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8/13/2019 As Noites de Flores - Cesar Aira
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As noites de Flores
Csar AiraTraduo Paulo Andrade Lemos
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UM CASAL DE MEIA-IDADE DE FLORES, Aldo e Rosita
Peyr, adotou um ofcio curioso no qual eramnicos, despertando a curiosidade dos poucos que
sabiam disso: faziam entregas noturnas em do-
miclio para uma pizzaria do bairro. No que eles
fossem os nicos a faz-lo, como ficava patente
pelo exrcito de rapazes de moto que ia e vinha
pelas ruas de Flores e por toda Buenos Aires des-
de o pr-do-sol, como camundongos no labirin-
to de um laboratrio. Mas no havia nenhum ou-
tro casal de meia-idade (nem jovem) que fizesse
isso a p, e do seu prprio jeito.
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Eles eram membros muito caractersticos de
nossa maltratada classe mdia: com uma apo-sentadoria medocre, casa prpria e sem grandes
apertos, mas tambm sem muita folga. Com sade
e energia, ainda relativamente jovens e sem nada
para fazer, teria sido de espantar que no pro-
curassem alguma atividade com que completar a
sua modesta renda. No se propuseram a ser ori-ginais. O trabalho apareceu um pouco por acaso
porque conheciam o jovem gerente da pizzaria e
tambm talvez porque aquilo se parecia com um
no-trabalho. A crise, que vinha ocasionando
tantas adaptaes estranhas nos hbitos, acabou
fazendo com que a oportunidade se encaixasse.As pizzarias deixaram de ter a sua prpria frota de
motos depois que perceberam que podiam operar
com entregadores que tinham seu prprio veculo.
Houve uma reduo drstica na oferta de traba-
lho, e o que restou fez-se mais imprevisvel ainda,
pois os adolescentes que eram donos das motoci-cletas trabalhavam somente quando precisavam
de dinheiro e mudavam de patro como quem
muda de roupa. O casal Peyr era pontualssimo,
responsvel, e o passo-a-passo deles funcionava.
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Davam-lhes as entregas em locais prximos, num
raio de ao reduzido, e no se podia dizer quedemorassem mais do que os motoqueiros e nem
que as pizzas chegassem frias. Ganhavam o pe-
queno salrio estabelecido, mais as gorjetas. E
alm do mais, isso os obrigava a caminhar, o que
era um exerccio recomendado para a idade deles,
timo para a sade, e nem foi preciso que um m-dico lhes dissesse isso.
O trabalho os ps em contato com uma parte
da sociedade que de outro modo desconheceriam.
E tambm com uma parte deles mesmos que no
teria vindo luz. Como tantos casais da idade de-
les, iam ficando cada vez mais parados, passandoas noites na frente da televiso, indo se deitar
cada vez mais cedo. Ao abrir-se a noite para
eles, foi como uma renovao de uma espcie
de juventude. E os rapazes extremamente jovens
que eram seus colegas de trabalho na pizzaria os
tratavam com a maior naturalidade. Eram quasemeninos, ou eram meninos mesmo, vistos do alto
da idade de Aldo e Rosita, o que no os impedia
de aprender com eles. As geraes, ao se renova-
rem, trazem coisas novas que no tm nada a ver
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com a experincia, ou colocam a experincia em
outro plano. Aqueles garotos eram, alm do mais,especiais. As motos, a rua, os horrios noturnos,
tudo isso dava a eles um carter muito sedutor de
liberdade, de audcia, de independncia, ou talvez
fosse esse prprio carter, com o qual j haviam
nascido, que os levava a exercer aquele ofcio. O
gerente da pizzaria contou uma vez ao casal Peyrque eles eram uma boa influncia para aquela
tropa juvenil. Naquela noite, nas longas con-
versas nas caminhadas para entrega das pizzas,
eles elaboraram essa informao e concluram
que as influncias eram sempre mtuas e, por
mais fantstico que possa parecer, eles tambm seenriqueciam com o que recebiam.
