00258 - Quintiliano Gramático - O Papel Do Mestre de Gramática Na Institutio Oratoria

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    Quintiliano Gramático

    QUINTILIANO GRAMÁTICOO papel do mestre de Gramática na Institutio oratoria

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     Marcos Aurelio Pereira

    Humanitas – FFLCH/USP – dezembro/2000

    USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

    Reitor: Prof. Dr. Jacques MarcovitchVice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi

    FFLCH – FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

    Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik AubertVice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

    CONSELHO EDITORIAL DA HUMANITAS

    Presidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)Membros: Prof  a. Dra. Lourdes Sola (Ciências Sociais)

    Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)

    Prof a

    . Dra

    Sueli Angelo Furlan (Geografia)Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História)Prof a. Dra. Beth Brait (Letras)

    FFLCH 

    FFLCH/USP

    Vendas

    HUMANITAS LIVRARIA – FFLCH/USPRua do Lago, 717 – Cid. Universitária05508-900 – São Paulo-SP – BrasilTel.: (011) 3818-4589/Fax: 3818-4593e-mail: [email protected]://www.fflch.usp.br/humanitas

    Crédito das imagens da capa:

    1. Frente: Mestre e discípulos lendo

    – Museu de Trier, Alemanha

    2. Costas: A vida de um menino (detalhe)

    – Museu do Louvre, Paris

     In QUINTIN, Y. & MITÉRAN, D. Langue et civilisation latines: première année. Paris: Nathan, 1987, p. 179 e184.

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    Quintiliano Gramático

    2000

    UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

    FFLCH/USPFFLCH/USP

    M ARCOS AURELIO PEREIRA

    QUINTILIANO GRAMÁTICO

    O papel do mestre de Gramática na Institutio oratoria

    ISBN 85-86087-90-4

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     Marcos Aurelio PereiraCopyright 2000 da Humanitas/FFLCH/USP

    É proibida a reprodução parcial ou integral,sem autorização prévia dos detentores do copyright 

    Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USPFicha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

    Este livro foi pago, parcialmente, com verba da CAPES (Proap)

    HUMANITAS FFLCH/USPe-mail: [email protected]

    http://www.fflch.usp.br/humanitastel/fax.: 3818-4593

     Editor responsávelProf. Dr. Milton Meira do Nascimento

    Coordenação editorialMaria Helena G. Rodrigues

     DiagramaçãoMarcos Eriverton Vieira

     Revisão Autor

    P436 Pereira, Marcos AurelioQuintiliano gramático: o papel do mestre de gramática

    na Institutio oratoria / Marcos Aurelio Pereira.– SãoPaulo: Humanitas / FFLCH / USP, 2000.195 p.

    Originalmente apresentada como Dissertação (Mes-trado – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-manas da Universidade de São Paulo, 1997), sob otítulo: De offício grammatici: os capítulos gramaticaisda Institutio oratoria de Quintiliano e o papel do mes-tre da gramática.

    ISBN 85-86087-90-4

    1. Latim (Gramática) 2. Latim (Língua) 3. Litera-tura latina 4. Retórica 5. Quintiliano I. Título

    CDD 475470870

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    Agradecimentos

    ao professor Dr. Antonio da Silveira Mendonça, pelo apoio, pela con-fiança, pela orientação;

    aos professores Dr. Paulo Sérgio Vasconcellos (UNICAMP) e Dr. BernardColombat (Universidade de Grenoble), pela atenção e pelo valiosomaterial bibliográfico a mim cedido;

    à Raquel Guirardello, pelo material bibliográfico;

    à Simone Ligabo Gonçalves, pelo “apoio técnico”;

    ao Frantomé Bezerra Pachêco, pela amizade e pelo incentivo.

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     Parentibus meis optimoque amicorum

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    L’étude de la grammaire grecque ou de la grammaire latine n’estconsidérée en général que comme un moyen d’arriver à l’intelligence desauteurs; c’est là, en effet, le principal avantage pratique que l’on puisseretirer de cette étude; mais on peut aussi avoir dans la grammaire une science

     valant la peine d’être recherchée pour elle-même et méritant d’occuper uneplace indépendante parmi les différentes sciences qui ont l’antiquité pourobjet, au même titre que la science des monuments figurés ou la science desinstitutions. (...) Dans tout art, et par conséquent aussi dans l’art du langage,il y a une partie technique, dont la connaissance n’a jamais empêché les

    personnes de goût de juger avec goût: elle leur permet au contraire de mieuxse rendre compte de leurs impressions et de donner à leurs appréciationsplus de sûreté.

    [O. Riemann, Études sur la langue et la grammaire de Tite-Live, p. 1]

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    Sumário

    Resumo .......................................................................................... 11

     Abreviaturas.................................................................................... 13

    Introdução ...................................................................................... 17

    O autor e a obra ............................................................................. 23

     A gramática antiga: origens e vinculações ....................................... 37

    Os “capítulos gramaticais” da Institutio oratoria .............................. 61

    Conclusão ....................................................................................... 83

     Institutio oratoria / A educação oratória ...........................................87

    Summary ...................................................................................... 189

    Referências Bibliográficas.............................................................. 191

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    Resumo

    Este trabalho tem por objetivo apresentar e comentar os “capítu-los gramaticais” do primeiro livro da  Institutio oratoria de Quintiliano(30? - 96? d.C.), onde o autor aborda as funções do grammaticus, aquelea quem cabia ministrar conhecimentos relativos ao “bom” uso da lin-guagem a partir daqueles textos onde ela melhor se realizava, os textos

    poéticos, cuja explicação também era sua incumbência. Tendo em vistaa importância assumida, na Antigüidade, pela palavra pronunciada,entende-se como se exigia do orador que, antes mesmo de saber dis-cursar, conhecesse o instrumento de que se servia, empregando todosos recursos expressivos que este lhe facultava para, como era seu papel,convencer. É, portanto, como auxiliar da Oratória/Retórica que a Gra-mática figura no tratado de Quintiliano, sendo posterior sua indepen-dência como disciplina que visava à descrição ou à sistematização, au-tônomas, dos fenômenos da linguagem. Pretende-se, aqui, a partir deum exame da concepção de linguagem dos antigos, fundada numa

    reflexão filosófica depois transformada em disciplina gramatical, focali-zar o próprio conteúdo da obra de Quintiliano, cujo papel na históriados estudos lingüísticos posteriores costuma ser ignorado.

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    Abreviaturas

    Cic., Or. – Cícero, Orator  [‘O orador’]

     Dial. – Tácito, Dialogus de oratoribus [‘Diálogo dos oradores’]

     Ep. – Sêneca, Ad Lucilium epistulae morales [‘Cartas a Lucílio’]

     Ep. – Plínio o Jovem, Epistulal [‘Cartas’]

     Ep. – Horácio, Epistularum libri duo/Sermones [‘Epístolas’]

    G.L.K. – H. Keil, Grammatici Latini

     Il.  – Homero, ’Ili £j [‘Ilíada’]

    Luc., Sat. – Lucílio, Saturae [‘Sátiras’]

    Mart., Ep. – Marcial, Epigrammaton libri XII  [‘Epigramas’]

    Od. – Homero, ’Odusse…a  [‘Odisséia’]

    Orig. – S. Isidoro de Sevilha, Originum libri [‘Etimologias’]

    Perˆ   ˜ rm.  – Aristóteles, Perˆ   ˜rmhne…aj  [‘Da interpretação’]

    Sat. – Juvenal, Saturae [‘Sátiras’]

    Virgl, Aen. – Virgílio, Aeneis [‘Eneida’]

    Virg., Ecl. – Virgílio, Eclogae [‘Bucólicas’]Virg., Georg. – Virgílio, Georgica [‘Geórgicas’]

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    Nota importante

     As referências aos capítulos gramaticais da Institutio oratoria, aolongo da exposição, foram feitas sempre com a omissão do fato óbviode se encontrarem no primeiro livro: uma indicação como “IV, l”, porexemplo, deve ser lida “parágrafo primeiro do capítulo quarto do livroprimeiro”. Quando se fez referência a qualquer outro livro da obra,

    porém, utilizaram-se três algarismos, dos quais o primeiro indica o livrode onde se extraiu o trecho citado: uma indicação como “X, l, l”, porexemplo, deve ser lida “parágrafo primeiro do capítulo primeiro do li-

     vro décimo”.

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    Introdução

    Constitui o presente trabalho um estudo sucinto dos capítulos 4 a9 do primeiro livro da Institutio oratoria 1  de Marco Fábio Quintiliano(30? – 96? d.C.), que, tanto quanto estamos informado, pela primeira

     vez se apresentam em tradução portuguesa 2, ao menos em territóriobrasileiro.

    Nosso objetivo inicial é, ao mesmo tempo que discutir questõesrelativas à natureza e ao ensino da Gramática na época de Quintiliano,divulgando parte de um trabalho maior, ainda em processo, tornar otexto conhecido dos interessados na história da reflexão sobre a lingua-gem na Antigüidade Clássica. No caso, especificamente, romana.

    Parece haver atualmente no Brasil um interesse pelos trabalhosdos antigos, mas são poucos – pelo que temos conhecimento – aquelesque extrapolam o âmbito da Literatura. Ao mesmo tempo, abundamfora do país estudos que bem servem a demonstrar a importância de

    um melhor conhecimento do que os antigos pensaram e escreveramsobre a Gramática.

    1 O termo institutio  tem recebido várias traduções, a mais óbvia das quais éinstituição. Ora, o verbo instituere, de que deriva o substantivo que dá nome àobra, possui os sentidos de formar, educar , instruir , e é justamente da forma-ção do orador que se trata. Daí por que se traduziria melhor Institutio oratoriapor Educação oratória.

    2  Jerônimo Soares Barboza (1737-1816), conhecido gramático português, é autorde uma tradução de excertos dos livros da  Institutio oratoria que tratam maispropriamente da Retórica.

