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17 DE OUTUBRO DE 2017 ANAIS DO ENCONTRO VIOLÊNCIA DE GÊNERO ? É POSSÍVEL MEDIAR CASOS DE LEI MARIA DA PENHA JUSTIÇA RESTAURATIVA I WORKSHOP &

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17 DE OUTUBRO DE 2017ANAIS DO ENCONTRO

violência de gênero?É P O S S Í V E L M E DI A R C A S O S DE

LEI MARIA DA PENHA JUSTIÇA RESTAURATIVA I WORKSHOP

&

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violência de gênero?É P O S S Í V E L M E DI A R C A S O S DE

17 DE OUTUBRO DE 2017ANAIS DO ENCONTRO

LEI MARIA DA PENHA JUSTIÇA RESTAURATIVA I WORKSHOP

&

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

Elaborada por Ednéia S. Santos Rocha(CRB8 7288)

W926

Workshop Lei Maria da Penha e justiça restaurativa: é possível mediar casos de violência de gênero? (1. 2017: Ribeirão Preto) Anais [recurso eletrônico] / Organização: Fabiana Cristina Severi, Wânia Pasinato, Myllena Calasans de Matos. -- Ribeirão Preto: Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP), 2017. Modo de acesso: Internet ISBN: 978-85-62593-24-61. Direito da mulher. 2. Estudos de gênero. 3. Violência contra a mulher. I. Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP. II. Escritório USP Mu-lheres. III. Consórcio de ONGs Feministas pela Lei Maria da Penha. IV. Severi, Fabiana Cristina. V. Pasinato, Wânia. VI. Ma-tos, Myllena Calasans. VII. Título.

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REALIZAÇÃOPrograma de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito de Ribeirão

Preto da USPEscritório USP Mulheres

CAV-Mulheres – USP Ribeirão Preto Consórcio de ONGs Feministas pela Lei Maria da Penha

ORGANIZAÇÃOFabiana Cristina Severi – FDRP/USP

Wânia Pasinato – USP-MulheresMyllena Calasans de Matos – ONGs Feministas

PALESTRANTESSilvia Pimentel - Professora Doutora em Filosofia do Direito, ex-integrante do Comitê CEDAW/ONU (Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da ONU) e cofundadora do CLADEM (Comitê Latino-

Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher).Leila Linhares Barsted - Advogada, Coordenadora Executiva da CEPIA,

Membro do Comitê de Peritas da OEA para o Monitoramento da Convenção de Belém do Pará - MESECVI/OEA.

Juliana Tonche - Doutora (2015) pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (GEVAC- UFSCar) e

Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR - USP).Laina Crisostomo Sousa de Queiroz - Advogada, feminista interseccional, presidenta e fundadora da ONG TamoJuntas. Faz parte da Rede Nacional de Ciberativistas Negras, é colunista do site Correio Nagô (Coluna “Por uma justiça feminista e antirracista”) e Blogueiras Negras (Coluna EVA).

Fabiana Cristina Severi - Professora Associada ao Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP. Coordenadora

do Centro de Estudos em Direito e Desigualdades. Vice-Presidenta da CAV-Mulheres/USP.

Myllena Calasans de Matos - Advogada. Integrante do Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos das Mulheres.

Wânia Pasinato - Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Assessora Técnica da ONU Mulheres na área de enfrentamento à violência contra mulheres. Assessora do USP Mulheres/Universidade de São Paulo e

Consultora da Empresa Xaraés - Consultoria e Projetos Ltda.

EDIÇÃO E TRANSCRIÇÃO DOS ÁUDIOSInara Flora Firmino – FDRP/USPKaira Regiani Solla – FDRP/USP

Laysi da Silva Zacarias – FDRP/USP

REVISÃO DE TEXTOAdriana Moellmann – Postrad/UnB

Alessandra Ramos de Oliveira Harden – Postrad/UnB

APOIO FINANCEIROPROEXT – MEC/SESu

Programa de Mestrado em Direito da FDRP-USP

CAPA E PROJETO GRÁFICOAline Souza do Nascimento/stock.adobe.com

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Sumário

Apresentação - Fabiana Cristina Severi e Myllena Calasans de Matos ...........................................................6

Mesa 1 -Resgatando a memória: acesso à justiça nas Convenções Internacionais de Direitos das

Mulheres e o compromisso do Estado Brasileiro ..........................................................................................8

A Recomendação Geral n. 33 da CEDAW sobre acesso à justiça para as mulheres - Silvia

Pimentel ........................................................................................................................................................9

O Acesso à Justiça para as mulheres na Conveção de Belém do Pará - Leila Linhares ..................14

Mesa 2 - Justiça Restaurativa e práticas de resolução de conflitos: entre teorias e práticas ...............21

Diferentes sentidos e modelos de Justiça Restaurativa ......................................................................22

Representações sobre Justiça Restaurativa junto a mulheres em situação de violência doméstica

- Laina Crisóstomo ..............................................................................................................................29

Mesa 3 - Desafios para a aplicação da lei Maria da Penha Fragmentação do Direito e do Sistema de

Justiça) ...................................................................................................................................................................37

Lei Maria da Penha e as disputas pelos modelos de justiça - Fabiana Severi .................................38

Desafios para a aplicação da Lei Maria da Penha em face da fragmentação do direito e sistema

de justiça - Myllena Calasans de Matos ...................................................................................................40

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I WORKSHOP LEI MARIA DA PENHA & JUSTIÇA RESTAURATIVA

apresentaçãoFabiana Cristina Severi e Myllena Calasans de Matos

A ideia para a elaboração deste workshop surgiu do diálogo entre as comissões sobre violência de gênero no âmbito universitário da Universidade de São Paulo − CAV mulheres, do campus de Ribeirão Preto, e o Escritório USP mulheres, do campus da USP de São Paulo −, o Consórcio das ONGs feministas que atuaram pela aprovação da Lei Maria da Penha e a Rede TamoJuntas. O diálogo ocorreu em razão das mudanças, nos últimos dois anos, nas políticas judiciárias brasileiras de enfrentamento da violência contra a mulher. Uma das alterações mais recentes diz respeito a uma maior ênfase conferida às práticas de Justiça Restaurativa por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Há um debate amplo sobre Justiça Restaurativa no Brasil por conta de experiências decorrentes de outras áreas, algumas delas bastante exitosas. No entanto, a aproximação da Justiça Restaurativa com a temática da violência doméstica contra as mulheres é destacadamente novo em termos de prática e estudo teórico. A concepção deste workshop, então, visou a reunião de juristas e acadêmicas feministas com histórico de atuação e de pesquisa abrangendo os dois temas para o estabelecimento de um diálogo que favoreça o acúmulo de informações e permita reflexões sobre esse novo marco da política institucional, a partir de referências ou estudos já realizados e de marcos normativos nacionais e internacionais referentes aos direitos humanos das mulheres.

Quando da formulação do título do evento, “Lei Maria da Penha e Justiça Restaurativa: É possível mediar casos de violência de gênero?”, visou-se principalmente promover o exercício que, creio, cabe à universidade pública, de tensionar e complexificar tais associações. Considera-se, assim, o conjunto e o aporte de pesquisas já realizadas, as quais, porém, muitas vezes, não chegam ao conhecimento dos poderes públicos.

No que se refere ao contexto atual de políticas públicas no âmbito do Judiciário, a propositura da Justiça Restaurativa ocorre para os casos de violência contra as mulheres, especialmente a partir da Resolução 225 de

31/05/20161 e da Portaria nº 15/2017 do CNJ2. Contudo, os fundamentos de tais escolhas por parte do CNJ ainda não se encontram explicitados à sociedade civil, sobretudo às parcelas da sociedade que se mantêm organizadas em defesa do fortalecimento das políticas de enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres decorrentes da Lei Maria da Penha, nos marcos dos direitos humanos das mulheres.

Assim sendo, na primeira mesa proposta neste workshop, a professora Silvia Pimentel e a jurista Leila Linhares Barsted, ambas atuantes no consórcio de ONGs feministas que participaram da elaboração do projeto de lei que deu origem à Lei Maria da Penha, realizam um panorama sobre os marcos normativos e históricos que culminaram na aprovação da Lei Maria da Penha para, a partir deles, ser possível analisar as propostas atuais do Conselho Nacional de Justiça.

Na segunda mesa, a pesquisadora Juliana Tonche e a advogada feminista Laina Crisostomo apresentam suas experiências de pesquisa e militância feminista relacionadas à justiça restaurativa no Brasil. Na terceira, teremos o papel de articular as proposições das mesas anteriores, a fim de potencializar a análise das políticas judiciárias atuais de enfrentamento à violência contra as mulheres em um contexto de precarização e fragmentação dos serviços e das políticas derivadas da Lei Maria da Penha.

Agradecemos a todas e todos os presentes em nome da Professora Maria Paula Panúncio (Presidenta da CAV-Mulheres), da Professora Eva Blay (Coordenadora do Escritório USP

1 - A Resolução nº 225 de 31/05/2016, do Conselho Na-cional de Justiça, dispõe sobre a Política Nacional de Justi-ça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Em seu artigo 24, a resolução acrescenta o seguinte parágrafo à Resolução nº 128 de 17/03/2011, que trata de política judiciária para o enfrentamento à violên-cia contra as mulheres: “§3º. Na condução de suas ativida-des, a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar deverá adotar, quando ca-bível, processos restaurativos com o intuito de promover a responsabilização dos ofensores, proteção às vítimas, bem como restauração e estabilização das relações familiares”.

2 - A Portaria nº 15/2017 institui a Política Judiciária Nacional de enfrentamento à violência contra as Mulheres no Poder Judiciário e dá outras providências.

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I WORKSHOP LEI MARIA DA PENHA & JUSTIÇA RESTAURATIVA

Mulheres) e da pesquisadora e assessora do Escritório USP Mulheres, Wânia Pasinato, uma das organizadoras deste evento, que, infelizmente, não pode estar aqui conosco. Agradecemos, também, o apoio financeiro concedido pelo Programa de Mestrado da Faculdade de Direito, do Departamento de Direito Público e do PROEXT-MEC/Sesu.

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Resgatando a memória:mesa 1

acesso à justiça nas Convenções Internacionais de Direitos das Mulheres e o compromisso do Estado Brasileiro

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I WORKSHOP LEI MARIA DA PENHA & JUSTIÇA RESTAURATIVA

A Recomendação Geral n. 33 da CEDAW sobre acesso à justiça para as mulheres

Silvia Pimentel

Esta é a primeira vez que discuto o tema Justiça Restaurativa. Por isso, agradeço muito às organizadoras deste workshop pelo convite e por criarem esta oportunidade. O tema tem alcançado uma maior dimensão, e acho muito importante podermos construir um olhar crítico feminista a respeito. A minha proposta, hoje, é discutirmos, ao longo do dia, quais encaminhamentos serão possíveis após esse pensar conjunto que desenvolveremos aqui. Na minha abordagem, faço referência, muito especialmente, a alguns documentos do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (Comitê CEDAW).

Tenho bastante clareza de que existem centenas de comitês e comissões no mundo e dentro da ONU. O Comitê CEDAW é bastante singular por ser um dos grandes nove comitês que monitoram os tratados e convenções do Sistema Internacional de Direitos Humanos da ONU. Não sei em que medida nós, no Brasil, temos noção do que seja uma Recomendação Geral. No entanto, trata-se de uma proposta que me fascinou nos doze anos em que permaneci no Comitê, até dezembro de 2016.

Recomendação geral é um tipo de documento previsto no próprio Comitê CEDAW, o órgão que, por excelência, monitora o cumprimento, por parte dos estados, dos preceitos contidos na Convenção. Após monitorar, avaliar e chegar a uma conclusão, esse órgão dirá em que medida o Estado está ou não cumprindo com o que determinado relativamente aos temas, artigos e fragilidades específicas. Existe, inclusive, o consenso de que os comitês de direitos humanos pertencentes a esse sistema são os responsáveis por realizar uma interpretação autorizada – assim considero ipsis verbis, uma linguagem dos estudiosos de direitos humanos na área internacional que focam seus estudos nesse sistema.

Além da interpretação autorizada, proponho ir além quanto a outro aspecto que me parece extremamente valioso nas recomendações gerais, a ponto de dizer que, para quem pretende estudar os tratados de direitos humanos, é fundamental ler as recomendações dos respectivos tratados. O Comitê CEDAW, ao elaborar recomendações gerais, o faz a partir da sua experiência com os relatórios dos estados-

partes, ou seja, dos países que ratificaram a convenção e fornecem relatórios periódicos em um formato que o Comitê busca orientar. É importante enfatizar que a obrigação nela expressa é, então, juridicamente vinculante, não só aos estados-membros, mas à sociedade também.

Posto isso, passo para a discussão de aspectos da Recomendação Geral nº 33 do Comitê CEDAW, uma das que foram propostas e coordenadas por mim. Tenho uma relação afetiva muito grande com essa Recomendação Geral, mas também trabalhei bastante na Recomendação Geral nº 35, que traz algo diferente do que foi a Recomendação nº 33 − depois veremos qual é a diferença −, numa mudança de paradigma e olhar em relação ao ponto fulcral sobre o qual trataremos aqui. Tudo o que eu falar se refere a algo em que eu acredito, após estudos e vivências. Sou muito pouco dogmática; eu me considero uma pessoa aberta, que pode, agora, entender de uma certa forma, mas que está aberta a fundamentações outras, pois acredito que só o diálogo nos faz caminhar.

No tocante ao meu lugar de fala, meu discurso é o de uma pessoa que, quando criança − desde os cinco anos de idade −, exerceu o papel de conciliadora de conflitos; eu tinha certeza de que o dia em que eu me casasse, em que eu saísse da minha casa, alguma desgraça iria acontecer. E aconteceu. Eu falo na condição de ex-vítima de violência doméstica familiar na década de 1973. Feminista desde o final dos anos 1970, acadêmica da área do Direito desde essa década, recentemente o que me dá muita alegria é o fato de, há dois anos, termos criado uma disciplina optativa denominada Direito, Gênero e Igualdade, elaborada em uma perspectiva interseccional. Fui uma das cem mulheres indicadas ao prêmio Nobel da Paz e, por isso, faço parte da Associação das Mulheres para a Paz. Desde pequenininha, assim como em vários momentos da minha vida, “Paz” sempre quis dizer bastante e, ao mesmo tempo, nada. Teremos oportunidade, no entanto, de desenvolver nossas preocupações em momento adequado.

A pretensão desta fala é sobretudo compartilhar dúvidas, preocupações, críticas,

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I WORKSHOP LEI MARIA DA PENHA & JUSTIÇA RESTAURATIVA

curiosidades, vontade de contribuir ao debate de Justiça Restaurativa no tocante à violência de gênero contra as mulheres. Considero muito importante fazermos críticas construtivas, evitando, contudo, qualquer polarização. Tenho a consciência social de estarmos vivendo um grau alto de polarização no país, tanto na própria universidade, quanto no meio de pessoas amigas.

Como referenciais, eu quero reforçar que fiz a lição de casa: estou aqui como aluna para expor a lição que as organizadoras deste evento me passaram. Li a Resolução 225 de maio de 2016, do CNJ, um documento de 388 páginas com o título “Justiça Restaurativa: Horizontes a partir da Resolução 225”1; a Recomendação Geral nº 33 e a 35, da CEDAW/ONU; as “100 Diretrizes para um Modelo de Justiça Integrador”, do Fórum Justiça2, e a Resolução 2002/12 da ONU − Princípios Básicos para a Utilização de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal. Se vocês já não a conhecem, esta última seria uma terceira normativa da ONU relacionada à primeira e à segunda aqui mencionadas. Esses princípios são a base para a Resolução 225/2016 do CNJ, que eu destaco como muito atual, pois é do ano passado.

No estudo a respeito da Justiça Restaurativa, algo me chamou a atenção: eu não li nada, até o momento, que levasse em consideração a singularidade e a particularidade da violência contra as mulheres, nem os parâmetros presentes nos documentos da ONU que inspiraram as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil.

Há aspectos positivos da Justiça Restaurativa, se não objetivarmos nenhuma polarização, com o entendimento de se tratar de proposta que merece a nossa atenção. Ao buscar os aspectos positivos, encontrei como ponto número um a crítica ao punitivismo e à Justiça Retributiva. Outro elemento positivo − ao considerarmos a evolução da resposta ao crime, a qual respeita a dignidade e a igualdade entre as pessoas − é a construção do entendimento e a promoção da harmonia social, propiciando oportunidades para as vítimas obterem reparações. Há o reconhecimento de que a utilização da Justiça Restaurativa não

1 - Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/08/4d6370b2cd6b7ee42814ec39946f9b67.pdf

2 - Disponível em: http://forumjustica.com.br/seminariosfj2015/wp-content/uploads/2015/07/Livro-100-Diretrizes-Portugu--s-1.pdf

prejudica o direito puro e subjetivo dos estados em processarem presumidos ofensores. Isso quer dizer que a Justiça Restaurativa não estaria prejudicando o devido processo legal. Pelas leituras que fiz, percebo, por parte daqueles que estão voltados à questão e nela interessados, teoricamente e na prática, uma falta de clareza quanto a efetivamente existir uma possibilidade de a Justiça Restaurativa ficar no lugar do direito público e subjetivo do Estado para processar ofensores.

Quanto aos aspectos preocupantes, nos casos de violência contra a mulher, partilho com vocês o que captei nessas semanas de estudo e imersão. As expressões se referem sempre à Justiça Restaurativa nos casos de crimes, como está muito claro inclusive na linguagem usada pela ONU. Então, as referências são sempre em geral, e sabemos como “em geral”, no mundo, é difícil de especificar devido à diversidade. No começo da leitura, eu tinha a sensação de ler coisas tão bonitas de um lado e, de outro, parágrafos tão estapafúrdios e sonháticos que a minha impressão era a mesma de quando li “O Pequeno Príncipe”. Pude captar parágrafos belíssimos sobre axiologia, filosofia e aquilo do que, via de regra, nós no Direito estamos muito imbuídos, ou seja, um idealismo ingênuo. Gente muito boa, me parece, de boa vontade, com muito amor para dar e com vontade de resolver os problemas gerados pelos crimes no mundo não mais com punição − o que é ótimo, porque eu também não concebo a punição do jeito como posto. Entretanto, de repente, quando olhamos a proposta em si, ficamos extremamente preocupados. Lembrou-me os livros de Gabriel Garcia Marques de realismo fantástico. O que eu quero dizer com isso: realismo fantástico, na literatura, é bom, mas em um documento que trata desse tipo de tema é, no mínimo, preocupante.

Um primeiro aspecto de alerta é a presença de um familismo em detrimento das mulheres, algo que todas nó sabemos existir. Passando por quase todos os países do mundo, alguma coisinha nós conseguimos aprender. Essa questão do familismo... Vejam bem, não venha alguém me dizer que eu não sou uma mulher de família; eu tenho filhos e netos. Considero a família importante, desde que dentro de uma série de condições. Não é a família per se, qualquer uma e independente de outros aspectos e não é, principalmente, família como uma estrutura apoiada nos ombros da mulher. O que eu já li nos meus tantos anos de vida é impressionante, inclusive na área do Direito, mostrando o papel chave e a existência da mulher como rainha do lar. Ela é a rainha do lar porque tem o papel

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de conciliadora e aparadora das grandes crises familiares, dificuldades e dramas. É difícil a vida em família; existe uma grande abstração, sonhos e muita ingenuidade. E, efetivamente, há falta de seriedade no trabalhar e conhecer a dimensão dos conflitos e dramas humanos existenciais, sejam familiares, sejam outros.