Os trajetos seguiam um itinerrio muito
particular, e por um motivo curioso. Pedestres
cautelosos, da velha escola, atravessavam as ruas
somente nas esquinas, respeitando os sinais de
trnsito quando os havia, se bem que o perigoque representavam os automveis diminusse bas-
tante depois das dez ou onze da noite. Diminua e
aumentava ao mesmo tempo porque os veculos,
por serem em menor quantidade, trafegavam em
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maior velocidade. Ao caminhar, Rosita se coloca-
va sempre esquerda de Aldo porque o ouvido
esquerdo dele funcionava melhor que o direito
e, como sempre iam conversando sobre alguma
coisa, ele preferia que ela ficasse do lado em que
ouvia melhor. Devido a um costume muito antigo
(sempre caminharam muito) ele lhe cedia o lado de
dentro, perto da parede, como havia aprendido na
infncia que era o que um verdadeiro cavalheiro
deveria fazer, sentindo-se desconfortvel quando
ficavam posicionados de outro modo. Para cum-
prir os dois requisitos ao mesmo tempo, tinham
que mudar de calada a cada vez que dobravam
uma esquina. Em certos casos, isso os obrigava
a estender irracionalmente o percurso, mas para
minimizar isso havia sempre um traado timo do
itinerrio. Esse clculo pode parecer complicado,
mas eles o faziam automaticamente.
Esses mapas virtuais fizeram-se visveis,
apenas visveis e durante apenas um momento,
quando se produziu uma guerra de motos, o que
era freqente, mas que naquela oportunidade teve
um carter furioso e espetacular.
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Os motoboys de cada estabelecimento de-
senvolviam fortes sentimentos de pertencimento
a um grupo e, conseqentemente, de rivalidade
com outros grupos do bairro. Montados em ve-
culos que naturalmente sugeriam uma disputa de
velocidade, as corridas e os pegas eram habituais.
Em peridicas erupes esportivas, haviam-se
enfrentado em eventos ocorridos de madrugada
quando terminava o trabalho. Os circuitos esco-
lhidos eram as ruas mais vazias, no lado norte
das avenidas, porm tambm j o tinham feito
no movimentado setor sul adjacente aveni-
da Rivadavia, e uma vez at na prpria avenida.
No seria exagero observar que tudo era infrao
nesses torneios; tudo era perigo e tormento para
os vizinhos devido ao barulho infernal. Mais de
uma pessoa deve ter pensado, e com bons motivos,
que aquelas eram mais competies de barulho
do que de velocidade. As corridas tinham que ser
curtas como ataques-surpresa, porque a polcia
demorava apenas alguns minutos para aparecer,
o que, somado aos problemas de organizao ine-
rentes juventude dos participantes, sua irres-
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ponsabilidade, disputa entre os grupos rivais, fa-
zia desses pegas um caos, por sorte, fugaz. Os donosdas pizzarias, que no fim das contas seriam os res-
ponsabilizados, tinham proibido terminantemen-
te as corridas de moto sob ameaa de demisses
sumrias em massa. Eles no ignoravam que, se
acontecesse uma tragdia, e era um milagre que ain-
da no tivesse ocorrido nenhuma, teriam que pa-gar um preo muito alto, o que inclusive poderia
afast-los do negcio e lev-los runa. Este foi
um dos motivos pelo qual eles deixaram de ter
uma frota de motos e agora, quando contratavam
um entregador com veculo prprio, faziam com
que os pais assinassem um documento isentandoo estabelecimento de qualquer responsabilidade
pelo que seus funcionrios motorizados pudessem
fazer, sozinhos ou em grupo, mesmo antes ou de-
pois do horrio de trabalho.
Na realidade, os enfrentamentos mais renhi-
dos tinham ocorrido entre as pizzarias ou entoentre estas e outros setores da entrega em domi-
clio: comida chinesa, pastelarias e sorveterias.