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     Assim, embora seja de conhecimento comum o fato de que osestudos lingüísticos realizados atualmente se filiam a uma corrente depensadores e pesquisadores que teve sua origem na Antigüidade greco-

    romana, pouca ênfase tem sido dada ao período entre nós. No casoespecificamente romano, ademais, até hoje se encontram afirmaçõesde que só se teriam ocupado com a “correção da linguagem” ou, o queé pior, de que até mesmo nisso teriam sido servis imitadores dos gregos.Tais opiniões, a nosso ver equivocadas, põem de parte as especificida-des da reflexão sobre a linguagem realizada pelos romanos, sem cujoconcurso o pensamento lingüístico grego, que o precedeu historicamentee nos sentimos à vontade para considerar como a base da tradiçãogramatical do Ocidente, simplesmente não teria chegado até nós damaneira como chegou. Em outras palavras, sem os romanos, a Gramá-

    tica não teria sido tal qual a conhecemos.É nossa crença pessoal que o texto de Quintiliano, nesse domí-

    nio, é particularmente exemplar. Fazendo parte de um tratado de natu-reza enciclopédica que reúne o conhecimento acumulado até entãosobre a disciplina da qual nosso autor foi mestre – a Retórica –, oscapítulos gramaticais presentes na Institutio oratoria constituem um locusprivilegiado em que se vinculam justamente Gramática, Retórica e ou-tras disciplinas, como o que hoje chamaríamos Literatura, Filologia,Pedagogia, com implicações nem sempre bem compreendidas. Consi-derando-se ainda o fato de que em Quintiliano se buscou, a partir doRenascimento, um modelo na elaboração de programas educacionais(veja-se a própria Didactica magna de Comênio, que o cita), fica claroque um maior estudo de seu trabalho pode em muito iluminar a pró-pria visão que temos daquelas disciplinas, e, conseqüentemente, o queem especial nos interessa aqui, nossa compreensão das origens de nos-sa tradição gramatical.

    Nesse ponto em particular, apesar de não pretender ensinar outratar minuciosamente de Gramática, como ele próprio afirma mais deuma vez no texto, Quintiliano faz, nos referidos capítulos 4-9 do livro

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    primeiro da Institutio oratoria, uma consideração sobre todos os níveisda análise gramatical, sejam a fonologia e a morfologia, sejam a sintaxee a semântica, bem como a pragmática. Não se buscará em sua apre-

    sentação desses níveis, naturalmente, exaustividade, profundidade, ouo emprego da metodologia cobrada de um trabalho que tenha atual-mente por meta a análise de uma língua qualquer, nem são eles assimtratados. Porém, como se poderá mesmo verificar logo à primeira leitu-ra, eles estão presentes no texto, com todas as peculiaridades de umtrabalho realizado por um autor antigo sobre o antigo tema que é alinguagem. Nossa preocupação será justamente observar como estárepresentada no texto de Quintiliano aquela disciplina que, de início

     vinculada à Filosofia, iria posteriormente constituir, para nós, a CiênciaLingüística: a Gramática antiga. Mas talvez o que se intenta, antes de

    mais nada, seja chamar a atenção do público para os textos da época,pondo o leitor frente a eles e convidando-o a pensar sobre o que fala-

     vam os gramáticos antigos.

    O trabalho está organizado em três capítulos. O primeiro traz infor-mações gerais sobre a vida e a obra de Quintiliano, a Institutio oratoriade modo geral e o seu livro primeiro em particular. O segundo, umabreve consideração sobre a natureza da Gramática antiga e suas

     vinculações com a Retórica e outras disciplinas. O terceiro apresenta,mais especificamente, uma discussão sobre os capítulos referentes àGramática presentes na obra. Finalmente, apresentamos, na conclusãodo trabalho, os resultados do estudo por nós realizado. Segue-se à con-clusão o texto latino com a tradução portuguesa, acrescida de notasexplicativas.

    Umas poucas palavras, aqui, sobre a tradução. Privilegiamos, emnosso trabalho, a edição do texto de Quintiliano feita pelo professor

     Jean Cousin, publicada em Paris pela respeitada Société d’Édition ‘Les Belles Lettres’. Não temos a pretensão de haver apresentado uma tra-dução definitiva do trecho escolhido, nem sequer uma tradução isentade críticas. Como já afirmamos, nosso principal interesse é trazer o tex-

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    to de Quintiliano para o domínio da discussão pública, mas numa tra-dução aceitável. Para o trabalho, valemo-nos também das edições itali-ana de Faranda & Pecchiura e da inglesa de Butler, cujas traduções,

    ademais, juntamente com a de Cousin, freqüentemente cotejamos, ten-do em vista resolver certos problemas de interpretação.

     As notas que acompanham a tradução têm, por sua vez, a finali-dade de esclarecer pontos ou passagens do texto que, em nosso enten-der, reclamam algum tipo de explicação. Eles dizem respeito tanto afatos lingüísticos (Quintiliano toma como referência o latim paraexemplificar o que diz; algumas vezes, também o grego) quanto históri-cos, biográficos etc. Procuramos, na medida do possível, esclarecê-lostodos em nota de rodapé. Termos latinos e gregos isolados, que consi-

    deramos não exigirem outra explicação além da simples tradução, fo-ram encaixados dentro do próprio texto português, entre colchetes.

    Por fim, apresentamos a relação das obras utilizadas na realiza-ção do trabalho. E gostaríamos de chamar atenção, neste ponto, paraum dado que corrobora aquilo que já afirmamos no início desta intro-dução: a quantidade de obras e artigos estrangeiros que tratam de nos-so tema (aos quais, infelizmente, não pudemos ter acesso em sua tota-lidade ou ao menos em parte considerável), comparada à quase escas-sez de publicações nacionais. O fato parece reclamar, da parte de pes-quisadores brasileiros envolvidos de alguma forma com questões de

    linguagem, um esforço no sentido de resgatar aqueles textos que nãoapenas deram forma, com o trabalho de sucessivas gerações, ao co-nhecimento que sobre ela temos hoje, como são capazes, cremos, detrazer contribuições valiosas para a própria Lingüística.

    Não temos a pretensão, com este trabalho, de tentar esgotar aspossíveis leituras e interpretações do texto de Quintiliano, que continuaa reclamar e merecer um estudo mais atualizado e aprofundado, razãopela qual o autor constitui ainda o tema de nossa pesquisa. Como jádissemos, nosso objetivo principal, neste momento, é trazê-lo à discus-

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    são para afirmar seu caráter por demais significativo, na medida emque representa diretamente o que os antigos, de quem somos herdei-ros, refletiram e disseram sobre algo por demais relevante: a linguagem.

    O trabalho constitui uma versão parcialmente modificada de nossadissertação de Mestrado, apresentada em abril de 1997 ao programade pós-graduação em Letras Clássicas da Faculdade de Filosofia, Le-tras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, com o título“ De officio grammatici: os capítulos gramaticais da Institutio oratoria deQuintiliano e o papel do mestre de Gramática”, sob orientação do Prof.Dr. Antonio da Silveira Mendonça.

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    1  As datas de nascimento e morte de Quintiliano são incertas. Cousin (1975)situa a vida do autor entre os anos de 30 e 96 d.C., aproximadamente.

    O autor e a obra

    Sit ergo nobis orator, quem constituimus, is qui a M.

    Catone finitur uir bonus dicendi peritus. (XII, 1, 1)

    Quintiliano ( Marcus Fabius Quintilianus) era, como Sêneca eMarcial, de origem espanhola. Natural de Calagurre (ou Calagurris

     Nassica, hoje Calahorra, província de Logroño), cidade da HispâniaTarraconense, seu nascimento deu-se por volta do ano 30 d.C.1 Cedo,o pai, que também era retor, levou-o a Roma, onde o jovem Quintilia-no teve por mestres Domício Afro e Rêmio Palemão (ou Palêmon).

    Tendo aí obtido grande prestígio como retor, regressa à Hispâniacom o então pretor Galba, a fim de exercer o cargo de advogado notribunal superior da Tarraconense. Quando, em 68, aquele regressa a

    Roma para tornar-se imperador em sucessão a Nero, Quintiliano fazparte de sua comitiva. Na capital, sua fama se consolida, passando areceber, já sob Vespasiano, um estipêndio anual para ensinar o seuofício publicamente. Segundo o testemunho de São Jerônimo, lembra-do por Cousin (1975: XXII), foi o primeiro a abrir em Roma uma escolapública e a ser por isso remunerado, tendo-se contado, entre seus alu-

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    nos ilustres, Plínio o Jovem e, possivelmente, também Tácito e Marcial.Foi de ambas essas experiências – a “advocacia” e os vinte anos dedi-cados ao ensino da Oratória – que se valeu posteriormente para a reda-

    ção da Institutio 2.Casa-se por volta de 83, tendo de sua mulher, morta não muito

    tempo depois, aos 19 anos, dois filhos, que igualmente vê desaparece-rem antes de concluir a obra. Por essa época, Domiciano, o novo impe-rador, encarrega-o do preceptorado dos filhos do cônsul Flávio Cle-mente, os dois sobrinhos-netos que desejava tornar seus sucessores. Éno exercício dessa última atividade que Quintiliano redige finalmenteseu tratado, dedicado ao amigo Vitório Marcelo e ao filho deste e publi-cado por volta do mês de setembro de 96, vindo o autor a falecer pou-

    co antes de Nerva assumir o comando do império.De sua vida, decorrida em tão agitada época da história romana,

    tais são os fatos que, num primeiro momento, se poderiam apresentarcomo fundamentais. De sua obra e do exercício de sua profissão, não sãopoucos os comentários, quase sempre favoráveis. O próprio Marcial, com-patriota e possivelmente também discípulo de Quintiliano, chama-o

    ... uagae moderator summe iuuentae,

    Gloria Romanae ... togae 3,

    2 Do conjunto das obras de Quintiliano que chegaram até o presente – um con- junto inautêntico de declamações ( Declamationes), que seriam apenas anota-ções de aula feitas por seus discípulos, e um tratado sobre a decadência daoratória ( De causis corruptae eloquentiae), atribuído a Tácito e confundidocom o Dialogus de oratoribus deste último –, é a Institutio, considerada verda-deiro “delineamento de uma educação liberal” (cf.  Enc. Britannica, v. 18, p.855), no antigo sentido do termo, que mais se destaca, e é unicamente delaque trataremos aqui.