Ainda como preocupantes, eu ressaltaria a ausência de chão, ausência de contexto sociopolítico e cultural nos documentos. Há zero debate sobre violência estrutural de gênero, de raça, de classe e outros; há zero discussão sobre interseccionalidade; zero referência ao desmantelamento e retração do Estado Nacional contemporâneo; zero discussão sobre a fragilização do Estado Democrático de Direito, sobre capitalismo, neoliberalismo, globalização, consumismo, poder nuclear, crise global etc. Por isso eu me senti naquele paisinho do Pequeno Príncipe. Não creio que dê para elaborarmos uma proposta de política pública sem sustent-la num chão, e um chão que contemple, com muita seriedade, todos esses aspectos e mais alguns que poderíamos apontar.

Das tais 388 páginas, eu me fixei mais detalhadamente em um texto escrito pelas autoras Jurema Carolina da Silveira Gomes e Paloma Machado Graf3. Das quase quatrocentas páginas, nem 25 mencionavam mulher. Então fiquei feliz com esse texto, porque é pouquinho, mas, pelo menos, está lá. Vejam certas frases das únicas pessoas de boa vontade e sensibilidade a nós, mulheres: “tão importante quanto a culminação do projeto, é a efetiva solução de todos os desentendimentos envolvendo o casal, decorrentes e/ou causadores da violência”4.

Pergunto, aqui, se é possível realizarmos algum projeto na vida com o objetivo de resolver todos os desentendimentos que envolvem um casal. É possível entender que só nesse ponto, nesse absoluto, “todos” nós já temos um aviso de atenção? Quer dizer, essa é a pretensão. Quem é essa pessoa que irá falar, e falará o quê, partindo já, em um dos primeiros parágrafos,

3 - GOMES, Jurema Carolina da Silveira; GRAF, Paloma Machado. Circulando relacionamentos: uma nova abordagem para os conflitos decorrentes da violência de gênero. In.: BITTENCOURT DA CRUZ, Fabrício (Coord.). Justiça restaurativa: horizontes a partir da Resolução CNJ 225. Brasília: CNJ, 2016. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/08/4d6370b2cd6b7ee42814ec39946f9b67.pdf

4 - GOMES & GRAF in BITTENCOURT DA CRUZ, 2016, p. 283.

da pretensão de resolver todos os problemas. É impossível, vocês estão entendendo? Em um outro parágrafo, afirma-se: “A originalidade da proposta decorre justamente da execução de uma metodologia integrativa para o enfrentamento da violência doméstica sustentada na assunção de responsabilidades e obrigações dos envolvidos e o resgate da ancestralidade”5.

No que diz respeito à política pública, encontrei, num documento da ONU, um elemento fundamentado na ancestralidade, que é transversal às quatrocentas páginas do texto-chave, o documento mais importante. Uma das minhas vivências mais fortes nesses anos na ONU foi me deparar com verdadeiras perversidades em algumas tribos africanas. Uma colega nigeriana do Comitê CEDAW me contou o costume de uma região na Nigéria: quando a mulher fica viúva, ela tem de tomar, pelo menos, um copo da água que lava o corpo do cadáver do marido. Eu já, desde garotinha, escutava que na Índia, às vezes, a viúva era colocada na pira para serem queimados juntos, marido e mulher.

Alguém precisa pesquisar e verificar se isso ainda existe. No nosso espírito bastante primitivo e ancestral, temos de encontrar um bode expiatório para as desgraças; é típico da ancestralidade e, ainda hoje, costumeiramente, que os bodes expiatórios sejam as mulheres. É o seguinte: tal fato ocorrer, uma determinada desgraça, porque aquela mulher é bruxa. E aí a comunidade se une com facas e paus e matam a mulher. E eu trago esse exemplo não de livros fantásticos, mas sim da minha experiência na ONU, quando me foi possível analisar relatórios oficiais, principalmente dos últimos anos, acompanhados de relatos alternativos da sociedade civil.

Este, aliás, é um dos pontos mais altos do que acontece hoje na ONU: a apresentação de relatórios pela sociedade civil organizada. Esse fator permite que nós, lá de Nova York ou de Genebra, possamos analisar a realidade daquele país, a partir do discurso do Estado e, cada vez mais, de outras falas, não só de ONGs locais, mas de ONGs internacionais, como Anistia Internacional e Human Rights Watch.

Leio mais um trecho do texto citado: “As oficinas surgem como momento de resgate da essência dessa mulher”6. Essas oficinas, uma

5 - Idem, p. 286.

6 - GOMES & GRAF in BITTENCOURT DA CRUZ, 2016, p. 291.

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importação de procedimentos, de momentos e de vivências, permitem o resgate da “essência dessa mulher”. O que se está dizendo é que essa experiência de uma, duas, três horas ou dois dias dá ferramentas para que se transcenda e modifique a sua vida. Por isso eu me referi a um realismo fantástico. É um realismo mágico. E quase corremos o risco de nos animarmos. São, contudo, muitas vezes, momentos importantes para diversas pessoas que deles participam. Não estou desqualificando a iniciativa, mas apenas mostrando preocupações em relação ao que se apresenta como algo que mexe com a essência e altera a vida inteira da pessoa. Vocês entendem a minha preocupação?

Lerei um último trecho, e este me preocupou muito: “a importância do diálogo entre vítima e ofensor, saber o motivo pelo qual foi agredida, violentada (...) é que auxilia a mulher a superar seu papel de vítima para sobrevivente”7. Guardaram bem essa frase? “Saber o motivo pelo qual foi agredida, violentada (...) é que auxilia a mulher a superar seu papel de vítima”.

Ressalto a várias pessoas aqui, as quais talvez não tenham a experiência de ler a respeito ou de lidar diretamente com a mulher, que grande parte da violência doméstica contra a mulher, vamos dizer, é causada por algo, se formos buscar a culpa da vítima: “o feijão tinha pouco sal”; “o feijão não estava bem cozido”; “ o marido recebeu reprimenda na rua ou bebeu um pouco a mais”. No entanto, o mais importante nesse estudo é que a mulher precisa saber qual foi a causa, o porquê de haver apanhado, e assim ela poderá superar seu papel de vítima para sobrevivente. Isso é muito preocupante.

Eu, então, busquei a própria Resolução 225/2017 do CNJ. Destaco aqui dois pontos apenas:

Art. 1º. A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado na seguinte forma:V – Enfoque Restaurativo: abordagem diferenciada das

7 - Idem, p. 287.

situações descritas no caput deste artigo, ou dos contextos a elas relacionados, compreendendo os seguintes elementos:a) participação dos envolvidos, das famílias e das comunidades;b) atenção às necessidades legítimas da vítima e do ofensor;c) reparação dos danos sofridos;d) compartilhamento de responsabilidades e obrigações entre ofensor, vítima, famílias e comunidade para superação das causas e consequências do ocorrido.

Estou bastante cautelosa com o que nomeio como aspectos preocupantes. Chamo a atenção sobre ser essa a proposta da Resolução do Conselho Nacional de Justiça, numa sociedade que, no que diz respeito às mulheres, é minada contra nós. A violência que existe, principalmente a doméstica e familiar, é imensa e possui um contínuo, uma diuturnidade. E aí nós vamos convidar ao compartilhamento de responsabilidade e obrigação entre ofensor e vítima. Somente peço cuidado para analisarmos esse ponto.

Diz ainda a Resolução do CNJ:

Art. 2º São princípios que orientam a Justiça Restaurativa: a corresponsabilidade, a reparação dos danos, o atendimento às necessidades de todos os envolvidos, a informalidade, a voluntariedade, a imparcialidade, a participação, o empoderamento, a consensualidade, a confidencialidade, a celeridade e a urbanidade.

Há muitos aspectos interessantes nesse artigo, e não digo isso por ser feminista ou por achar que a mulher é a santa sempre, e o homem é o diabo. Acredito que esse cuidado eu tive, desde o começo, com o meu feminismo, no sentido de não olhar a mulher só como vítima, não fazer essa simplificação, nem considerar a mulher apenas como santinha, que sempre apanha. Não é nada disso. Porém, na hora em que vemos documentos sem nenhuma consideração ou olhar de gênero, e ainda com expressões como “uma corresponsabilidade” no dano, na culpa, nisso e naquilo, a preocupação é que, mais uma vez, conforme a linguagem coloquial, irá “sobrar para a mulher” e “ a culpa é da mulher”.

Sabemos que, nos crimes na área da sexualidade, via de regra, a culpa é da mulher e

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ela se transforma em ré. Isso tem sido discutido há mais de trinta anos. Fizemos, inclusive, um estudo bonito sobre estupro; na epígrafe do livro, escrevemos o trecho da manifestação de um Procurador de Justiça. Imaginem vocês, a gracinha do Procurador fez a seguinte piadinha, analisando um caso de estupro: “Na realidade, o que aconteceu foi que a jovem de treze anos assediou o rapaz de 27 e, até que enfim, Fernando Cortes fez uma cortesia e a estuprou”. Por isso o livro se chama “Estupro: Crime ou Cortesia?”8.

A partir da análise da Recomendação Geral nº 33 do Comitê CEDAW, que trata exclusivamente do acesso à justiça para as mulheres, quero convidá-los a conhecerem esse documento para observarem em que medida ele contribui ao debate sobre Justiça Restaurativa. As contribuições têm ocorrido de uma maneira incrível, mesmo porque encontrei praticamente zero comentários a respeito nos documentos que abordam a temática, seja na ONU, seja no Brasil – refiro-me a documentos normativos. Nessa Recomendação Geral nós demos um tratamento muito especial à dimensão da interseccionalidade, tema trabalhado na Recomendação Geral nº 28.

Os elementos para a discriminação interseccional ou composta podem incluir etnia, raça, condição de indígena ou minoria, cor, situação socioeconômica, língua, religião, crença, opinião política, origem nacional, identidade com a mulher lésbica, bissexual e por diante. Esses fatores tornam mais difícil para mulheres desse grupo obterem o acesso à justiça. A grande contribuição que a Recomendação Geral nº 33 traz, então, é o olhar que devemos desenvolver para identificarmos estereótipos e preconceitos de gênero no sistema de justiça e a importância da capacitação das pessoas que nele atuam ou que irão produzir o modelo de Justiça Restaurativa.

Destaco, ainda, como elementos influenciadores do acesso da mulher à justiça o contexto estrutural de discriminação e desigualdade; os estereótipos de gênero; os estigmas; as normas culturais nocivas e patriarcais, e o medo que, muitas vezes, influencia a decisão das mulheres em relatar a violência. A meu ver, o ponto fulcral de contribuição em relação à Justiça Restaurativa é a necessidade de capacitação, educação e sensibilização sobre os

8 - PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia; PANDJiARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou cortesia? Abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Safe, 1998.

impactos dos estereótipos, chamando a devida atenção para a necessidade de uma expertise em gênero. Nesse sentido, destacamos o quanto as faculdades de direito, os meios de comunicação e as tecnologias de informação poderiam ser melhor usadas a nosso favor.

Chamamos também a atenção, na primeira página, para o desmantelamento do Estado Democrático de Direito, para o neoliberalismo e a retração do Estado. No lugar de se aprimorar a justiça de um Estado, a qual foi construída durante séculos, e que é o Estado de Direito, de repente poderíamos dar abertura à sociedade e à comunidade. Assim, quase que num passe de mágica, resolveríamos essa situação na totalidade, reduzindo os custos do Estado.

Para terminar, quero dizer a vocês que, ainda este ano, a Resolução nº 35 do Comitê CEDAW reconhece a possibilidade de mediação nos casos de violência de gênero. Fica um convite para verificarmos até que ponto, realmente, com todos os cuidados, em determinadas circunstâncias, nós diríamos que, então, seria possível algum tipo de mediação. Novamente, não proponho trabalhar com absolutos, mas é preciso cautelas. O Fórum de Justiça também construiu um documento que expressa uma posição contrária ao absoluto − sem conversas, dogmático −, no sentido da possibilidade de mediação em casos de violência doméstica. Ele mostra sérias restrições e muito cuidado no caso de eventuais encaminhamentos que pressupõem algum tipo de mediação. Temos, então, uma proposta a ser discutida com muito cuidado, sem nos fecharmos a qualquer crítica ao desenvolvimento de uma ideia que possamos vir a ter.

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O Acesso à Justiça para as mulheres na Conveção de Belém do Pará

Leila Linhares

Primeiro, quero expressar minha felicidade em participar da mesma mesa que a minha querida amiga Silvia Pimentel e a professora Fabiana Severi, a quem agradeço o convite e a oportunidade de conhecer esta universidade, que é muito bonita, assim como Ribeirão Preto, pois é a minha primeira vez aqui. Devo dizer que me espantei muito com o vigor da cidade e com a hospitalidade que estamos recebendo. Fico muito feliz, também, de fazer parte desta mesa, apresentando meus comentários logo após a professora Silvia, que já pontuou várias questões a que eu gostaria de dar continuidade na minha fala.

Diante de um público com formação basicamente em Direito, é muito importante percebermos a importância dos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, particularmente dos direitos humanos das mulheres, bem como a importância de podermos discutir a Convenção CEDAW, de cujo Comitê Silvia Pimentel participou durante doze anos. Trata-se de uma convenção que surgiu em 1979 e vem sendo aprimorada por meio de sucessivas resoluções, de modo articulado com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres, conhecida como Convenção de Belém do Pará, uma iniciativa da Organização dos Estados Americanos. Diferente da CEDAW, esta última é, como já diz sua designação, uma convenção interamericana, sem caráter internacional. É importante, porém, destacarmos que o Brasil assinou tanto a convenção internacional (CEDAW), quanto a interamericana (Convenção de Belém do Pará).

Para um público na área do Direito, também é importante ressaltarmos que a nossa Constituição Federal de 1988, logo nos seus primeiros artigos, define que a nação brasileira é um Estado Democrático de Direito, coerente com uma ordem internacional de proteção dos direitos humanos. E o Direito Internacional dos Direitos Humanos produz não apenas leis − os tratados internacionais −, mas também jurisprudência e doutrina. Quer dizer, quando me refiro a jurisprudência, é possível ainda observar que o Direito Internacional dos Direitos Humanos é composto por uma série de decisões das comissões e cortes internacionais e regionais de direitos humanos.

No âmbito da ONU, o Comitê CEDAW tem um papel fundamental, podendo apresentar propostas, inclusive, de mecanismos de punição aos Estados. Há também, no Sistema Interamericano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que analisam casos de violações de direitos humanos praticados pelos estados-partes ou situações em que estes se omitiram no dever de proteção aos seus cidadãos. Temos, então, legislação internacional e jurisprudência. Da nossa parte, há o reconhecimento, inclusive, de tribunais internacionais como o Tribunal de Roma, que julga crimes contra a humanidade e crimes de tortura. Tanto essa jurisprudência quanto os tratados internacionais se fundamentam numa doutrina internacional de direitos humanos.

Assim sendo, não há como estudar o Direito brasileiro dissociado do fato de o nosso Direito interno fazer parte de um sistema internacional de direitos humanos. Desse modo, portanto, a nossa legislação interna e as nossas práticas judiciais precisam estar de acordo com essa doutrina, jurisprudência e legislação internacional de direitos humanos.

Como deixou claro Silvia Pimentel em sua fala, é possível perceber, ao nos aproximarmos da Resolução do CNJ mencionada nas Recomendações Gerais nº 33 e 35 do Comitê CEDAW, o contraste com aquilo que, no plano internacional e constitucional, se assume por estarmos dentro desse sistema, do qual, contudo, nos afastamos sob a nomenclatura de outras figuras que se impõem como se fossem do Direito, mas que advêm de um sentimento de moralidade, de um sentimento proveniente do sexismo, de um patriarcado muito marcante. Tais percepções tentam se fantasiar de formas jurídicas para nos convencer, então, da possibilidade de aplicar modos alternativos de justiça, como a Justiça Restaurativa, que não se enquadram, entretanto, no contexto da proposta internacional de proteção aos direitos humanos das mulheres, particularmente no que diz respeito à violência de gênero.

A Convenção de Belém do Pará não surge num espaço vazio. Ela dá seguimento à tradição do CEDAW e a uma série de recomendações

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anteriores a 1994, quando foi assinada. Essas resoluções já tratavam, vale destacar, da questão da violência contra as mulheres. A Convenção de Belém do Pará é, ainda, tributária da Conferência Internacional de Direitos Humanos, ocorrida em Viena no ano de 1993, que lapidarmente cunhou a expressão “violência de gênero” contra as mulheres, entendendo-a como uma violação dos direitos humanos. A Declaração de Viena adotou essa expressão, que, aliás, aparece em praticamente todos os documentos das Nações Unidas e da OEA. Vemos, nesse ponto, uma primeira contradição: no Brasil a tentativa é apagar a expressão gênero não apenas dos planos de educação, mas também da legislação.

Observamos que algumas propostas, como a aplicabilidade da Justiça Restaurativa em caso de violência contra mulher, entram em choque com a normativa internacional – lembrando, sempre, que essa normativa é ratificada no Brasil pelo nosso sistema constitucional de proteção aos direitos humanos. A Convenção citada não só declara que a violência contra as mulheres por razões de gênero é uma violação dos direitos humanos, como também reafirma o que está contido na Conferência de Direitos Humanos de 1993: os direitos das mulheres são direitos humanos.

Por que, na Declaração de Viena, foi importante dizer o que nos parece óbvio, ou seja, que os direitos das mulheres são direitos humanos? Assim ocorre porque o que nos parece evidente, na verdade, não era entendido como tal. Há todo um trabalho no campo da antropologia do Direito, da filosofia do Direito e dentre as pessoas que estudam a relação entre direito e religião que busca compreender a construção da ideia da não humanidade das mulheres. Houve épocas que as mulheres eram consideradas sem alma; esta era exclusividade dos fetos do sexo masculino. Depois houve uma pequena evolução no sentido de se dizer que, após alguns meses de nascida, a mulher possuiria alma, mas não seria um ser tão humano quanto o homem. Assim, é importante afirmar que as mulheres têm dignidade e que os direitos das mulheres são direitos humanos, porque significa retirar a ideia de que esses direitos são parte do direito da família, por exemplo. Era preciso afirmar a mulher como indivíduo, a individualidade das mulheres como portadoras de direitos humanos.

Esse ponto é relevante porque, no tocante à Convenção de Belém do Pará, especialmente nos artigos 1º e 2º, vemos definido o que é violência de gênero, qual a sua amplitude. Tocando no ponto para o qual a Silvia chamou atenção na

Recomendação Geral nº 33, quanto à ideia de interseccionalidade, a percepção de que não existe um ser abstrato mulher, mas sim mulheres com raça, religião, mulheres que têm idade, deficiências e uma variedade de circunstâncias que caracterizam a vivência real das mulheres. Muitas dessas circunstâncias fazem com que as mulheres tenham mais ou menos acesso a direitos, ou que a violência contra as mulheres se caracterize por outras formas de violência em função da sua raça e etnia, orientação sexual, lugar de nascimento e idade, por exemplo. É importante a ideia da interseccionalidade nos documentos internacionais e, particularmente, na Convenção de Belém do Pará, para que possamos desmanchar qualquer ideia de uma essência feminina e de homogeneidade entre as mulheres.