Os piores embates ocorriam entre a pizzaria e a
sorveteria. Justamente o pega que o casal Peyr
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testemunhou foi o desenlace de uma srie de de-
safios e rancores acumulados entre os entregado-res da pizzaria para quem trabalhavam, o Pizza
Show, e os da sorveteria Freddo. Toda essa garo-
tada provinha mais ou menos do mesmo estrato
social, no entanto, uma espcie de identificao
mimtica ligava os garotos ao estabelecimento
para quem faziam as entregas, ou at mesmo aoproduto com o qual trabalhavam. Os entregadores
das democrticas pizzas sentiam-se obrigados a
representar uma classe popular sujeita aos altos
e baixos na economia do pas. Enquanto isso, os
pilotos das quinze motos azuis da Freddo, trans-
portando os luxuosos sorvetes de sabores rebus-
cados, viam-se sintonizados com o carpe diem
de uma classe mdia esbanjadora, imprevidente,
anti-social. Quem que tinha que correr mais?
O que tinha que conservar o calor ou o que tinha
que conservar o frio? O que era mais importante?
O alimento ou a guloseima?
Tanto uns quanto outros j tinham sido ad-vertidos que aquelas loucuras no seriam mais
toleradas. Os ltimos pegas tinham produzido
todo tipo de problemas com a polcia. Longe de
amedront-los, essas ameaas fizeram com que
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eles decidissem subir a aposta e organizar um
evento memorvel.Na quinta-feira do desafio, quando os sinos
da baslica comearam a bater meia-noite (iam to-
car cem badaladas fnebres, porque naquela tar-
de havia sido encontrado o cadver de Jonathan,
o rapaz seqestrado, um caso que tinha mantido o
pas em suspense durante uma semana), trintamotocicletas rugindo iniciaram uma corrida lou-
ca... pela calada, no pela rua. Nunca se viu nada
de mais demente e perigoso. As caladas tinham
menos de quatro metros de largura. Trinta motos
lanadas a toda velocidade sobre essa passarela
exgua formavam uma onda heterognea e multi-colorida de metal, plstico, carne juvenil e rudo.
Todos empurravam para o lado da parede, pois
quem caa na rua pelo meio-fio tinha que esperar
pelo fim do cortejopara se reincorporar ao grupo.
Formava-se uma espcie de ziguezague compacto
que, mesmo sem se estabilizar e mesmo sem dei-xar de ser um caos, permitia uma aprendizagem
de habilidades a uma velocidade cada vez mais
acelerada. Em trinta segundos deram a volta no
quarteiro e pularam para a quadra seguinte, e
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assim foram descendo quadra por quadra fazendo
desenhos em forma de oito at a avenida Rivada-via (tinham comeado na Directorio), onde chega-
ram quando soava a badalada nmero noventa e
nove. Com a centsima badalada, se dispersaram,
fugindo dos carros da polcia que confluam para
o local, fazendo soar as sirenes das viaturas de
todas as delegacias do bairro.A grande serpente de trovo deixou tudo
trmulo. Os moradores que dormiam ou se pre-
paravam para ir deitar acharam que se tratava de
um terremoto, alguns chegaram a supor que era
o justo castigo dos Cus pela morte de Jonathan.
Os que assomaram s sacadas e conseguiram
v-los no acreditavam no que viam. H que se
reconhecer que havia motivos para que ficassem
atnitos: a rua vazia e aquela procisso pela cal-
ada. Geralmente, na vida atual, nada acontece.
Se existe alguma notcia, a televiso a transmite,
ela assimilada muito rapidamente e deixa de ser
novidade. A possibilidade de surpreender-se qua-se no existe porque a surpresa sempre retrocedeu
ao passado imediato, restando somente a repeti-
o. Aquilo ali, ao contrrio, prosseguia vibrando
sem explicao, sem repetio.