    3 Mart., Ep. II, 90: “mestre sem igual de nossa juventude inconstante, glória datoga romana”.

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    com certa reverência avessa, ainda que um tanto quanto cínica, a suamuito mais comum e esperada mordacidade. Juntamente com Cícero,que muito admirava e a quem de perto segue em seu tratado, Quintilia-

    no é mesmo considerado “um dos mestres das formas de expressão dopensamento ocidental e o ‘instituidor’ da retórica universal” 4. No quediz respeito à Institutio, de que Paratore (1987: 700) considera “particu-larmente importantes o L. I e o L. X”, sendo o primeiro destes “o maiscompleto tratado de pedagogia que a antigüidade clássica nos transmi-tiu”, o juízo crítico é praticamente unânime: estamos diante de uma

     verdadeira enciclopédia, uma grande “suma” que sua época produziupara muito além do âmbito da eloqüência.

    Sem contar edições separadas dos doze livros que a compõem, e

    os mais de 250 manuscritos que dela se encontram, segundo Cousin(1975: XCV), a Institutio oratoria soma mais de trinta edições, datandoa primeira delas de 1470, realizada em Roma por Campanus. Antesconhecida apenas por fragmentos e casualmente descoberta 5, a obrade Quintiliano foi especialmente louvada no Renascimento, quando oestudo das línguas e culturas clássicas foram retomados e incentivadosapós séculos de abandono.

    Com sua revalorização do estilo ciceroniano, seu modelo de lin-guagem foi rapidamente adotado, chegando sua influência mesmo aestender-se à pedagogia moderna 6. Em seu ideal de cultura, de fato, os

    humanistas do Renascimento viram a eloqüência clássica de tal modo

    4 Tal é o juízo de Cousin (1975: XCIV), por exemplo.5 Em 1416, por obra do humanista florentino Poggio Bracciolini (1380-1459),

    no mosteiro de Sankt Gallen (Saint Gall), Suíça (cf. Howatson, 1995: 478).6 Cf. Carpeaux & Neves (1983: 9528). O juízo de Quintiliano sobre os autores

    cuja lista se encontra no livro décimo da Institutio oratoria (“espécie de históriada literatura, a primeira do gênero”, nas palavras de Carpeaux) não apenasteve grande influência na avaliação que deles se fez no Renascimento quanto,mesmo, modernamente (cf. Kennedy, 1962: 142). Com relação a sua influên-

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    unida à virtude e à verdade, e consideraram válidos para seu idealeducativo os princípios pedagógicos da época clássica, que “resumir osprincípios gerais de Quintiliano sobre educação é caracterizar uma das

    feições da pedagogia humanista” 7.Referindo-se à  Institutio, dirigida em parte aos educadores da

    época, assim se expressa G. A. Kennedy (1962: 132), um dos principaisestudiosos da obra de Quintiliano:

    O único trabalho indubitavelmente genuíno de Quintiliano a che-gar até nós é a Institutio oratoria, um sistema de formação para oque chama orator  do berço à aposentadoria, se não mesmo até otúmulo. Ele reúne, assim, as disciplinas ensinadas pelo professorelementar e pelo retor de uma maneira única entre as obras clássi-

    cas, embora aparentemente não original, uma vez que o Studiosusde Plínio o Velho, de acordo com o sobrinho deste ( Ep.  III, 5),oratorem ab incunabulis instituit et perfecit , e a tradição sem dúvi-da remonta aos professores da época helenística como Mólon, quetratou tanto da gramática quanto da retórica, e em última instân-cia aos sofistas.

    Muito embora nesse particular não se possa observar, portanto,uma absoluta originalidade na exposição de Quintiliano, é preciso reco-nhecer também que ele

    não apenas acrescenta à tradição retórica material desenvolvido poroutros, mas incorpora a matéria num sistema educacional global 8.

    cia sobre a pedagogia, vejam-se as citações de Quintiliano na Didactica magnade Comênio, já referida na Introdução deste trabalho.

    7 Cf. Fonseca et al., vol. 24, p. 116.8 Cf. Kennedy (1980: 101). O autor chama, igualmente, atenção para o fato de

    que o sistema da Retórica, tal qual exposto por Quintiliano nos livros III a XI da Institutio, “contém muitos detalhes que não conheceríamos de outra maneira”.

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    No entanto, como lembra igualmente Cousin (1975: XC), uma melhore mais verdadeira interpretação da obra deveria permitir ver que a

     Institutio “não é unicamente um compêndio de pedagogia, mas um

    tratado inspirado de mais altos desígnios”.O livro I, de cujos capítulos 4-9 nos ocupamos aqui em espe-

    cial, trata justamente de como se deve preparar a criança para o exer-cício da oratória desde a mais tenra idade. De início sob a responsabi-lidade dos pais e servos domésticos, a criança romana era tradicional-mente alfabetizada e recebia em casa os primeiros rudimentos do sa-ber9, sendo apenas depois disso encaminhada a mestres especializa-dos. Quintiliano discute, neste passo, as vantagens da escola sobre oambiente doméstico para a aprendizagem. Em seguida, discorre so-bre as funções do grammaticus, o mestre encarregado do ensino dalíngua literária, bem como sobre a necessidade, para o futuro orador,de um conhecimento o mais possível completo, no que diz respeito às

     várias artes que compõem o saber da época. Finalmente, trata damaneira conveniente de pronunciar e gesticular, e discute sobre a ca-pacidade que tem a criança de receber vários tipos de ensinamentoao mesmo tempo.

    No livro II, Quintiliano discute o caráter e o papel do mestre deRetórica e apresenta sua visão sobre a disciplina, definindo a metodologiaa ser seguida. À exposição, propriamente, do sistema da Retórica, re-

    servam-se os livros III a XI, que tratam de sua origem, das partes quecompõem a peça oratória, dos diversos tipos de discurso, da exposição,do raciocínio e da argumentação a serem seguidos pelo orador, bemcomo das figuras e tropos, da imitação, da memória e da declamação.O livro XII, por último, trata especificamente do papel do orador e deseus deveres, sobre os quais se situa o de primar por sua honestidade: o

    9 Sobre a educação romana no período republicano, cf. Rocha Pereira (1984:184-197). Ver, igualmente, o trabalho mais completo de Marrou (1955) sobrea educação na Antigüidade.

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     verdadeiro orador preconizado por Quintiliano deve ser, antes de maisnada, retomando a velha fórmula de Catão, “um homem de bem que éexperimentado na arte de discursar”: uir bonus, dicendi peritus 10.

    Se lembrarmos que

    a palavra pronunciada significou para a Antigüidade muito do quea razão significou para o século dezoito, envolvendo tanto capaci-dade intelectual quanto a função do orador na sociedade, além deinventividade e poder pessoal 11,

    teremos, então, mais elementos para compreender como a moral quenorteava a eloqüência e sobre a qual assenta toda a preocupação pe-

    dagógica de Quintiliano consistia, em última instância, em reclamar doorador, que era também e fundamentalmente um homem de Estado,uma correspondência entre sua vida e sua linguagem. A Retórica, por-tanto, “teoria da persuasão pela palavra” 12 e “arte da linguagem naconfluência do pensamento com a ação” 13, da mesma forma que pres-supõe uma psicologia, pressupõe também uma moral.

    Essa moral responde pela filosofia que subjaz à concepção deeloqüência de Quintiliano e encorpa mesmo sua concepção da forma-ção pedagógica: só é possível tornar-se um orador perfeito sendo umuir bonus, e é dessa idéia que parte toda a sua metodologia e todo o

    seu sistema. Nesse particular, Quintiliano está de acordo também comCícero, cuja influência se faz sentir a todo tempo no tratado e que maisse aproxima do orador ideal desejado por aquele, a ponto de seu nome

    10 Cato, frag. 14 (80) Jordan: Orator est, Marce fili, uir bonus, dicendi peritus (cf.Calder III, 1987: 168-9).

    11 Cf. Kennedy (1962: 145).12  Assim a define Desbordes (1996: 65).13  Ibid., p. 64.

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    ser considerado (X, 1, 112) “não o nome de um homem, mas da pró-pria eloqüência”14.

    Ora, Cícero afirma, no Orator 15, que

     A eloqüência, como tudo, funda-se sobre a sabedoria; no discursocomo na vida, nada é mais difícil de observar do que aquilo queconvém (quid deceat ). Os gregos chamam a isso tÕ pršpon; nós po-deríamos dizer decorum,

    mostrando bem a homologia que se deve, para o orador, verificar entresua linguagem, seus pensamentos e suas ações. O conceito, no entanto,se precisa no De officiis16:

    Se a beleza do corpo atrai os olhos pela disposição harmoniosa dosseus membros, e se ela agrada pelo fato mesmo de que todas aspartes estão afinadas com um certo encanto, a conveniência, quebrilha em nossa vida, suscita a aprovação de todos aqueles com osquais nós vivemos pela ordem, pelo equilíbrio e pela moderação detodas as nossas palavras e de todos os nossos atos.

    Essa concepção, que é também a de Quintiliano e por trás daqual se podem enxergar antigos ideais do Estoicismo, explica sua preo-

    cupação com a formação do futuro orador, bem como por que nãodeve espantar, nos termos de Cousin (1975: XLVI),

    que ele [Quintiliano] tenha tomado a criança do berço, se se podedizê-lo, para conduzi-la até a idade adulta, que ele tenha feito dessa

    14 Paratore (1987: 701s), como outros, faz, por isso, um juízo negativo de Quinti-liano.

    15 Citado por Cousin (1975: LXXIV).16  Ibid.

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    educatio o ponto de partida de sua institutio [sic], e que ele tenhaatribuído tanto valor à ética, a ponto de seu sistema ter o aspecto eo valor de uma estética da vida 17.

    Daí a rejeição, por Quintiliano, do “discurso empolado”, cheio deartifícios retóricos mas em si mesmo vazio que ele enxergava na elo-qüência de sua época – rejeição que, como se verá, casava-se bem comos propósitos dos flavianos ao tomarem o poder. Daí, também, a valo-rização do antigo uir bonus de Catão, aquele homem

    que responde às exigências da vida moral e social, e que, quandofala, não se deixa envolver pela miragem da virtuosidade retórica 18.