Mulheres são sujeitos de direitos humanos; têm dignidade e especificidades, com distintas formas e diferenças quanto ao acesso a direitos. A Convenção de Belém do Pará se preocupa com o acesso à justiça que faz com que as mulheres, independentemente das diferenças, sejam recebidas pelo sistema de justiça e tratadas por ele como deveria ocorrer num sistema amplo, rápido e eficaz, com agentes qualificados para entender as questões de gênero, raça, etnia, idade, orientação sexual etc. Ou seja, o que esse documento propõe não é um conceito abstrato, mas sim de que tipo de acesso se trata, no sentido de uma justiça eficaz, rápida, tolerante à diversidade das mulheres, mas intolerante com a violência contra elas. Em função desse aspecto, a Convenção de Belém do Pará elenca uma série de deveres dos Estados, particularmente em seus artigos 7 e 8.

Dentre os deveres do Estado, eu citaria, por exemplo, o dever de atuar com a devida diligência para prevenir, investigar e punir a violência contra as mulheres. Este é um ponto importante: o que é devida diligência? Primeiramente, diz respeito à dignidade da mulher, à disponibilidade dos meios da justiça, na figura da defensoria pública. É o alcance não apenas da justiça stricto sensu, mas sim a tudo que significa a possibilidade de ter direito, podendo incluir o acesso ao sistema de saúde, à educação, à representação política e ao conjunto do que comporia, portanto, a cidadania. Aqui, acesso à justiça seria, em última instância, alcançar a cidadania real, efetiva. Em um sentido restrito, temos que acessar a justiça significaria também o acesso às instituições de justiça, especialmente ao Poder Judiciário.

Os artigos 7º e 8º também incluem a obrigação dos Estados de inserir em suas

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legislações normas penais, civis e administrativas necessárias para que as mulheres tenham acesso à justiça. Além disso, há a obrigatoriedade de adotar medidas jurídicas que limitem a agressão sofrida pelas mulheres, abolindo leis e regulamentos discriminatórios, modificando práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência ou tolerância dessa violência.

No caso de violência contra as mulheres, independentemente da legislação − temos a Lei Maria da Penha, a lei do feminicídio −, observamos que, na realidade, a aplicação da norma vem contaminada, por assim dizer, por interpretações prejudiciais à mulher, calcadas em costumes, práticas e valores que naturalizam essa violência e consideram que as mulheres são naturalmente subordinadas aos homens, ao poder da família etc.

A Convenção também determina que os Estados devem garantir às mulheres o acesso ao ressarcimento e à reparação adequada. Podemos, nesse ponto, apontar um sentido positivo de restauração da Justiça Restaurativa, porque quando uma mulher sofre agressão física, ela precisa ser não apenas contemplada com o dever do Estado em punir a agressão e impedir a sua continuidade, mas também com o dever estatal de reparar e ressarcir essa violência. Hoje em dia, por exemplo, podemos ver que uma mulher agredida pode, em fórum cível, exigir reparação por danos físicos ou danos morais. A Lei Maria da Penha abrange essa questão, essa reparação discutida pela Convenção.

A Convenção de Belém do Pará também chama a atenção para a obrigação de o Estado atuar na formação e capacitação dos seus funcionários, dos seus agentes, encarregados de cumprir a lei; na educação, nos meios de comunicação, com os fins de desenvolver um trabalho de prevenção contra a violência e também na oferta de serviços especializados para atender as mulheres que sofreram violência de gênero.

Assim como a Convenção da ONU, a Convenção de Belém do Pará criou, em 2006, um mecanismo de monitoramento conhecido pela sigla MESECVI – Mecanismo de Seguimento da Convenção de Violência Contra Mulher. É composto por mulheres oriundas da sociedade civil; não são, portanto, membros do Estado, mas pessoas – de iniciativa independente, ativistas na defesa dos direitos das mulheres − indicadas pela sociedade civil. Eu tenho muita honra e satisfação de fazer parte desse mecanismo

desde a sua criação. Esse instrumento gerou uma maneira de monitorar a maneira como os estados-partes estão, de fato, aplicando a Convenção de Belém do Pará.

Dessa maneira, em 2006 se solidificou a ideia de que os estados-partes que assinaram a Convenção de Belém do Pará não estavam cumprindo ou cumpriam em parte essa decisão. Criou-se, então, um instrumento de monitoramento, sob a forma de um questionário apresentado aos estados para responderem. As respostas são confrontadas pelo MESECVI com outros relatórios-sombra e relatórios alternativos da sociedade civil a fim de realizarem, assim, um contraponto entre aquilo que o Estado diz fazer e o que efetivamente faz ou não. A partir da análise desses documentos, o MESECVI definiu alguns indicadores que poderiam ser considerados indicadores de avanço na implementação da Convenção.

O primeiro deles é de legislação, de modo a saber se os estados-partes elaboraram leis de acordo com as recomendações e normas da Convenção de Belém do Pará. Por ele, veremos que, em princípio, quase todos os estados-membros da OEA criaram legislações voltadas para a prevenção de violência contra as mulheres. Alguns estados apresentaram legislações que regulam sobre a violência de gênero em geral; outros, como o Brasil, fizeram leis relativas à violência doméstica e familiar contra mulheres.

No caso do Brasil, a norma que cumpre a Convenção, em parte, é a Lei Maria da Penha. Em parte porque essa normativa se debruça sobre a violência doméstica e familiar contra as mulheres. Trata-se de decisão tomada por um grupo de mulheres feministas da área do Direito, que elaborou a proposta inicial da Lei Maria da Penha, na medida em que considerávamos que era violência de gênero contra as mulheres o que ocorria nas relações domésticas e familiares, não reconhecido como violência pela sociedade brasileira. Assim, queríamos dar visibilidade, especificamente a uma forma de violência que vinha sendo naturalizada como conflito familiar, como briga de marido e mulher. Queríamos, ainda, marcar que esses chamados conflitos naturalizados, na realidade, eram crimes. Por isso, no Brasil, adotou-se uma legislação que enfoca a violência doméstica e familiar contra as mulheres.

Um outro indicador de avanços é a existência de planos nacionais de aplicação dessa legislação. No Brasil, pelo menos entre 2003 e 2015, tivemos um órgão, a Secretaria

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Especial de Políticas para as Mulheres, que elaborou o Programa Pró-equidade de Gênero e Raça, o Pacto de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, assim como um rol de diretrizes e protocolos de como a violência contra as mulheres deve ser investigada, como esse tipo de violência não ocorre isoladamente de todas as outras formas de discriminação. O Estado brasileiro, então, produziu bons planos nacionais, decorrentes de demandas dos movimentos sociais, das conferências municipais, estaduais e nacionais das mulheres, no diálogo entre Estado e Sociedade Civil.

Outro indicador é o acesso das mulheres à justiça, o que pressupõe não apenas a existência de uma justiça especializada − e a Lei Maria da Penha contempla esse aspecto − , as varas ou os juizados de violência doméstica , mas também os mecanismos de proteção, tal qual a Lei Maria da Penha prevê. A proibição de mecanismos de mediação é um dado interessante que aparece nesse contexto.

Mais um indicador seria a existência de estatísticas sobre a criminalidade que existe contra as mulheres: o número de inquéritos produzidos, de sentenças e julgamentos, de processos que chegam ao fim, número de processos absolutórios. Ou seja, são dados do momento em que a mulher entra nesse sistema por meio de uma delegacia, como no caso do Brasil, até a decisão final do Poder Judiciário. Veremos que, em todos os países, como no Brasil também, há um funil: há uma entrada grande de casos num primeiro momento, que se afunilam gradativamente até as estatísticas judiciais ficarem muito aquém do número de violência sofrida pelas mulheres.

Em alguns estados, há estatísticas muito boas na área de segurança pública. O Rio de Janeiro, por exemplo, produz, há mais de dez anos, uma série histórica sobre violência doméstica, identificando a relação vítima/autor, idade, estado civil, religião, renda familiar. Identifica, assim, as formas de violência que essas mulheres têm sofrido. Porém, no que se refere às estatísticas judiciais, por mais que haja dados do Conselho Nacional de Justiça, sabemos – até mesmo por essas informações − que a resolução dos procedimentos iniciados em sede policial têm uma resolução extremamente baixa, apontando para o grau de naturalização ao longo do processo, o qual acaba por ser arquivado por falta de interesse do Estado.

Um outro indicador é o orçamento, ou seja, o quanto o Estado dedica para que o acesso das mulheres à justiça se contemple; quanto

de recursos se aplica em delegacias, juizados; o número de pessoal que trabalha nessas instituições etc. Em resumo, seria o quanto do orçamento nacional está voltado para ações identificadas como ações de prevenção, de atenção, proteção ou punição nos casos de violência contra as mulheres. Vemos que o acesso à justiça no Brasil se ampliou de alguma maneira, mas ainda é extremamente pequeno em relação à demanda dessas mulheres que chegam às delegacias. Sabemos que existem outras situações em que as mulheres não chegam até as instituições responsáveis; há uma subnotificação muito grande de violência contra as mulheres, especialmente a violência sexual e, muito particularmente, a violência sexual contra meninas e adolescentes, que geralmente ocorre em âmbito familiar.

Logo, esses questionários são enviados, os Estados apresentam suas respostas e, então, realizamos uma análise e uma série de recomendações específicas para cada país. De tempos em tempos, fazemos o que se denomina de “informes hemisféricos”, nos quais se tenta gerar uma síntese de como está a implementação da Convenção de Belém do Pará no âmbito interamericano. Claro que identificamos avanços, mas observamos também muitas preocupações. Diante dessas preocupações, o Comitê tem elaborado uma série de declarações. Um exemplo é que, diante da persistência do feminicídio, o Comitê da Convenção elaborou, em 2008, uma Declaração sobre o tema que abriu margem à elaboração de uma convenção específica sobre a questão, que obrigaria os estados-partes, além da Convenção de Belém do Pará, a se comprometerem com o cumprimento de determinadas normas, procedimentos, diretrizes voltadas para a diminuição ou erradicação de crime contra a vida das mulheres caracterizado como feminicídio.

Em 2014, o Comitê MESECVI produziu também uma Declaração sobre violência contra as mulheres e direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas, no qual se chama a atenção para um fato que atinge, no Brasil, particularmente as mulheres negras, que é a violência obstétrica, a forma como mulheres negras são mal atendidas e discriminadas pelo sistema privado e, em particular, pelo sistema público de saúde. Nessa declaração, destaca-se também a necessidade de os estados-membros da OEA revisarem suas legislações no tocante à interrupção voluntária da gravidez, considerada uma das causas principais de morte materna. Nesse sentido, a Declaração de 2014 avança em relação ao que apontado no Plano de Ação da Conferência de População e Desenvolvimento

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de 1994 e na Conferência Mundial da Mulher de 1995, que recomendam aos estados-partes reverem a sua legislação para não penalizarem a interrupção voluntária da gravidez.

Em 2015, diante das violências contra as mulheres que tentam chegar a cargos públicos e a postos políticos, foi elaborada uma declaração sobre a violência política contra as mulheres. As especialistas de cada país levaram à discussão no Comitê sobre o que estava acontecendo, de modo a nos fazer compreender a baixa representatividade política das mulheres nos espaços de poder. No Brasil, as mulheres são tão pouco representadas na Câmara dos Deputados que seu número chega a 10%. Vemos, assim, a dificuldade de mulheres de entrarem no mundo da política, como os partidos políticos ainda são predominantemente sexistas e patriarcais e como, mesmo quando essas mulheres entram em espaços políticos, elas são vítimas de violências. Eu citaria, no Brasil, o caso das agressões sofridas pela Ministra Maria do Rosário pelo Deputado Jair Bolsonaro, assim como as agressões sofridas pela Deputada Jandira Feghali e tantas outras parlamentares. Esse fator faz com que o espaço de representação política seja hostil para as mulheres, as quais, diante desses obstáculos, acabam por abrir mão de buscar a participação política nesse âmbito do poder.

Essas declarações criam uma doutrina sobre o que é violência contra a mulher, sobre as diferentes formas de violência contra a mulher e as obrigações que os estados-partes devem cumprir para fazer com que essas diferentes formas de violência sejam efetivamente enfrentadas, prevenidas e que as mulheres possam ter acesso aos seus direitos.

Diante dessas preocupações, em 2014, o Comitê MESECVI elaborou um guia para os estados-partes se orientarem quanto à implementação da Convenção. Basicamente, é um guia voltado para as instituições de justiça. Vocês podem acessa-lo pela página OEA-MESECVI1. Todos os artigos da Convenção se encontram explicitados e discutidos ao longo desse guia, possibilitando que cada um deles possa ser interpretado pelo aplicador da lei, seja ele na área da segurança, da defensoria pública ou dos juízes e demais funcionários da área da justiça.

Em 2015, o Comitê elaborou também um guia com os indicadores de avaliação, determinando o que pode ser feito com a

1 - Ver: www.oas.org/es/mesecvi/docs/bdp-guiaaplica-cion-web-es.pdf

avaliação e como executá-la. Esse documento, na realidade, deveria ser implementado por um órgão de Estado específico, por exemplo, a Secretaria de Políticas para as Mulheres. O guia surgiu em 2015, e infelizmente creio que o Brasil não apresentou respostas aos dois últimos relatórios, como se o Estado brasileiro não reconhecesse sua participação como membro da Organização dos Estados Americanos.

Todas essas declarações reforçam com frequência a ideia de que a violência de gênero contra as mulheres é uma violação de direitos humanos. Na realidade, os documentos da Convenção de Belém do Pará, mostram sempre a necessidade da articulação entre a Convenção da OEA e a Convenção CEDAW. Nesse sentido, chamo a atenção para a importância das recomendações do CEDAW, tanto a Recomendação Geral nº 33, quanto a Recomendação Geral nº 35. Sublinho a letra c do item 58 da Recomendação nº 33 do CEDAW, segundo a qual “sob nenhuma circunstância sejam (os casos de violências contra as mulheres) encaminhadas para qualquer procedimento alternativo de resolução de disputas” em situações em que se depara com violência de gênero contra as mulheres − no caso do Brasil, violência de gênero em relação doméstica e familiar. Desse modo, já nessa doutrina jurídica, tanto oriunda da ONU quanto do Comitê de Belém do Pará, há um consenso da não admissão de mecanismos de mediação, de conciliação ou de outros sinônimos de Justiça Restaurativa.

O que, na realidade, se propõe como Justiça Restaurativa nada mais parece que um retorno às ideias de mediação e conciliação previstos na Lei nº 9.099/95. Essa norma considera que crimes cuja pena não ultrapasse dois anos são de menor potencial ofensivo e, portanto, ao seu autor, no máximo, caberia o pagamento de uma pena pecuniária à vítima. Essa lei é interessante porque surgiu exatamente no ano em que a Convenção de Belém do Pará entrou em vigor. Logo, teríamos no Brasil o caso de um conflito legislativo: de um lado, a Convenção de Belém do Pará afirma que a violência contra as mulheres é uma violação de direitos humanos; de outro, o Direito brasileiro diz que qualquer crime cuja pena seja de até dois anos possui um menor potencial ofensivo.

A Lei nº 9.099/95 cabe muito bem em casos não calcados em uma relação de poder, e não tenho nada contra a sua aplicação nesses contextos. Contudo, quando há a presença de relações de poder, como no caso de violência doméstica e familiar, não podemos considerar que se trata de um crime de menor potencial

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ofensivo. Ora, se violência contra mulher, por razões de gênero, é uma violação de direitos humanos, não pode ser um crime de menor potencial ofensivo. Contudo, esse conflito judicial perdurou de 1995 até 2006, quando oficialmente foi elaborada a Lei Maria da Penha, a qual diz, explicitamente, que, em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher, não se aplica a Lei nº 9.099/95.

Sabemos que, no processo de elaboração da Lei Maria da Penha, eu, Silvia e muitas companheiras fizemos parte do grupo de profissionais do Direito que trabalhou em conjunto com parlamentares e com a Secretaria de Política para as Mulheres. Conseguimos propor esse texto, que foi imediatamente contestado e bombardeado pelos juízes de varas de juizados criminais de violência. Eles diziam que não, que tínhamos de nos ater ao quantitativo da pena, pois, se fosse de até dois anos, seria um crime de menor potencial ofensivo. Por outro lado, a nossa contestação era no sentido de o Brasil deixar explícito, no art. 5º da Constituição Federal de 1988, que vigora, no país, a legislação internacional.

Sofremos uma pressão muito grande, sendo até chamadas de feministas punitivistas. Não fomos assim denominadas apenas pelo grupo de juristas conservadores, mas também por aqueles considerados os mais modernos e avançados em sua visão do que seria o Direito Penal Mínimo, os quais realmente deram ao Direito Penal uma leitura importante e bastante progressiva. Eles, no entanto, cometeram um pecado grande ao não abordarem a questão de gênero, de raça e da interseccionalidade, pois não existe um abstrato homem ou mulher. Ao cunharem a expressão “feministas punitivistas”, esses juristas, propositalmente, ignoraram a contribuição da teoria feminista crítica do Direito há anos. Muitos deles são colegas queridos, mas se recusam a dialogar com a teoria crítica feminista do Direito que, claro, tem como pedra fundamental a interpretação do Direito com a perspectiva de gênero. Quando interpretamos o Direito com essa perspectiva, vemos que se trata de uma doutrina que discrimina as mulheres e, na sua aplicação, essa discriminação se torna patente. Portanto, lutávamos por uma legislação que contemplasse a perspectiva de gênero ao abordar a violência contra as mulheres.

Chamo a atenção para esse conflito legislativo e a dificuldade de os juristas, conservadores e progressistas, aceitarem o diálogo com o feminismo, colocando-se de uma forma muito estranha. Um exemplo: quando nós, defensores de direitos humanos,

incluindo os juristas da teoria crítica do Direito e do Direito Penal Mínimo, olhamos para o julgamento dos crimes contra a ditadura na Argentina, em nenhum momento seremos capazes de dizer “bom, esse torturador torturou só um pouquinho”. Quando estamos diante de crimes de violação de direitos humanos, não existe um pouquinho ou mais − são violações de direitos humanos. E nós queremos, como tem ocorrido na Argentina, que esses torturadores e violadores de direitos humanos sejam efetivamente punidos. Não propomos penas alternativas e nem justiça restaurativa que possa restabelecer corresponsabilidades entre torturado e torturador.

Quando estamos diante do que aconteceu no Brasil − e a Comissão da Verdade trouxe visibilidade à sociedade para as violações de direitos humanos que aconteceram na ditadura no país, as quais são cometidas ainda hoje, particularmente contra a população carcerária −, em nenhum momento dissemos que não são violações de direitos humanos e que esses torturadores não mereceriam ser julgados.