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Aldo e Rosita, que estavam entregando a lti-
mapizza da noite, os viram passar na calada emfrente. Mesmo estando de sobreaviso de que eles
estavam preparando alguma coisa, pois percebe-
ram suas confabulaes, jamais teriam imaginado
que seria aquilo. Se soubessem, teriam ficado em
casa. Mas que loucos, que loucos, murmuravam,
vendo passar aquela espcie de trem expresso demotocicletas. Demoraram alguns segundos, os
poucos segundos necessrios para que a feroz ca-
ravana tivesse dobrado a esquina, para pensar na
prpria segurana. Se no tivessem atravessado
para a calada em frente, teriam trombado com
eles. Escapamos por um triz, disse Aldo. Mas,
um momento... Qual era a calada em frente? Em
frente de qu? Os enroscamentos daquele circui-
to estavam transformando um lado no outro o
tempo todo, o em frente no em frente do em
frente. O rudo proveniente do fundo do tabuleiro
de damas das ruas do bairro de Flores anunciava
um regresso iminente... Continuaram andando. Ocalor suave e o aroma que emanava das pizzas
que Aldo transportava com a pequena ala da
embalagem pendurada no dedo, esse microclima
em que avanavam e se sentiam protegidos, hoje
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no os protegia. Chegaram esquina quando o
rugido furioso j os ensurdecia e atravessaram,sem pensar, somente para se colocarem nas res-
pectivas posies habituais... e o rio de motos
tornou a cruzar na frente deles. Ufa! Escapamos
outra vez! Mas era outra vez? Devia ser, porque
se repetiu na quadra seguinte, e na outra, e na ou-
tra... at que terminaram as badaladas, e terminoua corrida.
Tocaram a campainha e um homem desceu
para buscar apizza. Pagou-lhes e deu-lhes uma
gorjeta generosa, felicitando-os pelo servio ul-
tra-rpido. O que lhes surpreendeu, porque para
eles parecia que tinha se passado uma eternidade.
Porm, pelo visto, eles tinham vindo quase cor-
rendo. O homem ficou ainda mais um momento
na porta, olhando para a esquina.
Agora h pouco havia um barulho tre-
mendo, vocs no viram nada?
Depois de uma breve hesitao, Aldo respondeu:
Era uma procisso de motos em homena-gem a Jonathan.
O homem fez uma cara sria e murmurou
algo, assentindo: Coitado do garoto... Coitados
dos pais dele...
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Quando ficaram ss e comearam a retornar,
Rosita felicitou o marido pela mentira plausvelque ele havia improvisado. Acharam que isso, na
verdade, poderia ser um bom pretexto para des-
culpar esses garotos loucos, se houvesse uma in-
vestigao policial. Era perfeitamente verossmil
que os entregadores de Flores tivessem querido
fazer, a seu modo, uma homenagem ao rapazassassinado, j que ele tambm tinha exercido o
mesmo ofcio com sua moto e, alm do mais, ele
era do bairro.
claro que essa idia no passou pela cabe-
a dos responsveis pelo evento. O que fizeram
foi pela pura exuberncia animal de suas vidas esuas motos, talvez tambm pela liberdade que o
horrio da meia-noite lhes dava. E tambm no
se poderia descartar completamente a exaltao
da morte, que havia estendido um manto de me-
lancolia por sobre toda a Argentina. Porm, neles,
isso poderia ter causado uma reao do tipo Se o
Jonathan morreu, ento tudo permitido.
A idia da desgraa, com a qual pretendiam
assust-los e cham-los razo, no lhes era to
distante. Pelo contrrio, eles a tinham muito pre-
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sente, faziam apostas com ela; ela era o fermento
dos seus desafios. Mas encaravam a morte de ummodo muito impessoal, como as baixas estats-
ticas que ocorrem em todas as guerras. Era a pos-
sibilidade mxima de sua participao no grupo.
Talvez fossem jovens demais para pensar de ou-
tra maneira. Se morressem, iriam se transformar
numa estrela aplicada na moto de seu competidor.Quando, naquela tarde, as telas de todos os tele-
visores veicularam a espantosa notcia da morte
de Jonathan, assassinado por seus seqestrado-
res, a deciso, j tomada, de organizar a corrida
mais perigosa jamais concebida pela imaginao
tomou sentido e se fez inevitvel. A morte, comoum cu negro, chamava clamorosamente os as-
tros, os pontos de luz brilhante. E a forma da
corrida, o enroscamento das voltas e reviravoltas
meia-noite, evocava a formao de uma dessas
galxias espiraladas repletas de mundos. Que lhes
importava a opinio dos adultos! Eles eram inde-pendentes. A luz que os iluminava por dentro era
a insero deles no mercado de trabalho.
claro que no se poderia generalizar. Por
um lado, eles formavam uma horda homognea
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da mesma gerao que pensava igual e reagia em
unssono. Por outro lado, eram todos diferentes.Rosita e Aldo participavam das duas vises. Um
dos lderes do grupo de tarefas do Pizza Show
era um rapaz de quatorze anos, Walter. Seu pai,
divorciado, expiava a culpa de ter abandonado
o lar com presentes caros, muito alm de suas
possibilidades. Um deles tinha sido a bela motojaponesa que era a menina-dos-olhos de Walter.