    Há que buscar uma conveniência, a qual

    se confunde, portanto, com a moderação, e a moderação com a virtude. Ora, é uma virtude falar como convém; a linguagem é umamanifestação, uma transparência do espírito e da alma. Ninguémpode ser orador perfeito se não é um uir bonus 19.

    No discurso como na vida, pois, o único princípio que deve guiaro orador, a única virtude a ser por ele buscada e cultivada, a  prima

    uirtus, é o equilíbrio do velho meio-termo (optima...media illa uia) econsiste em estar livre do vício (uitio carere) que, para Quintiliano, nãoé outra coisa senão o excesso, onde quer que este se encontre (uitiumest ubique, quod nimium est ) 20. Esse princípio, que norteia toda uma

    17 Grifo nosso.18 Cf. Cousin (1975: XLVI, nota 1).19  Ibid., p. LXXIV.20 Os termos aparecem, respectivamente, em VIII, 3, 41; VII, 3, 17; VIII, 3, 42.

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    “estética da vida”, como diz Cousin, acaba respondendo, como se vê,pela questão do estilo, e está na base das concepções de Quintilianosobre a criatividade e a originalidade que se podem esperar do seu

    orador.O princípio explica, na verdade, não só a visão de Quintiliano

    sobre esse aspecto, como a de todo o mundo antigo, para o qual é caraa idéia de mímese, de imitação: não se pode ser “original” sem levar emconta o que outros já fizeram. Assim como, no caso da conduta da vida,deve-se ter em vista aquilo que se estabeleceu, por alguma razão, comosendo justo e bom, no caso do estilo também é preciso ter em mente oque fizeram os bons autores. Em outras palavras, é preciso conformar-sea certos padrões, o que de forma alguma implica uma negação da criati-

     vidade ou da originalidade, que não deixam de constituir quesitos a ob-servar. A imitação, assim, não constitui um princípio limitador: valorizar oque o passado produziu de bom não é, necessariamente, prender-se aele de maneira cega. Não é para cultuá-los de maneira servil que se de-

     vem levar em conta os “modelos” do passado, mas para procurar atingirsua excelência e, nisso, até mesmo para ultrapassá-los. Os bons escritoresdo passado e suas obras constituem apenas um ponto de referência.

     Aqui, portanto, imitar significa antes espelhar  – para aperfeiçoar!21

    Embora, pois, seja no terreno da imitação que se move o oradorque Quintiliano procura formar, ele deve ter por meta um objetivo mais

    21 D. L. Clark, outro estudioso da obra de Quintiliano referido por Kennedy (1962:145), “pensa principalmente na imitação como uma técnica pedagógica emQuintiliano e outros. (...) um modo eficaz para começar, mas (...) inadequadocomo um princípio crítico para o orador criativo, que deve ser encorajado adesenvolver seu próprio estilo. A teoria de Quintiliano está por demais vincula-da à técnica pedagógica”. A imitação, na verdade, possuía seus limites, comofaz ver Horácio, que chama aos imitadores “rebanho servil” ( Ep. I, 19, 19: Oimitatores, seruum pecus!, ap. Cousin, 1975: 177). Ora, Quintiliano não per-gunta, em certo passo de sua obra, “por que não podemos descobrir algo denovo?” (X, 2, 5).

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    alto: superar o seu modelo. Ainda que, no conjunto, esse orador semostre, tal como proposto por Quintiliano, um ideal por demais eleva-do – e o autor está cônscio disso (XII, 11, 9) –, não se deve perdê-lo de

    mira.Mas estamos num momento especial da história romana, que

    bem pode explicar, em outro nível, a preocupação de Quintiliano. Ofim do governo de Nero, período durante o qual Quintiliano estevecomo que “ausente”, também parecia representar o fim de uma era dedecadência e desordem, uma era cuja suntuosidade e tudo que a elaparecia associado reclamava profundas transformações. Ora, o chama-do asianismo22 – cujo representante máximo, Lúcio Aneu Sêneca, era

     justamente o antigo preceptor de Nero –, de tal forma ditava então anorma no que diz respeito ao estilo que passou a ser considerado, porassim dizer, como a marca registrada do período e como a contrapartecultural de sua decadência. Assim se expressa Kennedy (1962: 137-38), ainda uma vez, a esse respeito:

    O declínio cultural que atingiu os romanos, bem como o declíniopolítico que daí resultou, é, tanto quanto qualquer outra coisa, oresultado do sentimento de que a originalidade era inatingível, quea erudição não era uma questão de invenção, mas de seleção doque havia sido feito antes, e de que os sistemas de pensamento queem todos os domínios haviam sido construídos pelos gregos e leva-

    dos adiante pelos romanos constituíam os únicos sistemas possíveis.

    22 Estilo oratório de caráter “rico, exuberante e declamatório”, desenvolvido en-tre os gregos da Ásia Menor, Rodes e Pérgamo após o final do quarto séculoantes de Cristo, “em contraste com o estilo ático, lúcido e simples exemplificadoem Lísias”. O termo teria sido criado, “segundo um gramático, quando a lín-gua grega se espalhou pela Ásia (...) e os asiáticos empregavam circunlocuçõesquando não conheciam as exatas palavras gregas. A visão de Quintiliano é deque o estilo refletia a natureza bombástica e jactanciosa dos asiáticos, compa-rados aos falantes da Ática, os quais desprezavam o discurso insípido e redun-dante” (cf. Howatson, 1995: 397).

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    Não era de estranhar, portanto, que aquele estilo encontrasse emQuintiliano um ferrenho opositor – e um defensor da oratória cicero-niana. Não é de estranhar, igualmente, que nisso ele tenha sido apoia-

    do pelos sucessores de Nero, que assim encontraram como que uma justificação a mais em sua oposição ao antigo imperador. De fato, se-gundo Kennedy, tanto a “conexão oficial de Quintiliano com a casareinante deve ser levada em conta ao se considerar a composição deseu trabalho”23, quanto é preciso ver que sua oposição e seu protestocontra “a retórica inflada e exagerada então em voga (...) estava deacordo com o que os flavianos tentavam fazer em outros domínios” 24:

    Quintiliano também se mostra simpático aos flavianos em sua con-tínua oposição aos filósofos que levaram Vespasiano e posterior-

    mente Domiciano a expulsá-los de Roma. Mas não é bem que Quin-tiliano se tenha oposto àquilo a que se opunham os imperadores.Quintiliano oferecia, da parte da tradição retórica, um ideal que podiaser apresentado como um contrapeso ao filósofo ideal – o bonus,

     perfectus ou consummatus orator . A natureza ideal da criação é su-ficientemente esclarecida em várias passagens, e pelo menos emuma ela é comparada ao ideal dos filósofos (I, 10, 4-6). (...) O ora-dor deve ser bom (...) e atingir a integridade moral do filósofo; masao mesmo tempo, a grande vantagem do ideal oratório sobre o filo-sófico é que o orador está comprometido com o serviço ao Esta-do 25.

    23  Loc. cit., p. 133.24  Ibid., p. 134.25  Ibid., p. 135s. Na passagem da Institutio citada pelo autor (I, 10, 4-6), o orador

    ideal é qualificado por Quintiliano como “uma espécie de deus mortal” (mortalisquidam deus). Seu modelo latino, como vimos, é Cícero; o grego, Demóstenes.Quanto à referida oposição aos filósofos, é preciso lembrar a desconfiança dosromanos, de modo geral, em relação à Filosofia e aos estudos filosóficos (cf.Cousin, 1975: LX, n. 3), de natureza por demais “abstrata” para seu espíritopragmático, se não própria de gente ociosa e mesmo libertina.

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     A preocupação de Quintiliano com a formação do orador mos-tra-se, portanto, uma preocupação também e eminentemente política.Em que pese o fato de ter sido considerado “adulador” por alguns,

     justamente por aquela atitude com relação à gens Flauia – a ponto delouvar, no sexto livro da Institutio, o estilo do próprio Domiciano 26 –, aintenção de Quintiliano parece ser a de (tentar) garantir para o orador apossibilidade de exercer seu ofício, permitindo-lhe tomar partido nasolução dos conflitos do Estado e fazer valer sua voz. Como afirmaCousin (1975: XC),

    o orador que forma Quintiliano não é apenas um advogado quepleiteia ou um panegirista que louva: ele é também um homem quedelibera e tenta fazer prevalecer sua opinião diante do povo ou dasassembléias, e até, na época imperial, diante do imperador, isto é,

    como político.

    Quanto à natureza desse político, ele é o orador e o advogado que, na visão de Quintiliano, não deve ocupar-se apenas e principalmente deenriquecer com seu trabalho 27, mas de procurar ser, antes mesmo deum dicendi peritus, aquele uir bonus de Catão. A preocupação de Quin-tiliano, assim, parecia ser a de que, se bem não se pudesse garantir queo Estado fosse “administrado pelas pessoas de bem” 28, podia-se ao

    26 Único fato a “macular” sua obra, segundo Butler (1989: VIII). Mas não sepoderia ver nessa sua atitude antes um “mal necessário” para quem visavaimpor uma concepção – que, a bem da verdade, não era nova – tanto danatureza e das funções do orador quanto do seu estilo? Sabe-se, ademais, dalimitação sofrida pelas letras na época claudiana, confrontada com sua promo-ção pelos imperadores flavianos (cf. Cousin, 1967 2: 73-74).

    27 Sabe-se como muitos advogados enriqueceram na época verdadeiramenteexplorando seus clientes, pelo que Quintiliano chama piraticus mos (XII, 7, 11)a seu comportamento.

    28 Cf. Cousin (1975: LXXVII), lembrando que, para o antigo Estoicismo, assim“como o mundo é regido por uma Providência, (...) o Estado deve ser adminis-trado pelas pessoas de bem”.