Nesse ponto, ocorre, porém, um fenômeno no Brasil diferente do que aconteceu na Argentina: a nossa democracia foi feita com conciliação e restauração. Nesse sentido, na restauração democrática, o lado restaurador significou esquecimento − então vamos esquecer. Os torturados esquecem que foram torturados e, nesse sentido, nós não vamos levar os torturadores ao banco dos réus para serem processados e punidos. Assim, percebemos que se espera dos torturados o esquecimento de haverem sofrido tortura. O que se espera das mulheres, via a Justiça Restaurativa, é que elas esqueçam que foram agredidas; que elas assumam a responsabilidade; que, se denunciarem os seus agressores, elas estarão colocando em risco suas famílias; que elas foram corresponsáveis pela tortura que sofreram por parte dos seus agressores. Ou seja, é possível restaurar relações de poder entre agressores e agredidos? É possível restaurar relações entre torturados e torturadores em nome de uma essência, qual seja, somos todos brasileiros?

É importante, ao se considerar a violência contra as mulheres como uma violação de direitos humanos, percebermos que em nenhuma situação de violação de direitos humanos podemos aceitar mediação, conciliação ou restauração e, muito menos, imaginar que torturados e agredidos foram corresponsáveis pela tortura e agressões que sofreram. Esse é um ponto importante. Vimos que, infelizmente, a cultura jurídica brasileira não

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tem raciocinado dessa maneira. Partindo desse ponto, poderíamos perguntar por que a cultura jurídica brasileira não reconhece a violência contra as mulheres como uma violação de direitos humanos, trazendo de volta agora, com a nova nomenclatura de Justiça Restaurativa, a utilização do que poderíamos chamar de uma psicologia barata, ao se tentar restaurar aquilo que é impossível de ser restaurado.

Ou seja, a agressão foi sofrida e, no máximo, para restaura-la, além de se prever a punição do agressor, que pode ser leve, com penas alternativas, há de se considerar que sim, existem agressões mais graves e que devem ser punidas como tal. Não queremos que os agressores sejam torturados em prisões horrorosas, muito menos que percam sua dignidade como seres humanos, nem que sejam condenados de forma arbitrária. Queremos, sim, que exista o devido processo legal, que eles possam se defender, que tenham sua dignidade respeitada. Somente não podemos aceitar que a violação de direitos humanos seja tratada como algo de menor potencial ofensivo.

A doutrina jurídica brasileira, por mais que tenha sofrido transformações com o reconhecimento pelo texto constitucional da igualdade entre homens e mulheres; com o Código Civil de 2002, que, aparentemente, retirou qualquer resquício de discriminação, e com a legislação penal, ainda não reconhece a dignidade da mulher. Vemos que a aplicação da Lei Maria da Penha se dá de modo diferente do que textualmente preconiza; os mecanismos de mediação continuam sendo aplicados até em varas de violência doméstica e familiar. Há pouco tempo, um homem incendiou uma mulher; acusado de tentativa de homicídio, foi, no entanto, desclassificado para lesão corporal de natureza grave. Tendo em vista ser considerado um bom homem, honesto, trabalhador, propôs-se, então, a aplicação da transação penal. Ou seja, é suspenso o cumprimento da pena porque esse bom homem, num momento de infelicidade e de perda de controle, jogou um litro de álcool em sua mulher e riscou um fósforo. Se em determinado período de tempo, ele não mais incendiar a sua ou nenhuma outra mulher, então essa transação penal será ratificada, e esse homem não cumprirá nenhuma pena. Quer dizer, matar ou incendiar uma mulher está muito barato nos dias de hoje; de repente é melhor fazer isso do que pagar um advogado, que sai muito mais caro.

Estamos chegando ao absurdo de reviver não apenas os mecanismos de mediação e conciliação, mas também a chamada legítima

defesa da honra, que na década de 1990 foi rejeitada pelo Superior Tribunal de Justiça. Estamos diante de um momento em que todos os instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos compostos por leis, jurisprudência e doutrina são relegados, esquecidos por uma ideologia familista, que coloca essa ideia da família perfeita na qual a mulher tem a obrigação de manter a paz em casa, uma obrigação que não seria, assim, do homem também. Paz, nessa perspectiva, significa a mulher abrir mão dos seus direitos. O cenário atual é de retrocesso na aplicação da Lei Maria da Penha e de renúncia, por parte do Brasil, aos compromissos internacionais assumidos.

É importante que os estudantes de Direito, os operadores do Direito se deem conta desse procedimento, a fim de poderem atuar no sentido de impedir que tais práticas e interpretações calcadas na ideologia familista − que não está presente apenas na área da violência contra mulher − mantenham-se mais fortes que as normas de direitos humanos. Esse fato precisa estar muito claro, e temos de entender e utilizar esses mecanismos internacionais de direitos. Assim deve ser, a fim de que, além de exigir que as propostas de retrocesso e banalização dos direitos contra as mulheres sejam efetivamente rejeitadas, seja possível seguirmos na construção de um Direito inspirado nas convenções e instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos.

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Justiça Restaurativa e práticas de

resolução de conflitos

mesa 2

entre teoria e práticas

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Diferentes sentidos e modelos de Justiça RestaurativaJuliane Tonche

Quero iniciar agradecendo a oportunidade de estar aqui hoje, debatendo um tema tão importante, delicado e bastante atual. Agradeço à professora Fabiana Severi e à Wânia Pazzinato, que não pôde estar conosco hoje, mas que pensou com muito carinho neste evento e ajudou a organiza-lo. Deixo um agradecimento especial à Laysi Zacarias, que entrou em contato comigo esse tempo todo, sendo sempre muito prestativa. Obrigada!

Desejo me referir brevemente ao meu lugar de fala. Estudo Justiça Restaurativa há bastante tempo, há muitos anos, mas a perspectiva da minha pesquisa é sociológica. Não tenho formação em Direito, mas sim em ciências sociais; sou socióloga. Não acredito naquele modelo tradicional, de apresentação e aula, em que permanecemos aqui, numa posição ativa, e passamos um conteúdo a ser recebido por vocês passivamente. O que estamos fazendo aqui, hoje, eu creio ser muito mais um momento e uma oportunidade de construção de um saber conjunto. Espero, assim, a partir da minha perspectiva de socióloga, junto com vocês, pensar e refletir bastante sobre como o modelo de Justiça Restaurativa é viável ou não para atender casos específicos envolvendo violência doméstica ou violência de gênero.

A minha ideia para esta apresentação é começar com uma discussão sobre o modelo da Justiça Restaurativa em si. Proponho recuperar alguns aspectos principais do seu significado para, depois, refletirmos conjuntamente sobre suas potencialidades e também sobre os desafios e perigos que envolvem sua aplicação, não só para casos de violência de gênero, mas para outros também.

Como sabemos, no Brasil a Justiça Restaurativa também tem sido utilizada para atender atos infracionais e conflitos que acontecem no ambiente escolar. Especificamente, a minha pesquisa de doutorado, por exemplo, foi em cima de uma iniciativa que atendia conflitos em escolas que envolviam crianças, adolescentes e seus familiares. Pontuo um aspecto que tenho considerado muito interessante, porque podemos ver a revolução e a dinâmica desse campo: há alguns anos, ao falar com as pessoas sobre Justiça Restaurativa, era muito comum que grande parte delas nunca tivesse ouvido falar a respeito; hoje o

quadro mudou completamente. Atualmente, a grande maioria das pessoas, se não conhece profundamente, pelo menos já ouviu falar e tem ideia, ainda que superficialmente, sobre o que é Justiça Restaurativa. Houve, então, essa mudança.

Destaco, ainda, que a Justiça Restaurativa não é uma pauta tão recente. Na minha pesquisa, eu a interpretei também como um modelo importado, um saber especializado que veio do exterior para o Brasil, altamente incentivado e apoiado por pessoas que ocupavam cargos importantes no Poder Executivo. Nessa perspectiva, a Secretaria de Reforma do Judiciário teve uma participação muito importante para a sua instauração, e a grande maioria das iniciativas ou dos programas de Justiça Restaurativa são ainda idealizados por juízes. Para o bem e para o mal, porque é uma configuração que traz pontos positivos e negativos nesse quadro.

Os projetos-piloto de Justiça Restaurativa começaram em 2005. Eram três, mas de 2005 para cá já se passaram doze anos, e muita coisa aconteceu. O Judiciário está se apropriando não somente da Justiça Restaurativa, mas, de um modo geral, de todas as formas consensuais de administração de conflitos; apropria-se dessas formas e as incentiva cada vez mais. Depois da Resolução 225 do CNJ, tais práticas ou modelos alternativos se tornaram política pública. É possível usar essa palavra hoje, pois o CNJ a utiliza. Começamos a ver os impactos dessa mudança. Há pesquisas nos campos do Direito, da Sociologia, da Antropologia; temos pesquisas bastante pontuais sobre programas de Justiça Restaurativa, mediação e conciliação. Falta, talvez, um panorama mais geral do que significam essas formas consensuais de administração de conflitos.

É preciso lembrar que, no incentivo dado pelo Judiciário, há o contexto de um período de redemocratização, o que, de alguma forma, está mudando a cara do nosso sistema de Justiça, as portas de acesso à justiça por populações também específicas – tentarei abordar esse ponto um pouco mais para a frente. Considero que começamos a ver os resultados, mas, talvez, ainda não tenhamos uma dimensão da grandiosidade do que está acontecendo.

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Proponho, então, tentarmos definir o que é a Justiça Restaurativa. Essa é uma tarefa dificílima, porque o campo dessas práticas ou desses modelos alternativos de gestão de conflitos não é um campo homogêneo; é um campo atravessado por disputas. É possível verificar grupos de pessoas em disputa pelo sentido do que significa Justiça Restaurativa, do significado de mediação, e não existe um consenso a respeito das suas definições. Costumo dizer que não dispomos de uma definição única para Justiça Restaurativa, e acredito que nunca se alcançará uma definição única, porque são justamente esses debates e discussões que movimentam o campo das formas alternativas de administração de conflitos. No entanto, eu trouxe alguns exemplos para vocês de tentativas de definição do que é Justiça Restaurativa, por diferentes personagens nesse campo. Tentarei pontuar, também, quais os problemas com esses tipos de definição.

O primeiro tipo que apresento para vocês é um exemplo de definição de Justiça Restaurativa por oposição. Para essa noção, busquei como exemplo Howard Zehr, talvez o mais famoso e conhecido autor no tema. Ele é da Nova Zelândia, um dos países pioneiros na aplicação da Justiça Restaurativa. Zehr, no início de sua carreira na Justiça Restaurativa, costumava defini-la a partir de uma oposição, denominando-a como um modelo restaurativo. Na verdade, ele usa a expressão “lentes restaurativas”, uma forma de encarar o conflito e o crime em oposição a um modelo – ou uma lente – que ele chama de “retributiva”, que nada mais é do que o nosso sistema de justiça comum. Segundo Zehr, se, a partir do modelo retributivo, o crime é definido como violação de regras, de acordo com a lente restaurativa, o crime é definido como dano causado a pessoas e relacionamentos. Outro exemplo é a afirmação de que, de acordo com o modelo retributivo, o Estado figura como vítima. Para o modelo restaurativo, as pessoas e os relacionamentos seriam as vítimas. Um outro item importante é quando sustenta que, conforme a lente retributiva, o crime é visto categoricamente de forma diferente de outros danos. Pela lente restaurativa, o crime é reconhecido como relativo a outros danos e conflitos. A partir dessa perspectiva, Zehr estabelece uma série de outras diferenças. Entendam, porém, que se trata de uma conceituação formulada a partir de uma oposição.

Howard Zehr “apanhou” bastante quando passou a definir Justiça Restaurativa e a conceituá-la dessa forma. As pessoas argumentaram que ele estava sendo

reducionista, que o modelo retributivo não se resume a isso, que o modelo restaurativo é mais complexo do que essa noção. A partir de então, ele mudou as suas formas de conceituar Justiça Restaurativa. Passou, assim, a defini-la por negação. Começou pela definição do que ela não é, a fim de evitar mal-entendidos. Ele afirma que a Justiça Restaurativa não tem como objetivo principal o perdão ou a reconciliação, como muitas pessoas acreditavam. A Justiça Restaurativa não é mediação – e isso é importante também. Para Zehr, ela não tem por objetivo principal reduzir a reincidência ou as ofensas em série, e não foi concebida para ser aplicada comparativamente a ofensas menores ou ofensores primários, de acordo com suas palavras. Destaco que falamos a respeito desse aspecto na primeira mesa. Ainda segundo Zehr, Justiça Restaurativa não é algo novo e nem se originou nos Estados Unidos.

Apresento, agora, os principais pontos que eu gostaria de ressaltar, e já vou explicar o porquê. Howard Zehr sustenta que a Justiça Restaurativa não é uma panaceia e nem necessariamente um substituto para o processo penal; não é necessariamente uma alternativa ao aprisionamento e não se contrapõe necessariamente à Justiça Retributiva. Considero esse ponto bastante grave, porque conseguimos perceber o movimento na história desse pesquisador, que foi o seguinte: creio que, na tentativa de salvar a Justiça Restaurativa das críticas que vinha recebendo, ele amenizou cada vez mais o potencial crítico que ela possuía em relação ao nosso sistema de justiça comum, a ponto de chegar a dizer que a Justiça Restaurativa não necessariamente é uma alternativa ao aprisionamento ou que não se contrapõe à justiça retributiva. Destaco o ponto só para mostrar para vocês o quanto esse autor mudou de perspectiva, o que é muito relevante e rico a partir de uma perspectiva sociológica.

Outro problema que identifico nesse tipo de conceituação é que ela continua a se apoiar no que Zehr chama de “justiça retributiva”. Ou seja, ao assim proceder, ele segue reforçando a centralidade desse sistema, relegando a Justiça Restaurativa a uma posição ainda marginal e periférica em relação ao nosso sistema de justiça comum. Quero dizer que, enquanto não conseguirmos pensar na Justiça Restaurativa fora dos moldes do sistema de justiça comum e, principalmente, do nosso sistema de justiça criminal, será muito difícil para a Justiça Restaurativa conseguir de fato se emancipar e se empoderar, de modo a sair de sua atual posição de marginalidade.

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Um outro exemplo que encontrei na minha pesquisa é a definição por diluição. Uma entrevistada, por exemplo, me disse, sobre Justiça Restaurativa, que, às vezes, não é preciso nomear e afirmar “ah, o que eu estou fazendo é Justiça Restaurativa”. Segundo ela, é possível simplesmente propor uma atividade, fazer uma intervenção, e depois dizer “como foi bom, como foi gostoso”. Isso, então, seria Justiça Restaurativa. Não sei se vocês percebem, mas ela conceitua Justiça Restaurativa de uma forma tão subjetiva e abstrata que de fato não se consegue nem sequer apreender do que se trata. E qual é o problema disso? Essa forma se torna um conceito, enfim, uma ideia tão esvaziada de conteúdo, tão diluída, que torna difícil o trabalho dos avaliadores ou dos pesquisadores no sentido de apontarem em que lugares, por exemplo, continuam a existir programas de Justiça Restaurativa ou não.

Uma segunda entrevistada me disse: “Olha, em alguns lugares, não tem mais realmente a prática do círculo restaurativo, mas vai lá ver se a mentalidade daquelas pessoas não mudou. Então, como a mentalidade das pessoas mudou, eu vou continuar dizendo que lá tem Justiça Restaurativa”. Nessa perspectiva, quando se conceitua Justiça Restaurativa como uma “mudança de mentalidade”, é difícil para um pesquisador, um avaliador da política pública dizer onde ela ocorre ou não. Porque se é uma mudança de mentalidade, como é possível quantifica-la? Como apreende-la nos moldes de uma pesquisa científica? Fica muito difícil.

Para finalizar, temos, agora, um novo conceito, uma nova definição, proposta pelo Conselho Nacional de Justiça. Esse também é um ponto importante que ressalto aqui. De fato, com a apreensão pelo Judiciário dessas formas consensuais de gestão de conflitos, e o modo como eles incentivam e situam a questão nos moldes de uma política pública, o CNJ, atualmente, surge como personagem, nesse campo, que também cria tensões, dinamiza e muda o nosso conceito de Justiça Restaurativa. Quando, por exemplo, consideramos a Resolução 225, vemos que existe uma prática restaurativa: define-se o que seria uma prática restaurativa, que é diferente de um procedimento restaurativo, de um caso restaurativo e de uma seção restaurativa. É um outro ponto que quero apresentar para vocês, o quanto o próprio Conselho Nacional de Justiça, hoje, também é uma peça importante nesse “quebra-cabeça”, sempre alterando e movimentando a questão em torno da conceituação e definição de Justiça Restaurativa.

A multiplicidade de definições tem, claro, um lado bom e um ruim. O lado bom em diversos conceitos e definições é que se amplia muito o campo de possibilidades de aplicação da Justiça Restaurativa, o que ser considerada uma coisa boa. Por outro lado, o aspecto ruim é que se esvazia o conteúdo, e, assim, tudo ou quase tudo pode ser considerado Justiça Restaurativa. E se quase tudo é Justiça Restaurativa, nada também é; fica tudo em suspenso. Esse é o outro lado da moeda.

O próprio movimento do Judiciário no sentido de “pegar para si” as formas alternativas de resolução de conflitos também apresenta dois lados. Não sei se teremos tempo, mas a ideia era desenvolver essa questão um pouco mais para a frente. Novamente, o lado positivo é que, uma vez que o Judiciário assumiu o tema como uma pauta a ser encampada, as possibilidades de aplicação aumentam bastante, tanto que, atualmente, muito mais pessoas conhecem e sabem o que é a Justiça Restaurativa. Por outro lado, ela perde a sua força crítica enquanto um modelo que poderia ter sido inicialmente destinado a substituir o nosso sistema de justiça comum ou criminal, principalmente da forma como o concebemos hoje. Assim sendo, ela se enfraquece. Passa a ter maior campo de aplicação, mas também perde a força, por outro lado.

A despeito do fato de haver todas essas disputas em torno do que significa Justiça Restaurativa e de não existir um consenso, para estabelecermos um diálogo, é importante destacar alguns pontos em comum, a fim de avaliar e debater o que a Justiça Restaurativa nos traz de potencialidades e, também, de desafios. Por isso, destaco, para vocês, alguns pontos em comum entre as diferentes definições de Justiça Restaurativa.

Antes, quero apenas abrir um parêntese para abordar o termo “resolução alternativa de conflitos”. Encontrado facilmente na bibliografia, é um termo originário de alternative dispute resolution, as ADRs, que surgiram com muita força nos Estados Unidos na década de 1990. Ele decorreu dessa expressão em inglês, pois a tradução literal foi “formas alternativas de resolução de conflitos”. Assim como vários pesquisadores, tenho uma crítica a essa ideia de “resolução de conflitos”. O primeiro ponto é que se outorga ao mediador ou ao facilitador – a pessoa responsável por facilitar a prática restaurativa – uma autoridade muito grande quando se diz que ela é capaz de resolver o problema dos outros. Outro ponto é que nem todos os conflitos serão resolvidos. Alguns

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deles permanecem; pode-se alterar relações, mas o conflito continua a existir. Ocorrem situações nas quais as partes nem querem que o conflito seja resolvido, porque, às vezes, o que está em jogo é o reconhecimento de uma demanda, é o reconhecimento de que aconteceu uma violência. Há, assim, muitas outras coisas em jogo, que vão para além da noção bastante simplificada de “solução de conflitos”.