Estudava no Liceu da Aeronutica e era to bri-
lhante que sabia armar e desarmar um GPS e por
isso lhe haviam oferecido um bom emprego numa
oficina de consertos desses aparelhos. O GPS (Glo-
bal Positioning System) uma pequena maravilhatecnolgica que revolucionou a navegao e a lo-
calizao, o equivalente moderno da bssola. Ele
envia um sinal que captado por um satlite que
o devolve em forma de coordenadas bastante pre-
cisas, informativas do posicionamento no territ-
rio. Estas coordenadas so traduzidas numa telaque um mapa onde um pontinho luminoso indi-
ca o local em que se encontra o GPS. Os modelos
menores cabem no bolso e so to precisos quan-
to os grandes, usados nos avies a jato das linhas
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comerciais, ou nos barcos e nos trens. Usam-no
tambm os alpinistas, os velejadores, e at mesmo
simples excursionistas. Os carros novos j vm
com o GPS de fbrica (o prmio do seguro contra
roubo diminui neste caso). Em pouco tempo, as
mes o estariam usando para no se perderem de
seus filhos nos supermercados ou nas praas. A
acelerao do progresso cientfico fez com que
seu uso se generalizasse de um modo quase sub-
reptcio, pois o grosso da populao continuava
ignorando a sua existncia, e os que o conheciam
continuavam vendo-o como um joguinho mgico
ou como um segredo da Nasa. Parecia incrvel que
houvesse, e em Buenos Aires, uma oficina de con-
sertos de GPS. Porm, era uma realidade, e Walter
podia testemunhar que aquela no era a nica e
nem a maior, e que ali chegavam cinqenta apare-
lhos por dia para consertar. O mais espantoso era
terem contratado um garoto de quatorze anos para
fazer os consertos, quando a complexidade desta
tecnologia teria feito pensar que seria necessrio,
pelo menos, um engenheiro formado numa univer-
sidade americana. Porm era normal, e todo mun-
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do aceitava isso com naturalidade. Sabia-se to
pouco sobre o funcionamento de um GPS quantodo funcionamento da mente de um adolescen-
te moderno.
Havia outra coisa que era ainda mais sur-
preendente: o fato de que, meses depois de haver
recebido essa oferta, Walter continuasse sendo
entregador do Pizza Show. Era fcil imaginar queo salrio seria vrias vezes superior e com me-
lhores perspectivas. A princpio, ele tinha alegado
um problema de horrios, mas na realidade era o
oposto: como ia ao colgio de manh, o trabalho
noturno da entrega era o que menos conviria a
ele. Disse que gostava, simplesmente, e que o ex-citava sair a toda velocidade pelas ruas escuras de
Flores com umapizza e com um sentimento de li-
berdade e de aventura (e tambm havia o fato de
que lhe pagassem para faz-lo, porque, seno,
dava no mesmo sair para vagabundear). E havia
tambm a camaradagem entre os colegas, o grupi-nho estacionado na calada da pizzaria, os papos
interrompidos pela partida repentina de um ou de
outro, a lealdade ao grupo. No eram argumentos
muito convincentes. Tanto que terminou usando
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como desculpa a Grande Corrida das Galxias, de
cuja organizao foi a alma mater.Mas havia uma causa secreta para a sua per-
manncia ali e isso tinha a ver com uma velha
lenda segundo a qual, oculta no meio dos bandos
de entregadores motorizados de Flores, havia uma
moa que se fazia passar por um rapaz. Era inevi-
tvel que essa fbula brotasse do imaginrio co-letivo. Numa poca em que os dois sexos compar-
tilhavam todos os trabalhos de igual para igual,
o delivery tinha ficado no domnio exclusivo dos
rapazes por algum motivo que permaneceu sem
explicao. O inexplicvel era o ponto de partida.