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    menos providenciar que elas tentassem constantemente lembrar-lhe ospróprios limites. Se, na prática, isso nem sempre se revelou possível, aomenos a influência de Quintiliano conseguiu, embora ignorada, pro-

    longar-se até os dias atuais, graças ao seu ideário perenemente huma-nista.

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    1 Cf. Lewis (1982/3: 147).2  A obra de Robins, em quem principalmente nos baseamos nesta exposição, é

    uma das únicas que incluem, de maneira menos abreviada, um estudo sobre o

    A Gramática antiga:origens e vinculações

    ... grammatici certant ...

    Horácio, Epistula ad Pisones, 78

     Afirma-se que os historiadores “tendem a refletir muito do que éparte de sua própria época quando escrevem sobre outra”1. Se o mes-mo pode ser dito sobre pesquisadores de outras áreas, sendo até certoponto inevitável enxergar o passado com os olhos do presente, semprese correrá, então, de acordo com Robins (1983: 2s),

    o risco de avaliar a obra do passado de um ponto de vista preferidono presente e de considerar a história de uma ciência como ummovimento progressivo, ora firme, ora temporariamente interrom-

    pido ou afastado da sua direção, para a meta predeterminada pelosaber científico em seu estado atual. (...) O que se faz necessário éprocurar distinguir-se com clareza o que mudou desde o passadoaté o presente e entender os variáveis estados da ciência nos seus

     variáveis contextos culturais. Devemos esforçar-nos para evitar aseleção premeditada de somente aquelas contribuições do passadoque possam relacionar-se com os interesses do momento atual 2.

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    Ora, investigar a origem da disciplina gramatical implica um exer-cício que nos obriga a recuar mais de dois mil anos na história do pen-samento lingüístico: exatos vinte e três séculos nos separam da primeira

    tentativa de descrição e análise de uma língua por um autor ocidental –a tšcnh grammatik» de Dionísio da Trácia, que viveu entre os séculos I eII a.C. É fato conhecido que a moderna reflexão sobre a linguagemassenta, em última análise, sobre esse texto de Dionísio, resultado deum trabalho de investigação levado a cabo pelos gregos vários séculosantes de nossa era. Menos conhecido é o percurso que a disciplinagramatical cumpriu até constituir, no último século, a Ciência Lingüísti-ca. É de forma sucinta que aqui se tentará, assumindo aquele riscoreferido por Robins, recuperar um pouco dessa história.

     As primeiras indagações sobre a linguagem, ao que se sabe, nas-ceram em terreno filosófico. No que se conservou tanto dos filósofospré-socráticos quanto dos antigos retóricos, de Platão e Aristóteles, en-contram-se observações sobre a linguagem, em particular sobre a lín-gua grega 3. Apenas com os estóicos, no entanto, que trataram separa-damente da Gramática, o estudo da linguagem teria ganhado autono-mia. Trata-se de um momento singular na história do pensamento gre-go, pois é nele que nascem as metalinguagens 4, posteriormente incor-

    trabalho realizado sobre a linguagem na chamada Antigüidade Clássica. TantoLyons (1979) quanto Mattoso Câmara (1979) e Mounin (19701) trazem emseus manuais, igualmente, capítulos referentes àquela época com informações

     valiosas, embora não se detenham sobre ela da mesma forma que aquele au-tor.

    3 Segundo Diógenes Laércio (cf. Robins, 1983: 11), caberia a Platão a introdu-ção na Grécia dos estudos propriamente gramaticais: para aquele autor, Platão“foi quem primeiro investigou as potencialidades da gramática”. Della Casa(1987: 42-45), no entanto, lembra que pensadores anteriores a Platão, comoProtágoras e Demócrito, ter-se-iam igualmente ocupado de questões lingüísti-cas.

    4 Cf. Auroux (1992: 11-34).

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    poradas em definitivo ao estudo da linguagem. Ora, é substancialmen-te com essa “herança clássica” que trabalha a Lingüística, segundoLyons (1979: 3), uma ciência que, como outras, “constrói sobre o

    passado” 5. A Gramática antiga, base tanto do que consideramos propria-

    mente como a Ciência Lingüística quanto da chamada Gramática Tra-dicional, tem, assim, uma origem que remonta aos antigos filósofos gre-gos, supondo um trabalho complexo de sistematização, que durou sé-culos, de uma reflexão sobre o fenômeno lingüístico, então consubstan-ciado na língua grega. Neves (1987: 15) lembra como a GramáticaTradicional, derivada daquelas especulações,

    constitui uma exposição de fatos que tem sido examinada semprecomo obra acabada, sem consideração para o que tenha represen-tado de esforço de pensamento. Citá-la apenas como dogmática,normativa, especulativa, não-científica significa não compreender oprocesso de sua instituição 6.

    Para entender tal processo, é preciso justamente reexaminar, ain-da que sumariamente, aquela primeira investigação sobre a linguagem

    5 Cf. Robins (1983: 19).6 Lyons (1979: 3) chama atenção para o fato de que a Gramática Tradicional,

    “muito mais rica e mais diversificada do que fica em geral sugerido nas referên-cias que de passagem a ela fazem muitos manuais modernos de Lingüística”,ainda reclamaria uma história completa de seu surgimento e desenvolvimento.O trabalho de Neves (1987) examina justamente a formação do pensamentolingüístico (ou, se se preferir, gramatical) grego; não temos notícia de obra equi-

     valente, surgida entre nós, que verse em especial sobre o trabalho realizadopelos romanos, tendo a linguagem como objeto.

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    levada a cabo pela filosofia grega7, que principiou com uma indagaçãoacerca da sua natureza 8.

    No Crátilo, por exemplo, conhecido diálogo de Platão, encontra-

    mos uma das mais cabais amostras daquelas primeiras reflexões, queconsistiam, no caso e resumidamente, em saber se as palavras tinhamou não algum tipo de vínculo natural com as coisas por elas representa-das. Buscava-se saber, noutros termos, se era por uma questão de pura

    7 Conquanto não tenha sido apenas na Grécia, com se sabe, que se desenvolve-ram reflexões e trabalhos sobre a linguagem, não parece ter havido entre ospovos antigos um intercâmbio, por assim dizer, de informações a seu respeito.Trabalhos realizados na antiga Índia, principalmente sobre a língua de textossagrados, por exemplo, que constituem, do ponto de vista da própria Lingüís-

    tica atual, análises muito apuradas, só chegaram ao conhecimento europeu noséculo XVIII (cf. Lyons: 1982). Também os chineses, fenícios – de quem herda-mos a idéia de um alfabeto – e hebreus, para citar outros exemplos, legaram àposteridade, em parte ou exclusivamente sob a forma de “mitologias”, refle-xões sobre a linguagem (cf. Mounin: 19701). Tais trabalhos, no entanto, dife-renciam-se muito, quanto a seus objetivos e seus “métodos”, daquele desen-

     volvido em solo grego, que não influenciaram e do qual, em última instância,herdamos a idéia de uma Gramática.

    8 Embora o homem cedo se deva ter dado conta de que falava, sem o registroescrito, que aparece na história da humanidade apenas a partir do quarto ouquinto milênio antes de Cristo, não é possível determinar com certeza o que eleprimeiro pensou acerca da linguagem. Muito provavelmente, porém, esse pen-

    samento estava preso àquelas cosmovisões totalizantes encontradas ainda hojeentre os povos ditos “primitivos” que nos permitimos chamar mitologias, e foino seio dos mitos que mesmo os gregos de início conceberam a linguagem.

     Lógos (lÒgoj) é o termo que permaneceu entre os gregos para referir-se a elapelos menos desde Homero, cujos poemas remontam a mais de seis séculosantes de nossa era. Também épos (œpoj) e mûthos ou mythos (mà Joj, origina-riamente, “verdade”!) se encontram na tradição poética referindo-se à lingua-gem, embora signifiquem antes “palavra”. É preciso acrescentar, porém, que,embora em Homero ainda não se registre “qualquer reflexão sobre a lingua-gem”, segundo Neves (1987: 21), pode-se também perceber “que ela já não éconsiderada uma força real, material, confundida com a força do corpo e danatureza, como ocorre nas sociedades ditas primitivas”.

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    convenção que se chamava a um rio potamÒj, por exemplo, sendo muitosimplesmente aquela a palavra usada para referir-se a um rio, ou porhaver algo na própria natureza de um rio que obrigasse os homens a

    chamá-lo daquela maneira. Essa primeira indagação – de início situa-da, na verdade, num contexto mais amplo de questionamento das nor-mas que regiam o funcionamento da sociedade grega como um todo –compreendia, portanto, duas posições: uma, defendida por Crátilo nodiálogo do mesmo nome, afirmando que as palavras tinham uma for-ma naturalmente apropriada para referir-se às coisas 9; outra, defendidapor Hermógenes, personagem do mesmo diálogo, afirmando que ofato de usar uma palavra e não outra devia-se, no caso, apenas a umacordo tácito entre os falantes da língua 10.

     A posição de Platão era de que havia uma relação necessária enatural entre as palavras – a linguagem, por extensão – e as coisas 11.Provavam-no as onomatopéias e o chamado simbolismo fonético, fe-nômenos de que também se valeram os filósofos da Escola Estóica paradefender o chamado “naturalismo lingüístico” 12. Segundo os estóicos,todas as palavras teriam, de fato, uma origem onomatopaica; com o

    9 Hipótese conhecida pelo termo grego fÚsei, forma do dativo de fÚsij  ( phúsisou phýsis, “natureza”), empregado com valor adverbial.

    10 Hipótese conhecida pelos termos Jšsei ou nÒmJ, dativos de Jšsij e nÒmoj (thésise nómos, “norma” ou “convenção”), também com valor adverbial.

    11  Já Aristóteles, discípulo de Platão, negaria à linguagem qualquer “naturalida-de”. Em seu tratado Da interpretação, Aristóteles afirma: “A linguagem resultade convenção, visto que nenhum nome surge naturalmente” (Perˆ ˜rm. 2 apudRobins, 1983: 15). Epicuro, por sua vez, defenderá uma posição intermediá-ria: as palavras teriam surgido “naturalmente”, sendo depois modificadas poruma convenção dos homens (cf. Robins, ibid.).