O professor Luís Roberto Cardoso de Oliveira, da Universidade de Brasília, também falou a respeito. A tendência entre os pesquisadores é de substituirmos o termo por “formas consensuais”, “formas alternativas” ou “formas autocompositivas de administração ou gestão de conflitos”. Claro que a noção de administração e gestão também é passível de críticas, pois transmite uma ideia de impessoalidade, traz uma noção das ciências exatas para a questão. Ainda assim, apesar das críticas, creio que é uma opção mais viável, talvez, para substituir o termo “solução e resolução de conflitos”.

Em poucas palavras, o que dizemos quando nos referimos à Justiça Restaurativa? O próprio termo já nos ajuda a desvendar esse mistério. Para essa forma de resolução de conflitos, é mais importante restaurar as relações abaladas do que punir o “ofensor” – entre aspas, vale ressaltar.

Após pontuar diversas características da Justiça Restaurativa, talvez sejamos capazes de elaborar uma crítica e transcender a noção de Justiça Restaurativa, cujo foco seria restaurar, e não punir. Por que eu acho – mas sou eu falando –, que a Justiça Restaurativa é mais do que isso. Tentarei, mais adiante, junto com vocês, seguir esse raciocínio.

A Justiça Restaurativa engloba diferentes práticas, cabe destacar também. Temos a mediação vítima e infrator; os círculos restaurativos, bastante difundidos no Brasil, especialmente, para resolver conflitos nas escolas; os círculos de sentença, procedimento frequentemente utilizado na Nova Zelândia, na área da infância e juventude, por exemplo. Como fator comum entre essas práticas, destaca-se a horizontalidade. Se nos ritos do nosso sistema de Justiça são comuns as hierarquias, símbolos formais, uma linguagem muito hermética do Direito, na Justiça Restaurativa a ideia é que as pessoas tenham a possibilidade de falar em um mesmo patamar, em situação de igualdade, de modo a conseguirem romper um pouco com a hierarquias. Passamos, então, de um modelo tripartido, próprio do

nosso modelo de Justiça comum − imaginem um triângulo mesmo−, para um modelo de círculo. Mesmo que o procedimento da Justiça Restaurativa não ocorra de acordo com esse formato, o molde é circular, no sentido de se romperem a hierarquias, as posições de poder. O facilitador – o termo mais utilizado, no lugar de “mediador” − não está em posição de propor um fechamento para o conflito; ele está ali para ajudar as partes a chegarem a um consenso a respeito de como elas podem lidar com o problema. Vejam que o papel do facilitador é um bastante sofisticado; parece muito simples, mas não é. É preciso ouvir as partes e frear todas as tendências de julgamento, as tentativas de direcionar o fechamento do conflito para um lado ou para o outro; nem isso o facilitador pode fazer. Nessa perspectiva, ressalto a importância da capacitação das pessoas que realizarão essas práticas.

Para a Justiça Restaurativa, o contexto e as emoções importam. No sistema de justiça comum, não há espaço para as pessoas falarem sobre suas emoções ou sobre outros conflitos. As pessoas se dirigem ao Judiciário ou a formas alternativas para tratar de um conflito, mas é muito comum que outros elementos sejam trazidos para o ritual. De acordo com a Justiça Restaurativa, em tese, esse seria o momento em que as partes podem trazer as questões à tona. Ao contrário também do nosso sistema de justiça comum, que se preocupa com o passado, com o que aconteceu, a Justiça Restaurativa se volta para o presente e, principalmente, para o futuro, na medida em que pretende justamente restaurar as relações entre as pessoas que foram, direta ou indiretamente, afetadas pelo conflito. Por isso a Justiça Restaurativa, por exemplo, tem sido altamente indicada para casos que envolvem relações continuadas: conflitos interpessoais, problemas em família, na comunidade, na vizinhança, no trabalho; entre pessoas com quem, para além daquele conflito, continuarão a ter algum tipo de relação. Em tese, a Justiça Restaurativa seria boa nesse sentido. Também há o incentivo ao diálogo: as partes têm espaço para falar sobre o que aconteceu, expondo suas versões, seus sentimentos.

A Justiça Restaurativa sai, ainda, do âmbito dos binarismos. Estamos muito acostumados a pensar e trabalhar em cima de dualidades: o bem e o mal; a vítima e o ofensor. A Justiça Restaurativa entende que o contexto em que o conflito se deu é muito mais complexo do que a forma binária de contraponto conseguiria alcançar. Às vezes, é muito comum, por exemplo, que a vítima, em determinadas situações, também seja agressora; ou que o

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agressor, muito comumente, reporte situações em que ele também se sente vitimizado. Nesse sentido, a Justiça Restaurativa entende que, no dia-a-dia das relações, as situações são mais complexas do que os dualismos ou binarismos.

Um ponto polêmico, já abordado na primeira mesa, é que a Justiça Restaurativa tenta escapar da nossa ideia de culpabilização, de atribuição de culpa. Ela tenta transcender esse aspecto e trabalhar em um registro de responsabilização, no lugar da culpabilização. Entendo completamente porque isso causa estranhamento, incômodo. Principalmente quando tratamos de casos de violência de gênero, é muito difícil assumir a ideia de corresponsabilização. É muito complicado de fato, e não creio ser capaz de resolver esse ponto.

Percebo um pouco o meu papel aqui como justamente o de provocar essas tensões. Eu, enquanto socióloga, consigo perceber, na concepção de Justiça Restaurativa, um conceito bastante sociológico, no sentido de que não se trata de dizer se a vítima teve culpa ou responsabilidade, mas sim de uma perspectiva de compreender que a própria construção do indivíduo se dá sempre em relação a um outro, e o mesmo acontece com o conflito. A Justiça Restaurativa está abordando o problema num patamar diferente. Então, de novo, eu reforço: à primeira vista, parece bastante simples; mas, a meu ver, os fundamentos teóricos e filosóficos que embasam o modelo da Justiça Restaurativa são bastante sofisticados. Depois, podemos voltar ao tema, abrir a questão para o debate. Era isso, contudo, o que eu queria pontuar.

Ressalto novamente o protagonismo das partes. Se a vítima, no nosso sistema de justiça comum, é vista de forma passiva, na condição de parte que poderia fornecer as provas para atribuição de culpa e penalização, na Justiça Restaurativa ela volta a ter um protagonismo.

É importante destacar, também, que a Justiça Restaurativa tem uma origem autóctone. Nos países pioneiros em sua implantação − Nova Zelândia e Canadá −, a questão das populações autóctones é muito forte. Nesse contexto, a Justiça Restaurativa pode ser entendida, também – não completamente, porque é mais do que isso –, como uma tentativa de recuperar formas com as quais populações originárias lidavam nas tomadas de decisões, ou modos de resolver seus conflitos. De uma certa maneira, essa abordagem faz algum sentido, especialmente quando se percebe, no contexto da Nova Zelândia e do Canadá, que as populações autóctones, na contagem nacional

desses países, estão sempre sub-representadas. Quando temos uma população em situação de prisão ou que está passando pelo sistema de justiça criminal, então são sempre sobre-representados. Nos dois países referidos, houve forte incentivo à Justiça Restaurativa justamente para se tentar reverter esse quadro e evitar que as populações de origem autóctone seguissem indo para as prisões, conseguindo, talvez, lidar com os conflitos, os crimes, de uma outra forma.

É importante também enfatizar como a situação é diferente no Brasil; essa forma de lidar com os conflitos não ressoou aqui. Não temos estudos, inclusive, investigando se, nas nossas poucas comunidades indígenas que sobraram, de alguma forma, há algo parecido com a Justiça Restaurativa; não sabemos.

Para finalizar, quero falar da Justiça Restaurativa enquanto forma alternativa de administração de conflitos e como alternativa penal. Gosto bastante de uma teoria do professor Álvaro Pires, criminólogo canadense, que estuda sobre como a ideia do Direito sobre punição vira uma obrigação de punir, de acordo com nosso sistema de justiça criminal. Esta é a noção que forma a identidade do nosso sistema penal: o direito de punir entendido como uma obrigação de punir, envolvendo necessariamente a aplicação de um sofrimento ao culpável. Pires trata da questão utilizando o termo “teoria da Racionalidade Penal Moderna”. Ele compartilha desta posição comigo: a Justiça Restaurativa hoje, se não for a única, ao menos é uma das únicas alternativas a esse conjunto de ideias que embasa nosso sistema de justiça criminal, porque ela concebe outras formas de resposta ao conflito, outras maneiras de resposta ao crime, que escapam da noção cristalizada da obrigação de punir e de uma punição que obrigatoriamente precisa infligir um sofrimento ao culpável. De forma diferente, a Justiça Restaurativa afirma que é importante reparar, é importante ouvir a vítima ou, então – porque não? –, com a concordância da vítima, é possível encerrar um processo com um pedido de desculpas, se for suficiente para ela. Esse é o tipo de “provocação” que a Justiça Restaurativa nos traz. Com isso, fecho o tema das potencialidades da Justiça Restaurativa.

Agora, tentarei entrar na parte mais complicada: as fragilidades da Justiça Restaurativa e os perigos de sua má aplicação. Quando dou cursos sobre o tema para alunos de Direito, após passar todo o conteúdo, gosto muito de fazer o seguinte exercício: sempre peço para que eles me apontem os pontos positivos e negativos do nosso sistema de justiça

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comum, e os pontos positivos e negativos da Justiça Restaurativa. O interessante de realizar essa atividade com os alunos é que os pontos negativos da Justiça Restaurativa nunca dizem respeito ao que a teoria a respeito da temática propõe. São sempre aspectos negativos relacionados à má aplicação ou à indevida utilização da ideia de Justiça Restaurativa. Essa foi uma descoberta interessante dentro da minha experiência no tema.

Quanto aos perigos e fragilidades, a Justiça Restaurativa ainda enfrenta muita resistência, inclusive da parte de profissionais do Direito que desconhecem ou suspeitam de sua potencialidade. Assim, precisamos dar créditos, por exemplo, para os magistrados que aplicam a Justiça Restaurativa. Eu entrevistei um juiz que me contou que escuta piadinha, que o chamam de “juiz restaurador de dente”, “um juiz que vai abraçar árvore”. De fato, até entre os profissionais do Direito, há chacotas, piadinhas que, no fundo, tentam desqualificar a Justiça Restaurativa, afirmando não se tratar de um conhecimento válido para o Direito. Se lembrarmos ainda que a maioria dos juízes envolvidos com a Justiça Restaurativa no Brasil são oriundos de Varas da Infância e da Juventude, então eles são duplamente marginalizados, por estarem em uma vara pouco prestigiosa, uma área da Justiça pouco prestigiada em relação às outras. Afirmações como “Você já passa a mão na cabeça de adolescente e agora você vem falar de Justiça Restaurativa? Não, não dá; não tem como te levar a sério” acontecem de fato.

Existe, também, um desconhecimento da população de uma maneira geral sobre o que é Justiça Restaurativa. O Judiciário, em grande parte, tem sua parcela de culpa, porque, quando coloca a Justiça Restaurativa para ser aplicada no âmbito desse Poder − nos espaços do fórum, por exemplo −, as pessoas ficam confusas mesmo. Elas não sabem mais o que é Justiça Restaurativa. Podem pensar: “eu estou em um modelo alternativo, mas é no fórum”; “é uma pessoa que vai julgar meu caso, mas não tem formação no Direito”. Realmente, vira uma “salada mista”, e ninguém entende mais nada. Esse fator contribui para que haja um descrédito inclusive da população que passa pelos programas de Justiça Restaurativa.

Outro ponto importante é o perigo da colonização ou da mimetização do informal pelo formal. O que isso significa? Há uma tendência – não só entre os operadores do Direito, como observei na minha pesquisa, mas até de facilitadores que não tinham formação no Direito − de levar para um ritual de Justiça

Restaurativa aspectos comuns, por exemplo, nas varas de infância e juventude. Ou seja, propõe-se um modo alternativo, tentando fugir das violências que o modelo original apresenta, mas se acaba abrindo portas para outras violências entrarem no lugar. É um perigo bastante considerável; precisamos tomar muito cuidado para não cair nessa armadilha.

A questão do financiamento, creio, pode mudar agora, por conta de haver, de fato, um incentivo a essa ideia como política pública. No entanto, quando fiz minha pesquisa, era muito comum o seguinte, por exemplo: ao se iniciar uma iniciativa de Justiça Restaurativa em determinada cidade, há captação de recursos, capacitação das pessoas para participarem do programa de Justiça Restaurativa, e depois acaba. O financiamento é sempre inicial; posteriormente, o programa tem de andar com as próprias pernas. Nós nos perguntamos, então, que tipo de reforma o Judiciário pretende implantar quando coloca essa condição de custo zero. Ao que me parece, é exatamente isso, uma reforma com base no voluntarismo das pessoas, porque grande parte dos facilitadores, até então, encaravam aquilo como uma missão de vida, e o faziam porque se sentiam bem. Às vezes, tinham que pagar para fazer um círculo restaurativo, sem receber nenhuma ajuda de custo, nem para o transporte. Trata-se também de uma questão de importante reflexão, porque temos profissionais do Direito em posições bastante confortáveis, enquanto vemos mediadores e facilitadores muitas vezes realizando um serviço tão complexo quanto, mas trabalhando nessas condições.

Muitas pessoas se referem também ao perigo do aumento do controle. Laura Nader, por exemplo, antropóloga que estudou as ADRs nos EUA na década de 1990, afirma o quanto essas alternativas podem, na verdade, aumentar um controle social, colaborando, inclusive, para a expansão do Estado penal, na medida em que passa a capturar conflitos que, antes, eram resolvidos em outros espaços, em outras instâncias; esses conflitos são, desse modo, oficializados, institucionalizados. Ela critica também a ideia de pacificação social. Quando lemos a resolução do CNJ e as reportagens a respeito, podemos ver muito claramente essa questão, que, para vários pesquisadores, é perigosa, pois nela está implícito que o conflito é algo negativo, que se precisa acabar com ele porque o ideal é alcançar uma situação de paz, de pacificação. A ideia de pacificação social também traz embutida a noção de que, na verdade, talvez se pretenda aumentar o controle sobre determinadas populações, públicos, conflitos. A

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Justiça Restaurativa, diversamente, acredita que os conflitos são naturais aos relacionamentos humanos, sendo, muitas vezes, inclusive, uma oportunidade positiva ou criativa para que a situação e o status quo mudem.

No tocante à questão dos dados, creio que, a difusão da Justiça Restaurativa acarretará uma cobrança de dados, e isso é muito importante, mas pode ser perigoso. Há anos eu já consegui visualizar esse desafio. Quer dizer, na ânsia de defender a Justiça Restaurativa e de querer provar que é uma boa iniciativa, são publicados dados e mais dados dizendo se tratar de um sucesso, que 99% dos círculos resultam em acordos e, desses, 98% seriam cumpridos; mas não se sabe de que forma tais informações foram produzidas; os pesquisadores não tinham acesso ao método de produção de dados. O campo da Justiça Restaurativa foi se fechando cada vez mais para a pesquisa, tanto que, no final do meu doutorado, eu já não conseguia mais assistir a círculos restaurativos; as pessoas não me avisavam, eu não era mais bem-vinda. Assim ocorreu também porque eu comecei a fazer muitas perguntas e, com isso, posso ter começado a incomodar.

Já me encaminhando para as provocações finais, também me chamaram muito a atenção, quando li a Resolução novamente para preparar esta apresentação, as notícias do site do CNJ. Fica muito claro – está escrito, inclusive – que a Justiça Restaurativa não visa substituir a prestação jurisdicional, o processo. Então nos perguntamos: se ela não é pensada para isso, por que a Justiça Restaurativa recebe tanto incentivo? Se não é mais entendida como uma alternativa ao processo, ela existiria para aumentar qualitativamente o acesso à Justiça? Não sei. Parece-me que o discurso oficial enfatiza a ideia de que, cada vez mais, o aumento dos canais de acesso à Justiça precisa se dar de forma qualitativa. Significa fizer que, no discurso oficial, ao se proporem diferentes formas de administração de conflitos, com base no tipo de conflito, decidiremos, de acordo com as qualidades e os problemas, se é melhor ou pior aplicar a mediação, a conciliação, a Justiça Restaurativa. Esse é o discurso oficial. Não sei se é o que acontece de fato, porque, às vezes, suspeito que, mais do que voltada para um tipo de conflito, a iniciativa é dirigida para um tipo de público. Precisamos, então, questionar se essas diferentes formas consensuais e alternativas de gestão de conflitos não são apresentadas ou viabilizadas igualmente para todas as pessoas; elas existem e são direcionadas para grupos específicos? Esse pode ser um problema, na minha opinião.

Perguntaram, da plateia, se a Justiça Restaurativa é direcionada a públicos específicos. Creio que sim, a grosso modo. Como vimos, os projetos pilotos de Justiça Restaurativa, por exemplo, foram pensados para atos infracionais, com o objetivo muito claro de evitar que esses conflitos chegassem ao Judiciário, com base na imagem de um Poder afogando-se em processos. Está, nessa percepção, embutida a ideia de serem conflitos pouco importantes, pouco prestigiosos para a prestação do serviço jurisdicional; então eles são excluídos. Na execução criminal, hoje, surgem iniciativas de Justiça Restaurativa para pessoas em cumprimento de pena. Dentro do ambiente prisional, já existem iniciativas de Justiça Restaurativa. Quando as pessoas falam a respeito, eu sempre acabo numa situação na qual penso que, por um lado, tudo o que venha a melhorar esse contexto é válido. Nesse caso, porém, não será mais Justiça Restaurativa, enquanto uma alternativa penal, certo? Porque a aplicação se dará para uma pessoa já processada, que está cumprindo uma pena. Temos de pensar qual a interpretação de Justiça dada à questão. No início, o público eram crianças e adolescentes, também no âmbito da execução penal. Existe, agora, um incentivo na Justiça Restaurativa para atender casos de violência doméstica, casos que envolvam violência de gênero. Torna-se claro que são públicos específicos, muito mais até do que tipos de conflitos.

Finalizando, trago uma reflexão sobre a Justiça Restaurativa enquanto alternativa. Na verdade, é esse o recado que eu gostaria de passar, porque acho importante ter cuidado para não se perder, em meio às críticas, o potencial inovador que a Justiça Restaurativa possui. Isso depende muito das próprias pessoas que estão no campo da Justiça Restaurativa, porque – e parece até um contrassenso – é um campo muito fechado para as críticas e, mais ainda, para a autocrítica. Acredito que sem o debate, sem a discussão, sem o exercício da crítica e, principalmente, da autocrítica seja difícil avançar. As pessoas realmente empenhadas no fomento da Justiça Restaurativa são muito pouco abertas à crítica, o que só prejudica um modelo que, inicialmente, tinha realmente muito potencial inovador e transformador.

Desse modo, finalizo com essa preocupação. Entendo haver uma ressalva em torno da aplicação da Justiça Restaurativa, por exemplo, para casos que envolvam violência de gênero. Compreendo completamente as preocupações e as críticas, mas, talvez, seja necessária cautela para não deixarmos que

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a crítica reforce um discurso refratário às mudanças no nosso sistema de justiça comum, principalmente, no nosso sistema de justiça criminal. Corremos o risco de dar munição às pessoas que consideram não haver solução, que é uma questão de prisão mesmo, que não há Justiça Restaurativa, nem mediação ou conciliação. Acho que nenhum de nós compartilha dessas ideias, pois, de alguma forma, estamos todos buscando mudanças, respostas para muitas perguntas, as quais ainda não encontramos. Talvez a Justiça Restaurativa possa ser um caminho; não sei se o melhor, mas um caminho.

