsabilidade objetiva,dever ser mantida67. Da mesma forma dever prosseguir-se na interpretao am-pla do vocbulo runa, constante do art. 937, no sentido de abranger no s aruna total, mas tambm a runa parcial e a simples queda de partes da edificao,como, por exemplo, queda de marquises, de sacadas, de rebocos, muros etc.

    DA SOLIDARIEDADE NA RESPONSABILIDADE CIVIL E SUATRANSMISSIBILIDADE

    Igualmente no h inovaes em relao ao disposto no novo art. 942,que reproduz ipsis litteris (com exceo da substituio do vocbulo cmpli-ce