    12 “Na opinião dos estóicos, os nomes são naturalmente constituídos; os sons dasformas primitivas imitam as coisas que nomeiam” (Orígenes, Contra Celsum,I. 24 apud Robins, 1983: 15). Os estóicos identificaram linguagem e pensa-mento: se este não podia ter uma origem arbitrária, aquela também não opoderia, tendo por isso uma origem natural (cf. Cousin, 1975: 19).

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    tempo, entretanto, a língua teria sofrido uma mudança tal, que nemsempre era possível enxergá-lo, daí decorrendo a necessidade de pro-curar descobrir, por trás das palavras, uma forma primitiva que mos-

    trasse aquela origem. Nascia, deste modo, a Etimologia13. O próprionome dessa disciplina, derivado do adjetivo grego œtumoj, cujo signifi-cado é “verdadeiro”, mostra bem a intenção com que para ela se volta-ram os primeiros estudiosos da linguagem: chegar, mediante uma aná-lise das correlações possíveis entre a forma e o sentido das palavras, auma forma anterior, supostamente “verdadeira”, por exibir justamenteo antigo vínculo entre o nome e a coisa representada. Desbordes (1995:244) assim resume o princípio da disciplina etimológica então pratica-da:

     A etimologia antiga (...) admite mais ou menos que a aproximaçãode duas palavras seja legítima se puder ser realizada segundo umaou várias das quatro categorias [i.é, adição, subtração, transposiçãoou substituição de segmentos14] (...). Os etimologistas postulam, aprincípio, uma comunidade de sentidos que será, de qualquer modo,sempre provada pela manipulação das letras (...).

    São perfeitamente conhecidos os abusos praticados pelos anti-gos em nome dessa “busca da verdade” por trás dos nomes para queseja preciso lembrá-los aqui em detalhe15. Certamente responsável, ao

    menos em parte, pelo descrédito com que se costuma levar em conta areflexão lingüística realizada na Antigüidade, a Etimologia, assim com-preendida, embora indevidamente, acabou por impedir que se olhasse

    13  Aquela “cabalística invenção da verdade”, nos termos de Arens (1975: 20).14 O conhecido “esquema quadripartido” dos chamados metaplasmos, do qual

    também faz uso Quintiliano e que voltaremos a comentar noutro ponto destetrabalho.

    15 O próprio Quintiliano tratará do assunto (cf. VI, 28-38), rechaçando parte des-ses verdadeiros “jogos de palavras”.

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    para outros níveis da Gramática, onde melhores resultados foram al-cançados na época16.

    Por volta do século II a.C., um outro problema, associado a esseprimeiro debate, ocupará a reflexão dos filósofos e acabará por deter-minar o rumo a ser adotado daí por diante na investigação sobre alinguagem: o de saber se a língua, para uns produto de convenção,para outros da natureza, era ou não, ademais, governada por regras.Noutras palavras, se havia ou não uma regularidade tanto a reger seufuncionamento quanto para explicar sua mudança com o passar dotempo. Os termos gregos para “regularidade” e “irregularidade” são

     justamente analogia17 e anomalia, razão pela qual o novo debate ficariadesde então conhecido como uma oposição entre analogistas (que de-

    fendiam o princípio da regularidade) e anomalistas (que defendiam oprincípio contrário).

    16  Assim se expressa Robins (1983: 18), a esse respeito: “Procedimento seme-lhante ao dos gregos continuou a prevalecer nos estudos etimológicos durantetoda a Antigüidade e Idade Média. É pena que os insucessos neste camposejam melhor conhecidos do que os êxitos alcançados noutros setores, particu-larmente em gramática, e que o nível do trabalho etimológico do mundo anti-go tenha sido às vezes tomado como representativo de toda a lingüística greco-romana.” Os próprios estóicos são responsáveis, por exemplo, pela tentativade melhor delimitar as chamadas “partes do discurso” ( partes orationis; mšroi

    lÒgou), as quais, para Platão, por exemplo, eram apenas duas ( Ônoma  e ·Áma ,um tanto impropriamente traduzidas por nome e verbo).17 O termo é empregado com dois sentidos relacionados: o de “regularidade” e

    o de “proporção” [lat.  proportio, traduzindo o grego analogia], como o daconhecida “regra de três”. Assim explica Coutinho (1974: 152) o mecanismoda analogia: “Todo fato analógico é, segundo Saussure, um drama de trêspersonagens, que são: 1º – o tipo transmitido, legítimo, hereditário (por exem-plo, honos); 2º – o concorrente (honor ); 3º – um personagem coletivo, cons-tituído pelas formas que criaram este concorrente (honorem, orator, oratorem,etc.). Daí afirmar que, em todo fato analógico, há um processo equivalenteao cálculo da regra de três: orator   : oratorem  : : honorem  :  x , onde  x  =honor ”.

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    Resumindo o trabalho dos analogistas, poderíamos afirmar, comRobins (1983: 16):

     As regularidades que os analogistas procuravam eram as dos para-digmas formais, nos quais as palavras da mesma categoria gramati-cal tinham idênticas terminações morfológicas e a mesma estruturaprosódica; buscavam também descobrir regularidades de relaçãoentre forma e significado, segundo as quais as palavras comparáveismorfologicamente deviam ter significados comparáveis (“análogos”),e vice-versa.

    Os anomalistas, representados sobretudo pelos estóicos, por sua vez, procuraram, numa paralela defesa do antigo naturalismo18, mos-

    trar contra-exemplos às regularidades apontadas pelos analogistas, oumesmo criticar o que deviam considerar uma espécie de “abuso” doprincípio defendido por aqueles, que teriam ido “mais longe” do quedeveriam, pois

    tentaram reformular os paradigmas irregulares do grego em provei-to da regularidade analógica (processo que de certo modo aconte-ceu espontaneamente na passagem do ático clássico, através da koinée do grego bizantino, para o estado de língua atual). As formas Zeós,

     Zeí, Zéa etc. foram propostas para os casos oblíquos de  Zeús, em

    lugar das formas reais, porém anômalas,  Zenós  etc. Tais atitudesforam atacadas por Sexto Empírico, escritor do século II d.C. (...)Empírico desafiou os seus contemporâneos, acusando-os de fabri-

    18 Fazia parte do ideal estóico uma valorização de tudo aquilo que fosse conside-rado “natural”. Segundo eles, que teriam dado mais atenção ao “uso” que àsregras, a língua deveria, dada sua origem, ser encarada tal qual se apresenta-

     va, mesmo que parecesse “irracional” (cf. Lyons, 1979: 7). De posição contrá-ria era Aristóteles, que tanto defendia para a linguagem uma origem derivadado acordo comum entre os homens, como já vimos, quanto via nela a ação deregras que governavam seu funcionamento.

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    car estranhas formas “analógicas”, tais como kýonos, em vez dekynós, mais adequadamente formada a partir de kýon (cachorro)19.

    É verdade que tanto os analogistas quanto os anomalistas exage-raram em suas posições, ignorando que não há apenas regularidade nalinguagem, bem como que as irregularidades podiam, por sua vez, re-

     velar-se aparentes. Seria preciso, no entanto, esperar muito tempo nahistória do pensamento lingüístico para que se pudessem avaliar essesfatos de modo, por assim dizer, mais adequado 20. E, muito embora nãose possa dizer propriamente que a “querela entre analogistas eanomalistas”, como alguns se referem às duas posições, tenham consti-tuído um debate permanentemente acirrado, mas, antes, que foram, aoque parece, tão somente duas posições possíveis e coexistentes com

    relação ao mesmo problema, acabaria prevalecendo a posição analo-gista, por razões já distanciadas das primeiras indagações sobre a lin-guagem.

    De fato, por volta do terceiro século antes de Cristo, a consciênciade que a língua dos textos mais representativos da cultura grega, comoa dos poemas homéricos, cada vez mais se distanciava da língua em-pregada pelas populações helenizadas 21, levou os eruditos reunidos em

    19 Cf. Robins (1983: 16).20 Não será preciso lembrar, naturalmente, que os antigos não tinham em mente

    os pressupostos da Lingüística Histórico-Comparativa do século dezenove.21 Por volta do século terceiro antes de Cristo, os gregos entraram em contato

    com povos de diferentes etnias e línguas, influenciando-os e sendo por elesinfluenciados. Daí também sua preocupação com preservar a antiga língua,que acabaria por desembocar numa postura normativa. Assim se expressa Neves(1987: 243), a esse respeito: “Toda uma situação cultural cerca esses fatos. Aexigir a instalação de uma disciplina gramatical estão as condições peculiaresda época helenística, marcada pelo confronto de culturas e de línguas, e pelaconseqüente exacerbação do zelo pelo que então se considerava a cultura e alíngua mais puras e elevadas”.

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     Alexandria, defensores da posição analogista e convencionalista, apreocupar-se, antes de mais nada, com a defesa daquela língua, con-siderada, porque livre da influência estrangeira, mais genuinamente

    grega. Tal atitude, qualificada por Lyons (1979: 9), num jogo de pala- vras, de um duplo “erro clássico” na história do pensamento lingüísti-co antigo, na medida em que representa a atribuição de uma prepon-derância à escrita e a consideração de que a língua por ela represen-tada seria “mais pura” que a língua empregada na época helenística,deveu-se, ao menos de início, a uma preocupação também de ordemestética.

    Ora, o desenvolvimento e o uso cada vez mais generalizado daescrita22 no mundo antigo possibilitou que obras como as de Homero,antes sujeitas à memorização e atualização oral cada vez que se quises-se apreciá-las, pudessem contar com uma representação que, ao mes-mo tempo, as salvasse do esquecimento e lhes conferisse uma forma,por assim dizer, mais “perene”. O impacto exercido pelo surgimento epelo desenvolvimento da escrita, que é, de fato, a “pedra angular daerudição lingüística na Grécia”23, não pode ser ignorado ou subestima-do numa consideração sobre o pensamento lingüístico antigo. Os eru-ditos alexandrinos, que acabaram por suplantar o trabalho realizadopelos seus “opositores” estóicos em Pérgamo, envolvidos então com anova tarefa de preservar a língua grega em sua “forma original”, tive-ram uma preocupação eminentemente literária: sua atividade envolvia

    22  Aquele veículo que, nas palavras de Herrenschmidt (1995: 101), “torna a lin-guagem visível”. “Na ausência de textos [escritos]”, de fato, como observaDesbordes (1995: 21) ao tratar de outro tema, mas de forma igualmente válidaaqui, “ignoramos tudo o que puderam pensar os primeiros indivíduos”. É inte-ressante notar também como a teoria lingüística de Aristóteles, sintetizada noinício de seu tratado Da interpretação, faz clara referência à língua escrita: “Afala é a representação das experiências da mente e a escrita é a representaçãoda fala” (cf. Robins, 1983: 15).