É assim que gostaria de terminar a minha reflexão, com essa preocupação, que também era minha enquanto pesquisadora. A partir de uma perspectiva sociológica, vi muitos problemas, tanto na parte teórica da Justiça

Restaurativa, como tentei trazer para vocês, quanto na parte prática. Durante a pesquisa de campo, observei diversas dificuldades na aplicação da Justiça Restaurativa, especialmente no ambiente escolar. Muitas vezes, nos círculos restaurativos, via como as facilitadoras reforçavam hierarquias já existentes na escola, em vez de abrirem espaço, por exemplo, para o empoderamento da criança ou do adolescente, a fim de estes pudessem relatar questões que, em outras oportunidades, eles não conseguiriam expressar. Eu presenciei muitos problemas e ficava dividida entre descrever o que via – é preciso fazer a crítica – e o desejo de justamente não reforçar o discurso de oposição, que é refratário à Justiça Restaurativa. Na verdade, nós nos encontramos numa posição muito delicada; é uma “corda bamba” mesmo. Acho, porém, desafiador; é isso o que nos move de fato.

Representações sobre Justiça Restaurativa junto a mulheres em situação de violência doméstica

Laina Crisóstomo

Não vou mentir para você, minha irmã, sobre meu “ranço” forte quanto à Justiça Restaurativa. Meu nome é Laina Crisóstomo. Sou advogada feminista, faço parte do Coletivo TamoJuntas. Nós o criamos numa perspectiva de advocacia feminista; hoje, passamos a ser um grupo multidisciplinar de assessoria para mulheres em situação de violência. Atualmente, temos uma equipe multidisciplinar e estamos em dezoito estados do Brasil, realizando esse tipo de assessoria.

É obvio que a primeira expectativa da mulher, quando ela chega até nós, é de uma assessoria jurídica, porque as mulheres chegam com a urgência de uma medida protetiva, de um pedido de divórcio, de pensão alimentícia; enfim, necessitam seguir com a vida e romper com a violência. Para além disso, entendemos que essa mulher é um ser extremamente vulnerável; se ela não for fortalecida, se não retomar laços, não reestabelecer a vida no pós-violência, ela poderá cair em um novo relacionamento abusivo; ela volta para aquele ciclo porque está carente, vulnerável. Hoje, em Salvador especificamente, temos uma equipe multidisciplinar e, em algumas partes do Brasil, estamos começando a consolidar essa iniciativa.

Também estamos em Sergipe, no Rio de Janeiro; ainda estamos montando uma estrutura, mas, em todos os estados em que estamos presentes, temos ao menos uma advogada para prestar o atendimento. São Paulo é uma coisa estranha, porque não estamos conseguindo nos fortalecer na capital, e sim nos interiores; não é comum ter pessoal disponível nos interiores e não na capital. A ideia, porém, é mais ou menos essa.

Atualmente, o número de atendimentos está em cerca de cinco mil. As pessoas nos procuram pelo Facebook, WhatsApp, Instagram, por e-mail. Há sempre essa busca, e as pessoas nos encontram por meio desse “boca a boca”, da divulgação da página no Facebook – que tem mais de 75 mil curtidas. Então é obvio que elas não são apenas de Salvador; há uma inserção no Brasil inteiro, e o Sudeste sempre é mais fortalecido.

Em Salvador, temos 130 processos ativos. Nos outros estados, a média é menor. Por exemplo, os estados em que mais temos representação são o Rio de Janeiro, com dez casos; em Sergipe, temos quatro. É um pouco menos porque a equipe de voluntariado é menor. Em Salvador, são vinte voluntárias, em

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plantão fixo, com atendimento todas terças e quintas. Oferecemos agrupamento psicológico − enfim, lá temos outra “pegada”, por ter sido onde o Coletivo nasceu.

E o que temos feito? Oferecemos essa assessoria de forma feminista, e é evidente que, a partir desse processo, estamos inseridas no movimento social. E não é só facilitador de Justiça Restaurativa que trabalha de graça, porque nós também atuamos de forma voluntária. Estamos dentro dos moldes da advocacia pro bono, do Estatuto da OAB, que é muito recente. Em Salvador, fomos chamadas pelo Conselho Estadual da OAB, a partir de uma tentativa de nos denunciar por captação ilegal de clientes. Dizia-se que estávamos captando clientes pela página do Facebook para poder receber honorários por fora. As pessoas não acreditam que queremos fazer o bem sem receber dinheiro por isso. No entanto, atuamos na perspectiva gratuita.

Eu brinco que, na verdade, não somos voluntárias. Nós pagamos para atuar. Eu gasto meu dinheiro para poder ir para audiências; para me alimentar, se eu passar o dia todo no fórum; pago para fazer o atendimento dessas mulheres; passo o dia inteiro no telefone respondendo mensagens. O Coletivo tem WhatsApp próprio, mas acabo respondendo a muitas mensagens no meu Facebook pessoal. No fim das contas, não paramos nem um minuto de fazer essa militância. Vivemos de amor, que é uma coisa linda. Amor alimenta − sou vegetariana e intolerante a glúten; eu não preciso comer, basta beber água e fazer advocacia pro bono, porque eu vivo assim, feliz, devendo aluguel e escola da filha. Mesmo assim, nós seguimos em frente.

Como tem sido nossa relação com as varas de violência doméstica e familiar? A TamoJuntas nasceu em abril do ano passado, e me fez, inevitavelmente, atuar exclusivamente com advocacia para mulheres. Eu fico responsável por um caso ou outro envolvendo homem, mas não agressor, como, por exemplo, aquele que foi preso por tráfico ou agredido pela polícia. Ainda assim, a minha atuação tem sido praticamente exclusiva para advocacia com mulheres e abarca tudo na perspectiva de várias violências, como pedido de medida protetiva e acompanhamento de ação penal, com atuação também nas varas de família.

Em alguns casos, temos pedido indenização por danos morais e materiais, e também por danos estéticos em razão da agressão, como, por exemplo, perda de dentes. Há um caso nosso em que o cara fez cinco

tatuagens no corpo da menina com o nome dele. Existem outros que são específicos de danos morais, materiais e estéticos. A partir da Lei Maria da Penha, conseguimos atuar dessa forma nos Juizados – não deveria precisar, pois “o cara faz isso comigo e eu preciso ingressar com uma nova ação?”. Não deveria. Enfim, a ação penal demora tanto que, às vezes, é mais rápido entrar com a nova ação, pois, na primeira, ainda nem terá sido feita a denúncia pelo Ministério Público.

Quero iniciar com uma reflexão sobre a Lei Maria da Penha. Não consigo me manifestar a não ser do meu lugar de fala – como todas que falaram aqui hoje –, que é muito específico. Sou mulher, preta, gorda – tenho que falar tudo, não é? –, tatuada, cabelo azul. E todos os dias em que entro numa audiência, tenho de provar que sou advogada. O tempo todo. Às vezes, eu ando com aquela brochura, que parece um passaporte, vermelha com letras douradas, para não deixar dúvidas. Porque eu vou vestida assim para a audiência; às vezes, vou com um vestido mais curto. Eu sou isto. Eu não determino a mim um estereótipo, nem um padrão. Fazer advocacia desse lugar de fala, que é extremamente específico meu, é algo muito doloroso. Já fui confundida com cliente; já atendi uma menina que estava sendo agredida no shopping e, de repente, um policial viu minha carteira da OAB na mão e perguntou: “você roubou com ela?”.

Eu sei que nenhuma advogada branca passa por isso. Existem circunstâncias muito específicas. E porque eu me refiro a elas? A Lei Maria da Penha é a terceira melhor lei do mundo, mas a sensação que eu tenho é de não ter sido feita para nós, mulheres negras. A sua aplicabilidade é perversa com as mulheres negras. Assim é porque vivemos em um país com um histórico de escravização, com uma história de se afirmar que o corpo das mulheres negras não é delas. O corpo das mulheres não é delas; e o corpo das mulheres negras, menos ainda. Então, precisamos começar a fazer uma reflexão.

A Lei Maria da Penha foi construída de forma profundamente democrática, com várias pessoas participando do processo de construção – e acho que Myllena Calasans falará um pouco a respeito. No entanto, ao mesmo tempo, há dados do mapa da violência que mostram que o número de violência e morte de mulheres brancas diminuiu em 10%, enquanto as mesmas estatísticas, nas mesmas legislações, pactos e políticas públicas, evidenciam um aumento da morte e da violência contra as mulheres negras em 54,3%.

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Quero fazer esse recorte, porque eu não tenho como falar de Lei Maria da Penha, de violência contra a mulher, de vara de violência, sem abordar o recorte racial. Eu vejo as minhas assistidas, todos os dias, passarem por esse tipo de condição, quando elas entram na delegacia e são questionadas sobre o que fizeram para apanhar. E, infelizmente, ainda existe um Judiciário que “abraça” e “põe no colo” mulheres brancas, porque são consideradas mais sensíveis, delicadas, frágeis. Nessa perspectiva, as mulheres negras também sofrem violência obstétrica todos os dias, porque se diz que elas são “boas para parir”, que aguentam a dor, que não precisam de anestesia. Essa discriminação se reflete inevitavelmente no Judiciário, é óbvio.

Há uma assistida minha– há, inclusive, um depoimento – que foi agredida no início do ano; duas semanas depois, saiu a medida protetiva; um mês depois, a ação penal e, em menos de um mês, foram encerradas todas as oitivas. Eu ouvi todas as testemunhas de acusação, inquiri todas – atuamos como assistente de acusação na ação penal –, e também as de defesa; ouvi o réu, a vítima, todo mundo. Se contarmos a medida protetiva e o processo, a duração foi menos de três meses. Tudo em três meses. Eu tenho vários casos de mulheres negras que sofreram violências tão grandes quanto ela, que têm seis anos de medida protetiva, e ainda não existe ação penal. Que critério é esse? Que critério é utilizado para entender que essa dor é maior?

A partir desse quadro, não tenho como não associar a questão à Justiça Restaurativa, porque, quando se diz que talvez o foco seja o pobre, eu trago o preto. É isso. Trago o pobre preto. E como é que fica? A sensação lembra o que os brancos colonizadores sempre diziam aos pretos: “vocês não sabem se organizar, vocês são desorganizados, brigam entre vocês; porque vocês são maioria e não se levantam aos colonizadores?”. Sempre disseram isso para os negros. Então, o que significa ao implantarem essa medida para nós? Que não sabemos conviver, não sabemos lidar com as questões e viver em sociedade.

Quero falar da Lei Maria da Penha. Seu processo de construção foi democrático. É óbvio que houve uma coordenação do Brasil para que a lei surgisse, mas também ocorreu um processo democrático de construção da própria lei, dos seus artigos. Esse processo de construção democrática se deu a partir da possibilidade de dialogar com a comunidade e com as pessoas que precisavam garantir a efetividade de uma lei que cuidasse de violência doméstica e familiar. Aqui, trago um ponto que, para mim, é muito

caro: a competência híbrida da Lei Maria da Penha. Para quem é do Direito e para quem não é, competência híbrida é justamente o caráter da Lei Maria da Penha de atuar na esfera cível e penal, o que seria o ideal. Imaginem o que é para essa mulher ir à audiência para resolver a questão de uma medida protetiva, uma audiência de ação penal e mais outra na vara de família, onde ela pede o divórcio, a pensão, alimentos etc. Ela precisa fazer tudo isso.

A competência híbrida garante a não revitimização dessa mulher que sofre violência, pois ela não precisa encontrar de novo e de novo com aquele cara. Isso não existe. Wânia Pazzinato podia estar aqui – seria maravilhoso – para trazer exatamente essa questão. Ela tem uma pesquisa a respeito, provando que, no Brasil, existem três cidades que praticam competência híbrida. Malmente você consegue alimentos com isso. Existe ainda um voto muito bom (STJ, 2014; 0288527-5), proferido recentemente por Marco Aurélio Bellizze no Superior Tribunal de Justiça, no caso de uma defensora que pediu o divórcio na própria vara de violência, com distribuição por dependência na medida protetiva do divórcio, como forma de garantir que a mulher requerente não precisasse ser ouvida de novo. Não precisa realizar outra audiência, já se entendeu que houve violência, que não há como continuar a relação; pronto, acabou. Foi dito que a vara de violência não possui competência para tal. O Ministro Marco Aurélio Bellize considerou que a vara de violência tem sim competência para realizar o divórcio. Que coisa linda! Já estou usando esse voto em todas as medidas protetivas que elaboro. Será tudo negado, não é? Mas, enfim, a gente segue.

Sobre medida protetiva, gosto de dar exemplos bacanas que têm acontecido. Lá em Salvador, há cerca de duas semanas, demos entrada em uma medida protetiva pela manhã, e à noite já havia sido concedida. Quem já viu isso na vida? Ninguém! Aconteceu, e eu fiquei emocionada; nem acreditava, e precisei ler várias vezes para confirmar que se referia àquele processo mesmo; mas saiu. O nosso grande problema, assim, não é a concessão da medida protetiva, porque ela sai. No entanto, quem intima, se não há prioridade no investimento financeiro para que a vara de violência funcione? Na Bahia e em várias partes do Brasil, não existem oficiais de justiça nessas varas; todos os pedidos seguem para a central de mandados. O oficial de justiça é feminista? Ele entende essa medida como uma prioridade e urgência? É logico que não. Ele vai entender qualquer coisa, inclusive busca e apreensão

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de carro. Não será uma prioridade cuidar da pauta de mulheres; não será prioritário “meter a colher”. Ele não fará com que isso aconteça de forma real.

A 1ª Vara de Violência Doméstica, em Salvador, tem adotado a estratégia – daqui a uns dias cai, mas está rolando – de intimar por telefone. De qualquer modo, hoje não fazemos mais nenhuma petição sem o telefone do cara. Colocamos o número do telefone, a marca, o WhatsApp, o endereço da mãe, dos parentes, de todo mundo, para não haver dúvida. Não é fácil.

As medidas protetivas não têm saído com alimentos provisionais − alimentos de urgência, por exemplo. Não têm saído com separação, divórcio, nada disso. A sua concessão é apenas para garantir o direito de ir e vir das mulheres, só o afastamento, a distância, ao contrário do que estabelece a lista da Lei Maria da Penha. Só o afastamento, só a distância. Temos uma medida, inclusive, que é de trinta metros. Eu pergunto para essa juíza: Por que a senhora deu mesmo? Por que estabelecer essa distância? Imaginem, trinta metros? Para quê? Essa mulher tem seis anos de medida protetiva, e é absurdo.

Na Bahia, surgiu a 2ª Vara de Violência Doméstica, em razão de uma denúncia feita ao CNJ sobre não haver sentenças. Foram, então, proferidas sentenças em massa − mas não no sentido de punir. As sentenças atrasadas há seis anos foram dadas em massa, mas todas extinguindo a punibilidade dos agressores − apesar de, em outros crimes, como tráfico ou furto, seja muito improvável que isso aconteça. O agressor não será punido pelo que fez. Tivemos um caso muito pesado, que só chegou até nós depois do prazo de apelação, em que a mulher perdeu a visão de um olho e a audição de um ouvido por agressões constantes na cabeça. Além disso, ela saiu de um emprego público, e sabemos que a Lei Maria da Penha prevê a possiblidade de afastamento. Ela perdeu tudo, inclusive o trabalho, a dignidade, a autoestima. E a juíza extinguiu a punibilidade do agente, apesar de todas as lesões sofridas por essa mulher.

Apresento, aqui, o problema de não existir a competência híbrida nas varas de família. Em uma decisão recente do Tribunal de Justiça de São Paulo, de 2016, a defensora pública pediu que a mulher não participasse da audiência de conciliação, em razão do histórico de violência doméstica, mas o juiz exigiu a presença sob pena de multa. No dia em que me chamarem para uma audiência de mediação ou de proposta

de círculo de Justiça Restaurativa e eu disser que não vou, vão dizer o quê? “Intransigente, não quer dialogar, histérica”. Porque é isso que somos. Não tenho o número do processo porque, agora, a medida protetiva corre em segredo de justiça, como alguns processos da vara de família também, em razão de criança; mas se pesquisarem “TJ/SP 2016 - vedada a participação em audiência de conciliação de violência doméstica”, aparece o link para o processo.

Esse caso foi muito emblemático porque o Tribunal de Justiça decidiu que a mulher não tem obrigação de estar presente. Ela não pode ser obrigada a participar de audiência de conciliação nem de mediação se houver histórico e comprovação de violência doméstica. Em todos os casos em que a TamoJuntas atua, nos quais há medida protetiva ou pelo menos o B.O. (boletim de ocorrência) da violência, nós já ingressamos com a ação na vara de família, informando na petição a falta de interesse em promover audiência de conciliação ou de mediação, pois se trata de histórico de violência. Apresentamos esses fatos na petição inicial e, mesmo assim, eles chamam para a conciliação e a mediação.

Eu tive um caso de execução de alimentos – em que é possível ser determinada prisão – no qual, ao entrar com a ação, o juiz simplesmente encaminhou para o setor de mediação. De acordo com o Novo Código de Processo Civil, é necessário haver possibilidade de mediação e de conciliação em casos de violência. E, nesse caso, o homem tentou matar a mulher algumas vezes. Ele estava armado; tentou matá-la com faca, tentou matar os filhos − a medida protetiva é em favor da mulher e dos filhos. Assim, mesmo com todas as evidências, ainda tivemos de comparecer duas vezes à audiência de mediação, que só não aconteceu porque eu interferi nas duas ocasiões. Na primeira, o agressor não compareceu; na segunda, ele apareceu. Eu insisti que, por existir uma medida protetiva, ele não poderia chegar perto da mulher e dos filhos. A mediadora me acusou de ser intransigente. Insisti novamente, até que, por fim, ela concordou em ouvir os dois separadamente. Ele está inadimplente até hoje e, mesmo assim, não foi preso.

Trago essa questão porque, com isso, as mulheres têm sido novamente violentadas. Quando Silvia Pimentel traz, por exemplo, a questão da ancestralidade dentro da Justiça Restaurativa, ela está relacionada à constelação familiar. Eu acho muito válido, mas não devemos forçar as pessoas a participarem dessa

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prática. O papel da Justiça não é definir que a mulher descubra quem é verdadeiramente o agressor. O papel da Justiça é dar direitos a ela, é garantir que estes sejam efetivados. A constelação familiar não tem funcionado para esse fim. Temos duas assistidas que desistiram de medida protetiva, após a realização dessa conduta. E elas se afastaram; nós tentamos fazer contato, mas elas se envergonham de desistirem da medida protetiva e também de terem voltado a viver com o agressor. E a culpa será de quem se elas morrerem?