A romntica sede de amor e de mistrio, prpriada idade, fazia o resto. Na mente inquisitiva e
precisa de Walter, a fantasia tomou o peso da
certeza e coloriu a sua vida inteira como uma pai-
xo. Suas suspeitas rodaram em espiral por todo
aquele pequeno mundo noturno, de colega em co-
lega, de moto em moto. Nem por um instante lhepassou pela cabea que ele tambm poderia ser
objeto de suspeita. Era bonito como uma menina,
tinha a pele de alabastro, os olhos meigos com
longos clios, o cabelo fino, as mos de boneca,
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esbelto e gil como um gato. Alm disso, a moda
impunha roupas largas, ideais para o disfarce dossexos, e ele sempre andava na ltima moda. Era
quase elegante demais.
Uma complexa srie de indcios e raciocnios,
ou intuies, ou talvez sonhos acordados, levou-o
a dirigir suas suspeitas para um rapaz chamado
Diego. Como costuma acontecer nesses casos,havia algo de reao retardada nesta concluso,
tipo como que eu no pensei nisso antes, que
s no era concludente porque o enigma conti-
nuava, tornando-se cada vez mais denso. Diego
havia trabalhado com ele na entrega do Noble Re-
pulgue, uma pastelaria. Ele tinha uma velha motovermelha emprestada, era um pouco tmido e
muito prudente, como todos os que usavam motos
emprestadas, e Walter tinha simpatizado com ele.
Quando Walter se transferiu para o Pizza Show,
Diego foi junto com ele, coisa que o surpreendeu
porque no tinham uma relao especialmenteprxima. Ao contrrio, Diego havia se mostrado o
tempo todo mais apegado a um outro entregador,
o maior do grupo, em consonncia com a neces-
sidade de proteo que parecia sentir. Porm, saiu
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de l com ele, e isso o agradou. Exceto que, pouco
tempo depois, ele tornaria a surpreend-lo, indotrabalhar na sorveteria Freddo, sem explicaes,
a no ser aquela que ele poderia supor: a de que
no haviam renovado o emprstimo da motoci-
cleta e, sendo assim, tinha lgica a mudana para
a grande sorveteria, o nico estabelecimento de
Flores que continuava mantendo sua prpria frotade veculos, as famosas quinze motos azuis com
caixas trmicas.
Diego teria por volta de quatorze ou quinze
anos, era pequeno, com um jeito infantil, a pele
plida e os olhos rasgados, algo entre o coreano
e o boliviano, bonito a seu modo. Por que quepassou pela cabea de Walter que ele era uma ga-
rota? Pela sua timidez, pelo seu mistrio, por suas
mudanas sem explicao, ou porque sua ateno
havia pousado nele, simplesmente. Visto por este
prisma, a mudana para a Freddo assumia um
significado distinto, como uma traio ou umaprovocao. Ou talvez como uma espcie de men-
sagem cifrada. Lamentava no t-lo examinado
com mais ateno quando o tinha prximo, quan-
do trabalhavam juntos. Mas a ateno sempre
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operava desse modo, um pouco anacrnica, quase
brincalhona: ela despertava quando o objeto daateno tinha se afastado. Buscava na memria e,
a sim, os desejos errantes se fixaram no instante.
Uma das caractersticas com a qual a lenda havia
se enriquecido era a velocidade fantstica que a
moto prateada dessa garota lunar desenvolvia, o
que lhe permitia superar todos os seus persegui-dores masculinos. E ele achava que se lembrava...
que Diego retornava rpido demais de suas en-
tregas ou que, magicamente, sua moto parava de
fazer barulho logo depois de se afastar, ao sumir
na escurido de uma rua lateral... Porm, conclua
racionalmente que a memria poderia engan-lo.Foi assim que teve a idia de fazer aquela
corrida louca pelas caladas. Organizou-a para
ter Diego prximo dele no tumulto das voltas e
obrig-lo a confessar seu segredo, pois tinha colo-
cado, sem ningum ver, um GPS na moto dele. Os
furiosos movimentos em oito no meio da noite fa-riam retroceder o tempo at onde ele necessitava.