    23 Cf. Robins (1983: 10).

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    o estabelecimento de textos 24, para o que, de fato, muito empregaramargumentos analógicos. É com eles, portanto, que a posição analogista,situada, para alguns, na própria origem do conceito de norma 25, iria

    pouco a pouco, por conta daquela preocupação com a língua literária(escrita), deslocando-se agora para a questão da correção 26. A primeiragramática grega, que procurava canonizar o uso literário da língua e setomou por modelo de descrição, surge exatamente nesse contexto, comoresultado da primitiva controvérsia entre analogistas e anomalistas 27,mas também só foi praticável porque a escrita havia alcançado um de-senvolvimento suficiente.

     A clássica definição do termo  gramática remonta justamente aDionísio Trácio, autor, como vimos, daquele trabalho. Discípulo de

     Aristarco, um dos principais representantes da chamada “escola ale-xandrina”, Dionísio definiria sua disciplina como “o conhecimento prá-tico do uso lingüístico comum aos poetas e prosadores” 28. Já estamos

    24 Cf. Robins (1983: 16). O trabalho dos alexandrinos é, justamente por isso,considerado antes filológico que propriamente gramatical. Assim o tratam, defato, Righi (1969) e Baratin & Desbordes (1981). Serve a demonstrar sua pre-ocupação com a língua escrita, por exemplo, o fato de terem sido eles os res-ponsáveis pela invenção dos conhecidos sinais que indicam os acentos (ou,antes, tons) do grego clássico, que a escrita grega de início não registrava, porrazões mais ou menos óbvias: seus falantes deviam conhecer a posição e a

    natureza dos acentos nas palavras gregas, o que talvez já não ocorresse naépoca helenística.25 Cf. Baratin & Desbordes (1981: 9s).26 Cf. Robins (1983: 15).27  Ibid., p. 25.28  Apud Robins (1983: 24s). Assim concebida, a Gramática divide-se, nas pala-

     vras de Dionísio citadas por aquele autor, em seis partes: “primeira, leituraexata (em voz alta), com a devida atenção à prosódia; segunda, explicação dasexpressões literárias das obras; terceira, preparo de notas sobre fraseologia etemática; quarta, descobrimento das etimologias; quinta, determinação dasregularidades analógicas; sexta, crítica das composições literárias, que é a par-

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    aqui, portanto, diante de uma disciplina autônoma, desvinculada tantoda Filosofia quanto da Lógica, embora não de todo independente.

     Assim resume Neves (1987: 245s) o percurso trilhado pelo pen-

    samento lingüístico grego:

     A partir de uma vivência intuitiva refletida inicialmente nos poetas,o pensamento sobre a linguagem, passando pelo exame filosófico,

    te mais nobre da gramática”. Segundo Robins, foi da “quinta parte” da tšcnhde Dionísio que a Gramática acabaria por se especializar no sentido que possuiaté hoje. Quanto a sua origem, como se sabe, o termo deriva do grego gr£mma [ grámma /lat. littera, “letra”], donde as expressões ¹ tšcnh grammatik» [he téchne

     grammatiké] ou simplesmente grammatik», de início um adjetivo [lat. litteratura],

    bem como seus equivalentes latinos grammatice ou ars grammatica, entenden-do-se por arte (ars; tšcnh) um “conjunto de preceitos necessários à execuçãode uma determinada atividade” (cf. Mattos e Silva, 1989: 18). Seria mesmoútil, aqui, uma consideração sobre aquele último conceito. O termo arte indi-cava, para os antigos, um conhecimento derivado da experiência (™mpeir…a  /empeiría), um modo de intervenção sobre o mundo natural passível de apren-dizagem e constituído de regras ( praecepta, regulae), só violáveis em algunsmomentos pelo artista (licentia). Em seu conjunto, tais regras compunham oque se chamava doutrina  (doctrina) e eram assimiláveis pela disciplina queconduzia ao respectivo saber ( scientia). Toda arte supunha, ademais, uma dis-posição natural no aprendiz (fÚsei), que podia, com ela, agir adequadamentesobre o mundo. As artes, assim, pressupunham uma atividade (usus): seu exer-

    cício (exercitatio), mediante a reflexão do aprendiz (meditatio) sobre um mode-lo (imitatio), possibilitava-lhe a aquisição da ›xij (héxis/lat. firma quaedam fa-cilitas = experiência) e conferia-lhe uma correção (¢reJ» /arethé, em lat. uirtus,oposta ao uitium) no exercer seu ofício, pelo que ele podia chamar-se artifex.Segundo Posidônio, as artes dividiam-se em a) uulgares et sordidae, que eramos ofícios manuais e perseguiam o lucro; b) ludicrae, as relacionadas com aexibição e tinham aquela mesma finalidade; c)  pueriles, as que constituíampassatempos; e d) liberales, que visavam ao conhecimento e ao bem-comum,podendo ser tanto in agendo positae (como a Retórica, a Dialética, a Música)quanto in inspectione positae (como a Gramática, a Aritmética, a Geometria ea Astronomia). Estas últimas, que constituíam o que os gregos também chama-

     vam tšcnai Jewrhtika…  [téchnai theoretikaí ], facultavam ao seu possuidor a

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    desde os pré-socráticos, adquiriu um rigor teórico que culminou comPlatão, Aristóteles e os estóicos. O lógos, inicialmente um ato de“pôr as coisas”, de “deixar ser”, vai-se destacando do ser até cons-

    tituir-se objeto de exame, como expressão conceitual das coisas. Emconseqüência desse exame específico, isolam-se fatos concretos delíngua, e a léxis, ligada a uma idéia da função de eficiência da lin-guagem, destaca-se do lógos e se torna objeto à parte. Essa elocução,o dizer-bem helênico, por sua vez, enfrenta a situação helenística, ea necessidade de preservação da cultura considerada mais elevadacondiciona o surgimento de uma sistematização daqueles fatos querefletiam a língua “eficientemente composta”, o grego. (...) E o exa-me lingüístico como tal constitui um domínio específico de análise.O que se investiga agora é uma norma lingüística, e a gramática seinstitui como a “arte de bem escrever”, consumação do registro daseparação entre a linguagem e a realidade.

     A Gramática assim constituída não esteve apenas, entretanto,como afirma Lyons (1979: 3), subordinada à tarefa de interpretar textosantigos, a ponto de seu próprio nome, desde a origem, bem como onome de seu “cultor”, o chamado grammaticus, revelarem uma “con-

    capacidade de julgar (inspectio, aestimatio), aprovando (laus) ou censurando(uituperatio) uma obra (opus). As artes liberais, exercidas por homens livres –daí seu nome – opunham-se também às artes mecânicas, aquelas exercidas

    com o corpo ou com as mãos, sendo também chamadas pelos gregos tšcnai™gkÚklioi [téchnai enkúklioi] (cf. Lausberg, 1976). É igualmente interessante,no que diz respeito às artes liberales, observar a formulação de Isidoro deSevilha (Orig., 1, 2, 1-3): “As disciplinas das artes liberais são sete. A primeiraé a Gramática, isto é, a ciência do falar. A segunda é a Retórica, que se consi-dera necessária por amor à elegância e à riqueza da expressão, sobretudo nasquestões civis. A terceira é a Dialética, cognominada lógica, que separa o ver-dadeiro do falso por meio de sutilíssimas disputas. A quarta é a Aritmética, queensina as relações e divisões dos números. A quinta é a Música, que trata dapoesia e do canto. A sexta é a Geometria, que envolve as medições da terra. Asétima é a Astronomia, que ensina a lei dos corpos celestes”. (cf. ed. de Reta &Casquero, 1982: 276).

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    fusão entre fala e escrita” 29. É preciso considerar ainda o papel de outradisciplina para explicar por que a Gramática, tradicionalmente conside-rada, adquiriu a forma que possui ainda hoje: trata-se da Retórica, cujas

    relações com a Gramática no mundo antigo não parecem muito bemcompreendidas 30.

    Se a clássica definição da Gramática, como vimos, a par de “ex-plicação dos autores” (a princípio,  poetarum enarratio), era “arte deescrever”, depois também “arte de falar corretamente” (ars bene lo-quendi), a Retórica, por sua vez, se define como “arte de bem dizer”(ars bene dicendi), tendo por atribuição principal ensinar a persuadir 31,o que bem mostra a “proximidade” entre as duas disciplinas, cuja rela-ção é assim apontada por Mattos e Silva (1989: 15s): se os primeirosestudos da linguagem consistiram no exame das relações entre as pala-

     vras e as coisas – que é, em outros termos, o problema da denomina-

    29 Para Desbordes (1995: 86), a Gramática se teria desenvolvido, antes, a partirde uma “insuficiência constitucional do escrito”. Com efeito, servindo a línguaescrita para representar o pensamento de alguém, “corre-se o risco (...) de sermal compreendido em um contexto diferente, principalmente porque não seestá mais lá para explicar”. Daí a necessidade de regras que norteiem não só ofuncionamento da língua, como a própria leitura do texto escrito, tradicionalapanágio do  grammaticus: ensinar as regras do bem falar, codificadas pelaGramática, e explicar os autores, sobretudo os poetas.