Portanto, com a Justiça Restaurativa, estamos trazendo para o Judiciário um papel que não é dele. Estamos dizemos: vamos dialogar, vamos conversar, porque, na verdade, a culpa não é do agressor. Considero muito importante o diálogo da masculinidade, mas na perspectiva educacional. Com os homens adultos, agressores, não há uma forma simples de resolver a questão. Eu poderia dizer: “então, você é agressor, a culpa não é sua”. Eu acho que realmente não é, porque, às vezes, ele presenciou o pai batendo na mãe; o avô batendo na avó; sofreu violência, era espancado pelo pai. Enfim, pode ser que ele tenha vivenciado tantas situações de violência que tenham feito dele essa brutalidade. É comum escutarmos meninos – crianças − dizendo: “menino não pode chorar”, “menino não brinca de rosa”, “menino não veste tal cor”. Sabemos que o processo de construção da masculinidade é perverso. O que eu faço, porém, com o homem que me espanca todo dia, que quebra meu dente, que tenta me matar e me estupra? Não dá para “colocar no colo” e esperar que mude. Ele não vai mudar, porque a impunidade de não adotar medidas severas contra suas atitudes significa que ele pode fazer tudo de novo.

Temos um caso na Bahia, que, inclusive, surgiu logo após a ronda Maria da Penha em que um policial militar matou dez ex-mulheres. Sempre que ele matava, a polícia o transferia para uma nova cidade, onde ninguém sabia quem ele era. Era quase um processo de promoção, pois, ao se mudar para uma cidade em que ninguém o conhece, é possível construir uma nova vida. Apenas após a décima vítima, ele perdeu a farda. Precisaram morrer dez mulheres para que houvesse, de fato, algum tipo de justiça. Não pretendo dizer, com isso, que sou punitivista, mas eu quero justiça, eu quero minimamente que a lei seja aplicada. Essa é nossa maior dificuldade. Não há como implantar novas práticas como a Justiça Restaurativa sob uma lei que não consegue efetivamente funcionar.

Existem os CRAMs (Centro de Referência

de Atendimento à Mulher), mas funcionam somente para orientação. Os advogados não atuam jurisdicionalmente, ingressando com medidas protetivas ou ações na vara de família. Para que serve, então, se a defensoria está abarrotada e não consegue atender o número de pedidos e de pessoas que recebe?

Uma medida protetiva que a TamoJuntas interpõe sai, no máximo, em dois, três dias. A medida protetiva impetrada pela defensoria demora dez dias, porque esse órgão leva quase trinta dias para redigir a peça, em razão do número de demandas que tem. A grande diferença é que a TamoJuntas não recebe nada, e cada defensor ganha mais de vinte mil reais. Não quero obrigar o Estado a ter empatia, ou que seja feminista, mas sim que entenda que quem paga a ele sou eu e cada uma dessas mulheres agredidas. E, infelizmente, as pessoas não têm compromisso com as causas.

Proponho falar muito rapidamente sobre as audiências de custódia. Dentro da perspectiva da luta por direitos humanos, trata-se de algo extremamente importante, mas que faz com que o descumprimento de medida protetiva não seja efetivado. Quando o agressor descumpre a medida protetiva, o caso é levado à central de flagrantes, e o juiz interpreta como uma questão de pouca importância, pois o descumprimento não ocorre apenas com a agressão em si, basta apenas a violação da distância que não se deve ultrapassar. Já tivemos um caso em que o sujeito violou o espaço e sequestrou uma criança, mas o juiz entendeu que não se tratava de um crime perverso, pois a criança era filha dele, então ele não era perigoso, não tinha potencial criminoso; era um homem de bem, trabalhador, que não podia permanecer preso. Além do mais, as audiências de custódia garantem que, em alguns casos, o agressor saia com pagamento de fiança. No entanto, esse dinheiro não é destinado a centros de referência de mulheres, à construção de casas de abrigo, tampouco ao pagamento de novos profissionais. Não sabemos para onde vai esse dinheiro. O Piauí, pioneiramente, conseguiu criar um fundo da mulher, para onde se destinam as verbas originadas do pagamento de fianças das audiências de custódia.

Quero abordar, rapidamente, algumas resoluções. A Resolução nº 47 de 2012, do Tribunal de Justiça da Bahia, veda a competência híbrida da Lei Maria da Penha nas varas de violência do Estado. Ou seja, os desembargadores simplesmente criaram uma resolução com mais poder que uma lei federal; decidiram não cumpri-la completamente. O fundamento, com mentos de uma página,

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contendo apenas voto de desembargadores, é no sentido de o Judiciário já estar abarrotado de medidas protetivas.

A Portaria nº 15 de 2017, do CNJ, também nova, alterou o nome da vara para “Vara de Justiça pela Paz em Casa”. Cármen Lúcia usou o argumento de que o termo “violência” é muito pesado e que o nome da vara, enquanto permanecer assim, atrairá violência. Quem vai para a vara de violência se não tiver sofrido violência? Najla Brito – que tem, inclusive, um histórico muito bacana – foi quem participou da conversa com os juízes da audiência de custódia, dizendo a eles: “olha, está errado, o crime de descumprimento de medida protetiva é perverso”. No entanto, ela mesma disse, quando discutimos sobre não ser possível a mudança do nome, que, em conversa com um desembargador, ele sugeriu a alteração do nome como uma homenagem à Ministra Cármen Lúcia. Ela achou uma boa ideia e criou a vara com o novo nome. Ela não perguntou às pessoas, apenas decidiu, por iniciativa própria, após uma conversa de corredor, mudar o nome que está na lei federal.

Cito aqui apenas duas palavras que estão nessa resolução do CNJ: “restauração” e “estabilização” das relações familiares. Vocês conseguem entender o que é Justiça Restaurativa na vara de violência? Restauração e estabilização das relações familiares. Quem vai se silenciar de novo? Quem será culpabilizada?

Eu trouxe dois conceitos utilizados na Semana pela Paz em Casa, na Bahia, em que Cármen Lúcia esteve presente para o lançamento da 3ª Vara de Justiça pela Paz em Casa na Bahia. Foi uma semana de discussões na Vara de Justiça Restaurativa, a fim de nos convencer da sua importância. O conceito foi utilizado por uma juíza que estava lá, e que disse: “a Justiça Restaurativa, dentro dessa perspectiva, são ciclos de cultura de paz para solução de conflitos”. O outro conceito que eu utilizei foi: “paradigma não punitivo com vista à reparação de dano causado às partes envolvidas – vítima, ofensor e comunidade – e, quando possível, a reconstrução de relações rompidas”. Ao utilizar esse conceito, fiz perguntas a algumas de nossas assistidas. E isto dissemos a Najla Brito e a Carmen Lúcia: não é possível mudar o nome de vara, implantar determinada prática, sem ouvir as usuárias – elas precisam ser ouvidas. Não posso construir um diálogo na minha cabeça, nem com especialistas, porque eu não uso a vara de violência, eu não uso DEAM (Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher). Já sofri relacionamento abusivo, não dei queixa;

enfim, era “de menor”. Por mais ignorante que seja essa mulher, por menos conhecimento que tenha, é obvio que ela vai entender o que é “Justiça pela Paz em Casa”, considerando não se tratar de algo bom para ela. Como é que eu posso falar em justiça, em paz – e em que casa?

Apresento aqui, então, algo que, para mim, tem sido muito emblemático na discussão sobre Justiça Restaurativa, constelação familiar, resgate de ancestralidade, paradigma não punitivo, ciclos de cultura de paz, que é a religiosidade. Não há como falar sobre nada disso sem pensar em moral cristã, em família. E, com o Congresso que temos, é ainda mais difícil. Existe uma passagem bíblica que diz: “a mulher sábia edifica sua casa; a tola a derruba”. Quem é a tola? A que denuncia. “Vara de Justiça pela Paz em Casa” é calar a boca das mulheres. É silenciá-las para não haver mais um problema, para gastar menos dinheiro, ter menos políticas de abrigamento, menos políticas de incentivo às mulheres, menos práticas e pontos de combate à violência contra a mulher. É cala-las e fingir que o problema não existe. Isso já acontece quando a DEAM não recebe mulheres idosas nem adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar e de violência de gênero. Quando uma menina de quinze anos, na Bahia, foi morta pelo namorado porque ele estava com ciúmes, ela não entra na taxa de feminicídio; é morte de adolescente. O que se pretende com isso? Silenciar e afirmar que não se quer investir em políticas públicas, como se fatos assim nem existissem.

Perguntei para as mulheres: “o que significa para vocês pensar que existe uma resolução junto ao Conselho Nacional de Justiça para que, nas varas de violência doméstica e Familiar, seja implantada a Justiça Restaurativa?” Alguns relatos são muito extensos, porque eu conversei com elas pelo WhatsApp. Para vocês terem noção da diversidade de mulheres e de usuárias dessas varas que responderam a essa pergunta, ressalto que, dentre as nossas assistidas, há um casal de lésbicas; uma mulher sofreu várias tentativas de feminicídio e estupro seguidas, sofreu tortura e cárcere durante dois meses; há casos de irmã espancada pelo irmão; são vários. Tão diversos, há também casos de ameaça, sem violência física; existem vários relatos de violência psicológica.

Há meninas que tentaram suicídio. Segundo uma delas:

“Ciclo de paz? Os homens não estão respeitando a mulher, imagine fazer mediação. Conversinha de

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paz, me poupe. Gostaria que a lei fosse ainda mais dura, sem direito a nada. Que todos os processos tivessem condenação dura, e que a Lei Maria da Penha fosse realmente cumprida. Mediar a violência por si só é um paradoxo; como pode negociar um direito humano fundamental, a integridade física, psíquica e patrimonial? Difícil, desafiador. Acho que, nas Varas de Violência e na Justiça que trata a mulher como vítima, negociação de paz é inviável. Quando chegamos para dar entrada, acabou a razão, o equilíbrio, e não será lá que serão desfeitas as atrocidades praticadas pelos homens. Deformação de caráter não vai cessar lá nas varas. É desumano e proporciona um massacre com nós, mulheres. Caminhar e, quem sabe, perdoar o que aconteceu pode acontecer, para melhorar nossa reforma íntima e mental. Mas não significa que preciso conviver com eles. Pelo menos no meu caso, distância é bem-vinda, e prezo por isso. Não há como existir mediação de conflito com quem não nos ouve. Para quem nos culpa por simplesmente sermos quem somos e, mesmo não sendo o que querem, não nos deixam ir embora. Para quem bate como se estivesse batendo em um saco de pancadas, porque sentiu vontade ou porque criou na cabeça dele uma história em que a justificativa de tais atos só existe lá, e não é real; em que o erro é unilateral, e só vem da mulher. Há que existirem punições mais duras, não mediação de um conflito que é criado por um e somente. Temos nossas vidas e direitos roubados, e somos tratadas como se fôssemos mercadorias adquiridas por eles, sem direito de pensar, sentir ou questioná-los, apenas obedecê-los; não nos é dada outra opção. Caso esses ciclos de paz sejam aceitos, acho que só vai fazer com que a gente se sinta ainda mais insegura e com mais medo de denunciá-los, porque só quem passa por esse terror sabe o que é feito com nosso psicológico, como é nos ver a cada dia a um passo de morrer. É um absurdo acharem que pode ser feito acordo de paz com nosso torturador, estuprador,

sequestrador, assassino.”

Essa menina tem 22 anos. Ela viveu brutalidades em dois meses de relacionamento. Há mulheres que já passaram quinze, vinte anos vivendo um relacionamento abusivo. Não é a mesma situação de um cara que me roubou na rua porque usa drogas, situação em que posso dizer “eu entendo” e seguir a vida. Não é isso. É alguém com quem eu convivo, que me conhece, que finge externamente ser uma pessoa maravilhosa e, internamente, é horrível; é um cara que me bate, me agride física e psicologicamente, e faz isso na frente dos filhos. Faz com que a minha filha e meu filho sejam novos reprodutores de violência. Eu estou me referindo a pessoas que não são monstros, mas são perversas, extremamente calculistas. Falo de uma impunidade que, para essas pessoas, é a certeza de cometer novos crimes.

São muitos os relatos. Leio mais um:

“Sinceramente, é uma grande m..... Eu me sinto revitimizada. Eu quero que meu agressor pague pela violência que ele cometeu contra mim, até porque, se chegou ao nível de ele ameaçar minha vida, me agredir, me machucar, é porque não tem mais o que se conciliar. Já chegou ao extremo. Vejo essa justiça conciliatória como um meio de o agressor ficar impune. Normalmente, a mulher que procura ajuda na Justiça já sofreu outros episódios de violência, já tentou de todas as formas conciliar e negociar a não agressão com o companheiro em casa”.

Há vários outros; alguns são muito fortes. Lerei apenas mais um. O último, para acabar:

“Como se eu fosse culpada por não ter paz em casa. Não preciso de mediação, preciso de separação e justiça, leis que me resguardem e apoio para denúncias. Tratamento digno e justiça, acima de tudo. Separação, proteção, paz, justiça. No mínimo, um insulto. É isso o que eu acho, é me colocar no mesmo patamar do agressor”.

Agradeço esta oportunidade, ressaltando que não é possível dialogar, não é possível mediar e não é possível aplicar Justiça Restaurativa nas varas de violência. Não é por mim, não é pela minha cabeça. O Supremo Tribunal Federal já

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vedou, e várias legislações também o fazem. A própria Lei Maria da Penha entende não ser crime de menor potencial. Lutamos muito até agora para morrer na praia. Não é possível que muitas de nós tenham morrido, sofrido violências, passado por várias coisas, para, retroagirmos e dizermos “cale a boca, não denuncie”. Todos os dias encorajamos várias mulheres a procurarem a rede de atendimento, de acolhimento; incentivamos meninas e mulheres a criarem coletivos feministas, organizações feministas. Não é possível que, agora, escolhamos fazer esse tipo de prática.

Era isso que eu queria dizer.

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Desafios para a aplicaçãoda lei Maria da Penha

mesa 3

(Fragmentação do Direito e do Sistema de Justiça)

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Lei Maria da Penha e as disputas pelos modelos de justiçaFabiana Severi

Inicio com a tentativa de responder à pergunta sobre quais serão os próximos passos e o porquê deste workshop sobre violência doméstica e Justiça Restaurativa. Nossa preocupação inicial não foi, em si, em relação à Justiça Restaurativa ou a qualquer técnica que tem sido nomeada com esse enquadramento, como é o caso da constelação. A questão que nos motivou não foi uma crítica às técnicas. Até porque muitos teóricos e teóricas têm apontado uma série de ganhos em relação ao conjunto de práticas conhecidas sob o título Justiça Restaurativa. Precisamos tomar muito cuidado para não reforçarmos, no debate aqui proposto, uma concordância com o sistema penal de caráter retributivo, que encarcera em massa, principalmente, a população negra e jovem brasileira. É muito importante um cuidado nesse sentido.

Uma das principais causas de nossa preocupação, e que motivou a organização deste evento, é que a proposta da Justiça Restaurativa como política judiciária, feita pelo CNJ, se deu sem nenhum diálogo com o consórcio de ONGs feministas que atuou na elaboração do projeto de lei que deu origem à Lei Maria da Penha, ou mesmo com o campo feminista ou com os diversos núcleos, coordenadorias, serviços e instâncias criadas nos últimos anos como parte da rede de enfrentamento à violência doméstica.

Buscamos, então, promover o diálogo a partir da sociedade civil. Além deste seminário, no início deste ano um conjunto de representantes das ONGs do consórcio pediu uma audiência com a Ministra Cármen Lúcia para tentar entender um pouco mais sobre tal política, buscando o início de um diálogo. Houve, recentemente, uma audiência pública na Câmara dos Deputados, coordenada pela Comissão de Direitos da Mulher, para discutirmos o assunto junto ao Legislativo. Assim ocorreu para que pudéssemos discutir alguns de nossos receios e identificar como a alternativa da Justiça Restaurativa tem sido pensada, já que os trinta anos de reflexões e debates do campo feminista brasileiro sobre políticas de enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres não parecem ter sido considerados pelo CNJ no momento de construção de tais políticas.

Este workshop foi elaborado nesse mesmo sentido e se propôs a ser um espaço para que possamos nos aproximar a fim de entender

melhor o que é a Justiça Restaurativa, qual o modelo de política proposto pela Lei Maria da Penha e os tipos de interação entre o movimento feminista brasileiro e o sistema de justiça. A ideia visou favorecer um acúmulo de informações e reflexões a partir tanto do campo feminista que atuou na construção das políticas propostas pela Lei Maria da Penha, quanto do campo de estudos sobre Justiça Restaurativa.

É muito importante que, no espaço deste evento, possamos construir entendimentos que respeitem o ponto de partida de cada uma. O debate, por exemplo, proposto pela advogada Laina Crisóstomo nos levou a problematizar o tema a partir das experiências de quem se encontra no dia-a-dia das franjas da rede de atendimento às mulheres em situação de violência, de quem testemunha de perto como a política judiciária do CNJ tem sido traduzida pela justiça comum e afetado mulheres sujeitas a múltiplas vulnerabilidades e discriminações. Laina nos apresenta, portanto, com uma fala muito forte, dados obtidos do “chão em que ela pisa” cotidianamente.

Com essas considerações iniciais, passo a debater o tema que cabe a mim, tomando como base o trabalho que defendi recentemente no meu concurso de livre-docência. A proposta é destacar alguns pontos da tese que possam colaborar com a discussão aqui estabelecida. A principal afirmação que apresento é que o CNJ, por meio das resoluções tratadas, parece ter abandonado, muito cedo, o modelo de justiça desenhado pela Lei Maria da Penha, em favor de outro padrão que, não necessariamente, segue a teoria ou está de acordo com experiências de Justiça Restaurativa realizadas em outros contextos. A ênfase nas demais técnicas e modelos alternativos proposta pelas resoluções do CNJ carrega o risco de acentuarmos um processo que, no meu trabalho de livre-docência, nomeio como “domesticação da Lei Maria da Penha”.

A Lei Maria da Penha simboliza um ganho dos movimentos de mulheres e feministas brasileiras, do ponto de vista da sua capacidade em, nos termos da teórica Carol Smart, desafiar o Direito e o poder que ele tem em definir as mulheres, o lugar das mulheres e os gêneros. Por que a lei desafia o poder do Direito? Houve um esforço muito grande, nos anos 1980, de autoras como a própria professora Silvia Pimentel e a

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jurista Leila Linhares, em produzir análises empíricas e teóricas relativas ao funcionamento do Poder Judiciário em demandas envolvendo direitos das mulheres. Na década de 1980, tais pesquisas não só explicitaram o fenômeno da violência doméstica contra as mulheres praticada, sobretudo, por parceiros íntimos, mas também conseguiram explicitar a violência institucional, realizada pelo próprio Estado, que, por meio do direito, definia o lugar e o papel da mulher na sociedade brasileira. Essas pesquisas também identificaram o perfil de funcionamento do Judiciário em casos de homicídio de mulheres, de estupro ou outras violências. O Judiciário reforçaria o lugar sem voz das mulheres, definido previamente pelo próprio ordenamento jurídico em vigor à época.

Nos anos 1990, o trabalho do movimento feminista, como talvez a maior parte das pessoas aqui presentes não saibam, foi buscar estratégias de incidência política e jurídica voltadas à reforma da legislação brasileira, especialmente do Código Penal, uma das leis mais marcadas por aquilo que Jurema Werneck chama de “racismo patriarcal heteronormativo”. Silvia Pimentel e Leila Linhares, juntamente com tantas outras juristas feministas brasileiras, participaram de um intenso trabalho de advocacy feminista para que vários dispositivos do Código Penal e da nossa legislação civil fossem modificados. Alguns exemplos: a extinção da punibilidade do estuprador em razão do casamento com a vítima (artigo revogado em 2005); a previsão da “chefia da sociedade conjugal masculina” (artigo 263 do antigo Código Civil); a anulação do casamento em casos de constatação de que a mulher não fosse virgem antes do casamento etc.

É preciso, então, situar o tratamento jurídico dado aos casos de violência doméstica no contexto jurídico-normativo que definia um lugar subalternizado às mulheres. Nesse sentido, a Lei Maria da Penha desafia o poder do Direito de definir o lugar da mulher e os gêneros. Tal normativa, em primeiro lugar, aborda a violência institucional, a violência praticada e reproduzida pelo próprio Estado ao tolerar as inúmeras situações de subordinação das mulheres e de desigualdades de gênero, raça e muitas outras que afetam mais marcadamente as mulheres.

O outro ponto a destacar é que, a partir do foco na violência doméstica, o movimento de mulheres brasileiro levou muito a sério um dos principais slogans do feminismo no mundo: “O Pessoal é Político!” Esse é um ponto muito importante. Talvez, mesmo nós,

entusiastas de modelos e técnicas restaurativas e abolicionistas, estejamos próximas de cairmos em ciladas quando o desconsideramos. A violência doméstica contra as mulheres está estruturada em uma série de eixos de desigualdade. Seu enfrentamento, portanto, não se faz de modo dissociado de um projeto de justiça social. Essa tarefa a Lei Maria da Penha cumpre, literalmente. Essa norma, em seus primeiros artigos, dispõe que o enfrentamento da violência contra a mulher se faz por meio da garantia de direitos sociais. A Lei também situa as mulheres no centro da atenção do sistema de justiça e de todos os outros, que devem atuar em rede. O desenho de justiça previsto na Lei se ancora, portanto, em um modelo de democracia radical, do ponto de vista do lugar oferecido às mulheres e do tipo de resposta do Estado ao problema.

É fundamental trazer aqui as discussões recorrentes junto ao Fórum Justiça. Considero que a Lei Maria da Penha não está enquadrada no modelo de justiça retributiva, mas, sim, num padrão integrador, nos termos preconizados pelo Fórum Justiça. Explicitar que a violência doméstica está associada a uma demanda de justiça social acaba por potencializar o nosso poder de crítica ao Direito de raiz racista, patriarcal e heteronormativo.

A potencialidade da Lei Maria da Penha de desafiar o poder do Direito, no entanto, convive com outros processos que nomeio de “domesticação da Lei”, expressão que me incomoda por poder associar o doméstico a algo pejorativo. Eu me refiro aqui aos processos de diminuição das potências da Lei, de seu potencial de desafiar o Direito, por meio de enquadramentos a dissociam do projeto feminista de justiça social e de democracia radical que a sustenta.

O primeiro processo de domesticação da Lei Maria da Penha se deu pela forma com que ingressou no debate jurídico-acadêmico brasileiro. Os estudantes de Direito só ouviram falar da Lei nas disciplinas de Direito Penal e Processo Penal e, às vezes, em Criminologia. Em tais áreas, o que ouviram falar, em termos de processos sociopolíticos que culminaram na sua aprovação, foi sobre o que chamei de “mito de origem” da Lei. A experiência social e política, muito plural e complexa, que deu origem à lei é substituída pela história de uma mulher, a Maria da Penha e a condenação do Brasil no sistema interamericano de direitos humanos. Essa história, no fim das contas, não garante o acesso da academia jurídica às teorias feministas, à ação política e às perspectivas jurídicas feministas

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que sustentaram a construção da Lei. Trata-se de algo que acarreta diversas consequências para o processo de interpretação e aplicação dessa legislação.

O segundo processo, associado ao primeiro, diz respeito ao enquadramento da Lei e de seus dispositivos a um modelo punitivista de resposta à violência doméstica. Maria Lucia Karam, por exemplo, escreveu um texto nos anos 1980 em que nomeia um tipo de movimentação da esquerda para o Direito Penal como “punitivismo de esquerda”. Ela faz uma crítica muito pertinente à questão, em vários aspectos, naquele contexto. Essa crítica, todavia, acabou por ser reproduzida em outros temas, cujos clássicos são: violência doméstica contra a mulher e a questão da tipificação do racismo como crime.

A Lei Maria da Penha não cria um tipo penal. Ela aumenta a pena do crime de lesão corporal, mas de forma combinada com uma série de mecanismos voltados ao atendimento integral à mulher em situação de violência. Esse aumento foi motivado pela compreensão de que os Juizados Especiais Criminais eram espaços reprodução cotidiana de violência institucional. O enquadramento da Lei no rótulo de punitivista tem nos impedido de

entender o modelo de justiça nela previsto. Poderíamos adotar a nomenclatura, de acordo com a proposta do Fórum Justiça, de “modelo de Justiça Integrador”, no qual, inclusive, estariam abarcadas diversas técnicas e perspectivas comuns aos modelos de justiça restaurativa. Todavia, quando o CNJ aponta para o uso de técnicas de Justiça Restaurativa, não fica evidente se a dimensão do entendimento da violência doméstica nos marcos dos direitos humanos e de um projeto de justiça social não está sendo substituída por compreensões familistas ou reducionistas.

Um último eixo que eu poderia destacar aqui envolve as tentativas de reforma legislativa que, implícita ou explicitamente, afetam a Lei Maria da Penha. É possível trazer uma outra norma que revoga tacitamente a Lei Maria da Penha. Por exemplo, o crescimento do discurso sobre a temática da alienação parental. O que dizemos até o momento – sem querer adotar uma posição contrária ou favorável à Justiça Restaurativa, pois só perderíamos com isso – é que não podemos mais incorrer nos erros do passado, que consistem em restringir a violência doméstica ao ambiente ou a uma experiência da esfera privada, negligenciando a dimensão da violência institucional.

Desafios para a aplicação da Lei Maria da Penhaem face da fragmentação do direito e sistema de justiça

Myllena Calasans de Matos

Caberá a mim fazer o fechamento, já que o pedido de Fabiana Severi era para que eu construísse o histórico da Lei Maria da Penha e o contexto atual em que se dá, ou não, a sua implementação.

Relativamente ao histórico, a questão foi muito abordada por Silvia Pimentel e Leila Linhares. Ambas trouxeram um pouco do trabalho do consórcio, das ONGs de CEFEMEA, do CLADEM, da Themis; na época havia ainda a Agende, a Advocacy e a CEPIA como ONGs feministas. Muitas juristas, advogadas e defensoras públicas também se envolveram no processo de discussão. Nesse contexto, ressalto a apresentação da Secretaria de Política para as Mulheres; o encaminhamento para o Congresso Nacional teve pontos de divergência, porque, quando o primeiro texto saiu do Executivo,

a proposta era continuar os julgamentos com a aplicação do procedimento da Lei nº 9.099/1995, aproveitando-se a estrutura dos Juizados Especiais Criminais. O movimento feminista foi contrário a essa proposta, por conta da experiência de dez anos na prática de aplicação dessa lei, e o resultado, acompanhado por pesquisas, era catastrófico. Muitos casos eram transacionados a pagamento de cestas básicas ou eram arquivados, com base frequente no argumento de que “as mulheres não querem a condenação dos homens”. Porém, transmitia-se às mulheres a responsabilidade de haver processado o marido, pai dos seus filhos, que a sustentava.

O ponto de discussão girou em torno de quem teria legitimidade para propor a ação penal. Nesse aspecto, os casos de ameaça e

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lesão corporal leve, crimes mais presentes na época, ficaram como ação penal pública incondicionada, sob a responsabilidade do Ministério Público, ou seja, do Estado, de não tolerar a prática, que era, porém, considerada como um encargo das mulheres. Muitas vezes, as mulheres têm uma posição de não querer o processo. No entanto, se explicado o contexto, é possível uma modificação de pensamento no sentido de responsabilizar o agressor, de não se tolerar tal prática.

Esse era todo o contexto e o modelo de acesso à justiça para as mulheres vítimas de violência doméstica. Foram, então, pensados os Juizados de Violência Doméstica contra as Mulheres com competência hibrida, para diminuir o que chamávamos da via crucis dessas mulheres para o acesso à justiça. Contudo, até agora, houve uma abordagem apenas de seu aspecto punitivo, apesar de a Lei não ser somente isso; ela foi pensada como um sistema. Alterar um elemento muda todos os demais. Em razão disso é que, enfaticamente, as organizações que redigiram a minuta e todos os que abraçam e veem a importância dessa Lei ressaltam que qualquer proposta de alteração deve ser discutida com o restante.

Nesse quadro, tivemos um embate, no ano passado, com a proposta da área de segurança pública da polícia de modificar a competência para concessão da medida protetiva, retirando-a dos juizados da magistratura e passando-a para o sistema de segurança pública. Nós nos opusemos. Foi uma surpresa, porque são mais de cem proposições legislativas que tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal só de modificações da Lei Maria da Penha. Essa mudança teria o impacto de modificar diretamente o texto, alterando a concepção original da Lei Maria da Penha.

No ano passado, ocorreram essas mesmas críticas em relação ao Projeto de Lei Complementar nº 07 de 2006, que, infelizmente, foi aprovado neste mês. A aprovação se deu também sem diálogo, mesmo que tenhamos pautado a questão no ano passado. Conseguimos parar a sua tramitação durante um ano, para levantar as discussões. Não houve, contudo, discussão com a sociedade civil ou com as organizações de mulheres; a defensoria pública não participou desse debate, tampouco a magistratura e o Ministério Público. E se trata de uma alteração na “espinha dorsal” da Lei.

É preciso ter cuidado com a Lei Maria da Penha, porque ela atinge mais de 50% da população brasileira. Então, é também

nesse âmbito que se coloca a ressalva quanto à proposta do CNJ de aplicar a Justiça Restaurativa, pois ela não veio acompanhada de um debate. É uma crítica também levantada por outros operadores do sistema de justiça: a defensoria pública e o Ministério Público, e até mesmo os juízes apontam os problemas existentes. Em artigo publicado por uma juíza do Distrito Federal, demonstrou-se justamente a preocupação com a aplicação da Justiça Restaurativa sem um debate. Questiona-se o porquê da aplicação, uma vez que se trata de uma lei desenhada e premiada como um modelo a ser seguido por outras nações. Os países vizinhos que atualizaram a sua legislação ou que promulgaram novas leis na década de 1990 e no início de 2000 utilizaram a Lei Maria da Penha como espelho, principalmente no tocante à experiência dos juizados e a previsão de violência moral, que não existia em outras leis.

Entre 2012 e 2013, ocorreu a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito de Violência contra as Mulheres, que passou mais de um ano percorrendo todo o país, ouvindo organizações de mulheres, o Ministério Público, a defensoria pública, a magistratura; foi às varas, viu propostas que poderiam ser colocadas como modelos, identificando os entraves para uma aplicação adequada da Lei. Mostrou sua importância, seu valor simbólico, uma vez que era conhecida por 98% da população brasileira. No entanto, também mostrou que, por exemplo, o conteúdo das medidas protetivas não era conhecido pelas mulheres; que havia − como ainda há − deficiências na qualidade do atendimento. Demonstrou a necessidade de capacitação, de aumento da rede e de mais recursos, de que essa política se tornasse prioritária tanto para o Governo Federal quanto para os demais. Embora a Secretaria de Política das Mulheres tenha sido um grande fomentador da expansão da criação do serviço nos estados, também se verifica a necessidade de empenho por parte dos Estados e Municípios, assim como do Judiciário, por meio da expansão das varas.

A crítica não recai sobre sua incapacidade de fornecer respostas, e sim à falta da devida implementação da Lei Maria da Penha. O quadro atual assim se apresenta porque a proposta de Justiça Restaurativa como política pública assume uma interferência muito grande no modelo original da Lei, sem se que sejam novamente ouvidos os setores. No cenário de grande restrição de recursos, a Secretaria de Política para as Mulheres, que era um fomentador, está praticamente inexistente. Era um Ministério, que passou a ser Secretaria

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Nacional e, agora, atua quase que em terceiro escalão. O programa da Casa da Mulher Brasileira, que reuniria todos os serviços no mesmo espaço, pensado primeiramente para ser aplicado nas capitais ou nas principais cidades do país, visava diminuir o fluxo a partir da possibilidade de resolução dos casos no mesmo dia, que acabavam se prolongando. A respeito, em Brasília, já houve medidas protetivas de urgência expedidas em até quatro horas. Contudo, das casas desenhadas, só estamos com três. Todo o programa está parado; os convênios foram suspensos. Então, é neste cenário que nos encontramos: praticamente um desmonte da Lei Maria da Penha, com ausência de execução dos recursos, de expansão da rede, de se considerar a política como prioritária, seja no âmbito executivo ou judiciário. A mudança implementada pelo CNJ carece de discussão com todos os atores envolvidos, porque altera a “espinha dorsal” da Lei Maria da Penha.

A aprovação do PLC nº 07 retira da competência dos Juizados a concessão das medidas protetivas, que passará às delegacias, com toda a sua deficiência estrutural na realização das investigações. Nelas não se cumprem os mandatos de intimação para comparecimento na investigação; terão, ainda, de conceder as medidas protetivas e garantir seu cumprimento. O cenário é que uma vai ficar passando para o outro, se a lei não for vetada ou se o STF não a declarar inconstitucional posteriormente.

A questão da aplicação da Justiça Restaurativa, por sua vez, causa um impacto tão grande que pode vir a desmontar todo o sistema. O que acontece não é um fracasso da Lei, e sim que ela não foi implementada devidamente. Os juizados híbridos, a grande proposta para o acesso à justiça, não foram implementados. Então por que não implementar? Há uma proposta em um dos estados no sentido de se tornar uma vara modelo sobre como aplicar a Lei, em um esforço conjunto dos Poderes Executivo e Legislativo locais, alocando e destinando mais recursos; das organizações de mulheres, trabalhando e fazendo projetos de Promotoras Legais Populares, ajudando a difundir a Lei e as experiências que o movimento tem.

Em Recife, por exemplo, quando não existia a Lei Maria da Penha, havia um grupo de mulheres na periferia que, ao tomar conhecimento de que uma mulher sofria violência, pegavam um apito e iam para a frente da casa dela, como uma forma de intimidação da pessoa do agressor. Muitas vezes, aquelas mulheres não levavam o caso para a ocorrência policial. Quando percebiam

que a agressão iria ocorrer, já pegavam o apito para alertar a vizinhança, e o grupo se reunia, intimidando. Depois, havia até uma tentativa de diálogo com o homem, para conscientizá-lo sobre a sua forma errada de resolução dos conflitos, sobre como a culpa não é da mulher. Geralmente, eram coisas bastante básicas, como a mulher não ter feito o jantar. A pergunta é se a Justiça terá paciência para ouvir tudo isso, quando for necessário ouvir.

Logo, esse é o contexto todo inserido na questão. Além do mais, existem mudanças, por exemplo, dentre esses cem projetos de lei, que visam retirar a perspectiva de gênero da Lei Maria da Penha. Quando presente a perspectiva de gênero, defronta-se com a ação dos grupos fundamentalistas religiosos no Congresso, que aproveitam alguns projetos, explicita e implicitamente, para propor modificações, porque consideram que só é mulher quem nasceu com vagina. Calcados na questão da ideologia de gênero, não querem que a Lei contemple as mulheres transgêneras, por exemplo. Na medida em que aumenta a perseguição à difusão da perspectiva de gênero, tratada pelo recorte fundamentalista da Igreja católica e dos grupos evangélicos como algo que acabará com a família, fica ameaçada uma parte importantíssima da Lei Maria da Penha relativa à educação sobre a violência e a sua prevenção.

Existem ameaças em praticamente todos os eixos da Lei. No âmbito da assistência, da prevenção, da coibição e até da reparação. Tal contexto enfraquece, em sua totalidade, não só essa norma, mas também outras formas de atuação. Um exemplo, como referido por Juliana Tonche, é que, sem estar interligada a uma rede – seja para a Lei Maria da Penha na violência contra as mulheres, ou para outras formas de conflitos –, sem a existência de uma política, a aplicação da Justiça Restaurativa no sistema de justiça será desacreditada pelas pessoas. Todos esses são riscos que corremos.

Paralelamente a esse cenário, já temos mapeadas ações de grupos autônomos dentro do movimento, que estão construindo algumas experiências de criar um serviço próprio. Trata-se de ocupar uma casa e criar um serviço para formar um sistema acolhedor, ou de reconhecer a intensidade do sofrimento das mulheres. É tanto preconceito, tanta discriminação, uma violência institucional a mais que elas viverão, depois de terem sofrido a violência ou conhecerem alguém que a sofreram. Trata-se não mais incentivá-las a procurar o Estado, mas sim outras formas de resolução de conflitos. Poderia ser, assim, a justiça alternativa, uma

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I WORKSHOP LEI MARIA DA PENHA & JUSTIÇA RESTAURATIVA

forma de resolução alternativa, que não passa pelo Estado, dada a gravidade presente no atendimento às mulheres. Quando a questão se cruza com a violência em outros campos, como o tráfico de drogas, com mulheres situadas em áreas de conflito, torna-se ainda mais difícil. Se não existir a devida atenção, a Lei Maria da Penha não será suficiente, e tampouco a Justiça Restaurativa.

Não deve haver o medo de nomear que as mulheres sofrem violência pelo fato de serem mulheres. Não é mudando o nome de Vara de Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres para Vara da Justiça pela Paz em Casa que a violência deixará de existir. O fenômeno, infelizmente, não cessará, pois suas razões são outras. O cenário em que nos encontramos é muito grave, portanto, e é necessária a percepção sobre o contexto de redução de recursos; o avanço dos grupos fundamentalistas na discussão de ideologia de gênero, que coloca a questão sob a perspectiva de feministas estarem acabando com a família; a oposição a discussões sobre gênero na escola, como política de prevenção, afirmando-se que esse debate cabe à esfera privada, ao mesmo tempo em que se defende que a religião, sim, deve ser discutida na escola. Temos, então, que olhar para todo esse contexto, que circunda não só

aplicação da Lei Maria da Penha, mas também outras propostas de resolução de conflito, em outros âmbitos.

Recentemente, em abril, houve a aprovação da lei do depoimento sem dano, que cria um sistema de atendimento para crianças e adolescentes testemunhas e vítimas de violência. É uma norma ampla e interessante, que define a forma de violência institucional no atendimento das crianças, com propostas na área de assistência. Na questão do acesso à justiça, ela recomenda a criação de juizados específicos para esse tipo de julgamento. Enquanto estes não forem criados, os casos podem ser julgados nas varas, por exemplo, de violência.

A possibilidade de que esses casos desaguem nos juizados de violência doméstica constituem uma outra forma de alteração. Em vez de o foco do sistema de justiça ser a mulher, estamos perdendo o que deveria ser a questão central por meio do discurso “familista”, como já evidenciado muito bem por Silvia Pimentel e Leila Linhares. Se assim ocorrer, a vara será para tratar de conflitos das famílias, e as mulheres sairão do foco. Outro risco é que, muitas vezes, elas terão de continuar no ciclo de violência que as atinge a fim de haver uma restauração familiar.