    30

    Lyons (1979: 13) observa que, na Antigüidade greco-romana, a Gramáticapermaneceu como disciplina auxiliar não apenas da Retórica, como da Filoso-fia (no caso dos estóicos, como já vimos) e da crítica literária (no caso doseruditos alexandrinos). Mas é igualmente importante observar, com Arens (1975:53), que a própria Retórica, de modo inverso, também teve funções tipicamen-te suas assumidas pela Gramática.

    31  Ao discurso retórico também se atribuíram, tradicionalmente, as funções decomover  e agradar . Não é nosso objetivo tratar aqui especificamente do com-plexo problema da Retórica antiga, que alguns (como Lausberg e Guiraud, cf.Dubois, 1974: 22 e 37) definem mesmo como a “estilística dos antigos”, e queexigiria um estudo, aprofundado, à parte (cf. a esse respeito os próprios Dubois,1974 e Lausberg, 1976).

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    ção, ou antes da significação –, “na sofística, o centro do problema” édeslocado para “a predicação, função lógico-sintática portanto. A sofísticaassociou à denominação o falar a verdade, ou seja, o discurso que se

    cumpre pela sua eficácia, decorrendo daí o desenvolvimento da retóri-ca (...)”32. Em resumo, poderíamos dizer que, se cabia à Gramática de-terminar, a partir do exame dos autores que formavam o cânone clássi-co, que usos da língua eram “legítimos”, cabia à Retórica, então, atua-lizar no discurso aqueles usos, com vistas a torná-lo eficiente em seupropósito.

    Nesse contexto de interpenetração dos âmbitos da Gramática eda Retórica, seria interessante lembrar, ainda uma vez, a maneira comoos estudos voltados para a época clássica costumam encarar o trabalhoentão realizado sobre a linguagem. Observa-se, conforme já se discutiuaqui, que eles em geral se referem à Antigüidade como um momentoem que não se vê, segundo Baratin & Desbordes (1981: 9),

    senão o balbucio de uma ciência que teria hoje chegado a sua ma-turidade. Justifica-se essa interpretação, sublinhando que os Anti-gos não souberam constituir o domínio próprio da lingüística comoanálise científica.

    Como vimos, os filósofos, por exemplo, só teriam examinado a

    linguagem com o intuito de “interrogar-se sobre suas relações com omundo, sobre sua origem, ou ainda na perspectiva da lógica”, aborda-gem que não teria sido fundamentalmente diferente da realizada pelaRetórica, cuja perspectiva, ademais, “releva da estética”. A chamada“crítica literária” exercida pelos alexandrinos, por sua vez, esteve centrada

    32  Acrescenta a autora: “Talvez esteja nessa motivação histórica a razão de naGrécia não se ter desenvolvido uma teorização sobre a sintaxe consistente comoa teoria da significação referida ao léxico que persiste até hoje” (cf. Mattos eSilva, 1989: 16).

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    “sobre os métodos de edição, e notadamente sobre a sistematização daortografia, sobre os estudos lexicográficos destinados a permitir a inter-pretação dos textos e sobre seu comentário enciclopédico”. Já os “estu-

    dos filológicos conduzidos nessa ocasião, essencialmente determinadospela noção de correção, repousam sobre um princípio metodológico, aanalogia, que está na origem da normatividade” 33.

    Ora, a Gramática, nascida justamente “na confluência dessas di-ferentes correntes”, como afirmam ainda aqueles autores,

    aparece tardiamente, sob a forma de análise específica, por volta doprimeiro século antes de Cristo (...). A gramática existia antes comotécnica da grafia, conforme o indica sua etimologia, mas a influên-cia da filologia alexandrina lhe atribui por função, além disso, a ex-

    plicação dos poetas dum ponto de vista essencialmente lexicográfi-co 34.

    Vê-se, portanto, o caráter diferenciado, em vista das abordagensrealizadas pelos modernos sobre a linguagem, com que os antigos se

     voltaram para o seu estudo: a Gramática, de início “concebida comoestudo da boa língua e meio de extrair a beleza dos grandes textos”,para eles “não recobre a totalidade dos pontos de vista sobre a lingua-gem”35! Daí se falar num “enciclopedismo” dos antigos, que não disso-ciaram, num primeiro momento, o estudo da linguagem, tal qual seapresenta na Gramática por eles urdida, dos outros domínios do saber.

     A correlação desses domínios, na medida em que os antigos se preocu-param com tornar cada uma das chamadas artes ou disciplinas “útil atodas as outras”, faz relevar, assim, levando-se em conta o próprio sen-tido daquele termo para a época, tanto o caráter social quanto até mes-

    33 Cf. Baratin & Desbordes (1981: 9ss).34  Ibid.35  Ibid., p. 11.

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    mo “multidisciplinar” de sua visão e de seu trabalho sobre a lingua-gem 36.

    Foi justamente essa a herança que o mundo latino trouxe da Grécia

    e legou ao Ocidente 37. No entanto, antes de considerar, numa atitudede menoscabo que revela um juízo um tanto quanto apressado, que“Roma merece um capítulo numa história da lingüística (...) bem me-nos por ter produzido que por haver transmitido” 38, talvez fosse precisosalientar, como veremos adiante, que “sem a presença de uma, a con-tribuição da outra para a civilização européia teria sido menos significa-tiva e fecunda” 39.

    Um episódio pitoresco, referido por Suetônio, narra a “entrada”,por assim dizer, do pensamento lingüístico grego em Roma. Crates de

    Malos, erudito enviado à cidade pelo rei de Pérgamo como chefe deuma embaixada no ano de 168 a.C., teria quebrado uma perna aoescorregar numa cloaca. Durante sua convalescença, visitado por mui-tos romanos que o ouviram discorrer acerca de Homero e de outrosautores gregos, acabou despertando neles “o gosto pela leitura e pelosestudos filológicos” 40. Mas também Dídimo, “sábio alexandrino da se-gunda metade do século I a.C., para quem todas as características dagramática grega podiam também ser encontradas em latim” 41, deve terexercido com isso uma grande influência sobre seus colegas romanos.

    36  Ibid., p. 12. Na definição do termo arte, como vimos, já parece estar implicadauma idéia de aplicação social do conhecimento.

    37 São célebres as palavras com que Horácio define o papel exercido pelos gre-gos sobre o espírito romano: “A Grécia, cativa, cativou seu feroz vencedor eintroduziu as artes no agreste Lácio”. ( Ep. 2.1.156-7 apud Robins, 1983: 51).É, decerto, também porque os romanos tiveram uma grande admiração pelaGrécia, que devemos, ao menos em parte, aquele legado.

    38 Cf. Mounin (19701: 95).39 Cf. Robins (1983: 36).40 Cf. Righi (1969: 63).41 Cf. Robins (1983: 42).

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     Marcos Aurelio Pereira

    Outros eruditos gregos também desempenharam importante pa-pel na história da Gramática Latina. É o caso do próprio Dionísio daTrácia (ou Dionísio Trácio), cujas idéias seriam posteriormente retoma-

    das, juntamente com as de Apolônio Díscolo, gramático alexandrino doséculo I a.C., por Prisciano (séc. VI). Também Tiranião e seu filho domesmo nome comentaram Homero e Aristóteles, nos quais eram espe-cialistas, em sua passagem por Roma no ano de 77 a.C. O própriofilósofo estóico Posidônio teria travado relações com Pompeu e Cícero.Este último, bem como César, teriam sido discípulos de Apolônio deRodes, de onde também provinha Asclepíades de Mirléia, “que dividiua crítica em ‘técnica’, ‘histórica’ e ‘gramatical’, enquanto Tiranião oVelho havia distinguido, dentro do estudo filológico, leitura, crítica dotexto, exegese e  juízo, divisão repetida por Varrão ao distinguir lectio,

    emendatio, enarratio e iudicium” (Righi, 1969: 62).Em resumo, pode-se dizer que a contribuição romana para a his-

    tória da Gramática não consistiu apenas numa absorção “da teoria lin-güística como também das controvérsias e categorias dos gregos” 42: osromanos foram igualmente responsáveis, como veremos, pela

    formação descritiva da gramática latina que se tornou a base detoda a educação nos fins da Antigüidade e Idade Média e do ensinotradicional do mundo moderno. As gramáticas atuais do latim sãodescendentes diretas das compilações dos últimos gramáticos lati-

    nos (...) 43.

    Mas, deve-se lembrar, acrescentando a isso, ainda, como afirmaMattos e Silva (1989: 19s) e por demais nos interessa, que “a reflexãosobre a língua em Roma se desenvolve também e com muita intensida-de no âmbito da Retórica, que ultrapassa a gramática e estabelece re-

    42  Ibid.43  Ibid.

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    Quintiliano Gramático

    gras discursivas sobre a construção do discurso elaborado, o da orató-ria sobretudo” 44.

    O grande nome dos estudos lingüísticos na época clássica latina é

    Varrão de Reate ( Marcus Terentius Varro, 116 – 27 a.C.), que teria sidodiscípulo de Crates de Malos. Admirado por Cícero e Quintiliano, Var-rão foi autor dos mais fecundos, mas apenas parte de sua obra, quetrata desde a agricultura e a pecuária até a gramática, passando pelabiografia e pela história, bem como pela poesia e pela filosofia, chegouaos dias atuais. Dentre elas, interessa-nos sobretudo o monumental tra-tado De lingua Latina 45, de cujos 25 livros, que versavam sobre etimo-logia, morfologia e sintaxe, restaram apenas os de número 5 a 10, dedi-cados justamente a Cícero. Mattos e Silva (1989: 19) assim resume oconteúdo da obra:

    Sem entrar em maiores detalhes (...), pode-se ver no discípulo osprincípios dos mestres: a gramática que propõe é a do latim padrão,posteriormente chamado latim clássico, por oposição ao latim cha-mado, também posteriormente, vulgar, isto é, o latim falado pelasclasses “baixas” da República e do Império romanos. (...) Divide-seo De lingua latina numa etimologia, numa morfologia e numa sinta-xe, que não chegou até nós. Na etimologia estabelece a relaçãoanalógica entre as palavras e as coisas. A morfologia, que é o cernede sua obra, apresenta distinções fundamentais que perduram: en-tre palavras variáveis e invariáveis, estabelece categorias secundá-rias para analisar as partes do di